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CASTIGOS CORPORAIS
MAUS TRATOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
Sumário
Sumário (da responsabilidade do Relator): I. A aferição do grau de gravidade das condutas que toquem a integridade física das crianças, em ordem a perceber se atingem a qualificação como «maus tratos», deve fazer-se não propriamente à luz de uma escala gradativa moldada pelos critérios comuns de avaliação das ofensas à integridade física. II. Essa aferição deve fazer-se, antes, tendo como referente valorativo essencial a especificidade da condição da vítima, do seu lugar no mundo e em casa e a sua natural vulnerabilidade a atos que a humilhem a seus próprios olhos, degradando a sua dignidade de ser com direitos e prejudicando as bases do seu desenvolvimento como adulto saudável. III. Nesse juízo concreto ganham particular relevo a circunstância de os atos agressivos ocorrerem num ambiente que deveria ser protetor e vindos de quem é visto pela vítima como figura protetora; e o significado que os gestos tenham ou possam vir a ter. IV. Se ao primeiro ato de execução relevante segundo o regime do crime de maus tratos, vigente à data dos factos (2019/2020), se sucede um outro, relevante já segundo o regime do crime de violência doméstica, mais gravoso, entretanto entrado em vigor, deve ser aplicada a lei nova ao conjunto unitário dos factos.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – Relatório
Pelo Juízo de Competência Genérica de ... foi proferida sentença, em ... de ... de 2025, que contém o seguinte dispositivo: «Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga a acusação pública parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência decide:
A. Absolver o arguidoAA da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea e) do Código Penal, agravado nos termos do nº 2, alínea a), punido acessoriamente nos termos do nº 4, 5 e 6 da mesma disposição legal;
B. Condenar o arguido AA pela prática de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 2 do Código Penal, nas penas de 4 (quatro) e 10 (dez) meses de prisão;
C. Em cúmulo jurídico (das penas parcelares aludidas em B.), condenar o arguido AA na pena única de 1 (um) ano de prisão, substituída por 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros), no montante global de 1.680,00€ (mil seiscentos e oitenta euros);
D. Condenar o arguido AA a pagar à vítima BB, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, a quantia de 750,00€ (setecentos euros), acrescida de juros contados a partir da presente sentença, calculados à taxa legal fixada para os juros civis, até efectivo e integral pagamento;
E. Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, já reduzida a metade em face da confissão integral e sem reservas, e nos demais encargos do processo, sem do benefício do Apoio Judiciário (artigos 344º, nº 2, alínea c) e 513º, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III Anexa do mesmo diploma).»
O Ministério Público recorreu, apresentando as seguintes conclusões: «1) O arguido encontrava-se acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, al. e), agravado pelo nº2, al. a), do Código Penal. Na sentença, e em face dos factos dados como provados, decidiu o Mmº. Juiz a quo alterar a qualificação jurídica e condenou o arguido pela prática, na forma dolosa e consumada, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada (arts. 145º, nº1, al. a) e nº2, ex vi do artigo 132º, nº2, al. a) do Código Penal), decisão com a qual o Ministério Público nesta instância não concorda, mercê dos factos dados como provados, e que se sujeitam a superior apreciação. 2) O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade em relação aos crimes parcelares que consubstanciam cada conduta isoladamente considerada. 3) No preenchimento dos elementos objetivos do tipo legal de crime em causa, o crime de violência doméstica, não se exige a prevalência de uma relação de domínio ou subjugação da vítima, nem se exige uma especial intensidade ou gravidade da conduta, inexistindo reflexo no texto da lei que o considere, pelo que tal interpretação é errónea enão encontra respaldo no preceito incriminador, violando-se assim o disposto no artigo 152º, nº1 do Código Penal, o que se argui (conforme o artigo 412º, nº2, al. a) do Código de Processo Penal). 4) O bem jurídico tutelado pelo tipo de crime de violência doméstica sumariza-se na saúde globalmente considerada, sendo esta consubstanciada pela saúde física, mental, emocional/psicológica, traduzida igualmente no desenvolvimento livre e salutar da personalidade. Ademais, e perante a agravação constante do nº 2, alínea a), tutela-se igualmente a saúde física em contextos e circunstâncias em que a vítima se encontre socialmente isolada, no domicílio, onde é mais difícil quebrar o silêncio e pedir auxílio a terceiros, onde impera a ausência de testemunhas, onde as crianças e jovens têm o seu reduto de segurança e devem ter o centro do seu bem-estar e proteção, sendo estas seres humanos carecidos de especial proteção a exercer pelos seus familiares e, designadamente, pelos progenitores. 5) Ao dar como provado que o arguido quis molestar a saúde física e psicológica da ofendida, prejudicando o seu equilíbrio emocional, bem sabendo que tais condutas seriam suscetíveis de lhe causar dores, medo, inquietação, insegurança, ansiedade, afetando-a na sua dignidade pessoal, o que logrou conseguir, mas ao condenar o arguido pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, o Tribunal recorrido desconsiderou que as condutas em questão impactaram a saúde não só física, como emocional, mental/psicológica da vítima, refletindo-se igualmente no seu desenvolvimento salutar, como criança e pessoa particularmente vulnerável e carecida de proteção que é, surgindo o arguido como figura paterna a que se encontra associado o papel protetivo. 6) O Tribunal recorrido também deu como provado que as condutas do arguido tiveram lugar no domicílio comum da vítima e arguido (ponto 7 da factualidade provada), mas não considerou essa factualidade aquando da decisão de alterar a qualificação jurídica e ao condenar o arguido pela prática de dois crimes de ofensas à integridade física qualificada, desconsiderando esses factos provados, ficando estes excluídos da qualificação jurídica dada pelo Tribunal, o que nos leva a crer na interpretação errónea da lei e do próprio preceito legal, no que tange aos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de violência doméstica. Assim, interpretou erroneamente a lei ao decidir-se pela qualificação jurídica dada nestes autos, dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, (art. 145º, nº1, al. a) e nº2, art. 132º, nº2, al. a) do CP), erro a que se alude à luz e por força do disposto no artigo 412º, nº2, al. a) e b) do CPP. 7) As condutas descritas e dadas como provadas na sentença integram os elementos típicos do crime de violência doméstica. Ao ter decidido alterar a qualificação jurídica para a prática, pelo arguido, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, o MM.º Juiz a quo violou o disposto no artigo 152º, nº 1, alínea e) e nº 2, alínea a) do Código Penal, o que expressamente se argui, para efeitos do disposto no artigo 412º, nº2, alínea a), do Código de Processo Penal. 8) O Tribunal a quo interpretou erroneamente o disposto no artigo 152º, nº1, al. e) e nº2, alínea a) do Código Penal, ao interpretar que, para o preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica, é necessária a existência de uma especial gravidade e intensidade, bem como de relação de domínio do agente e subjugação da vítima, o que, salvo melhor entendimento, é nosso parecer que não tem cabimento no elemento textual do preceito incriminador, o que desde já se argui à luz do disposto no artigo 412º, nº2, al. b) do CPP. 9) Errou o Tribunal ao decidir-se pela alteração da qualificação jurídica e, consequentemente, errou ao aplicar as normas penais incriminadoras do artigo 145º, nº 1, al. a) e nº 2 ex vi do artigo 132º, nº2, al. a) do Código Penal, devendo ter sido aplicado o disposto no artigo 152º, nº1, al. e) e nº2, al. a) do mesmo Código, o que se argui para efeitos do disposto no artigo 412º, nº2, al. c) do CPP. 10) A sentença deverá ser revogada por força da errada alteração da qualificação jurídica dos factos operada, devendo ser proferida nova decisão que, mantendo os factos dados como provados, conclua pela condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nº1, al. e), e nº 2, al. a), do Código Penal. 11) Concluindo-se pela condenação do arguido nos termos defendidos e supra expendidos, e atendendo ao disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2016 de 22-02-2016, entende o Ministério Público, nesta instância, que o arguido deverá ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. e), e nº 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução (art. 34º-B, nº1 e 2 da Lei nº112/2009 de 16/09, e art. 50º a 53º do Código Penal), pelo mesmo período, não se justificando, porém, a sua condenação na pena acessória, nos termos dos nºs 4, 5 e 6 do mesmo artigo (pelo menos, em nosso entendimento, no que tange às penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, ou inibição do exercício das responsabilidades parentais), sendo a aplicação destas penas acessórias dependente de ponderação judicial atentos os princípios da culpa e da necessidade, centrada igualmente nas necessidades de prevenção especial, não se tratando de consequências automáticas e necessárias da decisão condenatória (assim, Rui do Carmo e Margarida Santos, Legislação sobre Violência Doméstica Anotada, ob. Cit, p. 52). Na medida em que a vítima criança coabita com o progenitor, inexiste outro familiar de retaguarda, o arguido confessou integralmente os factos – demonstrando a interiorização do desvalor do seu comportamento -, encontra-se social e familiarmente inserido, labora e garante o sustento diário da filha (que retirou de um contexto de perigo junto da progenitora), e pese embora os seus antecedentes criminais pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, considera-se que inexistem razões ponderosas para a necessidade de aplicação de pena acessória a que se alude no nº4, 5 e 6 do artigo 152º do Código Penal, ficando ao critério do Tribunal de segunda instância a ponderação da sujeição do arguido a programa específico de prevenção da violência doméstica. CONTUDO, V.EXAS. DECIDIRÃO, COMO SEMPRE, CONFORME MELHOR FOR DE JUSTIÇA.»
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O Arguido não respondeu.
Uma vez chegados os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta pugnou pela procedência do recurso, concluindo que deve o Arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, com regime de prova e sujeição do Arguido a um programa específico de prevenção da violência doméstica, tudo nos termos do disposto nos arts. 50º a 53º e art. 152º, nºs 1, alínea e), 2, alínea a) e 4 do Código Penal e 34º-B, nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16/09.
Cumprido o preceituado pelo art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi junta.
Não se mostra requerida a realização de audiência.
Proferido despacho liminar, foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
A problemática central que se nos põe no presente recurso é a de saber, em síntese, se os factos dados como provados pela sentença recorrida integram ou não o crime de violência doméstica propugnado pelo Recorrente, ao invés dos dois crimes de ofensa à integridade física qualificada pelos quais o Arguido foi condenado.
Na procedência da propugnada alteração da qualificação jurídica, haverá ainda que ponderar as sanções a aplicar.
2.2 A sentença recorrida
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: «1 – BB nasceu a ... de ... de 2012 e é filha do arguido AA e de CC. 2 - No âmbito do Processo nº 421/13.9...-A, por sentença datada de ... de ... de 2017, BB ficou à guarda e aos cuidados do seu pai, o ora arguido, com quem passou a ter residência habitual até ao presente. 3 - Em data não concretamente apurada, mas seguramente entre 2019 e 2020, quando BB frequentava o 1º ciclo do ensino básico, o arguido muniu-se de uma colher de pau e desferiu uma pancada com a mesma nas mãos da filha, ficando a ofendida com as mãos inchadas e doridas. 4 - No dia ... de ... de 2024, em hora não concretamente determinada, mas pelo menos antes das 22 horas, na residência comum sita na ..., em ..., na sala de estar, o arguido desferiu pelo menos duas pancadas com recurso a um cinto para as calças na zona das nádegas e na parte de trás da coxa esquerda da ofendida, justificando-se com a existência de um teste escolar escondido por parte da filha e a necessidade de lhe dar um castigo e corrigi-la. 5 - Como consequência directa e necessária, a ofendida sofreu dores durante pelo menos dois dias, ficando com marca vermelha no local do impacto do cinto no seu corpo, nas áreas atingidas. 6 - Ao actuar como descrito, quis o arguido molestar a saúde física e psicológica da ofendida, prejudicando o seu equilíbrio emocional, bem sabendo que tais condutas seriam susceptíveis de lhe causar dores, medo, inquietação, insegurança, ansiedade, afectando-a na sua dignidade pessoal, o que logrou conseguir. 7 - Bem sabia o arguido que actuava dentro da residência comum, prejudicando o ambiente familiar e o sentimento de segurança da ofendida naquele ambiente, mas mesmo assim representou tal resultado, quis e concretizou-o. 8 - Mais sabia o arguido que, ao agir da forma mencionada, actuava sobre a sua filha menor de idade que consigo habita de forma permanente, no entanto não se coibiu de praticar tais condutas, querendo-as e concretizando-as. 9 - Em tudo, o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei. Mais resultou provado que: 10 – O arguido exerce a actividade profissional de ... nos ... e aufere o salário mensal de 1100€/1200€. 11 – O arguido tem uma roulotte em part-time, da qual retira mensalmente a quantia líquida de cerca de 200€. 12 – O arguido reside com a filha menor de idade BB e com a mulher DD em habitação própria, com a qual despende mensalmente, a título de crédito à habitação, a quantia de 300€. 13 – A mulher do arguido encontra-se desempregada e a realizar mestrado na .... 14 – O arguido despende mensalmente com a roulotte a quantia de 200€. 15 – O arguido obteve o 12º ano de escolaridade através da rede valorizar. 16 - O arguido assumiu a totalidade dos factos por si praticados, mostrou arrependimento e interiorização da ilicitude das suas condutas. Dos antecedentes criminais do arguido: 17 – No âmbito do Processo Sumaríssimo nº 30/22.1..., que correu termos no Juízo de Competência Genérica de ..., por sentença datada de ...-...-2023 e transitada em julgado em ...-...-2023, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2022, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), no montante total de 270,00€ (duzentos e setenta euros) – pena declarada extinta em ...-...-2023.»
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E procedeu o Tribunal recorrido ao enquadramento jurídico-penal destes factos do seguinte modo: «Cumpre, agora, fazer o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto supra descrita, mais concretamente, verificar se a factualidade apurada consubstancia qualquer ilícito criminal, nomeadamente, a prática pelo arguido, em autoria material, na forma dolosa e consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea e) do Código Penal, agravado nos termos do nº 2, alínea a), punido acessoriamente nos termos do nº 4, 5 e 6 da mesma disposição legal. * DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Preceitua o artigo 152º do Código Penal que: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”. O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é complexo, abrangendo a tutela da saúde nas dimensões física, psíquica e emocional. Objecto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a protecção de um estado de completo bem-estar físico e mental (neste sentido e a título de exemplo, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 19-02-2025 (Processo nº 576/23.4GBPRD.P1; Relatora: Liliana de Páris Dias) e de 12-06-2024 (Processo nº 227/22.4PBMTS.P1; Relatora: Liliana de Páris Dias), e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-06-2023 (Processo nº 28/22.0GCLRA.C1; Relator: Vasques Osório) – disponíveis em www.dgsi.pt). No dizer de Américo Taipa da Carvalho, a “ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam esta dignidade. Portanto, deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, p. 332). Como considera Paulo Pinto de Albuquerque trata-se de um “crime de dano (quanto ao bem jurídico)” e “tendencialmente de resultado (quanto ao objecto da acção)” (in Comentário ao Código Penal, 3ª Edição, UCE Editora, 2015, p. 591), e ainda de um crime específico impróprio, pois só pode ser cometido por quem possui determinada qualidade ou sobre quem recaia um dever especial. A lei não define o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, apenas esclarece que nele se integram castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. Assim, incluem-se no conceito maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visam atingir directamente o corpo do ofendido, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de braços e pancadas ou golpes desferidos com objectos, portanto, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física. E integram o conceito de maus tratos psíquicos, entre outras acções, “os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, provocar estados de angústia e sentimentos de sujeição, opressão, que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação” (nestes termos, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-01-2023 – Processo nº 564/19.5PIPRT.P1; Relator: Donas Botto; disponível em www.dgsi.pt). Designa-se, pois, por violênciadoméstica todo o tipo de agressões que existem no seio de uma relação familiar ou de união de facto ou somente de namoro, podendo tomar a forma de violência psicológica e mental (maus tratos psíquicos), que inclui agressões verbais, ameaças, humilhações, provocações, perseguições, clausura, privação de recursos físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos, ou de violência física (maus tratos físicos), que pode ir desde pontapés, murros até espancamentos, ou ainda de privações da liberdade ou ofensas de natureza sexual. Com efeito, o tipo objectivo inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional, a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos. O preenchimento deste tipo legal de crime não se basta, em princípio, com uma acção isolada, embora também não se exija a habitualidade da conduta. A reiteração não é elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo, mas é, no entanto, pressuposta pela lei, como conduta ‘norma’, razão pela qual é a violência doméstica qualificada como crime habitual. Na verdade, o crime realiza-se normalmente com a reiteração do comportamento de maus tratos físicos ou psíquicos, em determinado período de tempo. Caso não se verifique essa reiteração, recair-se-á, pelo menos, no domínio das ofensas à integridade física. Todavia, a verificação de tal crime não exige uma conduta plúrima e repetitiva ou a reiteração da conduta agressiva, já que a punição sempre ocorrerá quando a gravidade das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde (física ou psíquica). Dito de outro modo, para se assumirem como actos típicos de “maus tratos”, os mencionados comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime, afigurando-se também desnecessária a reiteração dos actos de violência para que os mesmos possam ser qualificados como de “maus tratos” para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito de violência doméstica. Embora sendo predominante, a reiteração dos “maus tratos” – configurando casos de microviolência continuada, que, apesar da sua baixa intensidade, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento, até casos extremos, de verdadeiro terror doméstico – não é obrigatória. Como salienta Inês Ferreira Leite, “O legislador de 2007, ao qualificar a reiteração como elemento típico possível, mas não obrigatoriamente exigível, terá tido em vista o contexto social e judiciário da violência doméstica, visando acautelar o sucesso do processo penal ainda que não se consigam individualizar vários eventos concretos de violência saliente. Ainda assim se justifica uma condenação pelo crime de violência doméstica, desde que subjacente a um evento concreto de violência (de qualquer tipo, e ainda que não tenha extrema gravidade), se encontre – de modo demonstrável, através da prova indiciária, em julgamento – o tal ambiente global de intimidação, menorização, subalternização, a partir de um contexto de imparidade e dependência, que caracterizam o tipo social da violência doméstica” (in Sensibilidade & Bom Senso: Um (breve) percurso interpretativo do tipo legal de violência doméstica à luz do seu tipo social e das abordagens judiciais, publicado no e-book do CEJ, p. 10 e 11). Na verdade, a violência doméstica não é, apenas, o mero somatório das acções, típicas ou não, praticadas pelo agente contra a vítima, mas o que deste conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, a relação de domínio daquele sobre esta, relação esta apta a afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por esta via, a sua dignidade. Na síntese do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-02-2025 (Processo nº 1368/20.8PASNT.L2-9; Relatora: Paula Cristina Bizarro; disponível em www.dgsi.pt), “(…) II. Maus tratos reconduzem-se a comportamentos, por acção ou omissão, que importem a sujeição da vítima a violência física ou psíquica, a abusos de qualquer natureza, incluindo psicológica, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, colocando em risco ou atingindo de modo efectivo a sua saúde. (…) V. Se é verdade que um único acto isolado poderá integrar uma situação de maus tratos físicos ou psíquicos, para que assim seja e para que esse acto constitua um plus relativamente àqueles que integram a multiplicidade de tipos de crime que poderão integrar a violência doméstica (ofensa à integridade física, ameaça, injúria, coacção, difamação, e outros), terá esse acto de revestir uma gravidade acrescida ao nível da ilicitude, quer pela forma como é executado, quer pelas suas consequências, de modo a justificar a censurabilidade acrescida inerente ao tipo legal em análise, evidenciado na moldura penal que lhe é abstractamente aplicável. (…)”. Ou conforme sumariado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-02-2018 (Processo nº 663/16.5 PBCTB.C1; Relatora: Brízida Martins; disponível em www.dgsi.pt), “I – A conduta típica do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. II - O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. III - O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”. (…)”. Em relação ao elemento subjectivo o tipo só se consuma com o dolo, em qualquer das suas vertentes – directo, necessário ou eventual –, exigindo-se que o agente conheça a relação conjugal ou ex-conjugal, ou outra que o une à vítima, e saiba que a sua conduta ofende a sua dignidade pessoal, nos termos supra expostos, e, ainda assim, não se coíba de actuar (artigo 14º do Código Penal). A questão que se coloca é a de saber se a conduta do arguido reveste gravidade suficiente para ser taxada de violência doméstica, se possui um mais em termos de perversidade ou crueldade que a sua tutela já não possa ser assegurada pelo tipo de ilícito parcelar. Dilucidemos. A este propósito, Maria Manuela Valadão e Silveira refere que pode acontecer que os comportamentos em causa integrem os crimes de ofensa à integridade física e de injúria (ou outros) e, não obstante, não satisfaçam o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da ação” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime. Nestes casos, como é bom de ver, apenas há que aplicar as normas gerais (in Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, p. 21). Também Nuno Brandão escreveu que é “evidente que não é qualquer ação isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo. (...) Mais recentemente e pela mão da Relação de Coimbra vem aflorando uma outra ideia, ligada à dignidade pessoal da pessoa ofendida e possibilidade de à mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”. Creio que os critérios judiciais expostos apontam na direção correta, mas julgo que lhes falta ainda uma clara vinculação ao bem jurídico. Daí que me pareça sempre de exigir que o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, seja um tal que pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima” (in A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica, Revista Julgar, nº 12, 2010, Número Especial: Crimes no Seio da Família e Sobre Menores, p. 15 e 16). Importa, assim, analisar e caracterizar, no caso concreto, o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de “maus tratos” e se se impõe a condenação pelo crime de violência doméstica do artigo 152º do Código Penal. Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os contornos acima referidos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele. Cita-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17-05-2010 (Processo nº 1379/07.9PBGMR.G1; Relator: Cruz Bucho; disponível em www.dgsi.pt), assim sumariado: “Se as condutas apuradas integram os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça mas não satisfazem o tipo da violência doméstica, por não revelarem o «especial desvalor da acção» ou a «particular danosidade social» do facto que fundamentam a especificidade deste crime, apenas há que aplicar as normas gerais”. Como bem se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-12-2024 (Processo nº 698/21.6GAOLH.E1; Relatora: Carla Oliveira; disponível em www.dgsi.pt), “(…) Assim, para verificar se a conduta concreta do agente integra o crime de violência doméstica ou o de ofensa à integridade física, cumprirá, antes de mais, avaliar os atos concretos, os bens jurídicos violados e a intensidade dessa violação. E essa avaliação será feita tendo em conta, quer a reiteração (se existir), quer a gravidade e características específicas das ofensas físicas praticadas. Importa saber se se verificou uma especial violação dos direitos da vítima, de tal forma grave, que extravase o desvalor próprio e o âmbito de aplicação da norma penal típica, tornando esta inadequada e insuficiente para a proteção do bem jurídico afetado. Em termos práticos, para que a ofensa física se transforme em violência doméstica, o ato único ou os atos reiterados, têm que assumir uma relevância e gravidade tal que não atinjam apenas a integridade física da vítima, mas também a sua dignidade enquanto pessoa humana. O ato/atos tem que constituir “maus tratos”, revelar desprezo, crueldade, domínio ou mesmo total insensibilidade relativamente à vítima e evidente intenção de a inferiorizar, humilhar e retirar-lhe dignidade.”. O que releva, pois, saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser configurada como “maus tratos”. Vejamos quais são os factos apurados que ocorreram para aferir da sua relevância penal, à luz do tipo incriminador em referência. Desde logo resultou provado que BB é filha do arguido AA e de CC, e, no âmbito do Processo nº 421/13.9...-A, por sentença datada de ... de ... de 2017, BB ficou à guarda e aos cuidados do seu pai, o arguido AA, com quem passou a ter residência habitual até ao presente. Demonstrou-se que, em data não concretamente apurada, mas seguramente entre 2019 e 2020, quando BB frequentava o 1º ciclo do ensino básico, o arguido muniu-se de uma colher de pau e desferiu uma pancada com a mesma nas mãos da filha, ficando a ofendida com as mãos inchadas e doridas. Mais se apurou que, no dia ... de ... de 2024, em hora não concretamente determinada, mas pelo menos antes das 22 horas, na residência comum sita na ..., em ..., na sala de estar, o arguido desferiu pelo menos duas pancadas com recurso a um cinto para as calças na zona das nádegas e na parte de trás da coxa esquerda da ofendida, justificando-se com a existência de um teste escolar escondido por parte da filha e a necessidade de lhe dar um castigo e corrigi-la, sendo que, como consequência directa e necessária, a ofendida sofreu dores durante pelo menos dois dias, ficando com marca vermelha no local do impacto do cinto no seu corpo, nas áreas atingidas. Ora, confrontando a factualidade provada e supra elencada com o exposto a propósito do tipo incriminador em análise, concluímos que o arguido não praticou o crime de violência doméstica que lhe vem imputado. Os comportamentos do arguido são especialmente reprováveis e censuráveis do ponto de vista penal, porém, consideramos que tais condutas não revelam a crueldade, o desprezo, a particular vontade de humilhar/maltratar a ofendida de forma a permitir enquadrar em “maus tratos”. De facto, mesmo não sendo necessário para a sua integração no crime de violência doméstica, não só não se demonstrou uma conduta plúrima ou repetitiva da conduta agressiva, fazendo-se notar que entre os comportamentos do arguido acima descritos distam pelo menos quatro anos, como os factos dados como provados e acima expostos não atingem um nível de gravidade suficiente para que a conduta do arguido, ainda que reconduzível a comportamentos isolados/singulares, integre a prática de um crime de violência doméstica, ou seja, as condutas singulares do arguido não assumem uma intensa crueldade, insensibilidade e desprezo pela consideração do outro como pessoa. Atendendo à imagem global dos factos, à natureza e à gravidade das agressões/ofensas e às suas consequências para a ofendida,entendemos que as mesmas não assumem contornos de gravidade suficiente e necessária para que se enquadrem no crime de violência doméstica, pois estamos convictos que não revelam aquela especial tutela e punição agravada que caracteriza este ilícito típico. Dito de outro modo, ainda que a conduta do arguido seja especialmente censurável e reprovável e tenha causado lesões na saúde física e psíquica da ofendida, as mesmas não foram de tal forma sérias e graves ao ponto de justificarem a protecção específica deste tipo incriminador. A factualidade assim globalmente considerada não é passível de se subsumir no tipo legal de violência doméstica, razão pela qual o Tribunal procedeu à alteração da qualificação jurídica, nos termos do preceituado no artigo 358º do Código de Processo Penal, conforme se constata da respectiva acta. * É certo que o não preenchimento do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea e) do Código Penal, agravado nos termos do nº 2, alínea a), punido acessoriamente nos termos do nº 4, 5 e 6 da mesma disposição legal, não obsta a que ressurja outro crime, na medida em que se encontra numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física simples ou qualificada, de ameaça simples ou agravada, de coacção simples, de sequestro simples, de importunação sexual, de coacção sexual previsto no artigo 163º, nº 1 do Código Penal, de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 173º, nº 2 ou 3, e ainda com os crimes contra a honra, pelo que, atenta a factualidade tida como provada e atenta a mencionada alteração da qualificação jurídica, haverá sempre que analisar se a conduta do arguido é ou não subsumível à prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos termos do artigo 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 2, alínea a) do Código Penal. * DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA Preceitua o artigo 143º, nº 1 do Código Penal que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Estabelece o artigo 145º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal que “Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º; (…) 2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”. Por sua vez, o artigo 132º, nº 2, alínea a) do Código Penal prevê, como circunstância apta a revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, “Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima; (…)”. Como refere a Paula Ribeiro de Faria, “O crime de ofensa à integridade física simples surge como o tipo legal fundamental em matéria de crimes contra a integridade física. É a partir da «ofensa ao corpo ou saúde de outrem» que se deixa construir uma série de variações qualificadas, como a ofensa à integridade física grave (art.º 144º), agravada pelo resultado (art.º 145º), qualificada (146º), privilegiada (art.º 147º) e por negligência (art.º 148º)” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, p. 202). O legislador prevê neste preceito a ofensa à integridade física e define o tipo como a conduta de quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa. Trata-se da tutela do bem jurídico integridade física da pessoa humana, obedecendo ao comando constitucional do artigo 25º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”. A ação típica objectiva mostra-se consumada mediante a produção de uma ofensa no corpo ou na saúde, entendendo-se aquela primeira lesão como "todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante" (assim, Paula Ribeiro de Faria, in op. cit, p. 205). Dito de outro modo, o tipo legal em apreço é preenchido com o ataque/ofensa ao corpo ou saúde de outra pessoa, não se considerando “condição da relevância típica a provocação de dor ou mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho, aleijão ou marca física” (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª Edição Actualizada, UC Editora, 2015, p. 556). Regressando aos ensinamentos de Paula Ribeiro de Faria, “Não relevam para aqui os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão, se bem que, como é evidente, todas estas circunstâncias sejam de ter em conta pelo juiz, nos termos do art. 71º para determinação da medida da pena” (in op. cit., p. 205). A ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do artigo 143°, n° 1 do Código Penal deve ser determinada objectivamente e não pode ser insignificante, diminuta ou ligeira (neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, in op. cit, p. 207; Paulo Pinto de Albuquerque, in op. cit., p. 556; Figueiredo Dias, in Direito Penal, 2004, p. 277). Como explicava Maia Gonçalves, “As ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, para que atinjam dignidade penal sejam subsumíveis à previsão deste artigo, não podem ser insignificantes, precisamente porque sendo o enquadramento penal a última ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceito incriminador, deve ser filtrado pela luz que dimana do aforismo de minimis non curat paetor” (in Código Penal Português – Anotado e Comentado –Legislação Complementar, Almedina, 2007). De igual modo, a jurisprudência das Relações tem entendido que o resultado previsto pelo tipo legal de crime de ofensa à integridade física tem que estar presente e que isso só sucede quando o bem jurídico é afectado de forma não insignificante (veja-se, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-06-2005 (Processo nº 0510382; Relator: Fernando Monterroso) e de 11-06-2003 (Processo nº 1470/03; Relator: Manuel Braz); Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21-05-2013 (Processo nº 74/09.9GBGLG.E1; Realtor: António Latas), de 15-12-2015 (Processo nº 169/13.4PBPTG.E1; Relator: António Latas) e de 07-03-2017 (Processo nº 160/16.9 GAVRS.E1; Relator: António Condesso) - todos disponíveis in www.dgsi.pt). Por último, cumpre referir que o tipo objectivo tanto pode ter lugar por acção, como por omissão, se existir um dever de garante do omitente nos termos do artigo 10º do Código Penal. Ao nível do tipo subjectivo, o tipo legal do artigo 145º do Código Penal pode ser cometido com qualquer forma de dolo (artigo 14º do Código Penal). Finalmente, cumpre referir que a natureza qualificada da ofensa à integridade física se alicerça na existência de “circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”, por apelo à técnica dos chamados “exemplos-padrão”. São, por seu turno, nos termos do disposto no artigo 145º, nº 2 do Código Penal, susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, as circunstâncias previstas no artigo 132º do Código Penal para a qualificação do crime de homicídio, nomeadamente, o agente ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima (alínea a) do mencionado preceito legal). No artigo 132º, nº 2 do Código Penal indicam-se circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, elementos indiciadores da ocorrência de culpa relevante, cuja verificação, atenta a sua natureza indiciária, não implica, obviamente, a qualificação automática das ofensas, qualificação que, por outro lado, dada a natureza exemplificativa das referidas circunstâncias – o que claramente resulta da letra da lei, concretamente da expressão entre outras –, pode decorrer da verificação de outras situações valorativamente análogas às descritas no texto legal, sendo certo, porém, que a ausência de qualquer das circunstâncias previstas nas alíneas a) a m) do nº 2 do artigo 132º constitui indício da inexistência de especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, indicia que o caso se deve subsumir à ofensa à integridade física simples. De todo o modo, sempre se imporá referir que está em causa um tipo penal que consagra a opção do legislador penal em punir de forma mais veemente aquelas condutas das quais se retira uma atitude especialmente desvaliosa por parte do agente, seja porque lhe pode ser assacado um maior juízo de culpa, ou por predominar uma maior ilicitude. Por esta via, fica assim preenchido o critério geral, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, conduta essa que para a sua avaliação irá requerer, por banda do julgador, uma análise, casuisticamente ponderada e relacionada, quanto à forma de cometimento do crime, aos sentimentos manifestados pelo agente, ao contexto motivacional que o antecedeu e ao contexto social e cultural, maxime, aos valores e sensibilidade aí dominantes, por contraponto aos contrários sentimentos de repulsa ou insensibilidade dirigidos à conduta do agente. Na síntese do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-12-2008 (Processo nº 220/07.7GCACB.C1; Relator: Vasques Osório; disponível em www.dgsi.pt), “I. - A qualificação da ofensa à integridade física, tributária qualificação do homicídio no C. Penal, é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº 1 do art. 132º – a especial censurabilidade ou perversidade do agente ou seja, um especial tipo de culpa – com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no nº 2 do mesmo artigo. Os exemplos-padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objectivo daqueles. II. – A verificação, no caso concreto, de um ou mais exemplos-padrão não significa, necessariamente, a realização do especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio ou qualificação da ofensa à integridade física, da mesma forma que, a não verificação de um qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação, desde logo porque o uso, no nº 2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão III. - A especial censurabilidade – e é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa – prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente.” Posto isto, a qualificação das ofensas à integridade física assenta, pois, num especial tipo de culpa, agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável. Nos termos do disposto no artigo 132º, nº 2, alínea a) do Código Penal é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima. Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, pois, como bem referem Simas Santos e Leal-Henriques, “o parentesco biológico ou natural, como revelador de maior gravidade do delito, já tem tradição no ordenamento jurídico português, com base no princípio de que, quem consegue vencer a chamada força do sangue e os decorrentes motivos inibitórios, deve ser mais fortemente castigado quando delinquir na pessoa do parente próximo” (in Código Penal Anotado, Volume III, 4ª Edição, Rei dos Livros, 2016, p. 67). Cumpre agora apurar se no caso sub judice, se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos melhor referidos supra. Desde logo resultou provado que BB é filha do arguido AA e de CC, e, no âmbito do Processo nº 421/13.9...-A, por sentença datada de ... de ... de 2017, BB ficou à guarda e aos cuidados do seu pai, o arguido AA, com quem passou a ter residência habitual até ao presente. Demonstrou-se que, em data não concretamente apurada, mas seguramente entre 2019 e 2020, quando BB frequentava o 1º ciclo do ensino básico, o arguido muniu-se de uma colher de pau e desferiu uma pancada com a mesma nas mãos da filha, ficando a ofendida com as mãos inchadas e doridas. Mais se apurou que, no dia ... de ... de 2024, em hora não concretamente determinada, mas pelo menos antes das 22 horas, na residência comum sita na ..., em ..., na sala de estar, o arguido desferiu pelo menos duas pancadas com recurso a um cinto para as calças na zona das nádegas e na parte de trás da coxa esquerda da ofendida, justificando-se com a existência de um teste escolar escondido por parte da filha e a necessidade de lhe dar um castigo e corrigi-la, sendo que, como consequência directa e necessária, a ofendida sofreu dores durante pelo menos dois dias, ficando com marca vermelha no local do impacto do cinto no seu corpo, nas áreas atingidas. Verifica-se assim a existência de duas ofensas no corpo da ofendida BB, bem como a existência de nexo de causalidade entre essas ofensas e as lesões apresentadas pela ofendida. Resultou também apurado que, ao actuar como descrito, quis o arguido molestar a saúde física e psicológica da ofendida, prejudicando o seu equilíbrio emocional, bem sabendo que tais condutas seriam susceptíveis de lhe causar dores, medo, inquietação, insegurança, ansiedade, afectando-a na sua dignidade pessoal, o que logrou conseguir. Acresce provado que mais sabia o arguido que, ao agir da forma mencionada, actuava sobre a sua filha menor de idade que consigo habita de forma permanente, no entanto não se coibiu de praticar tais condutas, querendo-as e concretizando-as, agindo, em tudo, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei. Consequentemente, agiu o arguido com dolo directo (artigos 13º e 14º, nº 1 do Código Penal). Acresce que a ofendida BB é descendente do arguido, tal como previsto no artigo 132º, nº 2, alínea a) do Código Penal. E considera-se que tais ofensas foram produzidas em circunstâncias capazes de revelar a especial censurabilidade e perversidade da conduta praticada pelo arguido, atento o circunstancialismo que motivou a descrita conduta do arguido, a idade da menor à data dos factos (entre 7 e 8 anos, e 12 anos), os meios de que o arguido lançou mão (colher de pau e cinto), os quais são efectivamente susceptíveis de causar lesões de gravidade significativa atenta a idade da menor à data dos factos, as concretas zonas atingidas (mãos e zona das nádegas e parte de trás da coxa esquerda da menor), as consequências da descrita conduta do arguido (mãos inchadas e doridas, e dores pelos menos durante dois dias, com marca vermelha no local do impacto do cinto nas zonas atingidas) e a sua “vulnerabilidade/dependência” perante o arguido (descendente). Afigura-se-nos, assim, que os actos perpetrados revelam, no contexto em que foram praticados, uma especial censurabilidade e perversidade do agente, pelo que se conclui que os factos praticados pelo arguido integram todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos conjugados dos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 1, alínea a) do Código Penal. Importa ainda ter presente que a descrita conduta do arguido não se encontra a coberto da causa de justificação prevista no artigo 31º, nºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, que excluiria a sua ilicitude, pois a conduta do arguido, sob o ponto de vista do propósito correctivo, não se compadece minimamente com um exercício legítimo de um eventual poder-dever de correcção. Concretizando. O artigo 36º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa preceitua que “Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.”. Acresce que a Constituição da República Portuguesa reconheceu às crianças um direito à protecção da sociedade e do Estado, e expressamente consagrou que as crianças têm direito a ser defendidas contra o exercício abusivo da autoridade na família (artigo 69º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), sem mencionar o direito de correcção. Noutro prisma, o artigo 1878º do Código Civil diz que “1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens. 2. Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida.”. Por seu turno, refere o artigo 1874º, nº 1 do Código Civil que “Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência.”. Seguindo Armando Leandro, “O poder de correcção dos pais mantém-se, embora não autonomizado do poder-dever de protecção e orientação, a encarar sem carácter punitivo, dentro dos limites da autoridade amiga e responsável que a lei atribui aos pais, que só pode ser exercida sem abusos, no interesse dos filhos e com respeito pela sua saúde, segurança, formação moral, grau de maturidade e autonomia” (in Poder paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”, AAVV, Temas de Direito da Família, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, Almedina, 1986, p. 126 e 127). O poder de correcção não é, pois, uma espécie de cheque em branco que legitime os pais a punirem os filhos, praticando a pretexto do seu exercício, todas as espécies de ofensas corporais e outras violações da liberdade pessoal, da honra ou da reserva da vida privada dos filhos, sempre que estes não se comportem segundo as suas expectativas ou padrões de exigência ou, simplesmente, para neles descarregarem as suas frustrações. Está funcionalmente concebido para servir as finalidades de educação e preparação do filho para a vida adulta, de acordo com o seu superior interesse e assim deverá ser exercido, sem qualquer intuito meramente punitivo ou de retaliação, com critério, com respeito pela dignidade do filho, com moderação, proporcionalidade e com finalidades estritamente pedagógicas. Entende-se, assim, que, se por um lado, o dever de educação dos pais deve indubitavelmente prevalecer sobre qualquer correcção com carácter punitivo, por outro lado, não nos parece que afaste totalmente a correcção com carácter punitivo, desde que não sejam excedidos os limites da educação, compreendendo repreensões e censuras, privação de um divertimento e até uma punição corporal leve, devendo sempre os pais ter em atenção a personalidade e a saúde da criança, não ofendendo o seu sentimento de justiça. Neste sentido, acompanha-se de perto Figueiredo Dias que considera que o poder de correção pode configurar, desde que preenchidos determinados requisitos, uma causa de exclusão de ilicitude de determinadas condutas castigadoras que, porque típicas, deveriam ser tidas como ilícitas, isto é, “(….) a justificação ocorre só dentro de três condições: (1) que o agente actue com finalidade educativa e não pode dar vazão à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou, ainda menos, pelo prazer de infligir sofrimento ao dependente ou para lograr aquilo que apeteceria chamar um efeito de “prevenção, geral ou especial, de intimidação”; (2) que o castigo seja criterioso e portanto proporcional: no sentido de que ele deve ser o mais leve possível e não no de que possa (que não pode) assumir um peso equiparado ao da falta cometida pelo educando, quando esta foi grave ou muito grave; (3) e que – em consequência e para mais cabal esclarecimento do que acabou de dizer-se – ele seja sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo pois o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou, de todo o modo, atentatória da dignidade do menor” (in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Questões fundamentais – A doutrina geral do crime, Coimbra Editora, 2007, p. 506 e 507). Deste modo, considera-se que os pais continuam a poder aplicar castigos aos seus filhos, porém, agora, de uma forma muito mais limitada, proporcional, criteriosa e leve, mediante o preenchimento de exigentes requisitos, com o intuito de garantir e tutelar, da melhor forma possível, os direitos e a dignidade das crianças. Em síntese e socorrendo-nos das palavras de Claus Roxin, “é certo que a lei não diz expressamente que o direito à educação inclua o direito de um castigo físico moderado, e que seria pedagogicamente desejável que se renunciasse ao castigo corporal como meio de educação familiar; mas seria desconhecer a realidade da vida supor que nas condições sociais e psicológicas atualmente existentes todos os pais as iriam cumprir, prescindindo completamente do uso das mãos como método educativo. Se se quisesse mobilizar o direito penal por cada bofetada motivada por faltas graves, seriam mais as famílias destroçadas do que as pacificadas” (in Derecho Penal, Parte General, Tomo I: Fundamentos. La Estructura del delito, 2ª edição, Madrid: Civitas, 1997, p. 752). Face ao que supra deixamos exposto e voltando ao caso concreto dos autos, é manifesto que a pretensa finalidade educativa que possa ter estado na base da actuação do arguido não exclui nem justifica de modo algum a actuação do arguido. Perante os factos que resultaram provados e acima expostos, não se pode ter por justificado o comportamento do arguido, pois que se trata de uma menor que, à data dos factos, teria, por um lado, entre 7 e 8 anos, e, por outro lado, 12 anos, não se evidenciando a necessidade ou justificação da agressão física como elemento de correcção e, muito menos, uma agressão levada a cabo, por um lado, com uma colher de pau, e, por outro lado, com um cinto. A actuação do arguido constitui uma violação inaceitável da integridade física da menor, uma demonstração intolerável de força física intencionalmente dirigida à lesão do corpo e da saúde de uma criança indefesa, e desprovida de qualquer conteúdo e sentido pedagógico ou educativo. Com efeito e como bem se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-02-2025 (Processo nº 632/23.9T9VFX.L1-5; Relatora: Ana Cristina Cardoso; disponível em www.dgsi.pt), “I - O artigo 36º nº 5 da Constituição da República Portuguesa preceitua que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”. O artigo 1878º do Código Civil diz que “Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens (nº 1). Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida (nº 2)”. Por seu turno, o artº 1874º, nº 1, do CC, refere que “Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”. II - O poder de correção dos pais sobre os filhos pressupõe sempre que o agente atue com essa finalidade, de educar ou de corrigir, e que os castigos infligidos sejam criteriosamente ponderados e proporcionais à falta ou faltas cometidas. III - Quem, depois de ter tomado conhecimento de que a sua filha menor tratava o atual companheiro da mãe por “pai” no trato diário, à medida que formula perguntas à menor, e perante as respostas ou silêncios da mesma, lhe desfere cinco bofetadas na cara, (fazendo inclusive saltar os óculos da cara), duas palmadas nos braços e uma palmada na região dorsal à direita, não tem a sua conduta legitimada pelo exercício do poder de correção. IV- É evidente que o recorrente não agiu com o propósito de educar a filha ou de corrigir qualquer comportamento desadequado desta, fazendo-o apenas para castigar a filha por esta fazer algo do seu desagrado: chamar pai ao atual companheiro da mãe. O recorrente não visou melhorar o comportamento da filha, mas apenas puni-la, descarregando na pessoa da menor a sua ira ou frustração. O comportamento do recorrente não teve qualquer conteúdo pedagógico ou educativo.”. Por conseguinte, actuando da forma descrita expressou o arguido uma atitude contrária ou indiferente ao dever ser jurídico-penal, sendo que podia e devia ter actuado de outra maneira. A sua conduta é, portanto, censurável. Estão, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em análise, pelo que, não ocorrendo qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa, dúvidas não subsistem de que o arguido cometeu dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e punidos pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 2, alínea a) do Código Penal.»
2.3 Conhecendo do mérito da causa
A primeira questão que se nos põe é a de apreciar se merece provimento a pretensão do Ministério Público quando defende que os factos julgados provados integram um único crime de violência doméstica, previsto pelo art. 152º, nºs 1, alínea e) e 2, alínea a) do Código Penal, e não dois crimes de ofensa à integridade física qualificados, previstos pelos arts. 143º, nº 1, 145º, nºs 1, alínea a) e 2 e 132º, nº 2 do mesmo diploma.
Em abono da sua posição, sustenta o Recorrente, em síntese, o seguinte: (i) o tipo legal da violência doméstica não exige a prevalência de uma relação de domínio ou subjugação da vítima, como não exige uma especial intensidade ou gravidade da conduta; (ii) o bem jurídico protegido consubstancia-se na saúde física, mental, emocional e psicológica, e traduz-se ainda no desenvolvimento livre e salutar da personalidade, funcionando a agravação do nº 2, alínea a) como forma de proteger o bem jurídico em contextos em que a vítima se encontra socialmente isolada e onde tem o seu reduto de segurança e centro de bem-estar e proteção; (iii) o Tribunal recorrido desconsiderou que os atos praticados pelo Arguido impactaram a saúde da vítima, não só física, como emocional e mental/psicológica, refletindo-se no seu desenvolvimento salutar como criança e ser vulnerável, perante o Arguido, ao qual, como figura paterna, se encontra associado o papel protetor; (iv) o Tribunal recorrido desconsiderou ainda que os factos tiveram lugar no domicílio comum da vítima.
Vejamos então.
Há duas condutas em causa nos autos: uma primeira, ocorrida em data indeterminada de 2019 ou 2020; e uma segunda, ocorrida no dia 8 de novembro de 2024.
Pretende o Recorrente que ambas se inscrevem e unificam sob o tipo legal de um crime de violência doméstica, previsto pelo art. 152º, nºs 1, alínea e) e 2, alínea a) do Código Penal.
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Importa começar por tocar dois aspetos prévios: a forma como os primeiros factos estão situados no tempo, por um lado, e a lei penal então em vigor, por outro.
Quanto à primeira questão, é incontornável ter presente que os factos em apreço são-nos apresentados com uma localização temporal frágil (data indeterminada de 2019/2020), o que suscita algumas reservas quanto a saber se temos uma narração suficiente da matéria de facto, desde logo à luz do comando previsto pelo art. 283º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal.
A este respeito, dir-se-á que a localização temporal dos factos tem essencialmente dois objetivos: o de permitir ao arguido uma defesa eficaz e o de firmar o objeto do processo.
Ora, para o arguido, a narração temporal dos factos não foi um problema, visto que nenhuma dificuldade a esse respeito suscitou e confessou-os. E por outro lado, a localização temporal que temos, ainda que algo incipiente, com efeito, não é inexistente; e se a articularmos com o concreto gesto invocado, pode ainda assim firmar-se suficientemente o objeto do processo - sabemos o que se discute nos autos e conhece-se o âmbito material do caso julgado que virá a formar-se.
Estando salvaguardados, em medida mínima, é certo, aqueles dois objetivos, nada obsta a que prossigamos com a apreciação do mérito da causa.
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Vejamos agora a segunda questão prévia, a da lei penal em vigor à data desses factos de 2019/2020; vem ela a propósito disto: a redação legal para que aponta o Recorrente [a dita alínea e) do nº 1 do art. 152º do Código Penal] não estava em vigor à data daqueles primeiros factos.
Com efeito, essa redação legal foi introduzida apenas por via da Lei nº 57/2021, de 16/08, que se tornou vigente no dia seguinte ao da publicação (cfr. o seu art. 7º).
Significa isso que se suscita a problemática da aplicação da lei no tempo e da sucessão de leis penais, mormente face aos princípios da legalidade e da não retroatividade da lei penal desfavorável plasmados no art. 29º, nºs 1, 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa e nos arts. 1º, nº 1 e 2º, nº 1 do Código Penal.
Importa todavia começar por olhar de perto o caso, em ordem a equacionar se os factos de 2019/2020 não poderiam eventualmente configurar um tipo legal de crime com estrutura, lógica e sentido similares, à data, àquilo que é hoje categorizado como violência doméstica; referimo-nos naturalmente ao crime de maus tratos previsto pelo art. 152º-A, nº 1, alínea a) do Código Penal, que prescreve desde 2007, por via da Lei nº 59/2007, de 4/09, o seguinte, para o que aqui releva: «Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação (…), pessoa menor (…) a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente (…)».
É incontornável constatar que reconhecendo-se a existência, aos dias de hoje, de uma situação de maus tratos perpetrados pelo agente sobre um seu filho menor que esteja à sua guarda ou sob a responsabilidade da sua direção ou educação, o que temos é um concurso aparente entre o crime de violência doméstica previsto no art. 152º, nº 1, alínea e) (eventualmente qualificado pelo nº 2), e o crime de maus tratos previsto pelo art. 152º-A, nº 1, alínea a), concurso aparente esse que se resolve de acordo com o critério da especialidade, ou seja, privilegiando-se a violência doméstica (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5ª edição, Universidade Católica Editora, 2022, pg. 675); como é incontornável constatar ainda que, à data dos factos de 2019/2020, a reconhecer-se que essa conduta, em si mesma ou em conjugação com a que veio a ser registada em novembro de 2024, integra, em substância, o conceito de «maus tratos», então verificar-se-á uma certa continuidade normativo-típica, ainda que sob diferentes nomes jurídicos (com interesse nesta matéria vide Paulo Pinto de Albuquerque, ob.cit., pg. 93).
Daí que a primeira questão que em boa verdade se nos coloca, ao nível da qualificação jurídico-penal dos factos, é então a de saber se os ocorridos em 2019/2020, em si mesmos ou em conjugação com os situados em novembro de 2024, integram um crime de maus tratos, previsto pelo art. 152º-A, nº 1, alínea a), sendo que, na eventualidade de existir uma unidade criminosa começada materialmente sob a designação jurídica de crime de maus tratos e terminada sob a designação de crime de violência doméstica em concurso aparente com o crime de maus tratos, haverá um problema a tratar ulteriormente de definição do tipo legal e da moldura aplicáveis.
Feito este introito, avancemos.
Seja à luz do art. 152º, seja à luz do art. 152º-A, temos então um conceito essencial a considerar, que é o de «maus tratos».
Se as condutas em causa atingirem o limiar dos maus tratos, saímos da esfera de intervenção das ofensas à integridade física e entramos já no campo do crime de violência doméstica e/ou do crime de maus tratos em sentido estrito.
O conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos» não tem um conteúdo absolutamente preciso, não dispensando por isso algum trabalho de interpretação, que no caso tem de cruzar-se com a especificidade de nos acharmos diante um pai que atuou sobre a sua filha, no contexto de aparente aplicação de castigos corporais.
Seguiremos nesta matéria de perto o que deixámos já dito no Acórdão desta Relação proferido no Proc. nº 538/23.1SXLSB.L1 (citado pelo Recorrente e também relatado pelo ora relator, in www.dgsi.pt).
É conhecido todo um lastro doutrinário e jurisprudencial neste domínio e que, tendo por referência o poder/dever de correção ou educação sobre as crianças ou ideias de adequação social, toleram ou admitem, à luz de certos critérios de proporcionalidade, o recurso a alguns castigos sobre os menores, mormente de ordem física (cfr. Cristina Dias, “A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção”, Julgar, 2008, nº 4, pgs. 95 e seguintes e o Ac. da RP de 02/04/2014, relatado por José Piedade, in www.dgsi.pt).
Ora, entendemos que essa abertura à aplicação de castigos corporais sobre crianças e/ou que tenham por efeito a sua humilhação são hoje intoleráveis à luz de padrões internacionalmente reconhecidos, que nos vinculam e/ou servem de referência e paradigma interpretativo do direito interno.
Fazendo aqui um breve périplo neste domínio, cumpre notar que a nível das Nações Unidas há um importante documento, que data já de 2006 - o Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas sobre Violência sobre Crianças. As suas mensagens centrais passam pela necessidade de pôr-se fim às justificações dadas por adultos a respeito da violência sobre crianças, surja esta sob a forma de «tradição» ou disfarçada de «disciplina»; e pela ideia de que as crianças, pela sua especificidade única, que se prende com as suas potencialidades, vulnerabilidades e dependência, precisam de mais proteção, e não de menos proteção, contra a violência (https://violenceagainstchildren.un.org/sites/violenceagainstchildren.un.org/files/document_files/world_report_on_violence_against_children.pdf, pg. 3).
Ainda no plano das Nações Unidas, o Comité de Ministros sobre o Direito das Crianças, que monitoriza o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança, enfatiza no seu Comentário Geral nº 8 (2006) que resulta daquela Convenção, e nomeadamente dos seus arts. 19º e 37º, uma obrigação de os Estados proibirem amplamente os castigos corporais e de outras formas cruéis ou degradantes de punição, incluindo, por exemplo, o de as sujeitar a posições desconfortáveis (https://www.refworld.org/legal/general/crc/2007/en/41020).
A nível do Conselho da Europa, por sua vez, remonta já a 2004 um documento também marcante - a Recomendação 1666 (2004) da Assembleia Parlamentar, sob o sugestivo título Europe-wide ban on corporal punishment of children (proibição em toda a Europa do castigo corporal sobre as crianças). Aponta ela caminhos tão expressivos quanto estes (tradução livre, a partir de https://pace.coe.int/en/files/17235/html ):
- garantir uma preocupação geral pelos direitos fundamentais das crianças, em particular os seus direitos à dignidade humana e à integridade física;
- a promoção de práticas educativas positivas e não violentas de resolução de conflitos por parte dos pais e outras pessoas que cuidem de crianças;
- garantir que o castigo corporal e outras formas nocivas e humilhantes de disciplina sejam incluídas na definição de violência doméstica ou familiar e que o combate a este fenómeno faça parte integrante das estratégias contra a violência doméstica e familiar.
Ainda no quadro do Conselho da Europa, o Comité de Ministros já há muito que preconiza, pelo menos desde 1985, que os Estados devem adotar medidas no sentido de afastar a violência dentro da família e nomeadamente os castigos corporais sobre as crianças [cfr. Recomendações sobre “Violence in the family” (R (85) 4), “Social measures concerning violence within the family” (R (90) 2) e “The medico-social aspects of child abuse” (R (93) 2), inwww.coe.int/t/E/Committee_of_Ministers/Home/Documents/].
O Comité Europeu dos Direitos Sociais, acrescente-se, que monitoriza o cumprimento da Carta Social Europeia, já decidiu várias vezes, incluindo a propósito de Portugal, que o art. 17º da Carta obriga os Estados a proibirem e penalizarem todas as formas de violência sobre crianças, entendida esta como quaisquer atos ou comportamentos capazes de afetar a sua integridade física, dignidade, desenvolvimento ou bem-estar psicológico (https://hudoc.esc.coe.int/eng/#{%22sort%22:[%22escpublicationdate%20descending%22],%22escdcidentifier%22:[%22cc-34-2006-dmerits-en%22]} ).
O TEDH, por último, já se pronunciou várias vezes sobre castigos corporais ou outras formas de tratamento cruel ou degradante aplicados a crianças, também vincando uma orientação contrária a semelhantes práticas, seja no contexto do art. 3º, seja no do art. 8º da CEDH (para além do clássico Ac. Tyrer v. the United Kingdom, nº 5856/72, de 25/04/1978, vejam-se, com interesse nesta matéria, os Acs. Wetjen and others v. Germany, nºs 68125/14 e outro, §§ 77-78, de 22/03/2018 e Tlapak and others v. Germany, §§ 90-91, de 22/03/2018). E de resto surge-nos no mesmo sentido a jurisprudência do TEDH desenvolvida em torno dos conceitos de tratamentos ou punições desumanos ou degradantes, em geral e não especificamente relativos a crianças (mas cujas linhas gerais bem podem ser-lhes aplicadas); repare-se que é aí considerado um tratamento degradante, entre outros, aquele que humilha, que afeta a dignidade humana e/ou que causa sentimentos de medo, angústia e inferioridade, capazes de quebrar a resistência física e moral da vítima ou levá-la a fazer algo contra a sua vontade ou consciência [Acs. Gäfgen v. Germany (GC), nº 22978/05, § 89, de 1/06/2010, Ilaºcu and Others v. Moldova and Russia (GC), nº 48787/99, § 425, de 8/07/2004 e Bouyid v. Belgium (GC), nº 23380/09, § 90, de 28/09/2015].
Decorre do que vimos de dizer que o conceito de «maus tratos», no que diz respeito à criança-vítima, deve ser interpretado de forma adequada à luz da sua especial e presumida vulnerabilidade; das repercussões negativas que as condutas tenham tido e/ou possam expectavelmente vir a ter no futuro sobre a formação da sua personalidade e bem estar; das particularidades da relação que a liga ao agressor que encara por natureza, ou devia poder encarar, como um elemento protetor; e até do espaço físico em que os factos têm lugar, visto que a casa, em sentido espacial ou simbólico, é o lugar emocionalmente visto, por excelência, como o primeiro e último reduto de segurança. Daí que os castigos corporais infligidos em ambiente doméstico por um pai a uma filha, particularmente se atingirem um padrão mínimo de gravidade, atingem as mais das vezes a dignidade, a saúde e o equilíbrio psico-emocional da vítima, como aliás os factos dados como provados ilustram, justificando-se aqui destacar as seguintes passagens: «6 - Ao actuar como descrito, quis o arguido molestar a saúde física e psicológica da ofendida, prejudicando o seu equilíbrio emocional, bem sabendo que tais condutas seriam susceptíveis de lhe causar dores, medo, inquietação, insegurança, ansiedade, afectando-a na sua dignidade pessoal, o que logrou conseguir. 7 - Bem sabia o arguido que actuava dentro da residência comum, prejudicando o ambiente familiar e o sentimento de segurança da ofendida naquele ambiente, mas mesmo assim representou tal resultado, quis e concretizou-o.»
Ou seja, está dado como provado que as condutas em apreço:
- molestaram a saúde física (causando dores) e psicológica da criança;
- prejudicaram o seu equilíbrio emocional;
- geraram-lhe medo, inquietação, insegurança e ansiedade, afetando-a na sua dignidade pessoal.
Aqui chegados, e voltando à interrogação inicial, estamos em crer que cada uma das condutas do Arguido e ambas no seu conjunto integram com efeito o conceito de «maus tratos físicos e psíquicos» em apreço.
A aferição do grau de gravidade das condutas que toquem a integridade física, em ordem a perceber se atingem a qualificação como «maus tratos», no caso da criança-vítima, há de portanto ser feita não propriamente à luz de uma escala gradativa moldada pelos critérios comuns de avaliação das ofensas à integridade física; há de ser feita, antes, tendo como referente valorativo essencial a especificidade da condição da vítima, do seu lugar no mundo e em casa e a sua natural vulnerabilidade a atos que a humilhem a seus próprios olhos, degradando a sua dignidade de ser com direitos e prejudicando as bases do seu desenvolvimento como adulto saudável. Nesse juízo concreto ganham particular relevo a circunstância de os atos agressivos ocorrerem num ambiente que deveria ser protetor e vindos de quem é visto pela vítima como figura protetora; e o significado que os gestos tenham ou possam vir a ter, em função disso, no futuro, como sublinhado pelos documentos e entidades a que aludimos há pouco, e que os factos provados evidenciam.
Para além disso, não podemos também deixar de realçar a circunstância de o Arguido ter feito uso de instrumentos de agressão (num caso, uma colher de pau; noutro, um cinto), o que confere aos seus gestos não só um potencial físico acrescido, como ainda intensifica o nível de humilhação, subjugação e quase coisificação da vítima, exponenciando as repercussões presentes e previsivelmente futuras sobre a sua esfera emocional e psíquica.
Temos então condutas – a de 2019/2020 e a de 2024 – que se integram, isoladamente consideradas e em conjunto, no conceito de «maus tratos», com a particularidade de que a conduta de 2019/2020 subsumia-se, à data, na previsão do art. 152º-A, nº 1, alínea a) do Código Penal, na redação decorrente da Lei nº 59/2007, de 4/09; e a conduta de novembro de 2024 subsume-se à previsão do art. 152º, nºs 1, alínea e) e 2, alínea a) do Código Penal, na redação da Lei nº 57/2021, de 16/08.
Há aqui uma problemática que pode suscitar-se, que se prende com o intervalo de tempo que existe entre as duas situações: os primeiros factos datam de 2019/2020 e os segundos ocorreram em novembro de 2024. Existirá aqui verdadeiramente uma unidade criminosa? Ou não teremos já dois ilícitos?
Estamos em crer que a factualidade que vem dada como provada ao nível dos requisitos subjetivos da infração aponta para a unificação das condutas; e na verdade, estas tiveram lugar sob um mesmo contexto relacional e habitacional, sem nenhuma atuação de permeio de alguma instância formal de justiça que tornasse imperativa uma cisão «na resolução criminosa»; resolução esta que nos crimes de violência doméstica tem aliás contornos próprios, com vocação para se estender no tempo, não havendo regras temporais precisas para identificar o que é um ilícito e o que é já outro (sendo que subjacente a ambas as situações parece estar um mesmo tipo de abordagem por parte do arguido ao processo educativo da filha).
Eis-nos pois chegados a duas situações que se inscrevem numa única unidade de sentido prefigurável como «maus tratos».
Dito isto, qual então a exata tipificação legal que deve presidir à condenação do Arguido: a do crime de maus tratos, ou a do crime de violência doméstica?
Esta interrogação tem importância prática na medida em que o limite mínimo da pena não é coincidente: dando aplicação ao art. 152º-A, nº 1, alínea a) do Código Penal, na redação decorrente da Lei nº 59/2007, de 4/09, o limite mínimo da pena é de um ano de prisão; mas dando aplicação ao art. 152º, nºs 1, alínea e) e 2, alínea a) do Código Penal, na redação da Lei nº 57/2021, de 16/08, o limite mínimo é de dois anos de prisão.
Que fazer então?
A este respeito, há em primeiro lugar que notar, como adiantámos atrás, que se verifica uma continuidade normativo-típica, ainda que sob a invocação de diferentes nomes jurídicos. Ou seja, os «maus tratos» perpetrados por um pai sobre a sua filha menor que estivesse ao seu cuidado e guarda, enquanto tais, já eram crime em 2019/2020, continuaram a ser crime em novembro de 2024 e ainda hoje o são.
Em segundo lugar, a conduta sob análise teve um primeiro incidente em 2019/2020 e um segundo em novembro de 2024; assumindo-se que estamos diante um único ilícito material global (que em bom rigor não temos razão bastante para cindir, dado que persistiram entre um ponto e outro a relação subjacente entre agressor e vítima e o contexto da mesma, questão aliás não tocada pelo recurso), o que temos é então um mesmo ilícito que percorre ou toca dois regimes legais aplicáveis.
Dito isto, uma vez que o «momento da prática do facto», à luz do art. 3º do Código Penal, é aquele em que o Arguido cometeu o primeiro ato de execução, relevante seria o regime do crime de maus tratos vigente em 2019/2020; e só assim não é, acrescente-se e corrija-se, visto que houve entretanto um novo ato de execução que teve lugar em plena vigência do novo regime legal e que congrega em si mesmo a verificação de todos os pressupostos da sua aplicação, justificando-se destarte que a lei nova seja aplicável ao conjunto ilícito unitário, supondo a indivisibilidade deste, à semelhança do que sucede com os chamados crimes permanentes (sobre a matéria vide Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, Verbo, 2005, pgs. 293-5; e Lopes Rocha, “Aplicação da Lei Criminal No Tempo e no Espaço”, Jornadas de Direito Criminal, pg. 101).
É que se considerarmos, como consideramos, que a conduta de 2024 constitui, em si mesma, um crime de violência doméstica à luz do atual art. 152º, nºs 1, alínea e) e 2, alínea a) do Código Penal, então não há verdadeiramente uma aplicação retroativa de norma penal mais desfavorável, já que o tipo legal e a moldura correspondente são-nos dadas a partir de um ilícito cujos elementos integradores se verificam totalmente na vigência da norma atual (sobre esta matéria, vide Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 2ª edição revista, Coimbra Editora, 1997, pgs. 89-92; e Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 3ª edição, Gestlegal, 2019, pg. 229).
Em síntese, será o Arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica previsto pelo art. 152º, nºs 1, alínea e) e 2, alínea a) do Código Penal.
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2.4 As sanções
2.4.1 A pena principal
Ao crime de violência doméstica em apreço é aplicável uma pena de prisão entre dois e cinco anos [art. 152º/2 a)].
Encontremos, aqui chegados, a concreta pena principal.
Comecemos por recordar o que ficou plasmado na sentença recorrida em matéria de determinação da medida da pena: «(…) As consequências jurídicas da prática de um crime pautam-se pela aplicação de determinados critérios relacionados com as necessidades dos fins das penas, que são, segundo dispõe artigo 40º, nº 1 do Código Penal “a protecção de bens jurídicos” (prevenção geral) e “a reintegração do agente na sociedade” (prevenção especial). Actua-se no âmbito da prevenção geral positiva ou de integração quando se reforça na comunidade o sentimento da validade e da segurança face às normas jurídicas violadas, e no da prevenção especial positiva ou de socialização quando a pena é dirigida à ressocialização ou reintegração do agente e perante a qual o julgador efectua um juízo de prognose quanto aos efeitos desta na futura conduta do delinquente. A culpa, como vertente pessoal do crime, limita as exigências de prevenção, na medida em que a pena jamais poderá ultrapassar essa culpa, sob pena de se desrespeitar o princípio basilar da dignidade humana. O quantum de culpa constituirá sempre o limite máximo da pena a aplicar, em nome do princípio segundo o qual, não pode haver pena sem culpa e a medida da culpa determinará a medida da pena – artigo 40º, nº 2 do Código Penal. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente por ter agido como agiu, quando podia e devia ter agido de acordo com a norma. O artigo 71º do Código Penal estipula que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo – no dizer de Maria João Antunes, “Assim se enuncia o princípio da proibição da dupla valoração, segundo o qual o juiz não deve utilizar para determinar a medida da pena as circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto” (in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2020, p. 46). As exigências da prevenção especial de socialização determinam a medida exacta da pena concreta, que pode descer até ao limite inferior daquela moldura quando o agente do crime não careça de ser socializado, mas somente advertido. A quantificação da culpa e o grau de exigência das razões de prevenção, em função dos quais se vai dimensionar a correspondente moldura, faz-se através da ponderação das circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. No exercício desta tarefa é o juiz amparado pelo disposto no artigo 71º, nº 2 do Código Penal, o qual enumera, de forma exemplificativa, algumas dessas circunstâncias, as quais podem relevar não só para a culpa, mas também para a prevenção, sendo que a mesma circunstância, quando duplamente relevante, pode ter depor a favor e contra o agente, consoante seja valorada para efeitos de culpa ou de prevenção. “Partindo da moldura penal e considerando que a culpa é o limite da pena, o julgador tem que criar a submoldura da prevenção geral, cujo limite máximo é constituído pela medida óptima de tutela dos valores ofendidos pelo crime, no sentido de tutela das expectativas da comunidade quanto à manutenção (ou reforço) da norma violada, e o limite mínimo corresponde à pena ainda suportável pela comunidade com vista a essa tutela” (Robalo Cordeiro, in A Determinação da Pena, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, CEJ, Lisboa, 1998). Em suma e na síntese lapidar e patente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-03-2015 (Processo nº 30/14.5PAACB.C1; Relator: Vasques Osório; disponível em www.dgsi.pt), “A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada –[prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena”. Vejamos, então, a situação em apreço. As exigências de prevenção geral são ponderosas, atenta a frequência com que este tipo de crime é praticado, a incontestável danosidade social que o mesmo implica e os sentimentos de intranquilidade, insegurança e agitação que lhe estão associados, quer a nível individual, na esfera do ofendido, quer a nível comunitário, na esfera de todos quantos presenciam directamente as ofensas ou delas tomam conhecimento. Com efeito, este tipo de crime é frequentemente praticado e com algum sentimento de permissividade que urge combater de molde a que não fique qualquer dúvida de que agressões físicas, absolutamente desproporcionadas e sem qualquer moderação, em crianças, ainda que cometidas com intuito educativo, não são permitidas pelo nosso sistema penal. As exigências de prevenção especial são médias, ponderando-se, por um lado, a inserção familiar, social e profissional do arguido, bem como a postura assumida em audiência de discussão e julgamento, confessando de forma integral e sem reservas os factos que lhe eram imputados, mostrando-se arrependido, mais tendo interiorizado o desvalor e a ilicitude das suas condutas, e, por outro lado, a circunstância de o arguido apresentar um antecedente criminal pelo mesmo tipo de crime, embora na sua forma simples (Processo Sumaríssimo nº 30/22.1...). O grau de ilicitude revela-se (…) num grau médio, dentro do tipo de crime cometido, tendo em conta os meios empregues pelo arguido para ofender a filha (colher de pau; cinto), as zonas atingidas (mãos; zona das nádegas e parte de trás da coxa esquerda), as lesões sofridas pela ofendida (mãos inchadas e doridas; dores durante pelo menos dois dias e marca vermelha no local do impacto do cinto no corpo da ofendida) e a circunstância de entre as duas agressões distar um período de pelo menos 4 anos. A culpa é elevadíssima, considerando que uma relação familiar tal como é a de pai e filha deveria constituir contra motivação mais do que forte e suficiente à violação das normas, para além de que as condutas perpetradas pelo arguido não se mostram minimamente justificadas e adequadas à prossecução de um qualquer e determinado fim educativo. O dolo (…) é intenso, pois que se expressa na modalidade de dolo directo, constituindo o grau máximo de censura da conduta adoptada. Em desfavor do arguido, milita a referida condenação averbada no Certificado do Registo Criminal pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples. Em favor do arguido milita a sua inserção familiar, social e profissional, a confissão integral e sem reservas dos factos imputados, bem como o arrependimento e a interiorização do desvalor e da ilicitude das suas condutas demonstrados em sede de audiência de discussão e julgamento.»
Vistas estas considerações que o Tribunal recorrido teceu a propósito dos dois crimes de ofensa à integridade física qualificada a que chegou, afigura-se-nos que as mesmas são no seu sentido essencial transponíveis para este novo enquadramento pelo qual enveredámos, de subsumir as condutas do Arguido a um único crime de violência doméstica.
Fazendo nossas tais considerações, com a devida vénia, e tendo presente a moldura penal em causa, entre dois e cinco anos de prisão, afigura-se-nos que a medida de pena proposta pelo Recorrente é ajustada: dentro da panóplia possível de casos a que o tipo legal de crime em abstrato se aplica, é razoável que ainda situemos o caso em mãos no limiar mínimo dos dois anos de prisão.
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2.4.2 A (eventual) pena de substituição
Fixada a pena em 2 anos de prisão, não podemos deixar de ter em atenção o que resulta do art. 50º, quando nos diz no seu nº 1 que o tribunal «suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Não se trata aqui de uma verdadeira opção do tribunal, que este poderá arbitrariamente usar ou não; do que se trata é antes de um efetivo poder-dever, no sentido em que, se o conjunto das circunstâncias do caso permitirem perceber que a simples ameaça de execução da prisão, porventura com a imposição de deveres ou regras de conduta, satisfará suficientemente as exigências da punição, impõe-se ao tribunal que determine a suspensão da execução da pena de prisão, posto que o nosso sistema assenta como se sabe num princípio de liberdade, que apenas pode ser coartada se esta solução for de todo incontornável.
Para que o tribunal enverede pela suspensão da execução da pena de prisão é contudo essencial que, à luz de todos os elementos disponíveis, emita um prognóstico favorável relativamente ao comportamento ulterior do arguido; e é essencial ainda que, concluindo o tribunal por um tal juízo favorável, as necessidades de reprovação e de prevenção do crime não se oponham ao recurso a esta figura (Figueiredo Dias, ob. cit., pgs. 342 a 344).
Ora, merece-nos aqui destaque tudo quanto de favorável ao arguido ficou mencionado atrás a propósito das exigências da punição pela via da prevenção especial positiva e que aqui concorrem decisivamente no sentido da suspensão da execução da pena de prisão, a saber e em particular: o ter confessado integralmente os factos; o ter-se mostrado arrependido; o estar familiar e profissionalmente integrado; e bem assim e ainda o ter um grau médio de formação escolar.
Neste circunstancialismo, as necessidades de reprovação e de prevenção do crime, conquanto obviamente presentes, não têm neste caso e neste momento peso suficiente ao ponto de impor a efetividade da pena de prisão.
Suspender-se-á em suma a execução da pena de prisão, pelo período correspondente à pena de prisão aplicada, período este que se tem por necessário (e suficiente, adequado e proporcional) em ordem a garantir a efetiva consistência futura de um comportamento correto do arguido (art. 50º, nº 5 do Código Penal).
A esta suspensão é aplicável o preceituado pelo art. 34º-B da Lei nº 112/2009, de 16/09.
Em concreto, temos como pertinente associar a suspensão da execução da pena a regime de prova, radicado num acompanhamento da situação familiar por parte da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em ordem a aferir e garantir a ausência de violência física e/ou psíquica do Arguido para com a sua filha, regime de prova esse a definir com exatidão num momento ulterior, nos termos consentidos pelo art. 494º, nº 3 do Código de Processo Penal (cfr. ainda os arts. 53º e 54º).
Suspender-se-á pois a execução da pena de prisão, por período idêntico ao da pena, com regime de prova.
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2.4.3 As (eventuais) penas acessórias
De acordo com o preceituado pelo nº 4 do art. 152º do Código Penal, «(…) podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica»; acrescenta o nº 5 da norma que «a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância»; e preceitua por fim o nº 6 que «quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos».
Subjacente à aplicação de qualquer destas penas acessórias está um juízo de perigosidade do arguido.
Ora, consideradas as circunstâncias do caso concreto e em particular o ter havido duas atuações por parte do Arguido, a última das quais não há muito tempo, e que a sua filha menor ainda tem apenas 13 anos, afigura-se-nos razoável sujeitar o Arguido a um programa específico de prevenção da violência doméstica, com incidência na sua relação com crianças.
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2.4.4 O (eventual) arbitramento de uma indemnização
À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, mesmo não a tendo peticionado, decisão essa que se torna imperativa nos casos de violência doméstica (arts. 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal e 21º, nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16/09).
No caso concreto, face à natureza dos danos provocados, não é possível encontrar um valor que propriamente os repare; o que é possível é definir uma quantia que em alguma medida compense a vítima do prejuízo que o agente lhe provocou.
Estamos naturalmente no campo dos danos não patrimoniais, cuja reparação há de fazer-se por apelo a critérios de equidade, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e as demais circunstâncias do caso (arts. 494º e 496º, nºs 1 e 4 do Código Civil).
Considerando a matéria de facto apurada com relevo nesta matéria, com destaque para a que se reporta às repercussões sobre a BB dos gestos do Arguido e para a que ilustra a condição económica deste, com quem, aliás, aquela vive, afigura-se-nos equitativo situar a indemnização, num juízo atualizado, no valor de € 800,00, à qual acrescerão juros de mora legais desde a data do presente acórdão (arts. 566º, nº 2, 805º, nº 3 e 806º, nº 1 do Código Civil e o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002).
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3 - Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, nos seguintes termos:
A. Revoga-se a sentença recorrida, na parte em que condenou o AA pela prática de prática de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 2 do Código Penal, destes sendo aquele absolvido;
B. Condena-se o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto pelo art. 152º, nºs 1 e) e 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
C. Determina-se a suspensão da execução dessa pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, com regime de prova, mediante plano de reinserção a elaborar oportunamente, nos termos dos arts. 54º do Código Penal e 494º, nº 4 do Código de Processo Penal, subordinado ao objetivo central de acompanhamento da sua situação familiar, por parte da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em ordem a aferir e garantir a ausência de violência física e/ou psíquica do Arguido para com a sua filha BB;
D. Condena-se o Arguido na pena acessória de obrigação de frequência de um programa específico de prevenção da violência doméstica, com incidência na sua relação com crianças;
E. Condena-se o Arguido a pagar à sua filha BB, a título de indemnização, a quantia de € 800,00 (oitocentos euros), acrescida dos competentes juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão e até efetivo e integral pagamento.
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Não são devidas custas pelo recurso (art. 513º, nº 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal).
Registe e notifique.
Lisboa, 20 de novembro de 2025
Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo relator e revisto por todos os signatários; assinaturas eletrónicas)
Jorge Rosas de Castro
Ana Paula Guedes
Ana Marisa Arnêdo