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RESTITUIÇÃO DE POSSE
CABEÇA DE CASAL DE FACTO
LEGITIMIDADE ACTIVA
LEGITIMIDADE INDIRETA OU EXTRAORDINÁRIA
Sumário
I - A circunstância de não existir qualquer decisão formal de nomeação de cabeça de casal não impede que ele detenha essa qualidade desde a abertura da sucessão e, sobretudo, que exerça as funções correspondentes. II - Tem essa qualidade de cabeça-de-casal quem deve ser nomeado para o cargo nos termos da lei.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório AA, na qualidade de cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta pelo falecimento de BB,
instaurou a presente acção declarativa de restituição de posse com processo comum contra CC,
pedindo a condenação do réu:
a. a restituir ao autor a fracção autónoma que descreve no artigo 1º, da petição inicial, livre de pessoas e bens; e
b. a pagar à herança administrada pelo autor a quantia de € 350,00 por cada mês de atraso na restituição da fracção autónoma ocupada, desde o dia 31.07.2024 até efectiva entrega.
Para tanto, alegou o autor, em síntese, que é o cabeça de casal da herança aberta pelo falecimento de BB; que a herança é proprietária de uma fracção autónoma que está a ser ocupada por mero favor pelo réu para o exercício da sua actividade profissional; que pretende que o réu seja condenado a entregar ao autor a posse da fracção autónoma para que este a administre convenientemente em favor da herança, nomeadamente, arrendando-a e daí retirando um rendimento para a herança de, pelo menos, € 350,00 mensais.
Regularmente citado, o réu contestou a acção, invocando, para o que ora interessa a ilegitimidade activa do autor, alegando que não compete ao autor o cargo de cabeça de casal, mas sim ao herdeiro DD (que alegadamente vivia com a autora da herança há mais de um ano por referência à data da sua morte) e que, pelo menos parte, dos herdeiros manifestou oposição ao exercício de tal cargo pelo autor.
Notificado para o efeito, o demandante veio responder à excepção invocada, pugnando pela sua improcedência, acrescentando que é ele quem tem vindo a exercer o cargo de cabeça de casal, cargo este que lhe incumbe por ser o filho mais velho, não sendo verdade que o herdeiro DD residia com a autora da herança à data da sua morte.
Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador a julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade do autor e a absolver o réu da instância, fundamentando o tribunal a quo a sua decisão nos seguintes termos:
“A presente acção centra-se no art. 2088º nº1 do Cód. Civil relativo à entrega de bens da herança.
Este preceito estabelece que o cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.
A entrega de bens da herança insere-se na administração da herança. A administração da herança compete ao cabeça de casal. Tem sido entendido que as funções de cabeça de casal perduram durante todo o período em que existe a herança enquanto património hereditário autónomo. Assim, as funções de cabeça de casal iniciam-se com a abertura da sucessão e terminam com a partilha e liquidação da herança, como estabelece o art. 2079º do Cód. Civil. Neste sentido pode ver-se Rabindranath Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, pág. 51.
A este propósito, importa distinguir entre o cabeça de casal investido no cargo e o cabeça de casal de facto. O primeiro corresponde ao cabeça de casal que foi confirmado ou designado no processo de inventário. O cabeça de casal de facto corresponde àquele a quem pertenceria o cargo se fosse requerido o inventário e que exerce a administração da herança entre a abertura da sucessão e a sua confirmação ou designação no processo de inventário.
Sempre que o legislador se refere ao cabeça de casal deve entender-se que está a referir-se ao cabeça de casal investido no cargo. O cabeça de casal de facto é uma figura residual que apenas se justifica para o cumprimento das formalidades legais que são exigidas após o falecimento do autor da sucessão e em situações que não se compadecem com a sua confirmação ou designação no processo de inventário. A regra é, assim, que o cabeça de casal deve sujeitar-se à sua confirmação ou designação no processo de inventário e apenas tem legitimidade para intervir invocando a qualidade de cabeça de casal de facto em situações excepcionais.
Neste sentido pode ver-se AUGUSTO LOPES CARDOSO para quem 'quando se fala em cabeça de casal parte-se do princípio que alguém foi como tal nomeado em determinado inventário. É esta a ideia generalizada, mas não é rigorosamente exacta. O cabeça de casal tem existência jurídica desde a morte do autor da herança, e isto independentemente de ter havido inventário para a respectiva partilha. Nem de outro jeito podia ser, uma vez que o falecimento e a abertura da herança implicam o cumprimento de obrigações cuja falta a lei pune com severidade e que não se coadunam com o tempo que medeia entre aquela data e a nomeação (…). Daí que, tendo em consideração esta realidade, alguma vezes tenha sido atribuída a qualidade de cabeça de casal, não mercê da nomeação operada em inventário, mas em consequência de essa pessoa ser aquela a quem pertenceria tal encargo se o inventário fosse efectivamente distribuído em juízo'. In Partilhas Judiciais, Vol. I, pág. 282.
No caso dos autos, não foi alegado pelo autor ou pelo réu que tenha sido requerido o inventário para partilha da herança aberta pelo falecimento da sua mãe e que o autor tenha sido nomeado cabeça de casal, pelo que está em causa o cabeça de casal de facto.
Por outro lado, a presente acção não se refere ao cumprimento de qualquer formalidade legal que seja exigida após o falecimento da mãe do autor e do réu.
O autor apenas podia intentar a presente acção invocando a qualidade de cabeça de casal de facto se estivesse em causa uma situação que não se compadecia com a sua confirmação ou designação no processo de inventário.
O autor reconhece que o réu está a utilizar a fracção autónoma pelo menos desde o ano de 2000, o que ocorreu por cortesia ou complacência dos seus pais (cfr. o art. 58º da resposta às excepções). A mãe do autor e do réu faleceu no dia ../../2023. Estando o réu a utilizar a fracção autónoma desde há mais de vinte anos e tendo a mãe do autor e do réu falecido há vários anos sem que tenha sido requerida a partilha da herança, necessariamente que não se verifica uma situação de urgência que justifique que o autor possa intentar a presente acção invocando a sua qualidade de cabeça de casal de facto. Concretamente, não está em causa uma situação que não se compadece com a confirmação ou designação do autor no processo de inventário.
Importa ainda referir que resulta abundantemente dos autos que a qualidade de cabeça de casal de facto que é invocada pelo autor não é reconhecida pelos restantes herdeiros. O réu juntou uma carta em que cinco filhos comunicaram ao autor que não era o cabeça de casal. O autor juntou uma carta em que reconheceu que os herdeiros estavam a questionar a sua qualidade de cabeça de casal, mas iria continuar a exercer estas funções.
Neste contexto, não seria compreensível que o autor pudesse intentar a presente acção invocando a sua qualidade de cabeça de casal de facto sem se sujeitar previamente à sua confirmação ou designação no processo de inventário, o qual pode facilmente requerer como qualquer outro herdeiro (art. 2101º nº1 do Cód. Civil e art. 1097º nº1 e 1099º do Cód. de Processo Civil).
A qualidade de cabeça de casal de facto já é precária, mas relativamente ao autor apresenta-se de tal forma precária que não pode ser-lhe reconhecida legitimidade para os efeitos do art. 2088º nº1 do Cód. Civil.
A ilegitimidade consiste numa excepção dilatória que implica a absolvição da instância (art. 576º nº1 e 2 e 577º al. e) do Cód. de Processo Civil).”.
Inconformado o autor interpôs recurso da referida decisão, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
«A. A Sentença Recorrida não fez devida interpretação e aplicação dos números 1 e 2 do artigo 2088º, do Código Civil, o qual tem por epigrafe “Entrega de Bens”, ao considerar que a presente ação teria de ser intentada pelo Cabeça-de-Casal após a sua nomeação em processo de inventário, bem assim, que o Autor não dispõe de tal qualidade, pois que, não se sujeitou previamente à sua confirmação ou designação no processo de inventário.
B. Dispõe o nº 2 do mencionado preceito legal que, - “O exercício das acções possessórias cabe igualmente aos herdeiros ou a terceiro contra o cabeça-de-casal.” -, portanto salvo melhor entendimento, dali decorre que, além do cabeça-de-casal, qualquer herdeiro, poderá lançar mão de ações possessórias- inclusive contra o cabeça-de-casal.
C. Assim, os herdeiros, individualmente ou em conjunto, poderão intentar ações possessórias contra os demais herdeiros, terceiros ou mesmo contra o cabeça-de-casal.
D. Tendo o Autor/Recorrente intentado AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE POSSE contra outro herdeiro, parece-nos, que a qualidade de herdeiro é suficiente para assegurar a legitimidade processual ativa, num processo em que está apenas a usar de uma ação possessória, a fim de ser restituída a posse de determinado bem à herança.
E. Tenha-se em atenção que, relativamente à posse sobre os bens da herança, a qual após a morte do possuidor continua nos seus sucessores (artigo 1225.º e 2050.º do Código Civil), apesar de nos encontrarmos perante uma posse “jurídica”, porque não exige a prática de atos materiais, qualquer dos herdeiros, além da ação de petição de herança (artigo 2075.º e seg. do Código Civil), pode utilizar os meios de defesa da posse relativamente a cada um dos bens da herança (artigos 1276.º e seg.), inclusivamente contra o cabeça de casal que não se encontre no exercício dos poderes de administração (artigo 2088.º, n.º 2, do Código Civil), sendo subsidiariamente aplicável a uma situação de composse, o que sucede sempre que se verifica uma pluralidade de herdeiros, o disposto no artigo 1406.º do Código Civil.
F. Tendo o Autor invocado a qualidade de Cabeça-de-Casal (“de facto / ex lege”), a falta de confirmação ou designação no processo de inventário de tal qualidade não poderia, por si só, obstar a intentar a presente ação, nem coarctar os poderes do cabeça de casal.
G. A falta de confirmação ou designação formal no âmbito do processo de inventário não impede que quem, de facto, exerça funções correspondentes à administração da herança — o denominado cabeça de casal de facto — possa intentar ações judiciais em defesa dos bens integrantes da herança- demonstrando a sua qualidade e interesse legítimo.
H. Tendo o Autor, em de ação de Restituição de Posse de um Bem da Herança dos seus pais, alegados factos dos quais resulta deter legitimidade processual, designadamente na qualidade de Cabeça-de-Casal (“de facto”), porquanto é o filho mais velho (2080, nº4 do Código Civil),
I. Não poderia o Tribunal de Primeira Instância em sede de despacho saneador e, sem que qualquer prova tivesse sido produzida, concluir pela verificação da exceção de ilegitimidade ativa do Autor, antes devendo ter relegado para decisão final o seu conhecimento, na medida em que carece de ulterior produção de prova.
J. Note-se que só após a presente ação ter sido intentada é que o R. ( e outros) se veio opor ao exercício do cargo por parte do ora A.
K. O A. sempre prestou contas do seu exercício do cargo de cabeça de casal e enquanto no exercício de tal cargo está sujeito a essa obrigação de prestação de contas, respondendo, além do mais, perante todos os herdeiros pela boa administração dos bens da herança.».
Foram apresentadas contra-alegações, concluindo o réu as suas alegações nos seguintes termos:
«1.º - Bem decidiu o douto tribunal “a quo” ao julgar procedente a exceção dilatória de ilegitimidade do Autor, e em consequência, absolveu o Réu da instância, não assistindo qualquer razão ao Recorrente.
2.º - A sentença não padece de qualquer vício, pelo que o recurso interposto deve ser totalmente improcedente.
3.º - Ora, o Autor peticionou, arrogando a qualidade de cabeça de casal da herança ilíquida indivisa aberta pelo falecimento de BB, na condenação na restituição à herança a fração autónoma que descreve, livre de pessoas e bens, bem como, o pagamento à herança a quantia de € 350,00 por cada mês de atraso na restituição da fração autónoma desde o dia 31 de Julho de 2024 até efetiva entrega.
4.º - Contudo, no âmbito da ação possessória prevista no artigo 2088.º n.º 1 e 2.º bem andou o douto tribunal ao afirmar:
“A este propósito, importa distinguir entre o cabeça de casal investido no cargo e o cabeça de casal de facto. O primeiro corresponde ao cabeça de casal que foi confirmado ou designado no processo de inventário. O cabeça de casal de facto corresponde àquele a quem pertenceria o cargo se fosse requerido o inventário e que exerce a administração da herança entre a abertura da sucessão e a sua confirmação ou designação no processo de inventário.
Sempre que o legislador se refere ao cabeça de casal deve entender-se que está a referir-se ao cabeça de casal investido no cargo. O cabeça de casal de facto é uma figura residual que apenas se justifica para o cumprimento de formalidades legais que são exigidas após o falecimento do autor da sucessão e em situações que não se compadecem com a sua confirmação ou designação no processo de inventário. A regra é, assim, que o cabeça de casal deve sujeitar-se à sua confirmação ou designação no processo de inventário e apenas tem legitimidade para intervir invocando a qualidade de cabeça de casal de facto em situações excecionais”.
5.º - Nos termos do artigo 2088.º n.º 1 e 2 do Código Civil no que se refere à entrega de bens de que o cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega de bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder e usar contra eles ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituída.
6.º - A entrega de bens da herança insere-se na administração da herança que, por sua vez, é da competência do cabeça de casal, o qual, havendo a distinção entre cabeça de casa nomeado em processo de inventário e cabeça de casal de facto, esta última assume sempre uma posição precária, que não pode ser reconhecida no âmbito do artigo 2088.º do CC.
7.º - Ora, a posição do Autor é uma situação bastante frágil, porquanto, embora o mesmo alegue se cabeça de casal de facto, o mesmo não é confirmado pelos restantes herdeiros, bem como não foi requerido o processo de partilha da herança pelo falecimento da mãe do Autor nem tão pouco do pai do autor, o qual também era proprietário do imóvel em causa.
8.º - Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº 432/20.8T8VPV.L1-7, de 04-04-2022:
“(...)
3. - O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, cfr. art. 2088º, nº 1 do CC, desde que essa entrega seja realmente necessária ao exercício da gestão”.
(Sublinhado e negrito nosso).
9.º - E, como não se verifica, nos presentes autos uma situação de urgência que justifique que o Autor possa intentar a referida ação invocando a sua alegada qualidade de cabeça de casal de facto.
10.º - É manifesta a ilegitimidade do Autor para intentar a presente ação, exceção dilatória invocada pelo Réu em sede de Contestação dos presentes autos.
11.º - Exceção que foi doutamente julgada procedente pelo Tribunal “a quo”, com a consequente absolvição do Réu da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 576º, nº1 e 2 e 577º, alínea e) do Código de Processo Civil.
12.º - Com interesse para os presentes autos o Mmº. Juiz de Direito considerou, com relevo para a decisão a proferir, o seguinte: “(...) resulta abundantemente dos autos que a qualidade de cabeça de casal de facto que é invocada pelo autor não é reconhecida pelos restantes herdeiros. O réu juntou uma carta em que cinco filhos comunicaram ao autor que não era o cabeça de casal. O autor juntou uma carta em que reconheceu que os herdeiros estavam a questionar a sua qualidade de cabeça de casal, mas iria continuar a exercer estas funções”.
13.º - Ora, se dúvidas restassem no que concerne à (i)legitimidade do autor para intentar a presente ação, por ora estão dissipadas.
14.º - De facto, embora o Autor seja o filho mais velho, outro irmão do Autor residia com a falecida há mais de um ano, o qual prefere no cargo nos termos do artigo 2080.º do Código Civil. O filho e herdeiro DD vivia com os pais à data da morte de cada um deles, e igualmente, há mais de um ano.
15.º - Ademais, mesmo admitindo a qualidade de cabeça de casal de facto do Recorrente, bem considerou o Tribunal de 1ª Instância ao afirmar que “a qualidade de cabeça de casal de facto já é precária, mas relativamente ao autor apresenta-se de tal forma precária que não pode ser-lhe reconhecida legitimidade para os efeitos do art. 2088º, nº1 do Cód. Civil”.
16.º - Ação que, ao ser intentada com fundamento em alegada ocupação ilegítima de fração propriedade da herança por herdeiro, é da exclusiva competência do titular do cargo de cabeça de casal, à luz do disposto no artigo 2088º, nº1 do C.C.
17.º - Não se coloca em causa que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal, cf. art.º 2079.º do CC e o mesmo pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela ser restituído, cf. art.º 2088º do CC.
18.º - Nesta sequência e atendendo ao decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 1971/18.6T8LRA.C1, de 08-04-2019: “I - A inexistência de inventário para partilha de heranças não obsta a que haja cabeça de casal (nomeadamente, designado por acordo dos herdeiros, como foi o caso – cfr. artº 2084º do CC) que, integrando a figura do cabeça de casal de facto, administre os bens da herança e que, enquanto tal, já que administra bens alheios, está obrigado a prestar contas a quem tenha legitimidade para exigi-las, como será o caso de um herdeiro (...)”
(Sublinhado e negrito nosso).
19.º - In casu, para além de o Autor não ter sido nomeado ou designado para o cargo de cabeça de casal mediante processo de inventário, muito menos se poderia recorrer ao disposto no artigo 2084º CC que estipula a designação por acordo dos herdeiros.
20.º - O Recorrente nas suas Alegações recorre a uma interpretação extra legem, desprovida de sentido e fundamentação jurídica do artigo 2088º, nº2 do CC, ao considerar que do preceito legal decorre que a qualidade de herdeiro é suficiente para assegurar a legitimidade processual ativa num processo em que está apenas a usar de uma ação possessória, a fim de ser restituída a posse de determinado bem à herança.
21.º - Vejamos que, no âmbito da ação de reivindicação de bens de uma herança enquadra-se no âmbito do 2091.º do C.C., sendo uma ação que tem de ser intentada por todos, ou contra todos, os herdeiros. Ou seja, enquanto a herança permanecer indivisa, os herdeiros exercem em conjunto a generalidade dos direitos relativos a esta, porquanto, ao cabeça de casal, apensas são conferidos poderes de administração da herança, nos termos do artigo 2079.º do CC.
22.º - No âmbito desses poderes, está incluída a instauração de ações possessórias, tal com decorre no artigo 2088.º n.º 1 do CC.
23.º - E, no caso de não ser o cabeça de casal a intentar a ação, tal ação possessória tem que ser intentada por todos os herdeiros, nomeadamente, contra o cabeça de casal.
24.º - Pelo que, como já demonstrado é desprovido de qualquer sentido retirar da letra da lei uma interpretação teleológica tal do referido preceito legal que nos permita afirmar que qualquer herdeiro possa lançar mão de ações possessórias contra outros herdeiros, como pretende fazer ver o Recorrente.
25.º - Além de que, como bem afirma o douto tribunal, na situação alegada pelo Autor não se verifica qualquer situação de urgência que justifique que o Autor possa intentar a ação invocando apenas a qualidade de cabeça de casal de facto, situação que não é reconhecida pelos restantes herdeiros.
26.º - Assim, não restam dúvidas de que não assiste qualquer razão ao Recorrente, não tendo a douta sentença violado qualquer norma legal.».
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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No caso vertente, as questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo autor/recorrente, são a de saber se este tem legitimidade para intentar a presente acção, ao abrigo do disposto no art.º 2088º, nº 2, do CC, na qualidade de cabeça de casal de facto e sem o acordo dos demais herdeiros para o exercício do cargo e se a decisão sobre a referida excepção foi proferida prematuramente.
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III. Fundamentação
3.1. Fundamentos de facto
Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra e o teor da decisão recorrida que aqui se dá por integralmente reproduzida.
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3.2. Fundamentos de direito
Conforme resulta do exarado acima, não concorda o recorrente com o decidido pelo tribunal a quo quanto à verificação da excepção de ilegitimidade activa do autor.
Vejamos.
A legitimidade configura-se como um pressuposto processual relativo às partes, sendo a ilegitimidade legalmente classificada como excepção dilatória, de conhecimento oficioso, impedindo o conhecimento do mérito da causa e determinando a absolvição da instância – cfr. art.ºs 278º, nº 1, al. d), 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e) e 578º, todos do NCPC.
Rui Pinto (in, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 111), citando Alberto dos Reis, explica que a legitimidade processual consiste numa “certa posição de um sujeito – a parte processual – face a um certo objecto – o objecto processual – exigida pelo direito”, ou seja, “uma certa posição exigida às partes em relação ao concreto objecto processual”.
Exige-se, assim, à parte uma posição que lhe atribua “a faculdade de dispor em processo da situação jurídica material que constitui o seu objecto”, prevendo-se, deste modo, uma prévia “averiguação de quem pode dispor da situação material, mas por via processual”.
Este pressuposto processual permite, assim, uma função regulatória ou ordenatória, de forma a garantir que os sujeitos processuais são “aqueles que podem ser beneficiados com a decisão de procedência ou de improcedência da causa”, assim se pressupondo “que os efeitos decorrentes da disponibilidade da situação em litígio se possam referir e repercutir na respectiva esfera jurídica” (cfr., Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lisboa, Lex, 1995, p. 47).
A regra a observar deve ser, deste modo, a que determina “que não pode ter legitimidade para propor acção ou ser nela demandado quem materialmente não pode dispor da situação que será objeto dos efeitos da decisão final”, o que traduz a legitimidade processual directa.
Com efeito, estatui o art.º 30º, do NCPC, que:
“1- O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2- O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3- Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor” (o sublinhado é nosso).
Assim, e conforme o nº 1 do transcrito normativo, terá legitimidade processual activa “o titular do interesse directo em demandar”, o qual “deve ser jurídico, ainda que não actual”.
Acrescenta o supra citado autor que este normativo prevê “dois critérios concretizadores pelos quais se pode apurar o interesse direto de modo relativamente flexível: o critério da utilidade e o critério da titularidade da relação material”. Relativamente ao primeiro critério prático – critério da utilidade ou prejuízo -, enunciado no nº 2 daquele artigo, a aferição da utilidade é efectuada “em face da petição e segundo um juízo de prognose: supondo-se que o pedido seja procedente”. Assim, “se em face da petição se percebe que a esfera jurídica da parte é indiferente à procedência, pois não ganha nem perde na procedência, então não tem legitimidade, sendo terceira”.
Relativamente ao autor (parte activa), o interesse traduz-se na vantagem jurídica que lhe trará a procedência da acção, devendo esta vantagem ser “objetiva e não apenas segundo o ponto de vista de quem a requer”, bem como directa, e não apenas reflexa.
No que se reporta ao segundo critério prático – critério formal da titularidade -, enunciado no nº 3, da sua aplicabilidade resulta que “a titularidade da alegada relação material surge como modo de descobrir o interesse directo na acção, sendo uma forma «implícita» de aferição de legitimidade”.
Donde se configura “uma coincidência entre a afirmação de titularidade (e inerente legitimação material) sobre a situação individualizada e a legitimidade processual, pelo que a legitimidade directa terá de ser apurada pela análise da relação material ou situação jurídica invocada em juízo”.
Na verdade, e conforme escreve Paulo Pimenta (in, Processo Civil Delarativo, 2ª Edição, Almedina, 2017, p. 74 e 75), o autor é parte legítima “sempre que a procedência da acção (previsivelmente) lhe venha a conferir (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade (…)”, consistindo a legitimidade “numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à acção, ao litígio que aí se discute”.
Desta forma, nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, p. 59), o autor é parte legítima se, “atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido”.
Donde, a “exigência de um «interesse» emergente de pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda mais um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.
Ou seja, conforme expressamente referenciam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in, Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, p. 135), “à legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (não apenas moral, científico ou afectivo), na procedência ou improcedência da acção. Exige-se que as partes tenham um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer; não basta um interesse indirecto, reflexo ou derivado”.
Como pressuposto ou condição de necessário preenchimento para que seja proferida decisão de mérito, exprime a legitimidade “a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o”.
A sua aferição, em regra, é efectuada “pela titularidade dos interesses em jogo (no processo)”, ou seja, na legal previsão dos nºs 2 e 3 do normativo em equação, “pelo interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação (…)” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, p. 92).
Mas, para além das situações de legitimidade directa, existem, igualmente, situações de legitimidade indirecta ou extraordinária, com inscrição no 1º segmento do nº 3, do mesmo art.º 30º do NCPC, nomeadamente, quando se referencia “na falta de indicação da lei em contrário”.
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in, obra citada, p. 59) referem existir casos em que “é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso, como ocorre designadamente (….) nos casos de legitimidade extraordinária ou indirecta que é atribuída ao cabeça de casal ou ao administrador do condomínio urbano. Apesar de não serem titulares (….) diretos do interesse em discussão, prevalece o que emerge dos preceitos legais que sustentam a sua intervenção”.
Assim, a referenciada regra decorrente da legitimidade directa – aferida pelo interesse directo em demandar, decorrente da vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da acção – “deixa de se aplicar nos casos excecionais de atribuição do direito de ação ou do direito de defesa a titulares dum interesse indirecto (….) e nos de tutela de interesses coletivos e difusos” (vide, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., p. 92).
Efectivamente, conforme exaram Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in obra citada, p. 139 e 140), de acordo com o critério legal de legitimidade, que apenas funciona em termos subsidiários, existem “numerosos casos em que a lei atribuiu legitimidade para a acção a quem não é titular ou só em parte é titular da relação material em litígio”.
E, exemplificam, “assim sucede nomeadamente com o cabeça-de-casal, o testamenteiro, o administrador da massa falida ou insolvente, a quem é reconhecida legitimidade para intervir em acções respeitantes a relações (substantivas) a que eles são estranhos, das quais não são sujeitos. E o mesmo fenómeno ocorre, embora por outras razões, com o transmitente por acto entre vivos da coisa ou direito litigioso, que continua a ter legitimidade para a causa (art. 271º, 1), enquanto adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo” (o sublinhado é nosso).
Assim sendo, Lopes do Rego alerta que a atribuição da legitimidade indirecta “nunca depende das meras afirmações do autor, expressas na petição inicial (….)”, mas “da efectiva demonstração do interesse ou da titularidade da relação legitimante que justifica a atribuição de legitimidade indirecta.” (in, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª Edição, 2004, Almedina, p. 56 a 60)
Ou seja, segundo o referido autor no que se reporta à legitimidade indirecta, “a efectiva titularidade da relação legitimante é «conditio sine qua non» da legitimação de quem se apresta a exercer direitos alheios”.
Deste modo, a referida legitimação extraordinária depende da concreta configuração da situação em que assenta a legitimidade, designadamente da efectiva demonstração do interesse ou da titularidade da relação legitimante que justifica a atribuição de legitimidade indirecta, não se aferindo, pois, pela mera configuração dada pelo autor à acção. Em tais casos, deve atender-se à relação controvertida, tal como é “configurada por ambas as partes” e resulta do normal desenvolvimento da lide (cfr. Lopes do Rego, in ob. e local citado). Vide ainda, a propósito, o ac. desta Relação de Guimarães, de 8.11.2018, relatado no processo nº 1372/17.3T8BRG.G1 e em que interveio como adjunto, o aqui também 1º adjunto (consultável in www.dgsi.pt).
Isto posto e revertendo ao caso dos autos, importa começar por averiguar a natureza da acção em questão, por forma a permitir aferir a quem é conferida legitimidade para a interposição da mesma.
Neste conspecto, constata-se que o autor, ora apelante, estruturou a causa de pedir com base na sua qualidade de cabeça-de-casal e administrador da herança aberta por óbito de BB e no facto do réu ocupar em proveito próprio (sem pagar qualquer contrapartida monetária) uma fracção autónoma pertencente a essa herança, impossibilitando a sua administração.
Da forma como o autor apresentou o objecto processual dos autos, extrai-se, pois, que estamos perante uma acção com fundamento no art.º 2088º, nº 1 do CC.
Com efeito, este normativo prevê que “O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.”.
Na verdade, em princípio, enquanto a herança permanecer indivisa, os herdeiros exercem em conjunto a generalidade dos direitos relativos a esta, conforme resulta do disposto no art.º 2091º, do CC.
Porém, este normativo afasta expressamente esta obrigatoriedade de exercício conjunto pelos herdeiros os casos declarados nos artigos anteriores, entre outros, os previstos no art.º 2088º, do CC.
Ora, nos termos do art.º 2079º do CC, “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal”.
Nos poderes de administração do cabeça-de-casal cabem não só os poderes e deveres especificamente previstos na lei, mas também os poderes para a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens que constituem o acervo hereditário. Cfr. Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, vol. 2º, p. 55, Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 2º, p. 62 e Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, vol. 1º, p. 304 e seguintes.
Deste enquadramento normativo resulta a possibilidade de o cabeça-de-casal pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, cfr. citado art.º 2088º, nº 1, desde que essa entrega seja realmente necessária ao exercício da gestão.
Com efeito, do teor do art.º 2088º extrai-se que se assume como essencial que a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício da gestão dos bens da herança por forma a ser efectivada a administração da herança pelo cabeça-de-casal.
Mais resulta deste preceito que os eventuais destinatários do dever de entrega dos bens ao cabeça-de-casal são quer os herdeiros, quer os terceiros que detenham os bens.
Por outro lado, este preceito terá como limite direitos previamente assumidos pelo de cujus, já que, como dispõe o art.º 2074º, nº 1 do CC, “O herdeiro conserva, em relação à herança, até à sua integral liquidação e partilha, todos os direitos e obrigações que tinha para com o falecido, à excepção dos que se extinguem por efeito da morte deste”.
O cabeça de casal goza, pois, na qualidade de administrador da herança ilíquida e indivisa, de legitimidade activa para exigir de terceiros (quer sejam herdeiros ou não) a entrega de bens da herança, posto que esta exigência constitui, nos termos do art.º 2087º, nº 1, do CC, acto de administração e é expressamente consentida pelo disposto no citado art.º 2088º, nº 1, do mesmo código.
Deste modo, no caso que nos ocupa, pretendendo o autor - invocando a sua qualidade de cabeça de casal e de administrador de uma herança - exercer do direito de reaver do comodatário um bem indiscutivelmente pertencente a tal herança, com vista à sua administração e rentabilização, não temos dúvidas que a pretensão do autor se enquadra e é admissível ao abrigo do disposto no referido art.º 2088º, nº 1, do CC. Cfr, neste sentido, o ac. do STJ de 9.12.2021, processo nº 8060/18.1T8ALM.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt.
Todavia, para tanto, teria o autor, ora recorrente, como vimos, não só que alegar, mas também tem que demonstrar a sua qualidade de cabeça de casal, dado estarmos, como vimos, perante uma situação de legitimidade indirecta ou extraordinária (é a própria lei que identifica o cabeça de casal como detentor da legitimidade activa para este tipo concreto de pretensão).
Com efeito, e conforme resulta do supra exposto, o réu/recorrido, na sua contestação, invocou a falta de legitimidade do autor para a presente acção, dizendo que o cargo de cabeça de casal não cabe ao autor - enquanto filho mais velho da autora da herança -, mas a outro filho que residia com esta há mais de um ano por referência à data do óbito, tendo o autor, por sua vez, alegado não ser verdade que algum dos herdeiros residisse com a autora da herança à data do respectivo decesso.
Veja-se que as regras legais a que deve obedecer a atribuição do cargo de cabeça de casal estão expressamente previstas no art.º 2080º, do CC, o qual dispõe o seguinte:
«1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.»
Esta norma estabelece, assim e de modo expresso, uma ordem hierárquica entre os critérios de designação, de modo que só se o primeiro não resolver o impasse se passa ao segundo e assim sucessivamente.
Não obstante, no caso, o tribunal recorrido, sem apurar a quem incumbia exercer o cargo de cabeça de casal de acordo com os referidos critérios de designação fixados no transcrito art.º 2080º, do CC, entendeu que o autor/apelante não tem legitimidade para intentar a presente acção uma vez que apenas invocou ser apenas cabeça de casal de facto - não tendo sido judicialmente investido cabeça de casal - e os restantes herdeiros já manifestaram a sua oposição ao exercício das funções de cabeça-de-casal por parte do autor.
O recorrente discorda do assim decidido entendendo desnecessário, para tanto, ser investido judicialmente nas funções de cabeça-de-casal e o acordo dos demais herdeiros.
E com razão, adianta-se.
Com efeito, a doutrina tem entendido predominantemente que o cabeça-de-casal tem existência jurídica desde a morte do autor da herança, independentemente de haver ou não lugar a inventário, sem necessidade de um acto jurídico da aceitação do cabecelato – cfr. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª Edição, Volume I, 1990, p. 282; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil - Sucessões, 4ª Edição, Revista, Coimbra Editora 1989, p. 492-493; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2ª edição, p. 55; Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2ª Edição, p. 145.
Como ilustrativamente afirma Domingos Silva Carvalho de Sá: “Tem essa qualidade de cabeça-de-casal quem deve ser nomeado para o cargo nos termos da lei e mesmo antes da sua indicação formal no processo […] a qualidade de cabeça-de-casal nasce com a morte do inventariado […]” (in, Do Inventário - Descrever, Avaliar e Partir, Coimbra 1996, p. 46).
Neste mesmo sentido tem-se pronunciado de forma uniforme a jurisprudência conhecida, de que são exemplo os acs. da RC de 11.11.2003, processo nº 1907/03 e de 8.01.2019, processo nº 1971/18.6T8LRA.C1; da RE de 8.10.2020, processo nº 435/19.5T8ELV.E1; da RL de 21.05.2020, processo nº 1852/19.6T8OER.L1-2; e da RP de 7.11.2019, processo nº 4233/09.6T2OVR-C.P1 e de 30.05.2018, processo nº 22255/17.1T8PRT.P1 (todos acessíveis in www.dgsi.pt).
Neste último aresto pode ler-se, aliás:
“Importa, desde logo, sopesar que o desempenho das funções de cabeça de casal não depende da nomeação em inventário. Como o adverte Lopes Cardoso não é verdade que a “entidade” cabeça de casal só tenha existência dentro do processo de inventário depois de aí reconhecida por despacho transitado, antes se devendo considerar que o cabeça de casal deve entrar de facto no exercício das funções de administração que lhe competem logo que se dê a abertura da herança ou, no caso de património conjugal, logo que ocorra o divórcio ou a separação judicial de bens. Portanto, a circunstância de não existir qualquer decisão formal de nomeação de cabeça de casal não impede que ele detenha essa qualidade e, sobretudo, que exerça as funções correspondentes.”.
Em consonância, conclui-se, o facto de não existir qualquer decisão formal de nomeação de cabeça-de-casal ou prestação de compromisso de honra em sede de processo de inventário, não impede, por si só, que o autor detenha a qualidade de cabeça-de-casal e, mais do que isso, exerça as funções correspondentes, independentemente da urgência da situação (mormente, tomando a iniciativa de interpelar o réu para lhe entregar o imóvel pertencente à herança).
Acresce que o facto dos restantes herdeiros estarem ou não de acordo com o exercício do cargo pelo autor também não se mostra relevante para o efeito.
Na verdade e como muito bem se diz no ac. da RP de 12.10.2023 “o artigo 2084.º do Código Civil, na redacção vigente, não permite que os interessados afastem a ordem de preferência legal entre eles para o exercício do cargo de cabeça de casal e escolham, por acordo, um deles para esse exercício, havendo outro interessado situado num grau de preferência superior; esse preceito refere-se somente à possibilidade de nomearem outra pessoa que não seja interessada no inventário” (processo nº 941/23.7T8GDM-A.P1, consultável in www.dgsi.pt).
Por conseguinte, no caso, para decidir se cabe ao não ao autor as funções de cabeça de casal haverá apenas que atender aos critérios prevenidos nos nºs 3 e 4 do acima transcrito art.º 2080º do CC, sendo certo que da letra de ambos os preceitos decorre que a previsão do nº 3 prevalecerá sobre a do nº 4, visto que a redacção deste último começa com a expressão “Em igualdade de circunstâncias….”, reportando-se nesta parte inequivocamente ao estabelecido no número anterior (nº 3).
Em conformidade com o acabado de expor, no caso de dois filhos do autor da herança, se um deles residia com este último há pelo menos um ano contado da data do decesso, ainda que não seja o herdeiro mais velho deve ser-lhe deferida a qualidade de cabeça de casal.
Dito isto, no caso em apreço, a factualidade atinente a tal circunstância mostra-se controvertida, não dispondo os autos de elementos suficientes para concluir, desde já, pela legitimidade activa do autor (ou pela falta dela).
Trata-se, sem dúvida, de factualidade para o qual é necessária a produção de prova, como diz o recorrente.
Ou seja, para a decisão da excepção em causa, encontram-se controvertidos factos que se mostram carecidos de prova e, assim, ao contrário do aparentemente gizado na decisão recorrida, não é possível afirmar que, fosse qual fosse a sua prova, sempre o autor careceria de legitimidade para a presente causa, pelo que a decisão tomada o foi prematuramente.
Se os elementos fornecidos pelo processo não justificavam a antecipação do juízo sobre tal questão é meramente consequencial a revogação desse despacho, seguindo-se os ulteriores termos do processo, mormente com vista ao apuramento de tal factualidade, nos termos do disposto no art.º 590º, nº 2, al. c), do NCPC.
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As custas do processo incidirão sobre a parte vencida a final e as custas do recurso ficam a cargo do recorrido (cfr. art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7 do NCPC):
…
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IV. Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão que julga o autor parte ilegítima, seguindo-se os ulteriores termos do processo, mormente com vista ao apuramento da factualidade necessária à apreciação de tal excepção, nos termos supra expostos.
As custas do processo incidirão sobre a parte vencida a final e as custas do recurso ficam a cargo do recorrido.
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Guimarães, 13.11.2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues
2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Maria Luísa Duarte Ramos