SIMULAÇÃO
VENDA
PROVA INDIRECTA
INDÍCIOS
Sumário

Sumário:
1. Quando se discute se uma venda foi simulada, porque nos movemos no plano da intenção, que é uma realidade do foro íntimo, a respetiva prova faz-se, por regra, de modo indireto, através da concatenação de indícios que, com elevada probabilidade, sustentem conclusões a este respeito.

2. O standard probatório em processo civil é o da probabilidade prevalecente ou ”mais provável que não”, significando que deve considerar-se como verdadeira a hipótese de facto “que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais”, e “que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”, nas palavras de Luís Filipe Pires de Sousa.

3. De entre os indícios da simulação relevam a relação familiar direta entre os simuladores suscetível de determinar a emissão de declarações divergentes da vontade real (indício affectio); a falta de explicação ou de explicação verosímil do pagamento do preço que se declara ter sido integralmente realizado (indício pretium confessus); e a alegação do pagamento do preço mediante a compensação com uma dívida, sobretudo quando esta alegação seja extemporânea (indício compensatio).

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

Texto Integral

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Apelação n.º 1064/24.7T8FAR.E1


(1ª Secção)


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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I. Relatório


1. AA intentou ação declarativa constitutiva com forma de processo comum contra BB, formulando o seguinte pedido:


a) Seja declarada a nulidade, por simulação, do negócio alegadamente feito por CC à R., sua filha, do estabelecimento de comércio por grosso e a retalho de motociclos, de suas peças e acessórios, existente no prédio sito em Vale..., Vila 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1, inscrito na matriz predial sob o artigo 2694 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 12764, porque inexistente, com as suas legais consequências;


b) Caso assim não se entenda, deverá ser declarada a anulabilidade do negócio da venda feita por CC à R., sua filha, do estabelecimento identificado em a) supra, com as legais consequências;


c) Seja a R. condenada a reconhecer que aquele estabelecimento identificado em a), não é de sua propriedade e que pertence à herança aberta e indivisa por óbito de seus pais DD e CC;


d) Seja a R. condenada a restituir aquele estabelecimento identificado em a), juntamente com o respetivo recheio, à herança aberta e indivisa por óbito de seus pais DD e CC, com as suas legais consequências;


e) Caso assim não se entenda, que seja atribuído àquele estabelecimento e seu recheio valor não inferior a € 500.000,00, valor a entregar à herança aberta e indivisa por óbito de seus pais DD e CC, com as suas legais consequências.


O A. alega, em síntese, que a R. e o seu falecido avô paterno fizeram uma venda simulada de um estabelecimento comercial que deve ser restituído à herança aberta por óbito dos seus avós paternos e, caso assim não se entenda, houve venda a filhos ou netos não consentida pelos demais, pelo que deve ser anulado o negócio.


2. A R., pessoal e regularmente citada, deduziu contestação, na qual invoca a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, apresenta defesa por impugnação e invoca a caducidade do direito de pedir a anulação do negócio.


3. Notificado para se pronunciar acerca das exceções deduzidas na contestação, o A. pugnou pela sua improcedência.


4. Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a invocada exceção dilatória da ilegitimidade ativa e fixou o objeto do litígio e os temas da prova.


5. Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.


6. Inconformado com a sentença, o A. apelou da mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:


“A) Foram indevidamente considerados como provados os factos constantes dos Pontos 1º, 11º, 14º, 19º e 20º, sendo que os mesmos deveriam ter sido dados como não provados e/ou retificados;


B) De acordo com a análise critica da produção de prova, o Ponto 1 dos factos provados deverá passar a ter o seguinte teor : “DD, que também usava EE, faleceu no dia ... de ... de 2018, na freguesia de ..., concelho de Cidade 2, no estado de casada, em segundas núpcias, com CC desde ... de ... de 1964, sem convenção antenupcial e sob o regime da comunhão geral de bens, com última residência na Rua 1, nº 40 e 42 Vila 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1 (artigo 1º da petição inicial).” – Cfr. documentos juntos aos autos.


C) O Ponto 11º dos factos provados deverá passar a ter o seguinte teor: Os bens referidos em 8) não foram relacionados porque FF, pai do Autor, não por ter conhecimento que o estabelecimento comercial e respetivo stock tinha sido adquirido pela Ré em 2014, mas porque pensou que ao relacionar o prédio onde se insere o estabelecimento e seu stock, os mesmos já se encontravam aí incluídos.” – Cfr. declarações do Recorrente;


D) O Ponto 14º dos factos provados deverá ser eliminado e tido como não provado;


E) O Ponto 19º dos factos provados deverá ser eliminado e tido como não provado;


F) O Ponto 20º dos factos provados deverá passar a ter o seguinte teor: “A Ré sempre trabalhou no estabelecimento dos pais e sempre assumiu o negócio como se fosse seu, zelando pelo mesmo, já que era filha dos patrões”; - Cfr. depoimento do Recorrente e da Recorrida;


G) Mal andou o Tribunal a quo quando inusitadamente forma a sua convicção desde logo no depoimento da Recorrida e, bem assim, do seu funcionário e amigo de longa data, GG;


H) A testemunha GG já trabalha naquele estabelecimento há mais de 30 anos, refere-se à Recorrida como sendo a sua patroa a quem até trata intimamente por “Lena”, pelo que o seu depoimento nada teve de isento, credível ou fidedigno, já que se limitou a transcrever ipsis verbis o já anteriormente dito pela aqui Recorrida – Cfr. declarações da testemunha GG;


I) As “cópias e certidão de requerimentos de inventário” reportam-se à apresentação dos testamentos e das relações de bens apresentadas por óbito de EE e de CC, onde de facto não se mostra relacionado aquele estabelecimento e respectivo recheio, sendo que tal OMISSÃO não é a prova plena e bastante de que FF tinha o conhecimento e real perceção de que a ora Recorrida havia “comprado” ao seu pai daquele estabelecimento com todo o seu recheio.


J) Todas as testemunhas, incluindo Recorrente e Recorrida, foram unânimes em confirmar que o falecido pai do aqui Recorrente, FF, era pessoa alcoólica, que chegou a ser um sem abrigo, vivendo na rua e sobrevivendo de biscates, que foi o filho e ora Recorrente que após ter saído da Instituição onde foi criado, foi buscar o pai à rua e levou-o para viver consigo, sendo que mais tarde aquele terá arranjado uma companheira e passaram a viver os três.


K) A testemunha HH, juntamente com a própria Recorrida confirmaram que II, nunca tomou conhecimento, nem prestou consentimento aquela venda do estabelecimento e respectivo stock.


L) Nem o Recorrente, nem o seu pai, tinham acesso à documentação privada do estabelecimento e apenas na possa da Recorrida, não lhes permitindo ter conhecimento de que a exploração do imóvel havia sido transferida para o nome da Recorrida.


M) Relativamente à fatura de 19-09-2017 da Empresa 1, em nome da Ré, de fls. 124, o que ao contrário ali concluído naquela sentença ora recorrida, a mesma nada reforça a versão da Recorrida de que era facto público que o estabelecimento era seu, já que o Recorrente não acompanhou as démarches do negócio do amigo e que nem tampouco viu tal fatura, pelo que não poderia saber que nome lá constaria.


N) As faturas e recibos de fls. 34 a 36 apresentados pela Recorrida não reforçam ainda mais a convicção da versão apresentada por esta, dado que da análise de tais faturas se conclui que se tratam de simples documentos impressos, cuja impressão pode ter ocorrido em 2014 ou em 2023, sem assinaturas de ninguém, sem carimbo, sem certificação das mesmas terem dado entrada na contabilidade do falecido pai da Recorrida e/ou na contabilidade desta.


O) A Recorrida não procedeu à junção de prova bastante, porque bem sabe que apesar de a documentação apresentada ter sido impugnada, nenhum contrato ou outra prova poderia apresentar para atestar da sua veracidade, bem sabendo tratar-se de uma realidade criada agora e apresentada para justificar a sua não inclusão da relação de bens nos autos de inventário e assim, assacar para si algo que não lhe pertence.


P) A tal circunstancialismo não deu o Tribunal a quo não deu qualquer relevância, conforme devia, já que com tal comportamento a Recorrida lesa seriamente o direito dos demais herdeiros.


Q) Mostra-se violado o principio da igualdade, da imparcialidade e da livre apreciação da prova.


R) O Tribunal a quo qualquer relevância ao facto do preço em causa se tratar de um valor elevado para ser pago em dinheiro e, ainda assim da Recorrida não ser capaz de descrever ao Tribunal a quo o conteúdo dessa compra, nem a forma de pagamento, montantes pagos e não pagos, descontados, pagos com a herança do marido, descontados em trabalho, etc, ao que não soube esclarecer.


S) O Tribunal a quo adotou um discurso justificativo e desvalorizante para todas as ações da Recorrida, depoimento e prova careada para os autos.


T) Nessa senda, o Tribunal a quo até justifica o facto da Recorrida apresentar faturas de valor tal elevado para o negócio, precisamente para não fugir à questão, olvidando que a verdadeira questão é que tal valor está diretamente relacionado com o valor existente e relacionado no imobilizado do estabelecimento que, para efeitos de transmissão – no caso GRATUITA – sempre ali teriam que figurar pelo menos nos seus valores mínimos, já que se sabe que o valor daquele imobilizado era de monta bastante superior.


U) Afigura-se que o Tribunal a quo nunca quis saber efetivamente o valor do imobilizado e stock do estabelecimento, requerimento de prova solicitado pelo Recorrente e que foi indeferido. Caso houvesse interesse em saber a verdade dos factos e a bem da descoberta da verdade material, sempre se dirá que o Tribunal a quo não só deveria ter deferido tal pedido, como até o poderia desde logo ter determinado oficiosamente, à semelhança do que fez quando oficiosamente requereu aos autos a junção da fatura da compra efetuada naquele estabelecimento pelo amido do Recorrente.


V) O Tribunal a quo concluiu erradamente que a Recorrida “…não pagou esse valor em dinheiro, mas que foi uma compensação do trabalho por si realizado na loja desde 1995 e que apenas após e considerar pago é que o pai emitiu a documentação para transferir o estabelecimento para seu nome.” – ao contrário do referido por esta, que várias versões apresentou contraditórias e diferentes apresentou sobre o modo de pagamento.


W) As declarações da Recorrida são absolutamente falsas, omissas, contraditórias e incoerentes.


X) O Tribunal a quo concluiu erradamente que “é verosímil que tenha ocorrido um pagamento com compensação de créditos parcial.” – quando nem a própria Recorrida sabe dizer se pagou, quando, como e em que montantes.


Y) O Tribunal a quo entende também erradamente, como sendo irrelevante o facto da Recorrida não apresentar um contrato relativo à cessão do estabelecimento e seu stock.


Z) O Tribunal a quo não pode considerar como VÁLIDO tal negócio da cessão do estabelecimento e seu stock.


AA) Deverá ainda ser aditado como Facto Provado que “Por requerimento com entrada em juízo no âmbito dos autos de inventário nº 403/21.7T8LLE em 01.03.23 veio a Recorrida informar que havia adquirido aquele estabelecimento e com toda a mercadoria em stock, no dia 31.12.2014 ao seu pai, pelo preço de € 168.073,00 e € 4.725,00.” – Cfr. certidão daqueles autos de inventário juntos aos autos, alegação e documentação do Recorrente em sede de P.I., Contestação e declarações da Recorrida.


BB) Nestes termos, deverão os Pontos 11º, 14º, 19º e 20º dos Factos Provados serem julgados como não provados.


CC) Por tudo o supra alegado e demonstrado, os Pontos das alíneas a) e c) dos factos não provados, devem ser considerados como Provados.


DD) No que se reporta ao pagamento do preço, nem a própria Recorrida e alegada pagadora não sabe quanto pagou, como pagou, quando pagou.


EE) Os rendimentos declarados pela Recorrida eram diminutos, na ordem dos € 750,00 por mês, donde não resulta que conseguisse dispor de tamanha quantia para fazer face à compra do estabelecimento e seu stock.


FF) Não houve interesse por banda do Tribunal a quo em descobrir a verdade material e assim prover à boa e justa decisão da causa, limitando-se a dar como assente que a Recorrida comprou o estabelecimento e seu stock.


GG) Foram pedidas as declarações de rendimentos da Recorrida, bem como documentos contabilísticos relativos ao estabelecimento que nunca lograram chegar aos autos, nem o Tribunal a quo mostrou atribuir-lhe qualquer relevância.


HH) De acordo com as regras da experiência comum, é “normal” que o comprador saiba o que comprou, o que pagou, como e quando, o que não é o caso da Recorrida.


II) O depoimento da Recorrida deverá ser considerado como contraditório, omisso, tendencioso, absolutamente nada fidedigno e de valor nulo para a decisão da causa.


JJ) Os Pontos das alíneas d), e) e f) dos factos não provados, devem ser considerados como Provados.


KK) Ficou demonstrado que o pagamento do preço não foi efetivamente realizado e pago pela Recorrida, mais se tendo apurado que existiu o verdadeiro intuito de enganar terceiros, o que perdura.


LL) Nada foi comunicado aos outros dois filhos do casal (FF e JJ) quanto à venda do estabelecimento e seu stock à Recorrida.


MM) Os vendedores e pais da Recorrida, eram casados sob o regime da comunhão geral de bens, pelo que o negócio era dos dois e os dois teriam que assumir a posição de vendedores.


NN) Para a família era pacífica a permanência da Recorrida naquele estabelecimento, uma vez que lá tem trabalhado durante toda a sua vida, para além do que também lá viveu durante décadas.


OO) Não existe nenhuma declaração de venda do estabelecimento e seu stock à Recorrida.


PP) Apresentando a Recorrida unicamente duas faturas/recibo, o que não substitui uma declaração de venda e mantendo-se a comportar como “DONA” como veio a ser seu apanágio desde sempre, já que era a filha dos patrões e ali se mantém trabalhando diariamente.


QQ) Trata-se de uma grosseira simulação do negócio, sendo certo que o ónus da prova era da Recorrida no sentido de demonstrar a veracidade e existência daquele negócio, nos termos do disposto, no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, que se mostra violado, pelo que deverá proceder o pedido de declaração de nulidade por simulação da compra e venda em causa nos autos.


RR) O estabelecimento comercial e respetivo stock pertence à herança aberta pelo óbito dos seus avós paternos do Recorrente.


SS) A Recorrida nunca a facultou a documentação relativa ao estabelecimento aos seus irmãos, nem isso foi alegado ou ficou demonstrado.


TT) Não existe, ao contrário do defendido na sentença recorrida, abuso de direito na modalidade de supressio, mas sim na sua verdadeira aceção, devendo ser declarada a nulidade do negócio por vício de forma da venda do estabelecimento comercial à Recorrida efetuada pelo seu pai.


UU) Aquele estabelecimento comercial era um bem comum dos pais da Recorrida, os quais eram casados no regime da comunhão geral de bens, pelo que a venda carecia de consentimento de ambos os cônjuges, nos termos do artigo 682º-A do Código Civil, disposição legal que se mostra violada.


VV) Provado que ficou que a mãe da Recorrida, não só não consentiu na venda, mas mais importante que isso, não foi ela própria vendedora, já que também era dona do negócio, como se impunha.


WW) Mostra-se ferido de nulidade o presente negócio que não podia ser transmitido apenas por um dos seus proprietários, mas sim pelos DOIS!


XX) A venda do estabelecimento e seu respetivo stock, apenas por um dos seus proprietário, constitui venda de bem alheio, relativamente ao que não vendeu, que foi a mãe da Recorrida.


YY) Aplicando-se, assim, o regime geral da nulidade dos negócios jurídicos (arts. 285.º e ss do CC), devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado (art. 289.º, n.º 1, do CC) – disposições legais que se mostram violadas.


ZZ) A Recorrida confessa que aquela compra foi feita apenas ao seu pai, o qual não tinha legitimidade para o fazer sozinho, nem tampouco foi alegado estar mandatado para o efeito.


AAA) A venda de bens alheios é, nos termos legais, nula.


BBB) Aquela venda é-lhe ineficaz relativamente ao Recorrente e ao seu pai, podendo o mesmo reivindicar o bem, o que faz.


CCC) Deverá a simulação do negócio e respetiva nulidade serem declaradas.


DDD) Mostra-se violado o artigo 877º do Código Civil que dispõe que: “1- Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é suscetível de suprimento judicial. 2- A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes. 3- A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente.”.


EEE) A Recorrida em sua defesa vem alegar a caducidade do pedido de anulabilidade, cuja consequência é a extinção do direito que o aqui Recorrente pretende exercer, sendo que nenhuma razão lhe assiste.


FFF) Nem o pai, nem o tio, II, nem o próprio Recorrente tinham conhecimento daquela venda e, muito menos, das suas respetivas condições.


GGG) Deverá ser julgado procedente o direito do Recorrente de invocar a anulabilidade suscitada por falta de consentimento dos filhos, sucumbindo assim a invocada exceção de caducidade do exercício do direito suscitada pela Recorrida.”


7. Foram apresentas contra-alegações, nas quais a R. pugnou pela improcedência do recurso.


8. No despacho em que admitiu o recurso, o Tribunal a quo retificou a redação do facto provado sob 1..


9. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a Decidir


O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


No caso em apreço importa apreciar:


a) a impugnação da decisão de facto;


b) se a ação deve ser julgada procedente e, nesta conformidade, se deve ser declarada a nulidade do negócio por vício de simulação.


III – Fundamentação de facto


1. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:


“1) DD, que também usava EE, faleceu no dia ... de ... de 2018, na freguesia de ..., concelho de Cidade 2, no estado de casada em segundas núpcias, com CC desde ... de ... de 1964, sem convenção antenupcial e com última residência na Rua 1, nº 40 e 42 Vila 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1 (artigo 1º da petição inicial).


11) DD, para além do cônjuge, CC, tinha, à data do óbito, 3 filhos:


a) II, casado sob o regime de comunhão de adquiridos com HH, natural da freguesia de Local 2, concelho de Cidade 3, residente na Rua 2, Cidade 3;


b) FF, solteiro, natural da freguesia de Local 3, concelho de Cidade 3, residente na Rua 1, nºs 40 e 42 Vila 1 e


c) BB, casada sob o regime da separação de bens com KK, natural da freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1, residente na Avenida 1, Cidade 4(artigo 2º da petição inicial).


2) CC faleceu no dia ... de ... de 2020, no estado de viúvo, casado que foi em primeiras e únicas núpcias com EE, sem convenção antenupcial, com última residência na Rua 1, nº 40 e 42 Vila 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1 , tendo deixado 2 filhos, FF e BB (artigos 3º e 4º da petição inicial).


3) DD lavrou testamento, em 12-06-2017, nos termos do qual legou, por conta da quota disponível, a seu filho FF a nua propriedade de um imóvel e à Ré, sua filha, a nua propriedade de outro imóvel (artigo 2694º ), legando o usufruto dos 2 imóveis a favor de CC, tal como resulta de fls. 18 e 19, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 5º da petição inicial parte).


4) CC lavrou testamento em 28-06-2018, nos termos do qual instituiu herdeira da sua quota disponível a Ré, sua filha, tal como resulta de fls. 20 e 21, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 5º da petição inicial parte).


5) FF intentou processo de Inventário para efeitos de partilha por óbito de DD e CC, cujos termos correm junto do Juízo Cível de Cidade 1Juiz 2, com o processo n º 403/21.7... (artigo 6º da petição inicial).


6) FF faleceu no dia ... de ... de 2022, tendo deixado como seus únicos herdeiros, os seus dois filhos, o Autor AA e LL (artigo 7º da petição inicial).


7) O Autor AA e LL foram julgados habilitados como herdeiros de FF no âmbito do processo de inventário n.º 403/ 21.7..., por despacho de 11 de janeiro de 2023, com a referência 126849686 (artigo 8º da petição inicial).


8) No âmbito do inventário n.º 403/21.7..., o aqui Autor invocou, em 1 de março de 2023, a falta de bens na relação apresentada pela ora Ré, na qualidade de cabeça de casal, designadamente a falta do estabelecimento de comércio por grosso e a retalho de motociclos, de suas peças e acessórios/recheio existente no prédio constante da Verba Oito daquela relação de bens, sito em Vale..., Vila 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1, inscrito na matriz predial sob o artigo 2694º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 12764 (artigos 9º e 10º da petição inicial).


9) O estabelecimento comercial referido em 8) pertencia a CC (artigo 11º da petição inicial).


10) FF apresentou, em 15 de abril de 2021, a relação de bens no inventário n.º 403/21.7... por óbito de CC e DD não tendo relacionado qualquer estabelecimento comercial ou respetivo recheio, apenas tendo indicado o prédio urbano inscrito sob o artigo 2694º, cujo rés do chão com 3 compartimentos é “ destinado a indústria de bicicletas, cave com 1 divisão e casa de banho para arrecadação de indústria, logradouro com uma dependência, destinado a arrecadação de indústria e 1º andar destinado a habitação (…(…)”)”, tal como resulta da certidão de fls. 42 e 43, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 34º da contestação).


11) Os bens referidos em 8) não foram relacionados porque FF, pai do Autor, tinha conhecimento que o estabelecimento comercial e respetivo stock tinha sido aqui adquirido pela Ré em 2014 (artigo 35º da contestação).


12) II, tio do Autor, interessado no processo de inventário n.º 403/21.7..., não teve conhecimento da venda do estabelecimento à irmã, ora Ré e também não apresentou qualquer reclamação à relação de bens apresentada pelo irmão (artigo 29º da petição inicial e artigo 36º da contestação).


13) A Ré trabalhava com o pai e, ao longo dos anos foi assumindo as responsabilidades e com o avançar da idade do pai a mesma foi assegurando o negócio (artigo 46º da contestação).


14) O estabelecimento comercial referido em 8), juntamente com toda a mercadoria em stock foi comprado pela Ré BB ao seu pai CC em 31 de dezembro de 2014 e foi efetuado o pagamento ao seu pai (artigo 47 º da contestação).


15) CC cessou a atividade em 31/12/2014, tal como resulta de fls. 36 vº e 37 , cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 12º da petição inicial parte).


16) A Ré celebrou contrato com a EDP e alterou a titularidade do contrato com a MEO relativamente ao estabelecimento comercial referido em 8) (artigo 12º da petição inicial parte).


17) Na participação do Imposto de Selo por óbito de DD apresentado no serviço de Finanças o então cabeça de casal, CC, não relacionou o estabelecimento comercial por saber que o mesmo já não pertencia à herança (artigo 12º da petição inicial parte).


18) LL é funcionário da Ré, desempenhando funções com a categoria profissional de montador de bicicletas de 2.ª, mediante o vencimento de 780,00€, a qual tem também como trabalhador GG, que trabalhou por conta e sob as ordens de CC até 31/12/2014 e a partir dessa data passou a trabalhar por conta e sob as ordens da Ré (artigo 12º da petição inicial parte).


19) Relativamente à compra e venda referida em 14), foi emitida a fatura nº (AO1) 745 e respetivo recibo, no valor de € 168.073,00, ambos emitidos a 31.12.2014, com a descrição “Venda de mercadoria em stock, de acordo com a relação anexa”, e cujo pagamento está declarado ter sido efetuado na modalidade de: Dinheiro, tendo ainda sido emitida a fatura nº (AO1) 744 e respetivo recibo, no valor de € 4.725,00 ambos emitidos a 30.12.2014, cujo pagamento está declarado ter sido efetuado na modalidade de: Dinheiro e cuja descrição refere: “Toldo com tela e armação, serrote tico/tico, computador, programa de gestão comercial, porta paletes, maquina diagnóstico Texa, ligeiro misto Citroen Jumpy .. .. QG, ligeiro de mercadorias Nissan 1978 TH”, tal como resulta fls. 34 a 36, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 13º e 14º da petição inicial).


20) A Ré assumiu o negócio à vista de todos de forma pública, gerindo o negócio, abrindo e fechando as portas do estabelecimento, contratando e despedindo trabalhadores, fazendo compras a fornecedores, pagando aos funcionários, atendendo o público, pagando impostos (artigo 51º da contestação).


21) A presente ação foi intentada em 25 de março de 2024. “


3. E julgou não provados os seguintes factos:


“a) Levando só agora a Ré ao conhecimento dos seus irmãos e/ou seus herdeiros legais que havia “aquele estabelecimento em 31.12.2014 ao seu pai, CC, apresentando pela primeira vez a sua documentação e condições do alegado negócio (artigo 17º da petição inicial).


b) CC e DD eram pessoas praticamente iletradas, muito doentes e, eventualmente, sem condição psíquica para decidir sobre a sua pessoa e bens (artigo 23º da petição inicial).


c) A Ré há muitos anos que trabalha naquele estabelecimento, já que até era filha dos patrões, no entanto a hipotética aquisição de tal estabelecimento pela sua pessoa é absolutamente falsa e nunca ocorreu verdadeiramente (artigo 24º da petição inicial).


d) Tampouco pagou ao(s) pai (s) o valor global em numerário de € 172.798,00 no dia 31.12.2014, conforme quer fazer crer (artigo 25º da petição inicial).


e) À data não eram conhecidos rendimentos à Ré suscetíveis de fazer face a tamanho investimento pago a pronto e em numerário, porquanto era uma simples empregada de balcão (artigo 26º da petição inicial).


f) Relativamente a maquinaria e equipamento omite se a existência da maior parte do mesmo, uma vez que sempre existiram e existem seguramente ainda hoje no estabelecimento maquinaria e equipamento, sem os quais a oficina não poderá laborar, tal como, veículos, torques e todo o tipo de ferramentas e maquinaria variada que não constam da fatura nº 744 (artigo 34º da petição inicial).


g) Do stock existente no estabelecimento à data de final de 2014, do mesmo também faziam parte, pneus (novo e antigos), quadros de ciclismo, motas, scooters, veículos automóveis, triciclos, motorizadas, que de igual modo se omitem e cujo valor será superior ao faturado e que se estima no seu total em quantia de €500. 000,00 (artigo 35º da petição inicial).


h) O Autor, à semelhança do seu falecido pai, sempre teve conhecimento da propriedade do negócio pela Ré (artigo 53º da contestação).”


3. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”


E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:


“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:


a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;


b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”


A ideia fundamental que se extrai da norma transcrita é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.


A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).


Constata-se que o Recorrente indicou os pontos de facto de cuja decisão discorda, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhe afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova.


Importa ainda assinalar que, por força do atual regime de recursos compete ao Tribunal da Relação apreciar a prova sindicada pelo recorrente, de acordo com as regras legais pertinentes, em ordem a formar a sua própria convicção, “por isso, a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado.” (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., Coimbra, 2022, p. 348).


Não se trata, no entanto, de um poder de modificação irrestrito, precisamente porque não se visa proferir uma decisão inteiramente nova, mas apenas de reapreciar a decisão proferida pela 1ª Instância, assim, “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do Tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão.” (Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 350).


No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Maria João Matos) (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, in http://www.dgsi.pt/) que:


“I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).”


4. Passamos à impugnação da decisão de facto.


4.1. Facto provado 1)


Foi julgado provado que “1) DD, que também usava EE, faleceu no dia ... de ... de 2018, na freguesia de ..., concelho de Cidade 2, no estado de casada em segundas núpcias, com CC desde ... 196, sem convenção antenupcial e com última residência na Rua 1, nº 40 e 42 Vila 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1 (artigo 1º da petição inicial).”


O A. requereu a retificação do facto em apreço, no que tange à data do casamento, passando a constar o ano de “1964”, em lugar da referência, devida a lapso de escrita, a “196”, e bem assim o seu aditamento, quanto ao regime de bens do casamento, passando a constar referência ao regime da comunhão geral de bens, por aplicação do disposto nos artigos 1098.º e 1108.º do Código Civil de 1867.


Ora, no que concerne à retificação, nada mais há a ordenar, atenta a decisão já proferida pelo Tribunal a quo.


Relativamente à referência ao regime da comunhão geral de bens, não decorre a mesma do assento de casamento que constitui o doc. 5 junto com a p.i., antes constitui uma conclusão a extrair de dois factos mencionados naquele documento, à luz da lei aplicável ao caso, a saber, a data do casamento e a ausência de convenção antenupcial.


Estes dois factos foram vertidos no facto provado sob 1), permitindo, assim, que em sede de fundamentação de direito, por via de uma operação de subsunção do facto à norma, se apure o regime de bens do casamento.


Nestas circunstâncias, o regime de bens do casamento traduz uma afirmação de direito, que, como tal, não deve figurar na decisão de facto.


A relevância da distinção entre questão de facto e questão entronca nos vetustos § 3º do artigo 647.º do Código de Processo Civil de 1939 e no artigo 653.º do Código de Processo Civil de 1961, onde se fixava que se consideravam não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito.


A este respeito foram sendo avançados “critérios gerais de orientação”, cuja adoção se cristalizou, enunciando Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., reimp., Coimbra, 1985, pp. 206 a 207) os seguintes:


- a questão de facto reporta-se a “quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior”;


- e a questão de direito contende antes com a “interpretação e aplicação da lei”.


Depurando ainda mais os conceitos expostos, conclui o Insigne Professor que é questão de facto “determinar o que aconteceu”, e é questão de direito “determinar o que quer a lei, ou seja a lei substantiva, ou seja a lei de processo” (ibidem).


Assim, a matéria de direito diz respeito à interpretação e aplicação das normas jurídicas, pelo que o juízo aqui formulado aponta antes para a correção da subsunção dos factos provados aos institutos jurídicos a que as partes apelam.


Rodrigues Bastos (Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, 3ª ed., Lisboa, 2001, p. 160) expende, a este propósito, que uma questão será de direito quando para lhe responder for necessário recorrer a um conceito jurídico-normativo.


Nos últimos anos tem-se verificado uma transformação acentuada no processo civil, no sentido de um modelo mais flexível, que determinou a substituição do rigorismo do questionário e factos assentes pela base instrutória e, por fim, pelo objeto do litígio e temas da prova, aprofundando uma visão do processo menos formalista.


Temos presente que neste contexto têm surgido perspetivas mais abertas sobre a referida distinção entre facto e direito, propugnando mesmo o seu abandono, aqui avultando, em particular, Miguel Teixeira de Sousa, citado por António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., reimp., Coimbra, 2024, p. 775).


Não se trata, no entanto, de uma perspetiva inteiramente consensual, como decorre, designadamente, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2024 (Mário Belo Morgado) (Processo n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/), de cuja fundamentação consta, designadamente, o seguinte:


“A matéria de facto “não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”, pelo que as questões de direito que constarem da seleção da matéria de facto devem considerar-se não escritas (embora o NCPC não contenha norma correspondente à ínsita no art. 646º, n.º 4, 1ª parte, do anterior CPC, chega-se à mesma conclusão interpretando a contrario sensu o atual art. 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os “factos” que julga provados). (…)


Vale isto por dizer, também na expressão de Anselmo de Castro, que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”.


Em face de todo o exposto, deve manter-se inalterada a redação do facto provado 1..


4.2. Factos provados 14), 19) e 20); Factos não provados c), d) e e)


Afirma-se nestes factos provados que o pai da R. lhe vendeu o estabelecimento em discussão nos autos e que o preço da compra corresponde ao valor descrito em duas faturas, tendo sido pago em dinheiro, bem como que a R. se comportou como dona do estabelecimento desde que o adquiriu.


Nos factos não provados acima indicados rejeita-se que a R. tenha adquirido o estabelecimento e pago o preço, assim como se afirma que a R. não tinha, na data da alegada aquisição, rendimentos suscetíveis de fazer esse pagamento a pronto.


O Tribunal a quo entendeu, em síntese, que os depoimentos da R. e da testemunha GG corroboram a versão de que ocorreu a venda alegada, não considerando que o depoimento do A. e da testemunha HH infirmem o que daqueles outros depoimentos resulta, tendo conjugado ainda aqueles depoimentos com os documentos juntos aos autos, em particular, as faturas e recibos relativos à alegada venda, a certidão do processo de inventário, a informação da Segurança Social respeitante aos descontos da R. e dos seus dois funcionários, e as participações por óbito dos pais da R..


O A. pretende que sejam julgados não provados os factos 14) e 19) e que seja alterada a redação do facto 20) nos seguintes termos:


“A Ré sempre trabalhou no estabelecimento dos pais e sempre assumiu o negócio como se fosse seu, zelando pelo mesmo, já que era filha dos patrões”.


Mais pretende o A. que sejam julgados provados os factos c), d) e e).


A impugnação deduzida pelo A. assenta na análise crítica dos depoimentos do A., da R. e das testemunhas GG e HH, cujo teor transcreve parcialmente nas alegações, apontando as razões da sua discordância face à respetiva valoração pelo Tribunal a quo.


Desde logo, importa ter presente que apesar do A. ser descendente direto do alegado simulador, seu avô paterno e, portanto, ocupar a posição deste por via sucessória (atento o falecimento do descendente da geração anterior, o pai do A., conforme factos provados 2) e 6)), é-lhe reconhecida legitimidade para arguir e demonstrar a nulidade da alegada venda, sem quaisquer limitações de prova, uma vez que o faz em defesa de um interesse próprio, consubstanciado no seu direito à herança do avô.


Assim se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.09.2022 (Fonte Ramos) (Processo n.º 2033/19.4T8LRA.C1):


“Os herdeiros do simulador são terceiros quando visem satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeiros que seriam afetados pela subsistência do acto simulado, ficando assim arredados das limitações de prova a que estão sujeitos os simuladores” (no mesmo sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2019 (Jorge Teixeira), Processo n.º 503/18.0T8GMR.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 09.01.2025 (Carlos Cunha Rodrigues Carvalho), Processo n.º 1633/21.7T8PVZ.P1, todos in http://www.dgsi.pt/).


Não se aplica, deste modo, o disposto nos artigos 351.º e 394.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, sendo o A. admitido a fazer a prova da simulação por qualquer meio admissível, onde se incluem a prova testemunhal e a prova por presunções.


Por outro lado, quando se discute se uma venda foi simulada, porque nos movemos no plano da intenção, que é uma realidade do foro íntimo, a respetiva prova faz-se, por regra, de modo indireto, através da concatenação de indícios que, com elevada probabilidade, sustentem conclusões a este respeito.


Como assinala Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material Comentado, 2ª ed., Coimbra, 2021, p. 233), “A prova direta dessas intenções é rara (v.g. confissão, contradeclaração escrita) pelo que quase sempre terá que ser feita por meio de indícios/presunções. A prova dessas intenções tem de se alcançar com base em técnicas de reconstrução indireta em que, com base na prova de certos factos materiais (factos-base de uma presunção), se argumenta que um sujeito tem ou teve uma determinada vontade.”


Revertendo ao caso concreto, vemos que a R. não confessou a simulação.


No que respeita, então, à prova produzida em audiência, foram integralmente auditados os depoimentos indicados nas alegações de recurso.


Assim, a R. descreveu que sempre trabalhou com o pai, situando o início dessa atividade em 1990/1995/1996, e referiu que a partir de 1995/1996 o seu pai lhe disse que um dia o estabelecimento seria seu, que fariam um encontro de contas.


Em 2013/2014, a R. adquiriu o estabelecimento, passando, então, a geri-lo como sua dona e já não como empregada do pai.


Porém, há um aspeto que sobressai do depoimento da R.: a R. nunca apontou o valor da aquisição, nem sequer por aproximação.


Estamos a falar de uma aquisição de vulto, tendo sido emitida uma fatura de € 168.073,00 e uma outra fatura de € 4.725,00, pelo que não é compreensível, à luz das regras da experiência comum, que a R. não faça a menor alusão a qualquer valor, mesmo que se trate de uma aquisição com 10 anos de antiguidade.


Veja-se que a ordem de grandeza dos valores vertidos nas faturas aponta no sentido de uma aquisição que, para a generalidade dos cidadãos, representaria um evento muito significativo nas suas vidas, não tendo decorrido do teor global do seu depoimento que a R. não se enquadre neste panorama.


Acresce que a R. assumiu que a sua responsabilidade no estabelecimento foram sempre as vendas de veículos e de peças, facto corroborado pelo empregado GG, que está na empresa há cerca de 30 anos, pelo que acompanhou esta situação. E se no princípio a R. ajudava simplesmente a sua mãe, há cerca de 15 anos passou a trabalhar sozinha, segundo o referido empregado da R..


Ou seja, o trabalho da R. envolveu, desde sempre, lidar com números, com transações comerciais, o que implica conhecimentos para o efeito e experiência adquirida ao longo do tempo, isto é, uma sensibilidade particular para estas questões.


Por outro lado, foi reiteradamente perguntado à R. como foi encontrado o preço da venda e a R. nunca respondeu a esta questão, retorquindo apenas que se o preço não estivesse todo pago, o pai não lhe teria passado o recibo.


Foi também indagado à R. de que era composto o estabelecimento na data da venda e, de novo, as respostas foram evasivas, “alguns veículos, peças”. E só após expressamente interpelada sobre a maquinaria reconheceu a sua existência na oficina.


Aliás, também à pergunta sobre se pagava renda pela ocupação do estabelecimento, após a sua alegada compra, a R. respondeu de modo evasivo, e só após insistência, quando lhe foi direta e perentoriamente perguntado “pagava renda, sim ou não?”, a R. disse que não.


Compulsada, depois, a aludida fatura no valor de € 168.073,00 (doc. 18 junto com a p.i.), verifica-se que consta da mesma “venda de mercadoria em stock, de acordo com relação anexa”, pelo que dir-se-ia que se seguiria uma relação dos bens que integram a venda.


Porém, o que está em anexo é outra fatura, no valor de € 4.725,00 (doc. 20 junto com a p.i.), onde se descrevem equipamentos da oficina, incluindo máquinas, e veículos.


A R. foi expressamente confrontada com esta fatura, mas nada adiantou de relevante, dizendo simplesmente “esse pagamento deve ter alguma viatura”.


Ficou, deste modo, por explicar a que respeita, afinal, o valor da primeira fatura.


No que tange ao pagamento do preço, consta dos recibos correspondentes às faturas referidas (docs. 19 e 21 juntos com a p.i.) que foi feito em dinheiro.


Como assinala o A., estes recibos não se mostram assinados, pelo que não lhes é aplicável o disposto no artigo 376.º do Código Civil, não possuindo uma especial força probatória, ou seja, são documentos livremente apreciados pelo julgador.


Ora, o depoimento da R. a este propósito foi, efetivamente, contraditório, como aponta o A. nas alegações, pois começou por dizer “eu nunca recebia completo”, “fui-lhe dando alguns pagamentos, fruto do meu trabalho”, “tudo o que paguei ao meu pai foi sempre em dinheiro”.


Todavia, em momento mais adiantado do seu depoimento, quando lhe foi diretamente perguntado qual o vencimento que auferia, apontou € 750,00/€ 800,00, por um período de 10/12 anos, e perante a questão “e recebia esse salário”, respondeu “não recebia, mas foi declarado”.


Tanto assim que, de seguida, lhe foi perguntado “e vivia de quê?”, ao que a R. respondeu “tinha um marido para me sustentar”.


Compulsados, então, os documentos remetidos pela Segurança Social com respeito aos descontos efetuados pela R. (juntos aos autos a fls. 97 a 101-v), constata-se que tais descontos abrangem o período que vai desde o ano 2000 ao ano 2014 – para aquilo que aqui nos interessa, atendendo a que a fatura da alegada venda está datada de 31 de dezembro de 2014.


Desses documentos retira-se que nunca foi declarado o vencimento de € 800,00, mas sim o de € 750,00, sem que, de todo o modo, abranja todo o período (59 meses), pois há vários outros montantes declarados, designadamente, um conjunto de 25 meses em que é declarado o vencimento de € 500,00, 12 meses em que o vencimento declarado se cifra em € 485,00, bem como alguns meses com vencimento abaixo dos € 400,00.


Tudo somado, os vencimentos declarados perfazem o total de € 91.237,99, o que pouco mais é do que metade do valor da alegada venda.


Por outro lado, a R. diz ter entregue ao pai uma quantia respeitante a uma herança deixada pelos pais e avós do seu marido, para acabar de pagar o preço, mas nem aqui a R. apontou qualquer valor, sequer por aproximação, ou disse de que forma procedeu a essa entrega.


Assinale-se ainda que não há um único documento que ateste a entrega desta alegada desconhecida quantia.


Ora, nos dias de hoje, não é habitual que se entregue numerário para realizar pagamentos avultados, sendo mais comum que se proceda a tais pagamentos por cheque, ou, mais ainda, por transferência bancária.


Aliás, é este último o procedimento da R., porquanto o empregado GG referiu que depois da R. assumir a direção do estabelecimento, o seu vencimento passou a ser pago por transferência bancária.


É verdade que a R. declarou também que era mediadora de seguros e que exercia essa atividade no estabelecimento do pai por conta própria, porém, especificou que se limitava a contratar os seguros dos veículos que vendia, não tendo indicado que rendimentos obtinha com essa atividade.


No entanto, atendendo à referência que fez quanto ao facto de ser sustentada pelo marido, conjugadamente com uma outra referência que fez quanto ao facto de ser ajudada pelo seu pai, quando ainda vivia com ele, a única conclusão possível é a de que a R. tinha escassos rendimentos, sustentando-se primeiro com a ajuda do pai e depois com a ajuda do marido.


Tudo visto, podemos, pois, concluir que assiste razão ao A. nas dúvidas que expressa quanto à credibilidade do depoimento da R. relativamente à alegada venda, pois como afirma o A., a R. prestou um depoimento “com reserva, com contradições e omissões”.


Sublinhe-se também que nenhuma das demais pessoas ouvidas declarou saber pormenores desta alegada venda, tendo o empregado GG referido que o patrão lhe disse que a nova dona do estabelecimento seria a R. e que a partir daí a R. passou a comportar-se como tal, mas nada mais lhe explicou.


Este aspeto é particularmente relevante no plano da aferição da credibilidade da testemunha GG, pois caso se tratasse de uma testemunha parcial, teria confirmado a versão da compra do estabelecimento pela R..


Refira-se adicionalmente que esta versão do pagamento não ter sido todo feito de uma vez, mas antes por compensação com os vencimentos que a R. auferiu ao longo de mais de uma década, mas não recebeu efetivamente, não encontra o menor eco na contestação, onde não existe qualquer referência ao modo de pagamento da quantia total de € 172.798,00.


Aliás, para refutar a argumentação do A. vertida na petição inicial de que as contas bancárias do falecido casal não refletiam a entrada de semelhante montante (atento o que consta da relação de bens apresentada no processo de inventário), a R. alegou, no artigo 66º da contestação: “Certo é que a R. efectuou o pagamento, contudo, não sabe por não ter de saber como e onde o seu pai o gastou, se investiu, se guardou, etc.”.


Se o pagamento tivesse ocorrido por compensação, o dinheiro não teria entrado na conta bancária do pai, pelo que esta argumentação seria desprovida de sentido.


Aqui chegados, importa ponderar o conceito de standard de prova, de que fala Luís Filipe Pires de Sousa (Prova por Presunção no Direito Civil, Coimbra, 2012, pp. 141 e 144): “Um standard de prova consiste numa regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese de facto para que tal hipótese possa considerar-se provada, ou seja, para que possa ser aceite como verdadeira. (…) o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou ”mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:


(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;


(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja ”mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.”


E como refere o mesmo Autor (Direito Probatório Material Comentado…, pp. 235-236, 239 e 240), entre os diversos indícios da simulação, encontram-se os seguintes:


- indício affectio: “Não se cuida aqui de saber se o ato é permitido ou proibido, mas sim de saber se da relação de parentesco ou outra entre as partes se pode inferir a insinceridade do ato. (…)


No caso das liberalidades encobertas, o indício affectio funde-se frequentemente com o indício causa simulandi porque um dos intervenientes costuma ser precisamente o donatário, o qual atua como coautor do simulador. Nesta situação, a relação afetiva predetermina a causa simulatória.”


- indício pretium confessus: “(…) as partes dão por realizado o pagamento mas não dizem como, quando e/ou onde, sucumbindo qualquer explicitação sobre as circunstâncias pretéritas integrativas do pagamento do preço.”


- indício compensatio: “A potência semiótica deste indício brota sobretudo da sua articulação com outros indícios, designadamente (…) com o indício endoprocessual decorrente da alegação da compensação ser feita de forma extemporânea, sendo a compensação exteriorizada apenas no processo e face à sentida necessidade de explicar o negócio.”


Assinalamos apenas, a propósito do indício relativo à falta de pagamento do preço, que são figuras distintas este indício do vício da simulação e a falta de pagamento de um preço validamente acordado entre as partes.


Neste último caso, porque o pagamento do preço constitui um efeito do contrato de compra e venda (artigo 879.º, alínea c) do Código Civil), a sua omissão implica tão somente o incumprimento do contrato, não se refletindo na sua validade.


Já no primeiro caso, constitui indício de simulação a circunstância de, apesar de as partes declararem ter sido ajustado entre elas e efetivamente pago um preço, se apurar que não foi acordado, nem pago preço algum.


Ora, cotejando o enunciado dos indícios com a análise crítica da prova que o antecede, verificamos que no caso em apreço existe uma relação familiar entre os dois intervenientes no alegado negócio, que é direta e muito próxima (atento o convívio regular, incluindo no local de trabalho), e que tal negócio tem repercussão sobre a partilha dos bens do alegado vendedor, dela eximindo o estabelecimento objeto do negócio, assim como arredando a eventual colação ou redução por inoficiosidade, uma vez que tal negócio foi descrito como oneroso.


Acresce que da análise crítica da prova produzida sobre a forma de determinação do preço e seu pagamento, a que acima procedemos, se conclui ser mais provável que não tenha sido acordado o pagamento de qualquer preço e que não tenha sido pago qualquer preço, pois as escassas justificações apresentadas não são verosímeis, à luz das regras da experiência comum.


Por último, a justificação alicerçada na compensação com salários só surgiu em audiência de julgamento, durante a prestação do depoimento de parte da R., isto é, no âmbito de uma diligência requerida pela parte contrária.


Tudo visto, concluímos que é mais provável que não tenha sido acordada a venda do estabelecimento.


Sem prejuízo, tanto a R. quanto o seu empregado GG referiram que o irmão da R./pai do A. era alcoólico, pelo que, como detalhou o empregado, no período de 5 a 6 anos em que trabalhou na oficina, faltava, bebia e “guerreava com os clientes”. Assim, acabou por deixar de trabalhar com o pai.


Chegou, aliás, a viver na rua, da qual foi retirado pelo aqui A., seu filho mais novo, quando este fez 21 anos de idade e saiu da instituição onde viveu grande parte da sua infância/juventude, depois da sua mãe ter abandonado o lar.


Quanto ao outro irmão da R., II, não é filho do pai da R. (factos provados 1)-A e 2)), e a mãe teve sempre uma relação muito distante com ele, de tal modo que quando a testemunha HH, viúva do referido II, avisou a sogra de que o marido estava muito mal, esta nunca ligou para saber o estado do filho, que acabou por morrer.


Já a R. viveu com os pais até 2009 e esteve sempre na loja com o pai desde os anos 90, tendo sido julgado provado, sob 13), e não impugnado no recurso, que “A Ré trabalhava com o pai e, ao longo dos anos foi assumindo as responsabilidades e com o avançar da idade do pai a mesma foi assegurando o negócio”.


Inclusivamente, o pai da R. fez um testamento onde a instituiu herdeira da sua quota disponível (facto provado 4), não impugnado no recurso).


Por outro lado, a descrição que o empregado GG fez da dinâmica oficina/loja ao longo destes 30 anos afigurou-se espontânea e sincera, tendo explicado que no princípio estavam o Sr. CC e a D. Ilda no estabelecimento, aquele na oficina e esta na loja, depois a R. veio ajudar a D. Ilda, e, por fim, a R. ficou a gerir o estabelecimento sozinha, ainda que o pai estivesse sempre por lá e ajudasse alguma coisa - fazia “recados”-, mas com dificuldade, porque “custava-lhe a andar”.


Acresce que decorre dos factos provados 15) e 16), não impugnados no recurso, que o pai da R. declarou a cessação da sua atividade em 2014 e que a R. diligenciou a mudança de titularidade dos contratos com a EDP e a MEO relativos ao estabelecimento comercial.


Está, de igual modo, provado sob 18), e não foi impugnado no recurso, que o empregado GG trabalhou por conta do pai da R. até 31.12.2014 e por conta da R. a partir desta data.


Aliás, as informações prestadas pela Segurança Social com respeito ao empregado GG, juntas a fls. 102 a 110 dos autos, revelam que este fez descontos entre 2000 e 2014 por conta do pai da R. e a partir de 2014 por conta da R..


Sublinha-se ainda que não foi julgado provado que o pai da R. padecesse de alguma limitação ao nível cognitivo no período em que decorreram estes factos (facto não provado b), não impugnado no recurso).


E, por último, quer o A., quer a testemunha HH não acompanharam a vida diária da empresa, pelo que os seus depoimentos não infirmam os factos expostos.


Ou seja, o contexto relacional que emerge dos depoimentos da R. e da testemunha GG aponta no sentido de ser verosímil que o pai da R. pretendesse transmitir-lhe o estabelecimento, por ser a filha que permaneceu próxima do pai, que o ajudou sempre e assumiu a continuação da sua atividade profissional, e, por outro lado, a aludida intenção de transmissão mostra-se exteriorizada nos referidos atos.


Em conclusão, deve ser julgado não provado o facto 14), que passa a constituir o facto não provado i), e deve ser alterado o facto 19), nos seguintes termos:


“19) Foi emitida a fatura nº (AO1) 745 e respetivo recibo, no valor de € 168.073,00, ambos emitidos a 31.12.2014, tendo como destinatária a R., com a descrição “Venda de mercadoria em stock, de acordo com a relação anexa”, e cujo pagamento está declarado ter sido efetuado na modalidade de: Dinheiro, tendo ainda sido emitida a fatura nº (AO1) 744 e respetivo recibo, no valor de € 4.725,00 ambos emitidos a 30.12.2014, tendo como destinatária a R., cujo pagamento está declarado ter sido efetuado na modalidade de: Dinheiro e cuja descrição refere: “Toldo com tela e armação, serrote tico/tico, computador, programa de gestão comercial, porta paletes, maquina diagnóstico Texa, ligeiro misto Citroen Jumpy .. .. QG, ligeiro de mercadorias Nissan 1978 TH”, tal como resulta fls. 34 a 36, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 13º e 14º da petição inicial).”


No que respeita ao facto provado 20), deve o mesmo manter-se no elenco dos factos provados, atento todo o exposto, mas a sua redação deve ser alterada, no sentido de serem retiradas as referências ao despedimento de trabalhadores e ao pagamento de impostos, uma vez que nada foi referido a este propósito em audiência.


Acresce, relativamente ao pagamento de impostos, que se trata de facto que deve ser documentalmente provado, não podendo essa prova ser feita por testemunhas, face ao preceituado nos artigos 395.º e 393.º, n.º 1 do Código Civil, conjugadamente com o artigo 94.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (neste sentido, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 07.07.2005 (Dulce Neto), Processo n.º 00023/03, e do Tribunal Central Administrativo Sul de 13.07.2023 (Luísa Soares), Processo n.º 482/17.1BELRS, ambos in http://www.dgsi.pt/), o que não foi feito.


Assim, o facto 20) passa a ter a seguinte redação:


“20) A Ré assumiu o negócio à vista de todos de forma pública, gerindo o negócio, abrindo e fechando as portas do estabelecimento, contratando trabalhadores, fazendo compras a fornecedores, pagando aos funcionários, atendendo o público.”


Finalmente, como resulta do acima expendido, não se julga provado que tenha existido uma venda e que tenha sido pago um preço, pelo que devem os factos não provados c) e d) transitar para o elenco dos factos provados, passando a constituir os factos provados 22. e 23., com a seguinte redação:


“22. A Ré não comprou o estabelecimento ao pai (artigo 24º da petição inicial).


23. A Ré não pagou ao pai o valor global em numerário de € 172.798,00 no dia 31.12.2014 (artigo 25º da petição inicial).”


No mais, o facto não provado sob e) corresponde à prova produzida em audiência, havendo, assim, que concluir que se mostra provada a primeira parte do referido facto, que deve, por isso, transitar para o elenco dos factos provados, sob 24., com a seguinte redação:


“24. À data não eram conhecidos rendimentos à Ré suscetíveis de fazer face ao pagamento da quantia de € 172.798,00 a pronto e em numerário” (artigo 26º da petição inicial).”


4.3. Facto provado 11); facto não provado a)


Foi julgado provado sob 11) que o pai do A. não declarou o estabelecimento comercial na relação de bens que apresentou em 2021, no inventário aberto por óbito dos seus pais, por saber que este estabelecimento tinha sido adquirido pela R. em 2014.


E foi julgado não provado sob a) que os irmãos da R. e/ou seus herdeiros legais desconhecessem a alegada venda, sua documentação e condições.


O Tribunal a quo entendeu, essencialmente, que tendo a R. e o empregado GG relatado deslocações do pai do A. ao estabelecimento, com o fito de pedir peças, onde lhe era transmitido que devia pedi-las à sua irmã, pois era ela a dona, devia o pai do A. saber da venda do estabelecimento.


O A. pretende que seja julgado não provado o facto 11) e que seja julgado provado o facto a).


Dissente o A. da apreciação da prova efetuada pelo Tribunal a quo por considerar que as respostas dadas ao seu pai na oficina não eram suficientes para se concluir que o pai tinha ficado a saber que a irmã havia comprado o estabelecimento, para além de que o A. era próximo do seu pai e, se este tivesse sabido desta situação, teria falado com o filho.


Acrescenta ainda que no seu depoimento referiu precisamente que o seu pai não descreveu o estabelecimento porque entendeu não ser necessário especificar individualmente o estabelecimento e o seu recheio, por já se encontrarem insertos no imóvel.


Ora, relativamente ao irmão II, está provado que este não teve conhecimento do negócio (facto provado sob 12), não impugnado no recurso).


Por outro lado, foi julgado não provado que “O Autor, à semelhança do seu falecido pai, sempre teve conhecimento da propriedade do negócio pela Ré” (facto não provado sob h), não impugnado no recurso).


Quanto ao irmão FF/pai do A., tanto a R. quanto o seu empregado GG relataram as aludidas deslocações regulares à oficina, para pedir peças - para os seus “ganchinhos, biscates”, segundo GG -, referindo que o pai ou o empregado lhe diziam sempre que pedisse à irmã, porque a oficina era dela.


Ora, é diferente dizer-se simplesmente para falar com a irmã ou fazê-lo com a explicação adicional de que deve ser assim porque a irmã é a dona do estabelecimento. O significado desta última expressão é inequívoco.


Por outro lado, no seu depoimento o A. declarou que o seu pai não descreveu o estabelecimento na relação de bens porque “pensava que estava tudo englobado”, e acrescentou “há testamentos da parte do restante”.


Na relação de bens apresentada pelo pai do A. consta que o rés-do-chão do prédio onde o estabelecimento está instalado é “destinado a indústria de bicicletas”, como resulta do facto provado 10), não impugnado no recurso.


No entanto, referir que um prédio é destinado a indústria de bicicletas é distinto de descrever o conjunto de bens que compõem essa empresa e, adicionalmente, a generalidade das pessoas tem a noção de que existe uma diferença entre o imóvel onde se exerce uma atividade e os bens que são utilizados para o desenvolvimento dessa atividade, nada tendo sido avançado de onde se possa concluir que o pai do A. não lograsse fazer esta distinção.


Aliás, compulsada a certidão emitida pelo processo de inventário (na parte que não foi impressa e consta apenas do processo eletrónico), verifica-se que a aludida descrição corresponde ipsis verbis àquela que consta da caderneta predial do imóvel (p. 53 da certidão), ou seja, não se tratou de uma redação personalizada, mas antes de uma redação extratada de um documento oficial.


Acresce que essa relação de bens foi subscrita pela Il. Advogada que representava o pai do A. nos autos de inventário, portanto, um profissional que conhece os referidos conceitos.


Não se rejeita, por outro lado, que tivesse existido maior aproximação do pai do A. com o filho AA do que com a demais família, como decorreu do depoimento do A., porém, daí não decorre necessariamente que o pai do A. o tivesse informado desta situação.


Com efeito, nada foi dito em audiência no sentido de que o pai do A. pretendesse ficar com o estabelecimento para si, pelo contrário, a testemunha GG referiu que chegou a perguntar ao pai do A. porque é que ele não tentava voltar a trabalhar na oficina, mas este nunca quis fazê-lo.


Acresce ainda o facto reportado pela R. da conversa que o pai teve com o seu irmão sobre este facto.


Entendemos, assim, que o pai do A. não descreveu o estabelecimento por estar convencido que este tinha sido vendido à sua irmã.


Deve, assim, manter-se inalterado o facto provado 11).


Todavia, no que diz respeito ao facto a), importa ter presente que a R. comunicou os valores relativos à alegada venda e correspondentes documentos na resposta à reclamação contra a relação de bens que apresentou nos autos de inventário a 13.04.2023 (doc. 17 junto com a p.i.), e que nessa data ambos os seus irmãos eram já falecidos (doc. 14 junto com a p.i.).


Logo, deve ser julgado provado o facto a), que passa a constituir o facto 25., alterando-se a sua redação, bem como retificando-se o lapso de escrita traduzido na omissão da palavra “adquirido”, nos seguintes termos:


“25. Levando só agora a Ré ao conhecimento dos herdeiros legais dos seus irmãos que havia “adquirido” aquele estabelecimento em 31.12.2014 ao seu pai, CC, apresentando pela primeira vez a sua documentação e condições do alegado negócio” (artigo 17º da petição inicial).”


4.4. Factos não provados f) e g)


Os factos não provados em apreço reconduzem-se à descrição do recheio do estabelecimento e seu valor.


O A. pretende que estes factos sejam julgados provados.


Contudo, o A. não indica quais os meios de prova produzidos nos autos que suportariam tais factos, limitando-se a reiterar que o depoimento da R. foi omisso relativamente à descrição do recheio do estabelecimento, o que, por si só, não permite afirmar os factos vertidos sob f) e g), os quais devem, deste modo, permanecer inalterados.


4.5. Facto novo


Requer o A. que seja aditado um facto ao elenco dos factos provados, com a seguinte redação:


“Por requerimento com entrada em juízo no âmbito dos autos de inventário nº 403/21.7... em 01.03.23 veio a Recorrida informar que havia adquirido aquele estabelecimento e com toda a mercadoria em stock, no dia 31.12.2014 ao seu pai, pelo preço de € 168.073,00 e € 4.725,00.”


Contudo, o A. não justifica a necessidade da introdução deste facto novo, nem se vislumbra essa necessidade, atento o facto que se mostra provado sob 24., sublinhando-se apenas que, como se disse acima, a data em que a R. deu entrada do requerimento aludido no processo de inventário é o dia 13.04.2023 (doc. 17 junto com a p.i.), e não a data ali indicada, que corresponde à data da reclamação contra a relação de bens apresentada pelo A. (doc. 16 junto com a p.i.).


Entende-se, assim, não ser de aditar o facto proposto pelo A. à decisão de facto.


III – Fundamentação de direito


1. No caso em apreço alega o A. que a venda de um estabelecimento comercial que o seu avô teria feito à sua tia, a R., é nula, por simulação, uma vez que essa venda nunca aconteceu, não tendo sido pago qualquer preço.


Subsidiariamente, invoca a anulabilidade do negócio, por se tratar de uma venda a um filho sem o consentimento dos demais.


O Tribunal a quo julgou a ação totalmente improcedente, aduzindo na fundamentação de direito, em síntese, o seguinte:


- está provado que foi acordada a venda do estabelecimento, pelo que não se verifica a alegada simulação;


- contudo, a venda é nula por vício de forma;


- não obstante, ocorre abuso de direito, na modalidade de supressio, pelo que não deve ser declarada a nulidade da venda;


- quanto à alegada falta de consentimento da mãe da R., a mesma gera a anulabilidade da venda, a qual não é de conhecimento oficioso, e não foi invocada na petição inicial, para além de que já decorreram mais de 3 anos sobre a data da venda e, de todo o modo, não se provou essa falta de consentimento;


- já caducou o direito de invocar a anulabilidade por falta de consentimento do filho ou neto relativamente ao A..


Neste recurso pugna o A. pela revogação da decisão e pela declaração de nulidade da venda por simulação, sustentando-se na alteração da decisão de facto que requereu, e advogando ainda, subsidiariamente, que deve ser declarada a nulidade formal da venda, por não se verificar abuso de direito; que a venda é também nula por se tratar de venda de bens alheios, porquanto o estabelecimento pertencia ao casal; e que, caso a venda não seja nula, a mesma é anulável por falta de consentimento dos irmãos da R..


A decisão de facto foi parcialmente alterada, pelo que importa apreciar se a decisão final deve ser também alterada.


2. A simulação consiste no “acordo (ou conluio) entre o declarante e o declaratário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganarem terceiros” (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2ª ed., Lisboa, 1996, p. 231).


São, assim, elementos da simulação a divergência entre a vontade real e a declarada; o acordo ou conluio entre as partes; e a intenção de enganar terceiros (ibidem; Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil: parte geral, coord. de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Lisboa, 2014, p. 553).


Sublinhe-se que se distingue a intenção de enganar e a intenção de prejudicar, só aquela sendo imprescindível para caracterizar a simulação (Ana Filipa Morais Antunes, ibidem).


A simulação é absoluta, se não houve qualquer intenção de contratar, ou relativa, se as partes pretenderam celebrar um contrato distinto daquele que declararam (artigos 240.º, n.º 1 e 241.º, n.º 1 do Código Civil; ibidem, p. 233).


O negócio simulado é nulo, mas o negócio dissimulado pode ser válido, desde que se mostrem observadas as correspondentes exigências legais ao nível da forma (artigos 240.º, n.º 2 e 241.º, n.º 2 do Código Civil).


Tratando-se de facto constitutivo do direito do A., compete-lhe a demonstração dos requisitos de depende a declaração de nulidade do negócio por vício de simulação (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).


Quanto a este aspeto, tem vindo a ser considerado que o acordo simulatório e a intenção de enganar terceiros constituem questões de facto, que, como tal, devem ser alegadas e provadas (ibidem, pp. 553-554).


Sem prejuízo, já foi entendido que “II - O intuito de enganar terceiros (art.º 240, n.º 1, do CC) não precisa de ser autonomamente quesitado e provado, pois pode resultar inequivocamente dos restantes factos provados.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.11.2005 (Salreta Pereira), citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.10.2012 (Salazar Casanova) (Processo n.º 649/04.2TBPDL.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/).


No caso em apreço, o A. invoca o vício da simulação absoluta, pois rejeita a compra e venda alegada e sustenta que não houve qualquer transmissão do estabelecimento a favor da sua tia, a R..


Da decisão de facto extrai-se que o pai da R. era o dono do estabelecimento (facto provado 9)); em 31.12.2014 foi emitida documentação contabilística com respeito à venda do estabelecimento à R. (facto provado 19)); porém, a R. não comprou o estabelecimento ao pai, nem lhe pagou o preço constante da aludida documentação na data aí indicada, não possuindo rendimentos que lhe permitissem fazê-lo (factos provados sob 22), 23) e 24)).


Temos, portanto, uma divergência entre o que resulta daquela documentação e a vontade real das partes.


Relativamente ao intuito de enganar terceiros, verifica-se que não consta da decisão de facto a sua afirmação direta.


Não obstante, pode perguntar-se se deve atender-se, para este efeito, ao contexto descrito na petição inicial e contido na decisão de facto, isto é, esta questão surge por causa da omissão do estabelecimento na relação de bens apresentada no processo de inventário em que são interessados o A. e a R. (factos provados 8) e 10) a 12)), em conjugação com a circunstância de não ter sido pago qualquer preço ao pai da R. pela alegada venda (facto provado 23)).


Ou seja, há um ativo patrimonial que pertencia à herança, mas dela foi retirado, sem que tenha sido substituído pelo valor em dinheiro correspondente a esse ativo, e sem que seja possível ponderar esse ativo na partilha, atenta a circunstância de ter sido invocada uma transmissão a título oneroso.


Sob esta perspetiva, afigura-se estar em presença de um caso em que o intuito de enganar terceiros emerge do conjunto da matéria de facto provada, sendo os terceiros prejudicados os demais herdeiros do de cujus.


No entanto, está provado que o irmão FF teve conhecimento da transmissão do estabelecimento e, por isso, não relacionou esse bem no processo de inventário (factos provados 10) e 11)), e que quando o irmão II, que não soube dessa transmissão, mas foi confrontado com a omissão do estabelecimento comercial na relação de bens apresentada no processo de inventário, não apresentou qualquer reclamação (facto provado 12)).


Estes factos, contudo, não infirmam a conclusão sobre a existência de simulação, porquanto a transmissão da informação de que ocorreu uma venda implica a consequência do bem objeto da mesma não dever figurar no acervo hereditário., logo, essa omissão constitui uma consequência da informação transmitida ao irmão FF de que a R. havia comprado o estabelecimento.


Aliás, o pai da R. já havia omitido a descrição do estabelecimento comercial perante a Autoridade Tributária, após o falecimento da mulher (facto provado 17)).


Ou seja, deve concluir-se que a venda alegada é nula, por simulação.


3. No entanto, decorre dos factos provados 11), 16), 17), 18) e 20) que é a R. quem desenvolve a atividade no estabelecimento e que o estabelecimento lhe pertence, o que sucede desde 2014, data na qual o pai da R. cessou a sua atividade (facto provado 15)).


Aqui chegados, impõe-se a pergunta sobre se deve o Tribunal avançar na qualificação do negócio dissimulado.


Atendendo, porém, a que inexiste qualquer pedido nesse sentido, qualquer decisão proferida a este respeito seria nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil).


Assim, está vedado ao Tribunal conhecer de qualquer questão relacionada com o negócio dissimulado.


4. A declaração de nulidade implica a restituição de tudo quanto houver sido prestado (artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil).


Assim, deve considerar-se que o estabelecimento integra a herança dos falecidos pais da R. e do pai do A., DD e CC, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens, conforme resulta do disposto nos artigos 1098.º e 1108.º do Código Civil de 1867.


Assinale-se ainda que apesar da mãe da R. ter sido casada com o pai da R. em segundas núpcias, as limitações à comunhão daqui decorrentes não têm aplicação ao caso em apreço (artigos 1109.º, n.ºs 3 e 4, 1135.º e 1136.º do Código Civil de 1867).


Devem, assim, julgar-se procedentes os pedidos formulados sob a), c) e d).


5. A decisão ora proferida prejudica a apreciação dos demais pedidos formulados pelo A..


6. As custas do recurso são da responsabilidade da R., que fica vencida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).


V – Dispositivo


Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, pelo que revogam a sentença recorrida e, em conformidade:


a) Declaram a nulidade, por simulação, da venda feita por CC à R., BB, do estabelecimento de comércio por grosso e a retalho de motociclos, de suas peças e acessórios, existente no prédio sito em Vale..., Vila 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1, inscrito na matriz predial sob o artigo 2694 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 12764;


b) Declaram que aquele estabelecimento integra as heranças de DD e de CC, devendo ser restituído às referidas heranças.


Custas pela R..


Notifique e registe.


Sónia Moura (Relatora)


Filipe Aveiro Marques (1º Adjunto)


Maria João Sousa e Faro (2ª Adjunta)

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1. Há um evidente lapso de numeração, sendo repetido o 1), pelo que nos reportaremos, doravante, ao facto 1)-A.↩︎