SUMÁRIO (art.º 663º, n.º 7, do CPC):
I. Estando em causa a interpretação da declaração negocial de um contrato formal, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, salvo se tal sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma de negócio se não opuserem a essa validade.
II. Não estando provado que a vontade das partes fosse outra, a declaração formal deve valer com o sentido lógico e contextual que, em abstracto, um declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição concreta do real declaratário, em face das circunstâncias conhecidas, atribui ao teor do acordo escrito.
III. Tendo as partes previsto o encerramento do estabelecimento comercial em data certa, a entrada em mora no cumprimento desta obrigação não carece de interpelação judicial prévia.
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Cível de Santiago do Cacém
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1ª Adjunta: Ana Pessoa;
2ª Adjunta: Maria Adelaide Domingos.
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I. RELATÓRIO
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A.
Na presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum que propôs contra AA, BB e SUMMERTIME UNIPESSOAL, LDA, NIPC, veio a FREGUESIA DE Local A pedir a condenação dos Réus:
a) A reconhecer o direito de propriedade da “Loja 1” também designada por “Talho 1” sito no Mercado Municipal de Local A, em Local A, inscrito na matriz predial da freguesia de Local A, concelho de Cidade 1, sob o artigo 1175, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 com o n.º 01010/240496, ao proprietário Município de Cidade 1, competindo a gestão do mesmo à Autora em resultado do “Acordo de Execução” celebrado entre o Município de Cidade 1 e a Freguesia de Local A, no âmbito da delegação de competências consagrado na Lei 75/2013 de 12 de Setembro;
b) A absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou diminuam o gozo da mesma por parte da Autora.
c) A entregar à Autora, livre de pessoas e bens a loja supra identificada.
d) A pagar à Autora a quantia de € 15.345,00 a título de compensação pecuniária compulsória pelo atraso na entrega da referida loja.
e) A pagar à Autora a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, relativa à compensação pecuniária compulsória por cada dia de atraso até efectiva entrega da loja livre e devoluta de pessoas e bens exceptuando o já liquidado.
Alegou para o efeito que é responsável pela gestão da “Loja 1”, também designada por “Talho 1”, sita no Mercado Municipal de Local A, propriedade do Município. Em 12 de Março de 2017, foi decidido aceitar propostas de interessados para arrendamento, tendo sido deliberado, em 4 de Abril de 2017, arrendar a loja em apreço ao primeiro Réu AA, o que se concretizou por contrato de concessão formalizado a 9 de Junho de 2017 com efeitos a dia 1 desse mesmo mês, sendo a actividade a desenvolver de “Churrascaria”.
Em 6 de Maio de 2019, a terceira Ré remeteu carta à Autora onde alegava ter ocorrido uma alteração da actividade da loja “Talho nº 1” e, bem assim, uma cessão contratual de inquilino (do réu AA para a ré Summertime) que pelo menos desde tal data ocupa a mencionada loja, o que fez à revelia da vontade da Autora. A 30 de Maio de 2019 foi deliberado, em reunião extraordinária da Freguesia de Local A, resolver o contrato de concessão por violação do disposto nas cláusulas 5ª e 6ª do contrato de concessão e dos disposto nos artigos 12º, 13º, 15º e 17º do Regulamento dos Mercados Municipais do Concelho de Cidade 1, o que foi comunicado ao Réu AA por carta de 30 de Maio de 2019, com a informação que a loja deveria ser entregue totalmente livre e devoluta de pessoas e bens no prazo máximo de 30 dias, o que não foi feito.
No dia 1 de Julho de 2019, os Réus intentaram contra a Autora providência cautelar de suspensão de eficácia de acto administrativo, a qual correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, sob o n.º 1598/19.5..., visando o acto de despejo acima descrito, a qual veio a ser declarada extinta por sentença datada de 27 de Fevereiro de 2020, com trânsito em julgado em 3 de Junho de 2020. Nessa sequência, a Autora aceitou celebrar um acordo com os Réus, visando a regularização da dívida existente, nomeadamente a relativa às custas de parte do processo que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal, devendo a loja ser entregue livre e devoluta até ao dia 15 de Outubro de 2020, o que os Réus igualmente não fizeram, mantendo-se a ocupar a loja.
B.
Os Réus contestaram.
Excepcionaram: a ilegitimidade da Autora para peticionar o reconhecimento do direito de propriedade do Município; a ineptidão da petição inicial, uma vez que a Autora peticiona o reconhecimento do direito de propriedade de uma loja, o que colide com a descrição predial; o conhecimento e a aceitação pela Autora, da transmissão da cessão da posição contratual para a Ré Summertime, em nome de quem passou a emitir os recibos comprovativos dos pagamentos das rendas.
Invocou que a Autora não junta a notificação para a resolução datada de 30 de Maio de 2019 e impugnou o âmbito do acordo celebrado de regularização da dívida, mantendo que visava apenas o pagamento da pendente e o prosseguimento da actividade desenvolvida.
C.
Admitida a intervenção provocada activa do Município de Cidade 1, suscitada pela Autora, veio o primeiro juntar articulado (ref.ª Citius 7090241 de 01.03.2023).
D.
Realizada a audiência prévia e o julgamento, foi proferida sentença que decidiu de facto e de direito, julgando parcialmente procedente por provada a presente acção, com o seguinte dispositivo:
“A) Reconheço o direito de propriedade da “Loja 1” também designada por “Talho 1” sito no Mercado Municipal de Local A, em Local A, inscrito na matriz predial da freguesia de Local A, concelho de Cidade 1, sob o artigo 1175, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 com o n.º 01010/240496, ao proprietário Município de Cidade 1, competindo a gestão do mesmo à autora em resultado do “Acordo de Execução” celebrado entre o Município de Cidade 1 e a Freguesia de Local A, no âmbito da delegação de competências consagrado na Lei 75/2013 de 12 de Setembro;
B) Condeno os Réus a entregar à autora, livre de pessoas e bens a loja supra identificada.
C) Condeno os Réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou diminuam o gozo da mesma por parte da autora.
D) Absolvo os Réus dos restantes pedidos formulados, designadamente na condenação em compensação pecuniária compulsória pelo atraso na entrega da loja.
Custas a suportar por Autora e Réus na proporção de 30% e 70%. (…)”
E.
Inconformado, o Réu BB recorreu, concluindo as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem negrito da origem):
“A - O único “thema decidendum” consiste na “A obrigação de entrega da loja pelos Réus”
B - O Tribunal “a quo” faz uma errada interpretação á luz do direito aplicável, quando considera que o acordo que visava regularizar as dívidas referentes a períodos de renda anteriores a Julho de 2020, e que a loja encerrará em 15 de outubro, e venha a concluir ser 15 de Outubro de 2020 a data para entrega do imóvel acrescendo, que inexiste necessidade de qualquer interpelação prévia.
C - A sentença recorrida deveria ter decidido, que só se torna dispensável a interpelação “em caso de incumprimento por parte dos OUTORGANTES do plano de pagamentos”, não quando este plano foi cumprido, situação que obriga a interpelação, nada no texto do acordo resultando em abono da tese sufragada por MMª Juiz de Direito.
D - Não tendo os recorrentes dado azo a qualquer incumprimento como ficou provado, já que pagaram pontual e na globalidade as quantias descritas no ponto 2º do acordo e sob a forma aí prevista, forçoso é concluir que a sentença sob o crivo recursivo incorreu em erro de julgamento no que tange à matéria de direito.
E - O Tribunal “a quo”, deveria ter sentenciado, com o respeito pela ilustre Magistrada subscritora da sentença, que a interpelação seria condição “sine qua non” para a entrega do imóvel, ao abrigo do disposto no artigo 805º nº 1 do Código Civil.
F - Como deflui da jurisprudência firmada no Venerando Supremo Tribunal de Justiça
I - A interpretação do negócio jurídico com recurso aos critérios legalmente fixados nos arts. 236º e segs. do CC, quando as instâncias não apuraram a vontade real dos contraentes é matéria de direito estando, por isso, sujeita ao controle do STJ. (cfr. o Acórdão do STJ nº 314/11.4TCFUN.L2.S1 de 07/11/2019).
G - O contrato “Acordo” deve ser entendido à luz de direito aplicável, porque é de direito que se trata, como de pagamento e em caso de incumprimento do pagamento, aí sim, é que se torna dispensável a interpelação, à face do artigo 805º nº 1 do Código Civil.
H - O Tribunal “a quo” teria de ser considerado que à luz da regra normativa contida neste preceito a entrega do imóvel carece de interpelação, e como essa interpelação nunca ocorreu por parte da entidade ora recorrida, “A obrigação de entrega da loja pelos Réus” tema que constitui objecto do presente recurso, não tinham os recorrentes qualquer obrigação de entrega da loja identificada em A) dos Factos provados. (…)”.
Pugnou pela revogação da sentença recorrida.
F.
O Município de Cidade 1 respondeu ao recurso do Réu, considerando que deve ser mantida a sentença proferida, pois estamos perante uma obrigação convencionada com prazo certo - 15.10.2020 - quanto ao termo para entrega da loja dos autos e, ainda que se considerasse necessária alguma interpelação, sempre a citação para a presente acção produziria esse efeito, competindo ao tribunal fixar a data de entrega como fez no conteúdo decisório da sentença proferida.
G.
Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
H.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
No caso vertente, são as seguintes as questões suscitada pelo recurso:
1. Se o acordo celebrado entre as partes dispensava, ou não, a Autora de interpelar o(s) Réu(s) para poder exigir destes a entrega da Loja 1; e
2. Se, caso o tribunal conclua pela necessidade de interpelação, esta deve considerar-se regularmente cumprida pela citação dos Réus para os termos da presente acção.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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Reprodução integral dos factos provados e não provados da decisão da matéria de facto como constam da sentença sob recurso (sem negrito e itálico da origem):
“(…) Factos Provados
A) A Autora é responsável pela gestão do espaço comercial designado por “Loja 1” também designada por “Talho 1” sito no Mercado Municipal de Local A, em Local A, inscrito na matriz predial da freguesia de Local A, concelho de Cidade 1, sob o artigo 1175 descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 com o n.º 01010/240496.
B) O prédio é propriedade do Município de Cidade 1 e adveio à propriedade deste por cedência em processo de loteamento para construção urbana, o qual se encontra definitivamente inscrito a seu favor.
C) No prédio em causa encontra-se instalado e em funcionamento o Mercado Municipal de Local A e bem ainda do espaço designado por “Loja 1” ou “Talho 1”, a que corresponde uma das 19 lojas que integram o edifício em causa.
D) A gestão do imóvel compete integralmente à Autora, em resultado do “Acordo de Execução” celebrado entre o Município de Cidade 1 e a Freguesia de Local A, celebrado no âmbito da delegação de competências consagrado na Lei 75/2013 de 12 de Setembro.
E) Em 12 de Março de 2017 foi decidido pela Freguesia de Local A, aceitar propostas de potenciais interessados para o arrendamento de duas lojas no mercado municipal de Local A, pelo que em 20 de Março de 2017 foi dado conhecimento de tal através do Edital 01/2017.
F) Recebidas diversas propostas, para ambas as lojas, procedeu a Autora, em 4 de Abril de 2017 à abertura das propostas, tendo sido deliberado arrendar a loja denominada “Talho nº 1” ou “Loja 1” ao aqui primeiro réu, AA.
G) Em 9 de Junho de 2017, com efeitos retroagidos a 1 de Junho de 2017, foi celebrado com o Réu AA o contrato de concessão da loja “Talho 1”, sendo a actividade a desenvolver na mesma de Churrascaria.
H) Em 6 de Maio de 2019, veio a terceira Ré Summertime Unipessoal, Lda, através de mandatário constituído, remeter uma carta à Autora onde alegava ter ocorrido uma alteração da actividade da loja “Talho nº 1”, bem assim como uma cessão contratual de inquilino (do réu AA para a ré Summertime).
I) Em 30 de Maio de 2019 foi deliberado em reunião extraordinária da Freguesia de Local A, “resolver o contrato de concessão celebrado em 09.06.2017, que teve inicio em 1.07.2017, na sequência da adjudicação realizada em conformidade com o disposto no edital n.º 1/2017 desta freguesia.
J) Os fundamentos de resolução são a violação do disposto nas cláusulas 5º e 6º do referido contrato, bem como nos artigos 12º, 13º, 15º e 17º do Regulamento dos Mercados Municipais do Concelho de Cidade 1, que é parte integrante do contrato que ora se resolve.
K) Assim o imóvel deverá ser entregue, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens no prazo máximo de 30 dias contados desde a data da recepção desta comunicação. Enviar carta registada com aviso de recepção ao Sr. AA e ao seu advogado CC.”
L) Em 1 de Julho de 2019, os réus, intentaram uma Providência cautelar de suspensão de eficácia de acto administrativo, contra a autora, a qual correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, sob o nº 1598/19.5..., visando o acto administrativo de despejo, a qual veio a ser declarada extinta por sentença datada de 27 de Fevereiro de 2020, com trânsito em julgado em 3 de Junho de 2020,
M) Em 13 de Julho de 2020, Autora e Réus subescreveram o doc. 9 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido denominado “Acordo no âmbito de contrato de concessão e regularização de dívida” no qual, além do mais, declararam que “os outorgantes e concessionária acordam no pagamento de todas as quantias de que os outorgantes são devedores e que a loja encerrará em 15 de Outubro se forem efectuados os pagamentos com a pontualidade consignada no presente acordo, pagando as rendas até essa data e todos os demais valores em dívida, o que é aceite.”
2.2. Factos Não provados
1) Em Dezembro de 2018 ocorreu a cessão da posição contratual de inquilino/concessionário, para a Sociedade Summertime Unipessoal Lda., aceite pela Junta de Freguesia que passou a emitir os recibos de renda.
2) A Junta de Freguesia não manifestou qualquer oposição à mudança de ramo da loja, como não manifestou qualquer oposição à cessão contratual de inquilino,
3) As guias de recebimento das rendas foram emitidas a BB até Dezembro de 2018, sendo que, a partir de Janeiro de 2019 em nome de Summertime, Unipessoal Lda. (…)”
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B. De direito
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Da interpretação do acordo celebrado entre as partes
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Sustenta o Recorrente que o acordo celebrado entre as partes deve ser interpretado no sentido de que só se torna dispensável a interpelação dos Réus em caso de incumprimento do plano de pagamentos pelos outorgantes. Ou, dito de outro modo, em vez de se considerar que inexiste necessidade de interpelação prévia para entrega do imóvel a partir de 15 de Outubro de 2020 como fez a sentença recorrida, deve ser entendido que tal interpretação se mostra necessária enquanto a Requerida mantiver o pagamento do plano de amortização. Não tendo ainda ocorrido tal interpelação, deveria o pedido de entrega do imóvel ter sido julgado improcedente.
Como lembram PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, a nossa ordem jurídica consagra a doutrina objetivista da interpretação e integração do negócio jurídico, temperada por restrição de inspiração subjetivista (in “Código Civil Anotado”, volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 223, anotação 2 ao artigo 236º).
A regra, prevista pelo artigo 236º do Código Civil, consiste em que o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante (excetuando-se os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n.º 1), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.º 2)).
Como consta da fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.04.2024, relatado pelo Juiz Desembargador Carlos Gil no processo n.º 2353/22.0T8VLG-A.P1:
“A interpretação da declaração negocial é assim necessariamente contextual pois que além da declaração propriamente dita há que relevar todos os elementos que possam auxiliar na determinação do sentido da declaração negocial, como seja: “(i) o contexto negocial em que a declaração aparece; (ii) eventuais antecedentes próximos ou elementos preparatórios; (iii) o ambiente ou contexto externo, de facto e jurídico, em que a declaração é emitida; (iv) a finalidade da declaração (ou negócio); (v) o tipo de negócio em causa, bem como os valores e interesses em jogo; (vi) as práticas negociais gerais, os usos, especialmente relevantes no comércio internacional, e as conceções do tráfico que tenham relação com o negócio em causa; (vii) a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, se existir; (viii) o modo como a declaração ou o negócio em que se integra vem sendo executado” Citação extraída do Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª edição revista e atualizada, UCP Editora 2023, página 647, parte final da anotação II ao artigo 236º do Código Civil, da responsabilidade de Evaristo Mendes e Fernando Oliveira e Sá.” 1
No caso dos contratos formais, de acordo com o disposto no artigo 238º do Código Civil, “…não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” (cfr. n.º 1) e excepto se tal sentido “…corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma de negócio se não opuserem a essa validade” (cfr. n.º 2).
Na síntese feliz apresentada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01.02.2018, relatado por Pedro Damião e Cunha no processo n.º 1703/15.0T8BCL.G2, o regime da interpretação dos contratos pode ser resumido “…nos seguintes pontos:
1. Em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (art. 236º, nº 2 do CC);
2. Se tal vontade real não for conhecida, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, colocado na posição R. declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
3. No domínio da interpretação de um contrato surgem como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos;
4. Nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso - não se aplicando, no entanto, tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (art. 238º, nº 2 do CC);”. 2
No caso dos autos está em causa a interpretação de uma declaração negocial de um negócio jurídico formal (artigo 714º do Código Civil), razão pela qual, a declaração não poderá valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do Código Civil), salvo se tal sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (artigo 238º, nº 2, do Código Civil).
Tendo presentes estes ensinamentos, atentemos agora no escrito de 13.07.2020, intitulado “Acordo no âmbito de contrato de concessão e regularização de dívida”, junto como documento n.º 9 da p.i., no qual figuram como primeira, segundo e terceiro Outorgantes, os aqui Réus “Summertime”, BB e AA, e como Concessionária a “Freguesia de Local A”.
Tem, entre outro, o seguinte teor:
“1. A concessionária em 1 de junho de 2017, concessionou ao terceiro outorgante a Loja designada por Loja 1, sita no mercado municipal de Local A.
2. A concessionária, em 30 de maio de 2019, deliberou resolver o contrato de concessão da Loja 1, por violação do disposto nas cláusulas 5ª e 6ª do contrato de concessão e dos disposto nos artigos 12º, 13º, 15º e 17º do Regulamento dos Mercados Municipais do Concelho de Cidade 1, tendo notificado tal decisão ao terceiro outorgante por carta registada com aviso de receção datada de 30 de maio de 2019, informando igualmente que a loja deveria ser entregue totalmente livre e devoluta de pessoas e bens no prazo máximo de 30 dias.
3. Os outorgantes, em 1 de julho de 2019, intentaram uma Providência cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo, contra a concessionária, a qual correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, sob o nº 1598/19.5..., visando o ato administrativo de despejo acima melhor descrito, a qual veio a ser declarada extinta por sentença datada de 27 de fevereiro de 2020, com trânsito em julgado em 3 de junho de 2020.
4. Os outorgantes foram condenados, no âmbito da referida sentença em custas, pelo que os mesmos são devedores à concessionária do montante de € 612,00 (seiscentos e doze euros) a título de custas de parte, conforme reclamação de custas de parte datada de 9 de março de 2020.
5. Até à presente data os outorgantes ainda não procederam a entrega da Loja 1, livre e devoluta de pessoas e bens à concessionária, pelo que aceitam e reconhecem os mesmos serem solidariamente devedores de todas as rendas não pagas desde junho de 2019, no montante mensal de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros).
6. Os outorgantes e a concessionaria acordam no pagamento de todas as quantias de que os outorgantes são devedores e que a loja encerrará em 15 de outubro se forem efetuados os pagamentos com a pontualidade consignada no presente acordo, pagando as rendas até essa data e todos os demais valores em dívida, o que é aceite.
É livremente de boa-fé elaborado o presente ACORDO, nos termos seguintes:
PRIMEIRO
(Reconhecimento de dívida)
OS OUTORGANTES, solidariamente, reconhecem a dívida acima mencionada e compromete-se a efectuar o respectivo pagamento do montante total de € 11.012,00 (onze mil e doze euros), nos termos a seguir indicados.
SEGUNDO
(Forma de pagamento)
1. Para pagamento de parte da dívida referida no parágrafo anterior, os OUTORGANTES efetuam na data de assinatura do presente documento o pagamento da quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), só podendo aceder à Loja 1, após a assinatura do presente e boa receção por parte da concessionária do montante referido.
2. Os OUTORGANTES obrigam-se a efetuar dois pagamentos, no montante de € 3.756,00 (três mil, setecentos e cinquenta e seis euros) cada um, sendo um efetuado até ao dia 3 de agosto de 2020 e outro até ao dia 3 de setembro de 2020.
TERCEIRO
(Incumprimento)
Em caso de incumprimento por parte dos OUTORGANTES do plano de pagamentos estabelecido no parágrafo Segundo do presente Acordo, os outorgantes reconhecem que a CONCESSIONÁRIA é livre de, imediatamente e sem necessidade de qualquer interpelação proceder ao imediato encerramento de qualquer atividade comercial que esteja a ser desenvolvida na Loja 1 do Mercado Municipal de Local A e tomar posse efetiva desta, renunciando desde já os OUTORGANTES ao direito de deduzirem oposição à execução que lhe for movida que tenha por objeto a cobrança da dívida exequenda e ações de indemnização por factos relativos ao objeto do presente acordo.
QUARTO
(Força executiva)
A presente declaração tem força executiva, nos termos do artigo 703.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, podendo a mesma servir de base à execução caso se verifique o incumprimento da primeira ou qualquer outra prestação acordada.
QUINTO
(Encargos)
(…)
SEXTA
(Foro)
(…).
A presente Declaração é feita em quadruplicado, ficando um exemplar na posse de cada um dos outorgantes e outro exemplar na posse da Concessionária. (…)”
*
Da leitura do considerando prévio n.º 6 do documento em apreço decorre, em termos inequívocos que os Outorgantes e a Concessionária acordaram no encerramento da loja no dia 15 de Outubro, ainda que fossem efectuados os pagamentos das rendas até essa data e todos os demais valores em dívida com a pontualidade consignada no acordo.
Embora o texto do considerando n.º 6 não indique o ano do encerramento da loja, resulta do teor dos considerandos prévios n.ºs 4 e 5 e da cláusula Primeira que o valor de € 11.012,00 cujo pagamento foi assumido pelos Outorgantes, corresponde ao somatório de € 612,00 a título de custas de parte com € 10.400,00 que é o valor conjunto de 16 dezasseis rendas mensais unitárias de € 650,00 não pagas desde Junho de 2019.
Isto significa que as partes previram o pagamento de apenas 16 rendas mensais vencidas e vincendas, desde Junho de 2019 até encerramento da loja, o que coincide com o mês de Outubro do ano de 2020.
Sendo esta a interpretação que deflui, lógica e contextualmente, do teor do acordo e que, em abstracto, lhe atribuiria um declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição concreta do real declaratário, em face das circunstâncias conhecidas – aliás, descritas nos considerandos prévios –, só poderia reconhecer-se um sentido diferente, “imperfeitamente expresso”, se tivesse resultado dos autos que este fosse correspondente “…à vontade real das partes e as razões determinantes da forma de negócio se não…” opusessem “…a essa validade”. 3
A verdade é que nenhum facto provado permite inferir que a vontade das partes que subscreveram a redacção da supra transcrita declaração, tivesse sido distinta daquela que da leitura contextual se alcança em conformidade com a doutrina da impressão do destinatário.
Devemos, por isso, assentar que a data prevista no acordo para o encerramento da loja é o dia 15 de Outubro de 2020.
De acordo com o disposto na al.ª a) do n.º 2 do artigo 805º do CC, estando perante uma obrigação com prazo certo, há mora do devedor, independentemente de interpelação, judicial ou extrajudicial, para cumprir.
Assim, concluímos que a Autora não carece de interpelar os Réus para exigir destes a entrega da loja, tanto mais que, como bem nota a decisão recorrida, se mostra já consolidada no ordenamento jurídico a resolução do contrato aprovada em Assembleia Extraordinária da Freguesia, oportunamente notificada.
*
Como nota final, ainda que o entendimento deste tribunal tivesse sido no sentido de que se impunha a interpelação dos Réus para a entrega da loja à Autora, sempre a citação dos Réus para os termos da presente acção constituiria inequívoca manifestação dessa intenção da Autora, uma declaração receptícia de interpelação judicial para o efeito da entrega da loja, expressamente admitida pelo n.º 1 do artigo 805º do Código Civil. 4
*
Fenecendo os argumentos aventados pelo Recorrente quanto às questões suscitadas nas conclusões recursivas, deve manter-se o sentido da decisão recorrida.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (art. 4º, n.º 2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, o Recorrente não obteve vencimento no recurso, pelo que devem as respectivas custas ser por si suportadas.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1.
Julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
2.
Condenar o Recorrente nas custas do presente recurso.
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Notifique.
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***
Évora, d.c.s.
Os Juízes Desembargadores:
Ricardo Miranda Peixoto;
Ana Pessoa; e
Maria Adelaide Domingos.
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1. Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7bb9e94d3b0308c580258b1d00476812?OpenDocument↩︎
2. Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/4c470fb925e95748802582400035e56a?OpenDocument↩︎
3. Com CALVÃO DA SILVA in “Estudos de Direito Comercial”, 1996, págs. 102 e ss., “…o alcance decisivo da declaração será aquele que em abstracto lhe atribuiria uma declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição concreta do real declaratário, em face das circunstâncias que este efectivamente conheceu e das outras que podia ter conhecido, maxime dos termos da declaração, dos interesses em jogo e seu mais razoável tratamento, da finalidade prosseguida pelo declarante, das circunstâncias concomitantes, dos usos da prática e da lei.”↩︎
4. A título exemplificativo, entre muitos outros, v. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.06.2021, relatado pelo Juiz Desembargador Jorge Seabra no processo n.º 4105/19.5T8PRT-A.P1.
Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/08cb3d581723890a8025872d003a7daf?OpenDocument↩︎