INVENTÁRIO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
REGULAMENTO UE 650/2012
RESIDÊNCIA HABITUAL
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Sumário

Sumário:
1. A suspensão da instância no processo de inventário pode ter por fundamento a pendência de ação que se revista de relevância para a decisão a proferir, nos termos do artigo 1092.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil.

2. Por força do princípio do primado ou prevalência na aplicação, consagrado no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, é aplicável às sucessões com elementos de conexão com o Estado português o Regulamento (UE) n.º 650/2012, do Parlamento Europeu e Conselho, de 4 de julho de 2012, o qual afasta o direito internacional privado contido nos artigos 62.º e segs. do Código Civil.

3. O Regulamento tem vocação de aplicação universal, pelo que se aplica aos casos que apresentem conexões relevantes que abranjam Estados-Membros da União Europeia e Estados terceiros.

4. Este Regulamento erigiu como critério determinante da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais a residência habitual do Inventariado na data do óbito, indagação que se pode revestir de complexidade, como decorre do enunciado nos Considerandos (23) e (24) do Regulamento, implicando que seja averiguado o centro de vida do Inventariado em função de múltiplas circunstâncias.

5. Discute-se nos presentes autos de inventário se o Inventariado teve como última residência Portugal ou a Austrália, tendo sido invocada a incompetência internacional dos tribunais portugueses, mas encontrando-se pendente uma ação no Supremo Tribunal de Queensland, Austrália, cujo objeto reside em saber qual o domicílio do Inventariado na data do óbito, coloca-se a questão de saber se esta ação deve implicar a suspensão da instância do processo de inventário.

6. A força vinculativa em Portugal da decisão a proferir pelo Supremo Tribunal de Queensland depende da prévia revisão e confirmação da mesma, nos termos do processo regulado nos artigos 978.º e segs. do Código de Processo Civil, que não postula uma revisão de mérito, mas antes a aferição de um conjunto de requisitos da decisão revidenda, previstos no artigo 980.º, designadamente, nas alíneas b) – “que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida”, e c) – “que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses”.

7. O requisito contido na alínea f) do mesmo artigo 980.º – “que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”, não obstaria à confirmação daquela decisão, porquanto na mesma não se curará de saber quem são os herdeiros do Inventariado ou a forma de proceder à partilha.

8. Porém, porque a ação australiana é posterior ao processo de inventário, atenta a data da citação dos réus nas duas ações, na eventualidade de naquela ação se vir a adotar um entendimento incompatível com o que viesse a ser acolhido nestes autos de inventário, isto é, se ali se concluísse que o domicílio do Inventariado na data do óbito se situou na Austrália e se nestes autos de inventário se concluísse que o último domicílio do Inventariado se situou em Portugal, prevaleceria a decisão proferida em Portugal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 580.º, n.º 3 e 980.º, alínea d) do Código de Processo Civil.

9. Sendo assim, deve entender-se que não ocorre motivo justificado para a suspensão da instância no inventário.

(Sumário da responsabilidade do Relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

Texto Integral

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Apelação n.º 775/24.1T8LLE.E1


(1ª Secção)


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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I – Relatório


1. AA e BB intentaram o presente inventário para partilha da herança aberta por óbito de AA, falecido em ........2023, de nacionalidade britânica.


Alegam que o mesmo era residente fiscal em Portugal e que teve a sua última morada na Encosta..., n.º 10, na Lugar 1, Vila 1, sendo em Portugal o centro da sua vida por todo aquele período.


Mais alegaram desconhecer se o mesmo deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo deixado como herdeiros os seus seis filhos, a saber, os Requerentes, CC, DD, EE e FF.


Alegaram ainda que o Inventariado deixou vários bens móveis, imóveis e direitos, designadamente, dois prédios urbanos sitos na freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1.


Indicaram para o cargo de cabeça-de-casal CC, por ser o filho mais velho do inventariado, que assim foi designado por despacho de 19.03.2024 e devidamente citado.


2. Por requerimento de 08.07.2024, veio o cabeça-de-casal suscitar a incompetência dos tribunais portugueses, alegando a existência de um testamento outorgado em 18.12.2018 em Gibraltar e, bem assim, a existência de um processo judicial que corre termos na Austrália, onde é invocada a lei australiana e os tribunais australianos como sendo os competentes para a partilha do património.


Assim, pugna pela suspensão destes autos até que seja proferida decisão no referido processo judicial com vista a evitar decisões contraditórias.


3. Em resposta, vieram os Requerentes alegar que junto do tribunal da Austrália não corre um processo de inventário, mas sim uma manifestação de intenção de processo de inventário, que deu entrada em 25.05.2024, depois deste inventário.


No mais, sustentam a competência internacional dos tribunais portugueses e juntam prova documental e testemunhal.


4. O cabeça-de-casal juntou cópias devidamente traduzidas do testamento outorgado em Gibraltar e da notificação/citação que recebeu no âmbito do processo que corre termos no Supremo Tribunal de Queensland.


5. Os Requerentes impugnaram a validade do testamento e quanto ao referido processo que corre termos na Austrália sustentam, novamente, tratar-se de uma manifestação de intenção de processo de inventário, mais impugnam o seu teor e juntam um documento denominado “parecer” cujo autor se identifica como advogado australiano.


6. Nesta sequência, foi proferido o seguinte despacho, a 14.02.2025:


“(…) Com efeito, considerando a posição das partes, pese embora o inventariado ter falecido em Portugal, mostra-se controvertido o local da sua “residência habitual” e, por conseguinte, a competência dos tribunais portugueses para este inventário.


E, só depois de definida essa competência é que se colocará a questão do direito aplicável e à luz do qual deverá ser apreciada a validade ou não do alegado testamento (que foi impugnado).


Ora, atento o primado do direito comunitário sobre o direito nacional (cfr. art. 8.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa), será competente para decidir o conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito, conforme resulta do disposto no artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho de 2012.


Como tal, em face do incidente ora suscitado, por requerimento de 08.07.2024, e sendo a incompetência internacional de conhecimento oficioso (arts. 96.º, alínea a e 577.º, alínea a, ambos do CPC) importaria produzir prova para apurar o local onde o de cujus tinha a sua residência habitual à data do óbito.


Contudo, veio o cabeça-de-casal alegar que se encontra pendente um processo judicial no Supremo Tribunal de Queensland, Austrália, instaurado em 20.05.2024, pela mãe do filho menor do de cujus, FF, em que se invoca serem os tribunais australianos os competentes para a partilha do património hereditário.


O documento junto como sendo a notificação recebida corresponderá à petição inicial do alegado processo, onde constam como demandados/requeridos os seis filhos do inventariado e é alegada factualidade quanto às circunstâncias da vida profissional e pessoal do mesmo nos anos anteriores ao óbito e a sua ligação/permanência por vários locais e as respectivas razões, pedindo-se, a final, que seja declarado que à data do óbito tinha o seu domicílio em Queensland e uma conexão mais estreita com aquele local do que com Portugal.


Ou seja, aqueles autos terão o mesmo objecto que este incidente, sendo as partes, também, as mesmas.


Porém, e uma vez que o documento foi impugnado, importa juntar prova idónea da pendência daquela acção.


Pelo que, e antes de ser o Tribunal a diligenciar nesse sentido, através dos mecanismos de cooperação internacional, convida-se o cabeça-de-casal a juntar autos (a título devolutivo), no prazo de 10 dias, o documento original referente à alegada citação/notificação, isto sem prejuízo de, sendo o caso de os Requerentes, entretanto, também terem sido citados/notificados, tomarem posição.”


7. Após resposta do Cabeça-de-Casal e pronúncia dos Requerentes, foi proferido o seguinte despacho, a 24.04.2025:


“Dando-se aqui por reproduzido o despacho proferido em 14.02.2025, nestes autos de inventário, citado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 1102.º do CPC, veio o Cabeça-de-Casal, desde logo, suscitar a incompetência internacional dos tribunais portugueses alegando, além do mais, a pendência de um processo judicial que corre termos na Austrália, onde é invocada a lei australiana e os tribunais australianos como sendo os competentes para a partilha do património do inventariado.


Naqueles autos, a mãe do filho menor do Inventariado, também Interessado neste inventário, pede que seja declarado que, à data do óbito, o inventariado tinha o seu domicílio em Queensland e uma conexão mais estreita com aquele local do que em Portugal.


Por seu turno, os Requerentes sustentam que aqueles autos não dizem respeito a processo de inventário e, bem assim, que o inventariado tinha a sua residência habitual em Portugal.


Considerando a posição dos Requerentes e do Cabeça-de-Casal, importaria, agora, com vista a apreciar e decidir da excepção de incompetência internacional, citar os demais Interessados, ainda não citados, e produzir prova sobre o local da residência habitual do inventariado à data do óbito.


Contudo, esta questão já está a ser discutida no processo judicial que corre termos na Austrália, no Supremo Tribunal de Queensland, intentado pela mãe do Interessado FF, filho menor do Inventariado, sendo que o Cabeça-de-Casal e os Requerentes (conforme resulta do requerimento apresentado em 25.03.2025) já foram citados/notificados do referido processo, estes últimos em 28.02.2025, sendo pretensão dos mesmos ali apresentar a respectiva defesa.


Efectivamente, e como bem referem os Requerentes, aqueles autos não dizem respeito a processo de inventário, contudo, a questão que ali se encontra em discussão é a mesma que aqui se iria agora discutir e sobre a qual iria ter de ser produzida prova: o local da residência habitual do inventariado à data do seu óbito.


E, do que decorre dos requerimentos apresentados, todos os intervenientes já se encontram citados/notificados para aquele processo.


Com efeito, ainda que não se verifique uma situação de litispendência (art. 580.º, n.º3 do CPC), estes autos não podem ficar indiferentes à pendência desta causa - em que se discute a residência habitual -, pois, ainda que decorra em tribunal estrangeiro, a mesma pode vir a ser confirmada em Portugal, conforme decorre do artigo 980.º, alínea b) do CPC, formando caso julgado.


Conforme referem os Requerentes no último requerimento apresentado, os mesmos irão apresentar defesa naqueles autos.


A prosseguir com estes autos os Interessados (sendo que os Interessados DD, EE e FF ainda teriam que ser citados) iriam estar a discutir, em simultâneo, a mesma questão, a qual quando aqui foi suscitada pelo Cabeça-de-Casal já aqueles autos estavam pendentes.


Assim, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º1, parte final, e 1092.º, n.º1, alínea a), ambos do CPC, determino a suspensão dos presentes autos até trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida no Processo n.º ...07 de 2024, que corre termos no Supremo Tribunal de Queensland.”


8. Inconformados, vieram os Requerentes apelar do despacho de 24.04.2025, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:


“1 - O despacho ora impugnado determinou a suspensão da instância, com fundamento no artigo 272.º, n.º 1, al. c) do CPC, por entender que a questão da residência habitual do falecido (Inventariado Terence) está a ser discutida em ação que corre termos no Supremo Tribunal de Queensland (Austrália), proc. n.º ...07/2024, a qual foi considerada causa prejudicial.


2 - Nos termos do art. 272º, nº 1, al. c) do CPC, a suspensão da instância apenas pode ter lugar quando:


- esteja em curso outra causa autónoma, que constitua uma questão prejudicial;


- haja dependência lógica e jurídica direta, de tal modo que a decisão da causa principal não possa ser proferida sem resolução prévia da causa prejudicial;


- e essa outra causa esteja a ser julgada em Tribunal nacional ou estrangeiro.


3 - Acresce que, conforme a doutrina dominante (v.g., Prof. Dr. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Almedina), tal suspensão não é automática, mas facultativa, dependendo de uma ponderação concreta do caso, nomeadamente entre a celeridade da justiça e a necessidade de coerência decisória.


4 - Ora, no caso em apreço, tais pressupostos não se verificam.


5 - O processo a correr na Austrália não constitui causa prejudicial, pelas seguintes razões:


- o objeto da ação australiana é apenas a manifestação de intenção de abertura de inventário naquele país, não versando sobre o mérito da sucessão, nem implicando julgamento com força de caso julgado quanto à residência habitual do falecido;


- a causa de pedir e os pedidos entre os dois processos são distintos;


- a ação australiana é posterior à presente (em Portugal), o que afasta a existência de uma relação de prejudicialidade lógica ou processual;


- o próprio despacho reconhece inexistência de litispendência (art. 580.º, n.º 3 do CPC);


- existe prova documental abundante a comprovar que a última residência do inventariado era Portugal.


6 - A decisão que vier a ser proferida pelo Tribunal australiano não produz automaticamente efeitos em Portugal, sendo necessário procedimento de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos dos artigos 978º a 985º, do CPC.


7 - Ora, essa confirmação poderá não ser admitida, por:


- inexistência de tratado bilateral ou convenção internacional de reconhecimento automático entre Portugal e a Austrália;


- a eventual sentença poder ofender os princípios da ordem pública internacional portuguesa, nomeadamente a proteção dos herdeiros legitimários (art. 980º, al. f), CPC);


- a possibilidade de ser proferida por Tribunal internacionalmente incompetente, nos termos do art. 62.º e 72.º-A do CPC português.


8 - Nos termos dos artigos 59º, 62º e 72º A do CPC e do Regulamento (UE) n.º 650/2012, são internacionalmente competentes os Tribunais portugueses para dirimir a presente sucessão, considerando que:


- o falecido residia habitualmente em Portugal (art. 2031.º do CC);


- a sucessão abriu-se em território nacional;


- há bens situados em Portugal; e


- os herdeiros são em parte residentes em Portugal.


9 - Neste contexto, a pretensão de atribuir competência ao Tribunal australiano é ofensiva a ordem pública, por ausência de qualquer conexão jurídica ou factual relevante com a Austrália.


10 - A suspensão com base numa causa estrangeira, de tramitação incerta e sem garantias de eficácia em Portugal, compromete seriamente a duração razoável do processo (art. 2º, nº 1 do CPC e art. 20º da CRP), prejudicando os direitos dos interessados e o normal exercício de funções do cabeça-de-casal.


Mais,


11 - a Lei aplicável à sucessão é a lei do domicílio (Lei de Portugal) e não a lei da nacionalidade (Lei Inglesa), nem a Lei de Austrália.


12 - A Lei britânica congrega diferentes sistemas legislativos locais, mas não contém normas de direito interlocal ou normas de direito internacional privado unificado; pelo que, por exceção, a sucessão por morte é regulada pela Lei da residência habitual (ainda que esta não coincida com o Estado de que é nacional), em concreto, pela Lei portuguesa – art. 20º, nºs. 1 e 2, do CC.”


13 - O direito sucessório português protege imperativamente a legítima dos herdeiros legitimários (art. 2156.º do CC), o que não ocorre no sistema australiano (common law), onde predomina a liberdade testamentária.


14 - A jurisprudência portuguesa tem reiteradamente recusado reconhecer sentenças estrangeiras ou disposições testamentárias que excluam herdeiros legitimários, com fundamento na ordem pública internacional (conforme TR Porto 08.11.2016, STJ 15.01.2015, TR Lisboa 26.01.2023).


15 - Donde, a suspensão da instância ora determinada é:


- jurídica e logicamente infundada;


- baseada numa ação sem força vinculativa ou prejudicial em Portugal;


- lesiva dos princípios da celeridade, justiça e ordem pública internacional;


- e desconsidera a competência internacional exclusiva dos Tribunais portugueses para dirimir a sucessão.


16 - Foram, assim, violados os arts. 272º do CPC (quanto a suspensão dos autos), conjugado com art. 980º, al. f) do CPC (quanto a ordem pública de eventual reconhecimento da aludida sentença estrangeiro que vier a ser proferida), artigos 59º, 62º, 72º A do CPC e art. 20º, nºs 1 e 2 e art 2031º do CC (quanto à competência internacional de Portugal para dirimir o presente inventário).


17 - Em face do exposto, não podemos, pois, deixar de concluir pela procedência do presente recurso.”


9. Foram apresentadas contra-alegações, onde o Cabeça-de-Casal pugna pela improcedência do recurso.


10. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a Decidir


O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


Consequentemente, cumpre apreciar se deve ser revogado o despacho recorrido e ordenado o prosseguimento do processo de inventário.


III – Fundamentação


1. Os factos relevantes são os que constam do relatório que antecede.


2. No caso em apreço, os Requerentes instauraram processo de inventário para partilha dos bens deixados pelo seu pai, alegando que este teve como última morada a localidade de Vila 1, no Algarve, onde se encontram bens que pertencem à herança.


O cabeça-de-casal veio suscitar a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses, com fundamento em que o seu pai teve o seu último domicílio na Austrália.


Mais alegou que está pendente ação judicial, que corre termos no Supremo Tribunal de Queensland, na Austrália, onde se discute a questão do domicílio do Inventariado, a qual constitui, por isso, causa prejudicial que legitima a suspensão da instância no presente processo de inventário, o que requereu.


O Tribunal a quo não apreciou a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses e suspendeu a instância até que seja proferida decisão no aludido processo que corre termos na Austrália, ao que os Requerentes se opõem, pugnando, neste recurso, pelo prosseguimento dos autos.


3. Suspensão da instância no processo de inventário


A questão a dirimir nos presentes autos é a de saber se deve o inventário ser suspenso com fundamento na pendência de ação que corre termos na Austrália.


Devemos, assim, começar por convocar as normas especiais, atinentes ao processo de inventário, dos artigos 1092.º e 1093.º do Código de Processo Civil:


- Artigo 1092.º (“Suspensão da instância”)


“1 - Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:


a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha;


b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;


c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro.


2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.


3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:


a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;


b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;


c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial. (…)”


- Artigo 1093.º (“Outras questões prejudiciais”)


“1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.


2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.”


Como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª ed., reimp., Coimbra, 2024, p. 576), da comparação entre as duas normas decorre que o artigo 1093.º regula as situações que não se mostram abrangidas no artigo 1092.º e que se reconduzem à suspensão do processo de inventário quando esteja em causa a determinação do património hereditário a partilhar.


Assim, estão aqui incluídas as questões relacionadas com a definição dos bens que integram a herança, dos que devam ser considerados para o cálculo da massa da herança, nos termos do artigo 2162.º do Código Civil, e/ou com direitos de terceiros (idem, p. 581).


Se em lugar de se debater no processo de inventário a remessa dos interessados para os meios comuns e a suspensão da instância, for, desde logo, invocada a pendência de uma ação autónoma com alegados reflexos na partilha, a norma aplicável é o artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (ibidem).


Ora, está pendente de decisão neste inventário a questão de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a sua tramitação, atenta a exceção invocada pelo Cabeça-de-Casal.


Por outro lado, a ação que corre termos na Austrália tem por objeto estrito o apuramento do último domicílio do Inventariado, com a intenção de extrair da respetiva decisão a afirmação da competência internacional dos tribunais australianos para a inventário.


Assim, concluímos que a questão em apreciação na ação australiana respeita à admissibilidade do inventário, uma vez que se repercute na definição do tribunal internacionalmente competente para a tramitação do inventário, pelo que a norma a atender, com respeito à suspensão da instância, é o artigo 1092.º do Código de Processo Civil, concretamente, a alínea a) do respetivo n.º 1.


4. Fundamentos legais da suspensão da instância


4.1. Nos termos do n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”


A suspensão da instância por virtude da pendência de causa prejudicial reconduz-se à situação em que a decisão proferida num processo constitui um pressuposto da decisão a proferir noutro processo ou afeta a decisão a proferir nesse outro processo, pelo que este último fica parado, a aguardar o trânsito em julgado do primeiro (Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., Coimbra, 2014, p. 535; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., reimp., Coimbra, 2024, p. 350).


A leitura global e integrada do n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, à luz da sua génese, leva à conclusão de que a razão da suspensão aí prevista é a existência de um motivo justificado, constituindo a causa prejudicial uma específica modalidade de motivo justificado (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.09.2023 (Nuno Pinto Oliveira), Processo n.º 18/21.0YQSTR.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/).


Distingue-se, depois, no âmbito do conceito de causa prejudicial, entre uma “dependência necessária” e uma “dependência meramente facultativa ou de conveniência”, distinção esta com influência na ponderação da conveniência da suspensão: “Inspirando-se em Manuel de Andrade, José Alberto dos Reis distinguia dois casos de prejudicialidade. Em primeiro lugar, encontrar-se-ia preenchido o requisito da primeira parte do art. 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil “quando na primeira acção se [discutisse], em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não [pudesse] resolver-se nesta em via incidental”. Entre as duas acções haveria então uma relação de dependência necessária. Em segundo lugar, encontrar-se-ia preenchido o requisito da primeira parte do art. 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ainda que na primeira acção se discutisse, em via principal, uma questão que pudesse resolver-se na segunda, desde que só em via incidental. Entre as duas acções haveria então uma relação de “dependência meramente facultativa ou de pura conveniência”. Enquanto, no primeiro caso, a decisão proferida na primeira acção afectaria necessariamente, teria de afectar a decisão a proferir na segunda, no segundo caso, a decisão proferida na primeira acção não a afectaria necessariamente, não teria de a afectar — simplesmente, poderia afectá-la”. (ibidem).


A economia e a coerência de julgados constituem, deste modo, a razão de ser deste instituto (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., vol. I, p. 350).


Relativamente ao motivo justificado previsto na parte final do n.º 1 do artigo 272.º, tem vindo a ser salientado que o mesmo não se mostra densificado na lei, pelo que compete ao tribunal preencher este conceito, considerando-se que o motivo se revela justificado quando “seja ponderoso e contribua para a justa composição do litígio, sem beliscar o princípio da igualdade das partes” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.02.2023 (Ana Rodrigues da Silva), Processo n.º 31/21.7TNLSB.L1-7, in http://www.dgsi.pt/).


Revertendo ao caso dos autos, importa sublinhar o lapso evidente contido nas alegações, quando se reportam à alínea c) do n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, uma vez que tal norma não possui alíneas, devendo ainda ser salientado que, ao invés do que consta das alegações, o Tribunal a quo não invocou a pendência de causa prejudicial para ordenar a suspensão da instância, mas antes a ocorrência de motivo justificado, atendendo a que se suporta no “disposto no artigo 272.º, n.º 1, parte final”.


O objeto da discussão das partes reside em saber se os tribunais portugueses são competentes para a tramitação do presente inventário, questão que pode ser conhecida por via incidental nos autos de inventário, ainda que a correspondente decisão não adquira, por regra, força de caso julgado material, como decorre do preceituado no artigo 100.º do Código de Processo Civil: “A decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida” (ressalva-se apenas o caso previsto no artigo 101.º do Código de Processo Civil).


Já na ação que corre termos na Austrália, o seu objeto consiste no apuramento do domicílio do Inventariado na data da sua morte, peticionando-se em tal ação “que seja declarado que à data do óbito tinha o seu domicílio em Queensland e uma conexão mais estreita com aquele local do que com Portugal”, com a intenção de afirmar a competência dos tribunais australianos para tramitar o inventário.


Ressalta do exposto que a decisão em causa não respeita a uma questão de mérito, porquanto a mesma não incide sobre aspetos diretamente ligados à partilha, situando-se diversamente no perímetro dos pressupostos processuais.


Ora, a causa prejudicial deve contender diretamente com a decisão de mérito a proferir na ação dependente, como se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.09.2018 (Arlindo Crua) (Processo n.º 4730/16.7T8LSB.L1-2, in http://www.dgsi.pt/): “Questão prejudicial pode definir-se como aquela cuja solução é necessária para se decidir uma outra;


- existe prejudicialidade nas situações em que o conhecimento do fundo ou mérito da acção (ou seja, para se prover sobre o petitório formulado) está dependente da prévia resolução de uma outra questão que, segundo a estrutura lógica ou o encadeamento lógico da sentença, carece de prévia decisão”.


Entendemos, deste modo, que não se trata aqui, efetivamente, de uma causa prejudicial, pelo que importa averiguar se a ação australiana constitui motivo justificado para a suspensão da instância.


4.2. O Regulamento (UE) n.º 650/2012


As partes não dissentem quanto à circunstância da competência para o processo de inventário dever ser aferida à luz do Regulamento (UE) n.º 650/2012, do Parlamento Europeu e Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.


Como assinala o Recorrido, a aplicação deste normativo, aprovado no seio da União Europeia, impõe-se por força do princípio do primado, plasmado no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, onde se diz que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”


Miguel Gorjão-Henriques (Direito da União, 10ª ed., Coimbra, 2025, pp. 403-413) explica, a este propósito, que o princípio da efetividade, consistente na obrigação dos Estados-Membros garantirem a plena aplicação do Direito da União (artigo 4.º, n.º 3 do Tratado da União Europeia) se desdobra em dois aspetos essenciais: o efeito direto, que assenta na “ideia de que as normas da União Europeia podem ser invocadas em juízo pelos particulares perante os órgãos jurisdicionais nacionais, quer contra o Estado (efeito directo vertical) quer contra outros particulares (efeito directo horizontal)”; e o primado ou princípio da prevalência na aplicação, do qual decorre que os órgãos jurisdicionais nacionais têm de garantir a plena eficácia do direito europeu, ainda que tal implique a desaplicação de normas nacionais que lhe sejam contrárias, mesmo posteriores, tanto de direito ordinário como de direito constitucional, “sem que tenha de pedir ou aguardar a supressão prévia desta regulamentação ou prática nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional” (efeito de exclusão).


Assim, como se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.05.2023 (Luís Filipe Pires de Sousa) (Processo n.º 343/21.0T8RGR-A.L1-7, in http://www.dgsi.pt/), “O Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, prevalece sobre as normas dos Artigos 62º a 65º do Código Civil.”


Escreveu-se na fundamentação do citado aresto que: «O Reg. da UE veicula regras uniformes de competência internacional, lei aplicável e reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria de sucessões internacionais, aplicando-se a relações sucessórias plurilocalizadas na União Europeia (com exceção do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) que têm pontos de contacto relevantes com mais de um país, nomeadamente por via da existência de bens sitos em vários países. A transnacionalidade da situação jurídica pode advir da sua conexão com um Estado-membro e com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia (RL 19-11-19, 28325/17). O art.º 20º consagra a aplicação universal das normas do Reg., o que, conjugado com o primado do direito comunitário, significa que as normas de conflitos do Reg. prevalecem sobre as normas dos art.ºs 62º a 65º do CC. Outra decorrência do carácter universal das normas é que, “através do funcionamento das respetivas conexões, as normas de conflitos tanto podem designar como aplicável o direito material de um Estado-membro como de um Estado terceiro” (Gomes de Almeida, “Apontamentos sobre o novo direito de conflitos sucessório”, Revista do CEJ, nº 2, pp. 35-36). O Reg. segue o modelo da sucessão unitária, aplicando-se uma única lei a toda a sucessão (art. 23º, nº 1), sem prejuízo de, no domínio do reenvio, a lex domicilii adotar o sistema da cisão (cf. art.º 34º; Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do Reg. europeu das sucessões”, BFDUC, vol. XCIV, t. II, 2018, pp. 1187-1188).»


É certo que o Regulamento não se aplica ao Reino Unido, Irlanda e Dinamarca, que para este efeito são considerados Estados terceiros, sendo que o Reino Unido, por força da sua saída da União Europeia, formalizada em 31 de janeiro de 2020, constitui, atualmente, um Estado terceiro.


Diz-se, efetivamente, no Considerando (82) do Regulamento que “Nos termos dos artigos 1.º e 2.º do Protocolo n.º 21 relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda em relação ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, estes Estados-Membros não participam na adoção do presente regulamento, não ficando por ele vinculados nem sujeitos à sua aplicação.”


Não obstante estas circunstâncias, como se disse acima, o Regulamento tem vocação de aplicação universal, de onde decorre que se aplica a todos os casos que revelem conexões com mais do que um ordenamento jurídico, desde que um desses ordenamentos se mostre vinculado ao Direito da União, e ainda que os demais possíveis elementos de conexão sejam estranhos à União.


Assim se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.11.2019 (Micaela Sousa) (Processo n.º 8325/17.9T8LSB.L1-7, in http://www.dgsi.pt/), acima aludido, no qual se afirmou que “A transnacionalidade da situação jurídica pode advir da sua conexão com um Estado-membro e com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia.”


Explica-se na fundamentação deste aresto que “as disposições do Regulamento Europeu das Sucessões sobre conflitos de leis devem ser tidas como aplicáveis erga omnes, ou seja, abarcando as relações com os Estados não vinculados pelo Regulamento.


Essa aplicação de cariz universal extrai-se do vertido no artigo 20.º do Regulamento, nos termos do qual: “É aplicável a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado-Membro.” – cf. neste sentido, Andrea Bonomi e Patrick Wautelet, Le droit européen des successions - Commentaire du Règlement n.º 650/2012 du 4 juillet 2012, Bruxelles: Bruylant, 2013, apud Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e Notariado acima referido; Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Volume II – Direito de Conflitos – Parte Especial, 4ª Edição Refundida, pág. 688[9]; Rui Manuel Moura Ramos, Estudos de Direito Internacional Privado da União Europeia, pág. 254.”


Decorre, pois, do referido Regulamento, que a residência habitual no momento do óbito é o critério que determina qual o Estado-Membro cujos tribunais são competentes para apreciar as questões que se coloquem no plano do direito das sucessões, sendo também a lei desse Estado-Membro a aplicável para decidir essas questões (artigos 4.º e 21.º).


4.3. Domicílio habitual


Ora, o apuramento do domicílio habitual pode envolver, em alguns casos, uma indagação extensa e complexa, como decorre, aliás, do teor dos Considerandos (23) e (24) do Regulamento:


“(23) Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito. A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais per tinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.


(24) Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais.”


Assim, o caso em apreço afigura-se precisamente ser um daqueles em que o apuramento do domicílio do Inventariado é complexo, por virtude da conexão com várias ordens jurídicas: os Requerentes alegam que apesar de se tratar de um cidadão britânico, tinha residência em Portugal e não manteve ligação ao Reino Unido, possuindo avultado património em Portugal; o Cabeça-de-Casal aponta a circunstância do Inventariado ter vivido durante algum tempo em Gibraltar, onde terá feito um testamento, e de ter, por último, vivido na Austrália com uma companheira, união da qual nasceu um filho, ainda menor, e onde deixou património.


Sublinhe-se ainda que para além da ação que corre termos na Austrália, o Cabeça-de-Casal dá ainda nota de uma outra ação que corre termos no Supremo Tribunal de Gibraltar, onde se discute a validade do aludido testamento.


Nas suas alegações os Requerentes sustentam que a prova documental já produzida nos autos demonstra inequivocamente que a última residência do Inventariado se situa em Portugal.


Porém, não se circunscreve no âmbito deste recurso a tomada de posição sobre a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, atendendo a que a mesma ainda não foi apreciada pelo Tribunal de 1ª Instância, o qual considerou tratar-se de uma questão controvertida.


Assim, assinalamos tão somente que a prova a efetuar no âmbito do incidente destinado a aferir da competência dos tribunais portugueses não é apenas documental, sendo admissível qualquer meio de prova, nos termos das regras gerais do artigo 293.º, n.º 1 (com ressalva do número de testemunhas, atento o disposto no artigo 294.º, n.º 1), por remissão do artigo 1091.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.


Aliás, no requerimento de 03.09.2024, onde expõem os factos que, na sua ótica, suportam a conclusão de que o Inventariado teve a sua última residência em Portugal, os Requerentes, para além dos documentos que juntam, arrolam duas testemunhas.


5. Revisão e confirmação de sentença estrangeira


5.1. Aqui chegados, importa ponderar que no aludido n.º 1 do artigo 1092.º do Código de Processo Civil se estabelece a suspensão da instância com caráter obrigatório, apenas se admitindo que assim não suceda nos casos previstos no n.º 3 do normativo indicado.


Sustentam, no entanto, os Requerentes que aquela ação não assume relevância nestes autos, na medida em que:


- a decisão que venha a ser proferida pelo tribunal australiano apenas poderá ser vinculativa na ordem jurídica portuguesa se for sujeita a um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira;


- a confirmação poderá não ser admitida, por ausência de tratado bilateral ou convenção internacional de reconhecimento automático entre Portugal e a Austrália; a eventual sentença poder ofender os princípios da ordem pública internacional portuguesa, nomeadamente, a proteção dos herdeiros legitimários (artigo 980.º, alínea f) do Código de Processo Civil); a possibilidade de ser proferida por tribunal internacionalmente incompetente, nos termos dos artigos 62.º e 72.º-A do Código de Processo Civil.


Ora, é inquestionável que qualquer decisão estrangeira só adquire força vinculativa em Portugal se for sujeita a um processo de revisão e confirmação (artigos 978.º a 985.º do Código de Processo Civil).


Trata-se, consabidamente, de um processo onde não se procede, por regra, à revisão de mérito da sentença estrangeira: “o sistema português de revisão de sentenças estrangeiras visa o reconhecimento meramente formal, o que significa que os tribunais competentes, em princípio, se limitam a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não interferindo no fundo ou mérito da causa” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., vol. II, p. 445).


Por outro lado, consultado o site da DGPJ, verifica-se que daí apenas constam dois convénios bilaterais com a Austrália, em sede de cooperação judiciária internacional, o Tratado de Extradição e o Tratado de Auxílio Mútuo em Matéria Penal (in https://dgpj.justica.gov.pt/Relacoes-Internacionais/Relacoes-bilaterais/Instrumentos-de-cooperacao-judiciaria-internacional).


No entanto, a circunstância de se tratar de uma decisão judicial proveniente de um País com o qual inexista qualquer tratado bilateral ou convenção internacional de reconhecimento automático não afasta a conclusão anterior, isto é, essa decisão judicial deve ser submetida ao processo de revisão e confirmação, como, aliás, decorre expressamente do n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil:


“Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”


Quanto à alegada circunstância de no direito australiano não ser reconhecida a categoria dos herdeiros legitimários, deve ter-se presente que na ação pendente no Supremo Tribunal de Queensland, foi formulado o seguinte pedido: “que seja declarado que à data do óbito tinha o seu domicílio em Queensland e uma conexão mais estreita com aquele local do que com Portugal.”


Ou seja, não foi pedido àquele Tribunal que declare quem são os herdeiros do Inventariado ou proceda à partilha dos seus bens.


A esta luz, a eventual ofensa da ordem pública internacional é uma questão que não se colocará aquando da revisão e confirmação da sentença que vier a ser proferida por aquele Tribunal.


Relativamente à competência do tribunal australiano, trata-se de aspeto que só releva no plano do processo de revisão e confirmação da sentença que venha aí a ser proferida, e o único requisito, ao nível da competência, para que a sentença seja confirmada, é o de que “provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses” (artigo 980.º, alínea c) do Código de Processo Civil).


Ora, nenhuma destas objeções foi alegada pelos Recorrentes, aliás, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (idem, p. 450), a este respeito, que “se o Estado de origem não sancionou a fraude, a mesma não deve ser sancionada por Portugal, nomeadamente face ao princípio de harmonia internacional de soluções”.


5.2. Prevenção da jurisdição


Não obstante todo o já exposto, há um aspeto que deve ainda ser analisado e se prende com a circunstância de nos termos da alínea d) do artigo 980.º do Código de Processo Civil, constituir requisito da confirmação da sentença estrangeira, “que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta em tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição”.


Esta norma mostra-se diretamente ligada ao disposto no artigo 580.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, segundo o qual, para efeitos de verificação das exceções da litispendência e do caso julgado, “É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais.”


Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (ob. cit., vol. 2º, 3ª ed., Coimbra, 2017, pp. 590-591) explicam assim a última norma citada: “a exceção de litispendência não pode, salvo convenção em contrário, ser feita valer com base na pendência duma ação em tribunal português e de outra em tribunal estrangeiro.


Podem, por isso, correr paralelamente duas ações, em tribunais de Estados diferentes. Mas a ordem jurídica portuguesa não permanece indiferente à sorte da ação instaurada no tribunal estrangeiro: se neste for proferida decisão e esta transitar em julgado (art. 980-b), ela pode ser confirmada para produzir efeitos em Portugal e só não o será se a ação proposta em tribunal português, ainda pendente ou já julgada, tiver sido aquela em que o réu foi citado em primeiro lugar (art. 980-d)” (no mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., vol. I, p. 711).


Assim, o trânsito em julgado da decisão revidenda, “segundo a lei do país em que foi proferida”, constitui, efetivamente, requisito da sua confirmação, nos termos da alínea b) do artigo 980.º do Código de Processo Civil.


Mas se a sentença estrangeira contiver uma decisão que ofenda caso julgado produzido por decisão proferida em Portugal, prevalece a sentença nacional, devendo recusar-se a confirmação da sentença estrangeira, a menos que a ação onde foi proferida a sentença estrangeira seja anterior à ação portuguesa.


Essa anterioridade apura-se, então, a partir do critério da data da citação, que é aplicável em sede de litispendência (artigo 582.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), determinando, para esse efeito, que se declare extinta a segunda ação, sem conhecimento do mérito da causa (artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea i) do Código de Processo Civil).


É certo que, no presente caso, apesar de nenhuma das duas ações se mostrar ainda decidida, não se coloca a questão da litispendência, porquanto esta se traduz na duplicação de uma ação, significando que na pendência desta, foi instaurada outra ação cujos sujeitos, pedido e causa de pedir são iguais à primeira (artigos 580.º, n.º 1 e 581.º do Código de Processo Civil), o que não sucede aqui.


Assinala-se, adicionalmente, que a circunstância do fundamento do incidente de incompetência absoluta do tribunal coincidir com o objeto da ação que corre termos na Austrália não configura, atento o exposto, uma questão de litispendência.


No entanto, inexistindo qualquer convenção internacional assinada por Portugal e pela Austrália a este respeito, cumpre averiguar se a causa australiana, à luz dos normativos indicados, poderia produzir efeitos em Portugal.


Ora, o Cabeça-de-Casal foi citado nestes autos de inventário em 29.04.2024; e os Requerentes foram citados, na ação que corre termos na Austrália, em 10.06.2024, como aponta o Cabeça-de-Casal nas contra-alegações.


Daqui extrai-se que, caso se verificasse uma situação de litispendência, a pendência da ação australiana não teria consequências sobre a ação portuguesa, porquanto a citação ocorreu naquela ação australiana em data posterior à citação na ação portuguesa.


Assim, como se concluiu no acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.02.2023, com respeito a um caso paralelo, “se tal acção não pode levar a uma situação de litispendência, também não pode a mesma constituir motivo justificado para efeitos de suspensão da acção.


Com efeito, a suspensão destes autos não resultará em qualquer beneficio para as partes ou para a tramitação processual”.


Acresce que a circunstância de se tratar aqui de uma questão de competência internacional assume particular relevância, pois, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (ob. cit., vol. 1º, p. 207), a propósito do artigo 101.º do Código de Processo Civil, “o preceito não faz referência à incompetência internacional. Por um lado, no caso de o Supremo Tribunal de Justiça reconhecer a incompetência dos tribunais portugueses, é assim “pela óbvia razão de não caber aos nossos órgãos judiciários a pré-determinação do tribunal estrangeiro competente (VARELA-BEZERRA-NORA, Manual cit., p. 233 (1)); com efeito, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que afirme a competência de um dado tribunal estrangeiro não tem qualquer relevância jurídica, a menos que um instrumento internacional a confira.”


Em conclusão, porque a ação australiana é posterior ao presente processo de inventário, na eventualidade de naquela ação se adotar um entendimento incompatível com o que viesse a ser acolhido nestes autos de inventário, isto é, se ali se concluísse que o domicílio do Inventariado na data do óbito se situou na Austrália e se nestes autos de inventário se concluísse que o último domicílio do Inventariado se situou em Portugal, prevaleceria a decisão proferida em Portugal.


Deste modo, a suspensão da instância não se revela de utilidade para a tramitação do inventário.


Em face de todo o exposto, conclui-se que deve a decisão recorrida ser revogada e ser determinado o prosseguimento dos autos, designadamente, para apreciação da exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses.


6. Atenta a procedência do recurso, é o Cabeça-de-Casal responsável pelas custas do recurso (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).


IV – Dispositivo


Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, pelo que revogam a decisão recorrida e ordenam o prosseguimento dos autos, designadamente, para apreciação da exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses.


Custas pelo Cabeça-de-Casal.


Notifique e registe.


Sónia Moura (Relatora)


Manuel Bargado (1º Adjunto)


Maria João Sousa e Faro (2ª Adjunta)