Sumário:
Não pode operar-se o destaque, com fundamento em usucapião, de uma parcela de um prédio cuja propriedade pertence integralmente aos AA., quando a propriedade da parcela foi adquirida pelos AA. conjuntamente com a área remanescente; a parcela foi usada pelos AA., tal como a área remanescente, não se vislumbrando que o uso da parcela possua qualquer particularidade que o diferencie do uso da parte remanescente do prédio; e, inclusivamente, os AA. declararam, perante entidades oficiais, que o prédio em causa integrava tal parcela.
(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)
Apelação n.º 1810/23.6T8FAR.E1
(1ª Secção)
***
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
1. AA e mulher BB intentaram ação declarativa com processo comum contra CC, pedindo a condenação do R.:
a) a reconhecer que os AA. são os únicos donos e legítimos possuidores (proprietários) de determinada parcela de terreno, por efeito de usucapião;
b) ordenar, para efeitos registrais e matriciais, a retificação da área do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 167, secção AP, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 5413 da extinta freguesia de Local 1, atual freguesia da União da Local 2 e Local 1, reduzindo-a, em conformidade com o resultado da medição que oportunamente se vier a apurar.
Alegaram que no início dos anos de 1980, os pais do A. compraram verbalmente a DD e mulher, uma parcela de terreno com área aproximada de 400m2, para servir de desafogo à sua casa de habitação.
Tal parcela de terreno fazia parte do prédio rústico inscrito na matriz, à data, sob o artigo 148 da secção AP, freguesia de Local 1, concelho de Cidade 1, atualmente inscrito na matriz sob o artigo 167 da secção AP, da união das freguesias da Local 2 e Local 1.
Foi nesta parcela de terreno que os pais do A., desde o início dos anos 80, começaram a praticar pequena agricultura de subsistência (batatas, couves, favas, griséus, entre outros), tendo também plantado um limoeiro, laranjeiras, tangerineiras, etc., que hoje ainda se encontram bem visíveis e produtivas; assim como lá construíram galinheiros e uma pocilga, e uma edificação que servia de armazém, com cerca de 60 m2, a qual faz ligação interior com a casa do forno (30 m2), integrante do urbano 3984 (descrito como área dependente), sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, de forma pública e pacífica, na convicção de que esta dita parcela era sua propriedade.
No dia 11.10.1991, os AA., com outorga de escritura pública, adquiriram por compra e venda a DD e mulher, o prédio rústico do qual, do ponto de vista da área constante na matriz, constava ainda a referida parcela de terreno (400m2), que havia sido comprada verbalmente, nunca reduzida a escrito, pelos pais do A. a DD e mulher, parcela que nunca foi retirada/desanexada/demarcada da área do prédio rústico.
Essa parcela, aquando da referida aquisição, foi doada verbalmente pelos pais do A. aos AA., estes que já se serviam dela para lá fazer funcionar a oficina do A. (serralharia civil), oficina que nos anos 90 passou a ter lugar nesse prédio.
Com isso, os AA., desde 1991, estão na posse pública e pacífica, da parcela de terreno (400m2), à vista de toda a agente, sem oposição de quem quer que fosse, e na convicção de que tal parcela lhes pertencia, também lá construindo várias outras construções (alpendres) que serviam de apoio à atividade desenvolvida na oficina do A. e um canil e praticando pequena agricultura de subsistência e a tratar e a colher os frutos das árvores nela existente.
Em 2013, o prédio rústico onde se encontra implantado o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 3536, foi adquirido no âmbito de execução fiscal pelo R.: um prédio misto com a área total de 4.867m2, e onde se encontram inseridos os tais 400 m2 (parcela de terreno).
2. Citado, o R. contestou por exceção, invocando a ineptidão da petição inicial por incompatibilidade de pedidos, e deduziu defesa por impugnação, tendo ainda formulado reconvenção, pedindo a condenação dos AA. a reconhecerem o direito de propriedade do R. sobre a mencionada parcela de terreno de 400,00m2 e a construção com cerca de 60,00m2, destinada a armazém, mais reconhecendo que os limites físicos desse prédio são os que resultam das cartas oficiais do cadastro do IGT e dos marcos e marcas visíveis no solo, e que integram a totalidade do solo prédio, com a total inexistência de qualquer parcela autónoma de propriedade dos AA..
Pediu ainda o R. a condenação dos AA. como litigantes de má fé, quer no pagamento de multa a fixar pelo Tribunal, quer no pagamento de uma indemnização que compreenda o reembolso das despesas a que a má-fé dos litigantes obrigou o R. a suportar com honorários do mandatário e demais prejuízos sofridos, a fixar posteriormente após audição das partes, tudo ao abrigo e nos termos dos artigos 543.º e 544.º do CPC.
3. Houve réplica, na qual os AA. pugnaram pela improcedência do pedido reconvencional, bem como do pedido de condenação por litigância de má-fé.
4. Foi admitida a reconvenção, proferido despacho saneador, julgando-se improcedente a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial invocada pelo R., identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgando-se a presente acção totalmente improcedente por não provada quanto aos pedidos dos Autores e totalmente procedente por provada quanto ao pedido reconvencional do Réu, decide-se:
I. Absolver o Réu CC do peticionado pelos Autores AA e BB;
II. Condenar os Autores reconvindos AA e BB a reconhecer o direito de propriedade do Réu reconvinte CC sobre a parcela de terreno, com área aproximada de 400 m2, situada no confronto a nascente com o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 3984 e configurando um polígono quase rectangular, com comprimento desenvolvido na direcção nascente-poente e a largura na direção norte-sul, e enquanto parte integrante do prédio rústico inscrito na matriz sob o actual artigo 167 da secção AP, da União das Freguesias da Local 2 e Local 1;
III. Absolver os Autores como litigantes de má fé e do pedido de indemnização formulado pelo Réu a título de litigância de má-fé”.
5. Inconformados com a sentença, vieram os AA. apelar da mesma, tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:
“A)Na matéria de facto não provada, o tribunal recorrido, não deu como provados os seguintes fatos A), B) e D).
B)Ora, com o devido e merecido respeito, relativamente aos factos não provados a) e b), impunha-se que o douto tribunal a quo considerasse os mesmo como provados, por força da prova documental junta à petição inicial, como Docs. nºs 1, 2 e 3. Sendo que,
C)Relativamente ao fato não provado a), o tribunal recorrido deveria ter dado como provado que na primeira década de 1980, foi construída na parcela descrita em 2 e 3 dos factos provados, uma edificação com casa de forno e garagem.
D)No que concerne aos factos não provados b), tendo como prova os falados documentos 1, 2 e 3, o douto tribunal recorrido, deveria ter dado como provado, que a garagem identificada em a) dos factos não provados é parte integrante do prédio urbano, inscrito na matriz com o artigo matricial 2120 atual artigo matricial 3984.
F)Relativamente ao facto não provado d), o mesmo deveria ter sido dado como provado, tendo por base probatória o depoimento gravado, da testemunha arrolada pelos AA., EE, que foi inquirido no dia 11 de Setembro de 2024, na parte da manhã, das 11.41 às 11.59.
G)A testemunha EE, mais precisamente aos 12:14m do seu depoimento, refere que estava lá um limoeiro, e mais á frente às 12:23, mencionou que o Autor marido cuidou da dita faixa de terreno em causa (400m) sempre como os seus pais cuidavam, continuou tudo a ser tratado igual.
H)Com devido respeito, andou mal, salvo o devido e merecido respeito, o douto tribunal de primeira instância ao não considerar tais factos como provados.
I)Pelo que, se requer que seja alterado o rol de factos provados, nele se inserindo os factos provados supra referidos com a seguinte redação:
A)Na primeira metade da década de 1980, foi construída na parcela descrita em 2 e 3 dos factos provados, uma edificação com casa de forno e garagem.
B) A garagem identificada em A dos factos não provados é parte integrante do prédio urbano inscrito na matriz com o artigo matricial 2120 atual artigo matricial 3984 da atual União das Freguesias da Local 2 e Local 1, concelho de Cidade 1.
C)Os Autores continuaram na parcela identificada em 2 e 3 dos fatos provados a praticar pequena agricultura de subsistência e a colher os frutos das árvores lá existentes, nomeadamente do limoeiro.
J)Deveria pois, o douto tribunal a quo, ter dado estes factos como provados, porque, como supra dito, dispunha de base probatória para o fazer.
K)Na verdade, os fatos A) e B), por resultar da análise da documentação junta aos autos, e o facto c), por resultar do testemunho de EE, como supra dito, deveriam, todos, ter sido colocados no elenco dos factos provados, por se assumirem como factos de extrema relevância para a decisão da causa.
L)Assim sendo, deverá a factualidade assente sofrer alteração no sentido da inclusão dos factos supra mencionados ( A, B e c) como assentes.
M)Porém, mesmo que assim se não entendesse- o que apenas se concede por mera cautela de patrocínio- sempre se dirá que houve, na decisão que ora se recorre, um verdadeiro erro de julgamento na aplicação do direito aos factos.
N)No caso em apreço, salvo o devido respeito e melhor entendimento, tendo em conta os factos dados como provados e aqueles que o douto tribunal de 1.ª instância deveria ter dado como assentes, sempre se impunha que a sentença prolatada tivesse sido substancialmente distinta.
O)Na verdade, andou mal o douto tribunal a quo ao decidir pela improcedência total da presente acção, uma vez que, dada a factualidade assente e aquela que, no entendimento dos Recorrentes, deveria ter sido considerada provada pelo tribunal recorrido, resulta evidente que os Recorrentes, acederam na posse da parcela de terreno identificada em 2 e 3 dos factos provados, a qual existia desde o início dos anos 80 do século passado, na posse do pai do ora Recorrente marido e continuou, com a mesma natureza, com Recorrentes. Isto é,
P)A posse do antecessor passou para a posse dos sucessores aqui ora Recorrentes, com a mesma natureza, pois, o que estava, conforme abundantemente alegado e provado pelos Recorrentes, em causa, na questão colocada ao douto tribunal, para que decidisse era a aquisição da parcela identificada em 2 e 3 dos factos provados, pelos Recorrentes, pela via da aquisição por usucapião. Isto é,
Q)Por efeito da posse pública, pacífica, sem oposição de quem quer que fosse (corpus), com a convicção de que a coisa possuída era sua pertença (animus), por ter acedido à mesma através da sucessão na posse de outrem (pai do ora recorrente marido).
R)Os factos que a douta sentença deu como provados e os que, no entendimento dos ora Recorrentes deveria, ter dado como provados, encontram-se, salvo melhor entendimento, devidamente demonstrados nos autos, razão pela qual andou mal o douto tribunal a quo ao não retirar deles a conclusão de direito que, salvo melhor entendimento, se impunha ou seja, a de que os Autores/Recorrentes, adquiriram por usucapião, a parcela em causa nos autos (400m), por terem somado a sua posse à posse do seu antecessor.
S)Ao não decidir desta forma, a douta decisão recorrida violou, o disposto no artigo 1256º do Código civil, e aplicou de forma errónea o disposto nos artigos 947º, 875º, 956º todos do Código Civil.
T)Do instituto da acessão da posse previsto no artigo 1256º do Código Civil, retira-se que para haver acessão na posse, não é necessário que a transmissão desta seja efetuada através de titulo translativo formalmente válido (neste sentido é opinião da grande maioria da jurisprudência e doutrina).
U)Por esta razão, que a posição adotada pelo tribunal ora recorrido, a exigir que haja um vínculo jurídico entre o antigo e o novo possuidor, vínculo jurídico, no mínimo, formalmente válido, para que a acessão da posse seja aplicada, não nos parece ser a mais correta e conforme à lei.
V)A lei, não exige para, que a posse conduza á usucapião, que ela seja titulada, isto é, fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (artº 1259º, nº 1, CC).
W) Se o não for, a usucapião poderá ainda ter lugar, desde que se verifiquem, os requisitos da posse pública e pacífica (cfr, para os imóveis, o artº 1296º), a existência ou não de título da posse, bem como de boa ou má- fé, influenciam apenas o prazo da usucapião, mas não impedem a sua verificação.
X)Ora, visando o instituto da acessão, facilitar o funcionamento da usucapião, não parece que faça sentido exigir para ela mais requisitos do que os colocados à própria usucapião, retirando-lhe assim, em larga medida alcance e utilidade prática.
Y)Essencial e absolutamente indispensável é tão somente que haja transmissão da posse – por tradição ou por constituto possessório (artº 1263º, b) e c), do CC) já que, como afirma o Prof. Menezes Cordeiro, “em parte alguma a lei portuguesa exige, para a transmissão da posse, títulos, negócios ou “vínculos” válidos”.
Z)Assim, duvidas não restam, que no caso concreto, o douto tribunal a quo, não procedeu à soma das duas posses, como é imposto pelo artigo 1256º do Código Civil, em face da prova produzida, in casu, estão em causa duas posses, que a lei manda somar.
AA)O que, com devido respeito, o tribunal a quo não teve em conta.
AB)Diferentemente da posse na acessão, onde existem duas posses, na posse na sucessão por morte, existe apenas uma posse, que é única e na sucessão por morte o sucessor continua a posse do de cujus. Mas,
AC)Na acessão na posse existem duas posses, a do antepossuidor e do actual possuidor, no caso em apreço estamos perante a acessão na posse.
AD)O douto tribunal a quo, escudou-se na questão dos Recorrentes terem adquirido o prédio rústico a DD e a partir dai, entrarem na posse de toda a área do prédio inclusive da parte dos 400m2.
AE)Contudo, os 400m2 em causa, constituíam uma realidade fáctica, separada do restante prédio adquirido através de título formal bastante (escritura de compra e venda). E,
AF)Quando os Recorrentes adquiriram, por compra o dito prédio rústico a DD, já há cerca de uma década, os referidos 400m2, tinham sido vendidos, sem obediência de forma, por DD, aos pais do Autor/ Recorrente marido.
AG)A desanexação desses 400m2, nunca aconteceu, como testemunhou, a testemunha FF, inquirida no dia 11 de Setembro de 2024, na parte da manhã, com o depoimento com inicio de gravação às 11:07 e términus às 11:41, em que aos 27:16 e 31:00 do seu depoimento, referiu que não houve preocupação em fazer o destaque/desanexação do 400m2, aquando da compra e venda da restante área aos Recorrentes, porque o pai do Recorrente marido, aquém o DD havia vendido por boca no principio dos anos 80 os ditos 400m disse para fazerem a escritura pela totalidade do terreno que dava esses ditos 400m ao ora Recorrente.
AH)Em face do supra exposto, ao decidir como decidiu, a douta sentença ora posta em crise, incorreu em erro de julgamento, por inadequada aplicação do direito aos factos provados e aos dados como não provados, tendo feito errónea aplicação do direito, nomeadamente do disposto nos artigos 947º, 875º e 956º todos do Código Civil.
AI)Por outro lado, como lhe era imposto, por toda a factualidade provada e a que deveria ser dada como provada e não o foi, não aplicou o douto tribunal a quo, o disposto nos artigos 1263º n alínea a) e b) e 1256º nº 1 ambos do Código Civil.
AJ)Dado que, em face de tal factualidade, a correta aplicação do direito, impunha ao tribunal, decidir que os ora Recorrentes adquiram a parcela em causa (400m) por usucapião.”
6. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais o R. pugnou pela improcedência do recurso.
7. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Questões a Decidir
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).
No caso em apreço importa apreciar:
a) a impugnação da decisão de facto;
b) se a decisão que julgou improcedente a ação se mostra correta.
III – Fundamentação de facto
1. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“1. No início dos anos 1980, os pais do Autor, GG e HH, tinham a sua casa de habitação no Sítio de Vale ... - Local 1, correspondente aos prédios urbanos inscritos na respectiva matriz sob os artigos matriciais 2120 e 2807, actualmente artigo 3984, da União das Freguesias de Local 2 e Local 1.
2. Por essa altura, os pais do Autor acordaram verbalmente com DD, passar a usar como se fosse sua, parcela de terreno que configurava um polígono quase rectangular, cujo comprimento se desenvolvia na direcção nascente-poente e a largura na direção norte-sul, com uma área aproximada de 400 m2, que integrava o prédio rústico inscrito na respectiva matriz sob o artigo 148 da secção AP, freguesia de Local 1, concelho de Cidade 1 (actualmente sob artigo 167 da secção AP, da União das Freguesias da Local 2 e Local 1), prédio este que confrontava (e confronta) a nascente com o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3984, contra o pagamento de determinada quantia.
3. Nessa parcela de terreno, os pais do Autor começaram, assim, a praticar pequena agricultura de subsistência, nomeadamente, plantação de batatas, couves, favas, griséus, entre outros, tendo também lá plantado um limoeiro, laranjeiras e tangerineiras, bem como construído galinheiros e uma pocilga, fazendo-o sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, de forma pública e pacífica, convictos de que tal parcela de terreno lhes pertencia.
4. A 26 de Junho de 1981, por escritura pública de compra e venda, os Autores declararam comprar e II e a sua mulher JJ declararam vender, um lote de terreno destinado a construção urbana, com a área de 187 m2, sito em Vale ..., freguesia de Local 1, concelho de Cidade 1, o qual confrontava com o prédio rústico identificado em 2.
5. No ano de 1987, correu termos o processo de reclamação cadastral n.º 16/87, no âmbito do qual DD, através de requerimento subscrito pelo próprio e datado de 01/07/1987, declarou que o prédio rústico identificado em 2. lhe pertencia na totalidade, remetendo para cópia da carta do cadastro, onde vinha assinalado o prédio sem exclusão da parcela de terreno identificada em 2. e 3.
6. No dia 11 de Outubro de 1991, por escritura pública de compra e venda, os Autores declararam comprar e DD e mulher declararam vender, o prédio rústico inscrito na respectiva matriz sob o artigo 148 da secção AP, freguesia de Local 1, concelho de Cidade 1 (actualmente sob artigo 167 da secção AP, da União das Freguesias da Local 2 eLocal 1);
Sendo que,
7. Nesse momento, os pais do Autor, por acordo verbal, deram ao Autor a área correspondente à parcela descrita em 2. e 3., passando esta a ser usada pelos Autores à semelhança do que passaram a fazer com o prédio rústico identificado em 2. e 6.;
Assim,
8. Nunca se procedeu à desanexação da parcela de terreno identificada em 2. e 3. do prédio identificado em 2. e 6.
9. Após o descrito em 6., na parcela de terreno identificada em 2. e 3., os Autores construíram edificações, designadamente um alpendre para apoio à actividade de serralheiro desenvolvida pelo Autor, e um canil.
10. Os Autores apresentaram requerimentos quer junto da Fazenda Pública, a 17 de Março de 2008, quer junto da Câmara Municipal de Cidade 1, a 20 de Janeiro de 2009, através dos quais declararam que a composição e limites do prédio rústico identificado em 2. e 6. eram idênticos aos constantes do cadastro do IGT, com uma configuração que inclui a parcela de terreno identificada em 2. e 3.
11. A 17 de Março de 2008, os Autores, por referência ao prédio rústico identificado em 2. e 6., requereram junto do Chefe do Serviço de Finanças de Cidade 1 a inclusão de uma parcela urbana, inscrita na respectiva matriz sob o artigo 3536 (actualmente sob o artigo 4469), e a anexação do terreno identificado em 4., juntando certidão do cadastro, emitida pelo Instituto Geográfico Português, onde consta representação do prédio rústico identificado em 2. e 6. sem exclusão da parcela de terreno identificada em 2. e 3.
12. A 20 de Janeiro de 2009, os Autores, com o propósito de legalizar algumas construções levadas a cabo no prédio rústico identificado em 6., junto da Câmara Municipal de Cidade 1, reconheceram-no com os limites e configuração cuja parcela de terreno identificada em 2. e 3. era dele parte integrante.
13. A 28 de Fevereiro de 2012, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ... e apensos, instaurado contra os aqui Autores, foi penhorado o prédio misto, sito em Vale ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, freguesia de Local 1, sob o n.º 5413/20080326, composto pelo prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 4469 (antigo 3536) e pelo prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 167, secção AP, ambos da freguesia de Local 1, concelho de Cidade 1.
14. O Réu adquiriu a 5 de Julho de 2013, por adjudicação no processo de execução fiscal, o prédio identificado em 13., constituído em propriedade total com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, incluindo “R/C Pred 1”, destinado a habitação com quatro divisões; “R/C Pred 2”, destinado a armazém e actividade industrial com 3 divisões; “R/C Pred 3”, destinado a armazém e actividade industrial com 1 divisão; “R/C Pred 4”, destinado a armazém e actividade industrial com uma divisão, com uma área total indicada de 4.867 m2.
15. No dia 11 de Julho de 2019, pelas 10h40, a Autoridade Tributária, a fim de concretizar a entrega efectiva, ao aqui Réu, do prédio misto identificado em 13., compareceu no local, momento em que foi concedido ao aqui Autor o prazo de 10 dias para desocupação do imóvel.
16. No dia 26 de Julho de 2019, a Autoridade Tributária, com o fim de verificar a desocupação do prédio identificado em 13., compareceu no local, momento em que constatou que o imóvel continuava ocupado com bens móveis, animais e objectos de trabalho.
17. Ao proceder à desocupação do prédio, o aqui Autor, em data não concretamente apurada, mas situada entre 05.09.2019 e 22.10.2019, delimitou a parcela identificada em 2. e 3., colocando uma rede segura em postes metálicos.
18. No dia 21 de Outubro de 2019 o aqui Autor procedeu à entrega à Autoridade Tributária das chaves do prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 4469 (antigo 3536).
19. No dia 23 de Outubro de 2019, a Autoridade Tributária, com o fim de verificar a desocupação do prédio identificado em 13., compareceu no local, momento em que constatou a existência de uma faixa de terreno vedada com rede, sendo que, questionado o aqui Autor, este disse que a área vedada não fazia parte do prédio vendido ao aqui Réu.
20. No dia 16 de Junho de 2023, a Autoridade Tributária, com o fim de verificar a desocupação do prédio identificado em 13., compareceu no local, momento em que constatou que o imóvel não estava desocupado, sendo que, questionado o aqui Autor, este disse que se encontrava a habitar na área vedada e que intentara a acção judicial 1810/23.6... para que o Tribunal declarasse que tal parcela lhe pertencia.
21. No dia 8 de Agosto de 2023, a Autoridade Tributária procedeu à entrega do prédio identificado em 13. e respectivas chaves, ao aqui Réu.”
2. E julgou não provados os seguintes factos:
“A. Na primeira metade da década de 1980, foi construída na parcela descrita em 2. e 3. dos Factos Provados uma edificação que servia de armazém, com cerca de 60m2, apresentando ligação interior com a casa do forno.
B. O armazém identificado em A. dos Factos Não Provados passou a ser parte integrante do prédio urbano inscrito na matriz com o artigo 2120 (actual artigo 3984), incorporação esta feita pelos pais do Autor, com o consentimento dos Autores.
C. Foi na parcela identificada em 2. e 3. dos Factos Provados, e antes do descrito em 6. dos Factos Provados, que funcionou primitivamente a oficina de serralharia civil do Autor.
D. Os Autores continuaram, na parcela identificada em 2. e 3. dos Factos Provados, a praticar pequena agricultura de subsistência e a colher os frutos das árvores existentes.
E. Foi em 19 de Julho de 2019 que o Autor disse que a parcela de 400 m2 não pertencia ao prédio adquirido pelo aqui Réu.
F. O Autor disse ao topógrafo KK que a área correspondente aos 400 m2 não estaria integrada no prédio adquirido pelo Réu.”
3. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
A ideia fundamental que se extrai da norma transcrita é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.
A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).
Consequentemente, o referido n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil aplica-se no estrito âmbito delimitado pelas alegações do recorrente, o que equivale a dizer que não compete ao Tribunal da Relação reexaminar todo o processo e sindicar indiscriminadamente todos os factos e todos os meios de prova, como se de um segundo julgamento completo se tratasse.
Antes compete ao tribunal de recurso tão somente reapreciar os específicos factos identificados pelo recorrente, atentando nos meios de prova concretos que, de acordo com o recorrente, impõem decisão diversa, sem prejuízo de dever tomar em consideração outros meios de prova que, conjugadamente, imponham decisão diversa.
Constata-se que o Recorrente indicou os pontos de facto de cuja decisão discorda, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhe afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova, sendo que apesar de o ter feito em conjunto, é inteiramente percetível o teor da sua impugnação.
Importa ainda assinalar que, por força do atual regime de recursos compete ao Tribunal da Relação apreciar a prova sindicada pelo recorrente, de acordo com as regras legais pertinentes, em ordem a formar a sua própria convicção, “por isso, a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado.” (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., Coimbra, 2022, p. 348).
Não se trata, no entanto, de um poder de modificação irrestrito, precisamente porque não se visa proferir uma decisão inteiramente nova, mas apenas de reapreciar a decisão proferida pela 1ª Instância, assim, “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do Tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão.” (Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 350).
No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Maria João Matos) (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, in http://www.dgsi.pt/) que:
“I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).”
4. Passamos à impugnação da decisão de facto.
4.1. Factos não provados A. e B.
O Tribunal a quo não julgou provado que:
“A. Na primeira metade da década de 1980, foi construída na parcela descrita em 2. e 3. dos Factos Provados uma edificação que servia de armazém, com cerca de 60m2, apresentando ligação interior com a casa do forno.
B. O armazém identificado em A. dos Factos Não Provados passou a ser parte integrante do prédio urbano inscrito na matriz com o artigo 2120 (actual artigo 3984), incorporação esta feita pelos pais do Autor, com o consentimento dos Autores.”
É a seguinte a motivação do Tribunal a quo para os factos em apreço: “A factualidade descrita em A. a D. deu-se como não provada considerando, por um lado, as declarações de parte do Autor e, por outro lado, os depoimentos das testemunhas LL, EE e FF, e os docs. 3 e 4 juntos com a petição inicial.
Com efeito, a testemunha LL disse que, em finais dos anos oitenta ou inícios dos anos noventa, o Autor tinha uma oficina em sítio não coincidente com o prédio que veio a adquirir (conforme 6. dos Factos Provados), sendo tal oficina, nesse tempo, uma pequena parte do armazém que mais tarde viria a existir naquele prédio adquirido (o descrito em 6. dos Factos Provados). Tal depoimento vê-se corroborado pela aquisição, em 1981, pelos Autores de um prédio a II e mulher (conforme 4. dos Factos Provados), cuja localização foi apontada por aquela testemunha como sendo o sítio onde se encontrava a oficina do Autor. Neste sentido também foram as declarações do Autor.
A testemunha EE disse que o Autor tinha um armazém no terreno adquirido a DD, e a testemunha FF que não se recordava de ver construções na parcela dos 400 m2. Da caderneta predial urbana (docs. 3 e 4 petição inicial), referente ao anterior artigo matricial 2807, actual artigo 3984, consta a existência de uma dependência anexa que serve de garagem e casa de forno, com a área de 30 m2, mas tal não significa ou faz concluir que (dependência anexa que serve de garagem) se trata de um armazém com 60 m2.
O próprio Autor, em declarações de parte, disse que na parcela dos 400 m2 deixou de existir horta quando comprou o prédio a DD. Declarações corroboradas até pela testemunha LL, a qual disse que, após a compra do prédio pelo Autor (a DD), os Autores deixaram de usar a parcela dos 400 m2 para agricultura, passando a existir aí um alpendre, dado que o Autor tinha uma profissão diferente da de agricultor (é serralheiro).”
Os AA. discordam desta decisão, sustentando que estes factos devem ser julgados provados, com base nos docs. 1, 2 e 3 juntos com a p.i., nada mais acrescentando.
Ora, os docs. 1, 2 e 3 juntos com a p.i. constituem cadernetas prediais, verificando-se que a menção que consta do doc. 2 é igual àquela que se mostra vertida no doc. 3, isto é, “dependência anexa que serve de garagem e casa de forno”, com a única diferença que no doc. 2 se alude, a esse propósito, a uma área de 30m2.
Constata-se, por outro lado, que o Tribunal ponderou este último facto na análise crítica e conjugada que fez da prova, onde se incluem ainda as declarações de parte do A. e os depoimentos das testemunhas LL, EE e FF.
Assim, a mera alusão aos docs. 1, 2 e 3 não possui a virtualidade de alterar o juízo probatório do Tribunal a quo, que se afigura lógico e coerente.
Deve, consequentemente, manter-se os factos A. e B. no elenco da matéria de facto não provada.
4.2. Facto D.
O Tribunal a quo julgou não provado que:
“D. Os Autores continuaram, na parcela identificada em 2. e 3. dos Factos Provados, a praticar pequena agricultura de subsistência e a colher os frutos das árvores existentes.”
A motivação do Tribunal a quo para este facto é aquela que acima se transcreveu com respeito aos factos A. e B..
Advogam os AA. que o facto D. deve ser julgado provado, suportando a impugnação no depoimento da testemunha EE, que aludiu à existência de um limoeiro no terreno e referiu que o A. continuou a cuidar do terreno como os seus pais o haviam feito.
Auditado o depoimento da referida testemunha, conclui-se que produziu, efetivamente, as afirmações indicadas pelos AA., porém, como decorre da motivação da resposta em apreço, houve prova em sentido não convergente com o exposto, a saber, as declarações do A. e o depoimento da testemunha LL, e na análise crítica e conjugada da prova o Tribunal a quo entendeu julgar este facto não provado, apontando as respetivas razões.
Ora, na impugnação deste facto os AA. nada alegam que coloque em causa quer a credibilidade das declarações do próprio A., quer do depoimento da testemunha LL, e a valoração efetuada pelo Tribunal a quo afigura-se razoável, porquanto alicerçou a sua decisão sobre as declarações do próprio A. e da testemunha cujo depoimento converge com aquelas declarações.
Deve, consequentemente, manter-se o facto D. no elenco da matéria de facto não provada.
IV – Fundamentação de direito
1. No caso em apreço pretendem os AA. que se julgue os mesmos adquiriram, por usucapião, a propriedade da parcela de terreno de 400m2 em discussão nos autos.
O Tribunal a quo julgou a ação improcedente.
No presente recurso sustentam os AA. que deve aquela sentença ser revogada, o que fazem, em primeira linha, com suporte na alteração da decisão de facto, e, subsidiariamente, invocam a existência de erro de julgamento na decisão que aplicou o direito aos factos.
Advogam os AA. que devem ser somadas as duas posses, isto é, a dos pais do A. e a dos AA., invocando o instituto da acessão na posse, previsto no artigo 1256.º do Código Civil.
Ora, atendendo a que a impugnação da decisão de facto não mereceu acolhimento, cumpre apreciar se se verifica o aludido erro de julgamento.
2. Usucapião e acessão da posse
Nos termos do artigo 1316.º do Código Civil, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei, entre os quais se encontra a usucapião, que se traduz na aquisição do direito a cujo exercício corresponde a atuação do possuidor, derivada da posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo (artigo 1287.º do Código Civil).
O Código Civil consagrou uma conceção subjetiva da posse, exigindo, para além do corpus – domínio de facto sobre a coisa traduzida no exercício efetivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício, o animus – intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela (artigo 1251.º do Código Civil; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1987, p. 5).
Estabelece-se no artigo 1296º do Código Civil que, em caso de falta de título, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos se a posse for de boa fé, e de vinte anos se for de má fé.
Diz-se não titulada a posse se não for fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico, não se presumindo a existência de título (artigo 1259.º do Código Civil), pelo que não é titulada a posse fundada em negócio jurídico inválido por vício de forma (Armando Triunfante, Comentário ao Código civil: direito das coisas, coord. de Henrique Sousa Antunes, Lisboa, 2021, p. 41).
Por outro lado, a acessão da posse encontra-se prevista no artigo 1256.º do Código Civil, consistindo na possibilidade de adicionar o tempo de posse exercido por um possuidor ao tempo de posse exercido por outro possuidor imediatamente subsequente, de modo que em conjunto se complete o prazo necessário para a aquisição do direito de propriedade por usucapião.
A condição essencial para que se dê a acessão da posse é a de que se verifique a transmissão inter vivos da posse do primitivo possuidor para o subsequente (n.º 1 do artigo 1256.º do Código Civil), discutindo-se depois se aquela transmissão exige um negócio válido ou não.
No primeiro sentido, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08.02.2018 (Álvaro Rodrigues) (Processo n.º 642/14.7T8GRD.C1.S1), do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.04.2022 (João Moreira do Carmo) (Processo n.º 1202/18.9T8CBR.C2), e do Tribunal da Relação do Porto de 13.06.2023 (Maria da Luz Seabra) (Processo n.º 482/11.5TYVNG-X.P1) (todos in http://www.dgsi.pt/).
No segundo sentido, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2016 (Nuno Cameira) (Processo n.º 322/13.0TBTND.C1.S1) e de 09.03.2022 (António Magalhães) (Processo n.º 263/16.0T8CSC.L1.S1), do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.12.2020 (Barateiro Martins) (Processo n.º 1757/17.5T8CVL.C1), e do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.03.2025 (João Peres Coelho) (Processo n.º 1909/21.3T8VRL.G1) (todos in http://www.dgsi.pt/).
A exigência de um título válido filia-se nas posições assumidas, na doutrina, por Manuel Rodrigues (A Posse, 4ª ed., Coimbra, 1996, pp. 252-253), no domínio do Código Civil de 1867, e por Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., p. 14), na vigência do Código Civil de 1966.
A dispensa desse requisito filia-se, na doutrina, nas posições assumidas por Menezes Cordeiro (A Posse: Perspetivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed., Coimbra, 2000, pp. 131-137) e Vassalo Abreu («Necessidade de uma Mudança Jurisprudencial em Matéria de Acessão de posse», in Revista da Ordem dos Advogados, Out./Dez. 2012, pp. 1247-1322), essencialmente.
Menezes Cordeiro (ob. cit., p. 137) aponta os seguintes argumentos em suporte da posição que defende:
“- não tem base na lei; subjacente a esta está apenas uma transmissão da posse, a efectuar nos moldes próprios por que esta se transfere: não se exige qualquer acto válido mas, apenas, tradição ou constituto;
- não tem apoio na evolução histórica, que visa facilitar a usucapião;
- não tem argumentos explícitos nem apoio na doutrina estrangeira, principalmente na italiana, fonte do artigo 1256º do Código Civil;
- iria impedir a usucapião nos casos de falta de título e de boa fé.
Este último ponto merece ser pensado: constitui a contraprova de quanto se vem afirmando.
O Código Civil vigente admite a usucapião baseada em posse titulada e de má fé – cf. 1296º. Ora nestes casos, nunca poderia haver acessão na posse: não havendo título ou registo do mesmo, nenhum notário lavraria a competente escritura. Seria um espantoso retrocesso histórico. Não se pode ter por admitido.”
Em alinhamento com esta posição, concluiu-se no acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.12.2020 que:
“4 - Um possuidor atual pode juntar (acessão da posse do art. 1256.º do C. Civil) a sua posse à posse do seu antecessor, caso tenha adquirido a posse deste por qualquer um dos modos de transmissão da posse que o direito reconhece (a tradição e o constituto possessório), independentemente da validade (formal e substantiva ou apenas formal) do título de transmissão.
5 - Não há fundamento, no direito português atual, para afirmar que, à luz do art. 1256.º/1 do CC, deve haver um “vínculo/negócio jurídico” formalmente e substantivamente válido entre o novo e o antigo possuidor, na medida em que o regime vigente da usucapião prescinde da existência de título, bem como da boa fé (o possuidor sem título e de má fé também usucapem; o prazo é maior, mas também beneficiam da usucapião).”
Adicionalmente, apesar do princípio, em matéria de acessão da posse, ser o de que as posses devem ser homogéneas, contempla-se no n.º 2 do artigo 1256.º do Código Civil um desvio, consagrando-se a solução de que se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito (Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem).
A diversa natureza da posse afere-se com respeito às características da posse que são legalmente relevantes, o mesmo é dizer, a posse de um proprietário é diferente da posse de um direito real menor, assim sucedendo também com a posse titulada ou não titulada, de boa ou má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (Armando Triunfante, idem, p. 34).
3. O caso concreto
3.1. Na sentença recorrida afirma-se que a venda verbal de uma parcela de terreno com a área de 400m2, efetuada por DD aos pais do A., no início dos anos 80 (facto provado 2.), é nula, por vício de forma (artigos 875.º e 220.º do Código Civil).
No entanto, em 1991, os AA. formalizaram por escritura pública a compra a DD do prédio onde se integrava a aludida parcela, data na qual os pais do A. lhe deram verbalmente a referida parcela (factos provados 6. e 7.).
Tal doação é nula por vício de forma (artigos 947.º, n.º 1 e 220.º do Código Civil).
Ainda que se admitisse que os pais do A. haviam adquirido a posse da parcela, não obstante esse vício de forma (artigo 1263.º, alínea b) do Código Civil), e que se considerasse ilidida a presunção de que a posse é de má-fé, por ser não titulada (artigos 1260.º, n.º 2 e 350.º, n.º 2 do Código Civil), em 1991 não se haviam ainda completado 15 anos sobre a data de aquisição da posse (artigo 1296.º do Código Civil), pelo que nessa data os pais do A. não eram os proprietários da parcela.
Logo, não lhes assistia legitimidade substantiva para darem a parcela ao A., ou seja, tratou-se, adicionalmente, de uma doação de bem alheio, portanto, nula (artigo 956.º, n.º 1, 1ª parte do Código Civil).
De todo o modo, os AA. ingressaram na titularidade do direito de propriedade da parcela, bem como da área remanescente do prédio onde esta se integra, por via do contrato de compra e venda celebrado com DD, nos termos do artigo 879.º, alínea a) do Código Civil.
No que tange à posse, a entrega da coisa, que constitui um efeito essencial do contrato (artigo 879.º, alínea b) do Código Civil), opera a transmissão da posse da mesma para o comprador (artigo 1263.º, alínea b) do Código Civil), pelo menos, no que tange à área remanescente do prédio.
Os AA. começaram, de seguida, a utilizar a aludida parcela, ainda que não esteja provado que lhe tenham dado o mesmo exato uso que os pais do A., bem como passaram a usar a área do prédio que excedia a parcela, ou seja, passaram a usar todo o prédio que lhes foi vendido por DD (factos provados 7. e 9.).
Está ainda provado que a parcela nunca foi desanexada do prédio onde se integra (facto provado 8.).
Em 2008 e 2009, os AA. declararam perante a Fazenda Pública e a Câmara Municipal, respetivamente, que a composição e os limites do prédio onde se integrava a parcela eram os que constavam do cadastro do IGT, o que significa que apontaram essa parcela como estando incluída na área de tal prédio (factos provados 10. a 12.).
É este prédio que vem a ser penhorado em 2012, no âmbito de uma execução fiscal, onde foi adjudicado ao R. (factos provados 13. a 14.).
3.2. Ora, decorre da matéria de facto provada que os AA. passaram a comportar-se, desde a data da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio onde se integra a parcela, como se fossem seus donos, atuando sobre a parcela e sobre toda a área remanescente do prédio com essa intenção.
Assim, para aqueles que defendem a necessidade de um título válido para aquisição da posse, os pais do A. não adquiriram a posse da parcela no início dos anos 80, pelo que DD não perdeu a posse da parcela nessa data e transmitiu-a aos AA. em 1991, e o prazo de aquisição por usucapião ter-se-ia completado 15 anos depois, portanto, antes de 2012, data da penhora do prédio.
Para aqueles que dispensam aquele requisito, os pais do A. entraram na posse da parcela no início dos anos 80 e transmitiram-na aos AA. em 1991, e por via da acessão, o prazo de aquisição por usucapião ter-se-ia completado 15 anos depois, portanto, antes de 2012, ou seja, alcançar-se-ia o mesmo resultado prático, independentemente da orientação perfilhada sobre a questão da aquisição da posse.
Mas a objeção levantada pelo Tribunal a quo é inteiramente pertinente: “nenhum acto para o exterior foi dado no sentido de se manter a posse sobre aquela parcela de terreno independentemente da restante área do prédio rústico adquirido pelos Autores a DD.”
Efetivamente, o que os AA. pretendem, em termos práticos, é que se proceda ao destaque de uma parcela do prédio cuja propriedade adquiriram.
Porém, nada consta da matéria de facto provada que permita concluir que essa parcela se encontra numa situação distinta da área remanescente do prédio, pelo contrário, a propriedade da parcela foi adquirida pelos AA. conjuntamente com a área remanescente; a parcela foi usada pelos AA., tal como a área remanescente, não se vislumbrando que o uso da parcela possua qualquer particularidade que o diferencie do uso da parte remanescente do prédio; e, inclusivamente, os AA. declararam, perante entidades oficiais, que o prédio em causa integrava tal parcela.
Ou seja, a circunstância dos pais do A. terem começado a usar essa parcela em data anterior ao contrato de compra e venda celebrado pelos AA. não atribuiu ao subsequente uso da parcela pelos AA. uma configuração distinta do uso da área remanescente do prédio, que permita isolar e separar essa posse, aliás, atendendo a que o prédio pertencia integralmente aos AA., assistia-lhes o direito de o usarem da forma que melhor lhes aprouvesse, atenta a plenitude inerente ao direito de propriedade (artigo 1305.º do Código Civil).
Sublinhe-se ainda que os AA. eram os proprietários de todo o prédio, incluindo a parcela, tendo adquirido esse direito por modo formal e substantivamente válido, consubstanciado em contrato de compra e venda outorgado por escritura pública, no qual interveio como transmitente o então proprietário do bem, pelo que os AA. tinham um título legítimo de aquisição da propriedade da parcela, nos termos do artigo 1316.º do Código Civil, não encontrando justificação a invocação de uma forma de aquisição originária a favor de quem já é proprietário no âmbito de uma forma de aquisição derivada.
Em face do exposto, cumpre concluir que não estão provados factos que consintam que se opere o destaque da parcela de 400m2 do prédio em causa, pelo que deve ser confirmada a sentença, improcedendo o recurso.
4. Custas
As custas do recurso são da responsabilidade dos AA., em virtude de ser o mesmo julgado improcedente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), mas os AA. estão dispensados do seu pagamento, por virtude do apoio judiciário de que beneficiam.
V – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos AA., que se encontram dispensados do seu pagamento, por virtude do apoio judiciário de que beneficiam.
Notifique e registe.
Sónia Moura (Relatora)
Maria João Sousa e Faro (1ª Adjunta)
José António Moita (2º Adjunto)