VENDA POR AMOSTRA
COMPRA E VENDA COMERCIAL
RECLAMAÇÃO
CADUCIDADE
REPRESENTAÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

SUMÁRIO (art.º 663º, n.º 7, do CPC):
I. O contrato de compra e venda mercantil por amostra ou designação de padrão está sujeito à verificação de uma condição negativa, pois só se considera perfeito depois de esgotado o prazo para o comprador reclamar a desconformidade entre a mercadoria entregue e a amostra ou o padrão que lhe serviu de base (cfr. art.ºs 469.º e 471.º do C.Comercial).

II. Impendendo sobre o comprador o ónus de provar a existência da desconformidade e a apresentação de reclamação, constitutivos do seu direito de obstar à perfeição do contrato de compra e venda, é sobre o vendedor que recai o ónus de alegar e demonstrar os factos atinentes à caducidade desse direito, resultante da apresentação da reclamação depois dos oito dias subsequentes ao acto da entrega das coisas vendidas.

III. Com a eliminação, no actual artigo 544º do CPC, da referência “…a uma pessoa colectiva ou a uma sociedade…” outrora prevista no texto do art.º 458º da versão anterior do CPC, a responsabilidade pela litigância de má-fé passou a ser definitivamente das pessoas colectivas ou sociedades, sem que seja necessário comprovar que os seus representantes estivessem de má-fé, assim deixando de existir a responsabilidade substitutiva.

IV. Litiga com má-fé a parte que, em articulado de defesa negou a verificação de factos decisivos para o desfecho da acção alegados pela contraparte, quando resultou provado que tais factos ocorreram e foram praticados por terceiros com o conhecimento da parte da acção que os negou.

Texto Integral

Apelação 98159/24.6YIPRT.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Torres Novas


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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo


Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1º Adjunto: Ana Pessoa;


2º Adjunto: Manuel Bargado.


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I. RELATÓRIO


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A.


Na presente acção proposta como injunção contra VALMONTE CALÇADOS, LDA., veio LAST DISCOVER LDA. pedir a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 5.523,87€, da qual 5.007,33€ correspondentes a capital, 314,54€ a juros de mora vencidos, 100,00€ a «despesas administrativas e de cobrança suportadas pela requerente, nomeadamente, portes de correio, deslocações e honorários de advogados» e 102,00€ a taxa de justiça.


Alegou, para tanto e em síntese, que vendeu e entregou peles à R. pelo preço de 5.007,33€ que lhe faturou em 12.01.2024, sem que esta tenha, até à presente data e apesar de várias interpelações, pago esse valor.


B.


A R. deduziu oposição, defendendo-se por excepção e por impugnação.


Excepcionou que as peles fornecidas pela A. cujo pagamento vem peticionado, não eram iguais à amostra fornecida, nem podiam ser usadas para o fim a que se destinavam, o que a levou a denunciar de imediato a desconformidade ao vendedor da A. AA e este, verificando que a A. não garantia a recolha directa das aludidas peles nas instalações da R., levou-as para as instalações da A., acompanhadas da respectiva nota de devolução que a A. acabaria por devolver por correio.


Pugnou pela sua absolvição do pedido e, subsidiariamente, requereu a condenação da A. a devolver as peles em causa nos autos, sob pena de enriquecimento sem causa.


Pediu a condenação da A. como litigante de má-fé.


C.


Uma vez distribuídos os autos como AECOP e no seguimento de convite que lhe foi dirigido pelo tribunal, a A. apresentou articulado:


- pronunciando-se sobre a matéria de excepção alegada pela R., negando ter recebido reclamação de desconformidade das peles até Abril de 2024, admitindo que nesta data recebeu a nota de devolução junta com a oposição e que a devolveu também por carta, embora aduzindo que foi recebida por carta e não acompanhada das peles;


- negando que AA alguma vez tenha sido seu vendedor ou consigo tenha mantido relação de subordinação, de comissionista ou de qualquer outra natureza, ou que tenha intermediado os negócios entre A. e R.;


- alegando que nos termos das condições de venda expressas no verso da fatura, qualquer reclamação a apresentar pela R. deveria tê-lo sido no prazo de 8 dias a contar da recepção da mercadoria e por escrito; e


- respondendo ao pedido da sua condenação como litigante de má-fé.


D.


Foram proferidos despachos no sentido da inadmissibilidade da reconvenção na presente forma de processo, advertindo as partes de que não seria produzida prova sobre factos alegados para sustentar putativa reconvenção (21.01.2025) e admitindo a junção de prova documental pela Ré (27.02.2025).


E.


Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu de facto e de direito, julgando a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido e condenando a A. como litigante de má-fé no pagamento de uma multa no valor de 3 (três) UC.


F.


Inconformada com o decidido, a A. interpôs o presente recurso de apelação.


Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem negritos e sublinhados da origem):


“(…)


2. O presente recurso via a reapreciação da matéria de facto e matéria de direito, impugnando-se a factualidade descrita nos Pontos 10, 15, 16, 17, 18, 19, 21 e 23 dos Factos Provados e na alínea b) dos Factos Não Provados. (…)


C.1 - Ponto 15 dos Factos provados (…)


6. Atento o vertido no Ponto 14 dos Factos provados, a fatura em causa nestes autos, FA 2024/8, do verso da mesma constam as referidas condições de venda.


7. Ora, a referida fatura, foi junta quer pela A. quer pela R. sendo que o respetivo conteúdo não foi impugnado por qualquer das partes, do verso da fatura referida em 14, DOC 01, também consta que: “As análises das peles que eventualmente venham a ser reclamadas terão de ser feitas no Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena e de acordo com as normas ISO aceites pelo Instituto Português da Qualidade.”


8. Atentas as possíveis soluções para a decisão, a apreciação dos pedidos deduzidos pelas partes nos autos, nos quais a A. alega que não recebeu qualquer reclamação das peles fornecidas, e por sua banda a R. alega que reclamou da “cor e espessura das peles”, o Tribunal a quo, teria de dar como provadas as condições de venda, que regulam as relações entre as partes, que de resto não foram impugnadas.


9. Ademais, considerando que o Tribunal se pronuncia acerca da "cor" e "espessura" no ponto 17 dos factos provados, deve o ponto 15 dos factos provados ser alterado, de modo a incluir as Condições Venda, não apenas no que respeita aos prazos e forma de reclamação, mas também no que respeita às análises estipuladas, em caso de eventuais reclamações, constantes do verso da fatura relativa ao artigo fornecido pela A.


10. Em conformidade o Tribunal a quo teria de dar como provado no Ponto 15 dos factos provados, a factualidade seguinte: Facto Provado 15. Do verso da fatura referida em 14, bem como de outras faturas que foram, anteriormente, emitidas pela A. à R. constava o seguinte: «Só se aceitam reclamações ou devoluções dentro do prazo de 8 (oito) dias a contar de Receção da Mercadoria. (...) Todas as reclamações ou devoluções deverão ser efetuadas por escrito e trazer discriminados os respetivos motivos. As análises das peles que eventualmente venham a ser reclamadas terão de ser feitas no Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena e de acordo com as normas ISO aceites pelo Instituto Português da Qualidade.»


C.2 - Ponto 16 dos Factos provados


11. O Tribunal a quo deu como provado a seguinte factualidade “16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., da quantidade de pele indicada na nota de requisição referida em 11.”


12. Com efeito, a factualidade vertida no ponto 11 e 14 dos factos provados, isto é, a existência e descritivo da nota de requisição [facto provado 11] e a existência e descritivo da fatura [facto provado 14], teria necessariamente de ser provada, por não impugnada por qualquer das partes, além de que alegada reciprocamente por ambas.


13. Porém, ao dar como provada a entrega da quantidade de pele, tal facto não resulta da requisição, mas sim do descritivo da fatura de entrega, na qual consta a efetiva quantidade de pele entregue, sendo que, na nota de requisição foi encomendada 2000 pés, que não coincidem com a quantidade entregue que foi de 2.035,50 pés de pele, como resulta da fatura identificada no facto provado 14.


14. Donde, considerando que na fatura 2024/8, DOC 2 da oposição à injunção da Ré, que não foi impugnada e também junta como DOC 1 da resposta à exceção pela autora, resulta a entrega de 96 peles com 2.035,50 pés, mais 35,50 pés que na "nota de requisição", DOC 1 anexo à Oposição, distribuídas por 14 pacotes de peles.


15. Em conformidade, deve o Ponto 16 dos factos provados ser alterado e passar a ter o seguinte teor: Facto Provado 16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., de 96 peles com 2.035,50 pés, em 14 pacotes, entrega efetuada na sequência da nota de requisição referida em 11.


C.3 - Ponto 10 dos Factos provados


16. O tribunal a quo deu como provado que: “10. A R. sempre procedeu ao pagamento das mercadorias entregues pela A., a pronto e por transferência bancária.”


17. Não poderia o Tribunal a quo dar como provado que a R. sempre pagou à A. a pronto porque isso colide com o que foi expressamente confessado pelo seu Legal Representante, BB no seu depoimento.


18. O legal representante da Ré BB, cujo depoimento prestado na audiência do dia 06-03-2025, registado no citius início 15:01, termo 15:55, duração 00:53:28, confessou em sentido diverso. (…)


20. Das declarações do legal representante de Ré, é infirmado o vertido para o facto provado 10, donde o Tribunal a quo não poderia dar como provado o pagamento das faturas a pronto pagamento, mas apenas após o exame das peles.


21. Tendo em conta a confissão do legal representante da Ré, a sua força vinculativa nos termos do art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), deve o ponto 10 dos factos provados ser alterado e passar a ter o seguinte teor: Facto Provado 10. Apesar da A. exigir pronto pagamento no ato de entrega da mercadoria, a Ré pagava quando entendia, mediante transferência bancária, após exame da mercadoria, dependendo da disponibilidade do seu Legal Representante.


C.4 - Ponto 17 dos Factos provados


22. O Tribunal a quo considerou provado a factualidade seguinte: “17. A cor e a espessura das peles referidas em 16 não eram iguais à amostra referida em 12, e não podiam ser utilizadas pela R. para fabrico do calçado a que as destinara.” (…)


24. Porém, do depoimento do legal representante da A., não resulta a admissão/confissão da falta de espessura da pele, antes pelo inverso.


25. O legal representante da Autora CC, prestou depoimento na audiência do dia 02-04-2025, registado no citius início 14:09, termo 15:04, duração 00:55:45.


26. No seu depoimento, o Legal Representante da A., CC, afirmou, mais do que uma vez, que a espessura das peles entregues estava de acordo com o pedido pela R. na requisição referida no ponto 11 dos factos provados (…)


27. Logo, quando na página 13 da sentença o Tribunal afirma "assim admitindo, pois, que a pele que vendeu à R. não atingia a espessura indicada na requisição referida em 11 dos factos provados" o Tribunal erra porque nunca o legal representante da A. tal admitiu, tendo sempre afirmado que as peles entregues tinham a espessura solicitada.


28. Acrescendo que, facto provado 11, o pedido da R. à A. foram peles com "espessura de 20 linhas" não pode o Tribunal contrariar o que considerou provado, dando relevância como parece fazer, de forma contraditória e obscura, à afirmação da Autora através do seu representante legal de que a "amostra enviada pela R. não atingia a espessura indicada na requisição referida em 11 dos factos provados".


29. A R. requisitou à A. espessura de 20 linhas, facto provado 11, nunca pediu espessura igual à amostra.


30. Por outro lado, o Legal representante da R. confessou, no seu depoimento prestado na audiência de 06-03-2025 e registado no citius com início 15:01, que a vertente da cor não impedia a utilização das peles e que pretendia receber peles com espessura acima daquela que é que é referida na requisição (…)


31. Salienta a A. que está em causa uma alegada diferença de espessura 5 vezes inferior a 1 milímetro (diferença entre as 20 linhas pedidas na requisição referida em 11 dos factos provados e a alegada espessura das peles recebidas) em peles com superfície média de 2,44 m² (2035,50 pés, distribuídos por 96 peles de vaca, em 14 pacotes, conforme resulta da fatura DOC 1 junto à oposição) diferença que se pretende examinar com um peclise que têm uma amplitude de verificação de cerca de 1 m² (é impossível ser mais preciso não pelo peclise em causa mas pelo facto de todas as peles terem um formato irregular).


32. Ademais, quando em causa está a utilização de um peclise de três anos, nunca aferido, conforme confessado pelo Legal Representante da Ré no seu depoimento prestado na audiência de 06-03-2025 e registado no citius com início 15:01, supra identificado (…)


33. Ainda que a Ré tenha medido a espessura da pele, não pelo simples toque (apalpar/sentir) da espessura, que o tenha feito através do recurso do pecLise, de que o legal representante declarou ter adquirido há dois ou três, nunca o Tribunal a quo poderia ter dado como provado que as peles não tinham a espessura de 20 linhas, não apenas porque a alegada medição foi efetuada por meio de um aparelho não sujeito a aferição periódica, mas também, porque das Condições de Venda resulta que a reclamações da peles, terão se ser submetidas a análise pelo Centro Tecnológico da Industria de Curtumes de Alcanena, de acordo com as normas ISO definidas pelo IPQ – Instituto Português da Qualidade. (…)


37. Donde, a factualidade levada aos factos provados sob o ponto 17, deve considerada não provada, daí removida, e incluída nos factos não provados (…)


C.5 - Ponto 18 dos Factos provados


39. O Tribunal a quo considerou provado que: “18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada mas situada entre 16-01-2024 e 30-01-2024, reclamando das diferenças referidas em 17 e pedindo a devolução das peles à A..”


40. Atenta a prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal a quo não poderia ter dado como provada a factualidade vertida para o ponto 18 dos factos provados.


41. Para considerar tal factualidade como provada, o Tribunal a quo fundamentou a sua convicção, explicado na página 13 e 14 da Sentença (…)


42. A motivação acima ignora que a Legal Representante da Ré, DD, confessou ter efetuado a reclamação fora do prazo estabelecido no verso da fatura.


43. A legal representante da Ré DD, prestou depoimento na audiência do dia 06-03-2025, registado no citius início 15:57, termo 16:44, duração 00:46:54 (…)


45. A motivação acima ignora que a testemunha, AA, no seu depoimento prestado na audiência de 06-03-2025, registada no citius com início 17:10, após intervenção do Tribunal reconheceu que não se recordava da data (…)


46. Num contexto em que o Tribunal reconhece a impossibilidade de apurar a data do "contacto" referido em 18 dos factos provados têm o Tribunal de aceitar o que declarou a legal Representante da Ré, DD, que confessou (depoimento de 06-03-2025 registado no citius início 15:57) não ter respeitado o prazo de reclamação: 29:55 DD (…)


47. Pelo que, o Tribunal a quo errou ao não atender a confissão da legal representante da Ré, confissão relevante cuja força vinculada foi desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), pelo que, se impõe a alteração do ponto 18 dos factos provados, por forma a refletir a confissão, e, em conformidade passar a ter o seguinte teor: Facto provado 18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada, mas decorrido o prazo de reclamação identificado no verso da fatura.


C.6 - Ponto 19, 21 e 23 dos Factos provados


48. O Tribunal a quo, considerou provada a factualidade seguinte: 19. AA comunicou o referido em 18 à A., logo após o contacto de BB. 21. Após vários contactos de AA com a A. para que esta recolhesse as peles referidas em 16 sem que esta o fizesse, AA recolheu as peles nas instalações da R. e deixou-as nas instalações da A., em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2024. 23. A nota de devolução referida em 22 foi entregue a AA, tendo um duplicado (assinado por este) ficado na posse da R. e outro sido entregue por AA nas instalações da A., conjuntamente com as peles referidas em 16.


49. Tendo o Tribunal explicitado nas páginas 14 a 19 da Sentença a motivação destas decisões (…)


50. Salvo o devido respeito, que repita-se é muito, o Tribunal a quo, comete aqui um erro gravíssimo de apreciação da prova, e que de acordo com a realidade da vida e as regras de experiência comum, erro esse que inquina toda a sentença, acreditando no depoimento de AA que falta à verdade, que se contradiz a ele próprio e que é desmentido pelos outros depoimentos, atribuindo-lhe isenção num diferendo entre duas partes a quem este declara amizade, ignorando que nessas circunstâncias não pode considerar isento quem não usou a oportunidade de pegar num pacote de peles, mandar analisar no laboratório do CTIC, entidade essa sim independente e habilitada para decidir uma alegada reclamação quanto à espessura e cor da pele.


51. O Tribunal a quo reconhece, porque o refere no segundo parágrafo da página 19 da sentença ("esta ausência de insistência no pagamento da fatura até abril de 2024"), que só em abril a A. solicitou o pagamento à R., facto provado 24 (…)


52. Foi este o primeiro pedido de pagamento da A. à R. e esta teve conhecimento deste pedido em 02-05-2024, facto provado 24.


53. Não pode o Tribunal ignorar que o Legal Representante da Ré, BB, confessou no seu depoimento prestado na audiência do dia 06-03-2025 e registado no citius com início 15:01 que no dia 02-05-2024, que tinha as peles nas instalações da R. (…)


54. O legal Representante da Ré confessa, que tinha as peles nas suas instalações depois, repetimos, depois do pedido de pagamento que só chegou à Ré em 02-05-2024, conforme facto provado 24.


55. De facto, confessa ao minuto 18:57 BB -... eu tenho o …lá o Last Discover a empresa a pedir-me o pagamento, as peles estão aí eu não as gasto...”


56. E confessa, novamente, ao minuto 51:10 BB - ...certo é que reclamavam o pagamento, mas não levantavam as peles...


57. Ora, o Tribunal a quo tinha não só de considerar esta, dupla confissão do Legal Representante da Ré, BB, como também, em conjunto com o depoimento da outra representante legal da Ré, DD prestado na audiência de 06-03-2025 registado no citius início 15:57 (…)


58. Salientamos que nestes autos, só existe uma carta, a referida em 24 dos factos provados, pelo que não restam dúvidas, quanto ao facto de não terem apresentado a reclamação, até à receção da aludida carta.


59. Logo, umas peles que estão nas instalações da Ré quando esta recebeu em 02-05-2024 o pedido para as pagar não podem ter sido deixadas nas instalações da Autora entre 02-04-2024 e 05-04-2024, porque se o fossem deixadas nas instalações da A antes de 02-05-2024, não estariam nas instalações da R. quando esta recebeu em 02-05-2024 o pedido para as pagar, como resulta dos depoimentos supratranscritos.


60. Esta confissão do Legal Representante da R., BB, 18:57 "eu tenho o … lá o Last Discover a empresa a pedir-me o pagamento, as peles estão aí ", impede que o Tribunal considere como faz no ponto 23 dos factos provado que "a nota de devolução referida em 22 foi entregue a AA, tendo um duplicado (assinado por este) ficado na posse da R. e outro sido entregue por AA nas instalações da A., conjuntamente com as peles referidas em 16", porque a Autora recebeu e devolveu essa nota devolução à R. através da carta referida no ponto 24 dos factos provados, e, quando essa carta o pedido de pagamento, acompanhada da restituição à procedência da nota de devolução chegou à Ré em 02-05-2024, as peles, conforme confessado por BB, estavam em poder da Ré, de onde nunca saíram.


61. Ora, uma nota de devolução que é devolvida conforme facto provado ponto 24 em 30-04-2024, não pode ter sido entregue em conjunto com umas peles que em 02-05-2024, levaram o legal representante da Ré, BB a "chatear" a testemunha AA para as levantar nas suas instalações.


62. Esta confissão da Legal Representante da R., DD, 30:32 "Mal vimos aquela carta depois é que nos apercebemos" impede que o Tribunal considere como faz no ponto 19 dos fatos provado que AA comunicou o referido em 18 à A., logo após o contacto de BB", sendo manifesto que, pelo menos BB, DD e AA não disseram a verdade ao Tribunal, depondo de forma contraditória, acerca de toda a cronologia e acontecimentos, sendo do total conhecimento de AA que o depoimento prestado na audiência de 06-03-2025, início 17:10, de que as peles que declarou ter entregue nas instalações da A. no início de abril estavam em poder da R. em maio, sic 16:23 AA Eu não posso precisar o, o dia em que carreguei mas foi logo a seguir nos princípios de abril


63. Se o Tribunal tivesse tido em conta a confissão de BB no seu depoimento em 06-03-2025 (18:57 "eu tenho o … lá o Last Discover a empresa a pedir-me o pagamento, as peles estão aí ") teria valorado as seguintes contradições de AA, afastando a credibilidade que lhe atribuiu (…)


65. Mais, que estando cá em baixo onde veio buscar peles, que foi primeiro a outro sítio carregar outras peles, em cima dos 14 pacotes de peles, com os 2.035,50 pés que disse ter trazido em início de abril [mas que em maio estavam na R].


66. As regras da experiência dizem-nos que se temos algo para carregar no mesmo veículo onde transportamos uma carga volumosa, primeiro retiramos o grande volume para podermos carregar um outro volume.


67. Ora, estas inconsistências do depoimento da testemunha, conjugado com o facto do gerente da Ré BB, confessar que as peles estavam na sua fábrica em maio, retiram qualquer credibilidade a este depoimento, no qual o Tribunal a quo, erradamente valorou positivamente, quando o mesmo de forma flagrante faltou à verdade.


68. Terá esse Venerando Tribunal de considerar o confessado pelos legais representantes da Ré, e, bem assim de afastar o depoimento que contradiz o anteriormente confessado ou declarado, retirando-lhe qualquer credibilidade.


69. Pelo que, deve a factualidade vertida nos pontos 19 e 23 dos factos provados, ser dada como não provada, e, nessa medida incluída nos factos não provados.


70. E bem assim, a factualidade vertida no ponto 21 dos factos provados ser alterado por forma a refletir as confissões dos Legais representantes da R, confissão relevante e vinculativa (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), e passar a ter o seguinte teor: Facto provado 21. Em 02-05-2024, data em que a R. recebeu a carta referida em 24. as peles vendidas através da fatura referida em 14 estavam na posse da R., nas suas instalações, não tendo sido devolvidas à A.


C.7 – Dos factos considerados como não provados


71. O Tribunal a quo, afastando a verificação da exceção de caducidade – por falta de reclamação no prazo de 8 dias constante da fatura e prevista no Código Comercial – considerou como não provado o seguinte: “b) O contacto referido em 18 apenas teve lugar em abril de 2024 ou, pelo menos, após o dia 23-01-2024.”


72. Na motivação de tal factualidade, o Tribunal a quo, ao decidir também ignora a prova foi feita através da confissão, relevante, da Legal representante da Ré no seu depoimento na audiência de 06-03-2025 registado no citius início 15:57 (…)


73. Donde, deveria o Tribunal a quo ter dado como provado que a R. não respeitou o prazo de reclamação em face da confissão supratranscrita, que não se pode considerar afetada pelo que se segue no depoimento, em que nitidamente a advogada da Ré, orientou a depoente para tentar anular o confessado.


74. Em consequência, a factualidade vertida na alínea b) dos factos não provados deverá ser elencada na factualidade considerada provada, pois que a mesma resulta da confissão da legal representante da Ré DD, conforme resulta da transcrição supra. (…)


D - Da condenação como litigante de má fé


87. O Tribunal a quo efetuou uma incorreta apreciação da prova, sendo que da mesma não resulta que a Recorrente tenha agido de má-fé nos autos, seja no depoimento seja nas peças processuais.


88. A condenação como litigante de má-fé assentou no facto de o Tribunal a quo ter considerado que a testemunha AA, seria representante/funcionário/vendedor trabalhador/comissionista da recorrente, e, bem assim, que o legal representante sabia que o mesmo teria entregue as peles na sede da Recorrente.


89. Desde já se saliente que, a Ré nas peças processuais que apresentou, designadamente na oposição à injunção, não alega a existência de qualquer relação de subordinação entre a Recorrente e o referido AA, ou que o mesmo fosse seu comissionista ou vendedor.


90. Atente-se que, na oposição à injunção, a Ré referindo-se à testemunha AA, utiliza a expressão mediador, como de resto resulta dos artigos 7º, 13º e 16º, invocando que o mesmo recebia requisições e entregava-as à Autora, procedendo à entrega dos produtos e respetivas faturas.


91. A recorrente na resposta às exceções (requerimento do dia 06-12-2024), nos artigos 5º, 6º, 8º, 9º, 11º, esclareceu que a referida testemunha não era seu comissionista nem efetuou intermediação do negócio com a Ré, esclarecendo que mantinha uma relação de amizade com o mesmo, e este por sua vez, também com o gerente da Ré, e que por essa razão fazia entregas de mercadorias pontuais, por incompatibilidades de entrega dentro dos horários dos serviços da Autora.


92. O depoimento da testemunha AA, apesar de ter convencido o Tribunal, contem incongruências que por si permitem afastar a condenação de litigante de má-fé, sendo que, não será pelo facto de o Tribunal ter considerado provada a factualidade contida no Ponto 21 do FP, que o legal representante da Autora, teria de conhecer esse facto.


93. Sem conceder, na prova nem na veracidade da factualidade dada como provada em 21. dos FP, ainda que fosse verdade – que a testemunha AA deixou as peles nas instalações da A. em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2025 – o certo é que nada permite concluir que o legal representante tivesse conhecimento dessa factualidade.


94. Do depoimento da testemunha AA, não resulta que o mesmo tivesse entregue as peles ao legal representante da Autora, para que dessa forma fosse um facto do qual devesse ter conhecimento direto e pessoal, e por essa via, necessariamente as suas declarações tivessem de ser em sentido diverso do que foram (negou a entrega das peles).


95. A testemunha AA, cujo depoimento prestado na audiência do dia 06-03-2025, registado no citius início 17:10, termo 17:48, duração 00:37:28, salientamos a seguintes passagens


18:17 – Adv – Quando chegou à Last com quem é que contatou?


18:18 – Testemunha – Contactei com o Sr. EE.


18:28 – Testemunha – Descarreguei no átrio! (…)


96. Por outro lado, em oposição, teremos o depoimento da testemunha EE, depoimento prestado na audiência de 24-03-2025, registado no citius, com início 14:01, termo 15:14, duração 01:13:10, nega de forma perentória ter recebido as peles, e que a testemunha AA se tenha deslocado às instalações da Autora. (…)


98. O depoimento do legal representante da recorrente CC, depoimento prestado na audiência de 02-04-2025, registado no citius, com início 14:09, termo 15:04, duração 00:55:45.


99. (…) por oposição ao depoimento da testemunha AA, refere que as peles não foram entregues nas instalações da recorrente, conforme resulta do depoimento da testemunha EE. (…)


102. A testemunha AA não conseguiu concretizar o dia da alegada deslocação à sede da Autora, referindo apenas que tinha vido tratar de negócio seu que não esclareceu, conforme resulta do seu depoimento já supra identificado (…)


103. Não colocando enfoque aqui na credibilidade do depoimento da testemunha AA, salientando apenas que o mesmo não referiu a intervenção do legal representante da Autora, a quem também não contactou para transmitir a questão da alegada reclamação das peles, que terá tratado com a testemunha EE.


104. Não afastando a credibilidade e veracidade do depoimento da testemunha EE, pois estamos convictos da veracidade do mesmo, o Tribunal teria de colocar sempre a hipótese de que o mesmo ter recebido as peles alegadamente entregues (devolvidas), não ter dado conhecimento ao legal representante da Autora, que nessa preceptiva não poderia ter conhecimento dessa factualidade.


105. Ora, não existe qualquer prova da intervenção ou conhecimento do legal representante da entrega das peles, pois tal não resulta de qualquer dos depoimentos, não poderia o Tribunal dar como provado que o mesmo sabia da alegada entrega das mesmas na sede da Recorrente.


106. Teremos de salientar, que não será pelo facto de o legal representante da Autora ter referido a existência de dois momentos distintos, separados por vários anos, em que a testemunha AA, foi comissionista/vendedor das suas empresas, no passado, que por essa razão continua a ter as mesmas funções.


107. Mais, tendo cessado as relações de comissionista em 2018, não poderemos retirar que o mesmo continua com essas funções, quando declara que era a Ré era quem emitia as requisições, determina quantidades e preços, que caso fossem aceites pela Autora, o negócio seria concretizado, com a entrega. (…)


109. Ainda que o Tribunal tenha concluído por atribuir mais credibilidade a um depoimento em detrimento do outro, tal não poderá ser imputado à recorrente, nem levar à sua condenação como litigante de má fé.


110. Aliás, a credibilidade da testemunha, apenas foi afastada pela livre convicção do Tribunal, sem que tal convicção tenha qualquer suporte documental, que inexiste (…)


111. Donde, mal andou o Tribunal a quo ao condenar a Autora como litigante de má fé (…)


112. Mais, foi ignorada a confissão do Legal representante da R. de que as peles que o Tribunal a quo deu como provadas terem sido devolvidas em abril (facto provado 21), de facto estavam em seu poder quando a A. lhe pediu em maio o pagamento das mesmas (…)


114. Por outro lado, atentos os factos não provados, não encontra sustento a condenação como litigante de má-fé, nos termos constantes da sentença, sendo que, a conduta imputada à A. não é quantificada nem integrada em qualquer das alíneas do artigo 542º, n.º 2 do CPC, como se impunha.


115. No caso presente, a sentença fundamenta a decisão de condenação do autor como litigante de má fé considerando a não prova dos factos alegados, ou melhor, a prova pela parte contrária do facto inverso (formação da convicção do Tribunal), assente num único depoimento que o Tribunal reputou de mais credível. (…)


119. Donde, não estão reunidos os pressupostos para condenar a Autora, com fundamento em litigância de má-fé e, por isso, não pode, pois, subsistir devendo, neste aspeto, ser revogada a decisão do Tribunal recorrido. (…)


121. Desta forma deve ser revogada a decisão do Tribunal a quo e, em consequência, julgar a ação procedente por provada (…)”.


G.


A Recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.


H.


Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.


*


I.


Questões a decidir


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).


Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.


No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelo recurso:


1. Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;


2. Se, em caso de resposta afirmativa à questão anterior, deve ser a Ré condenada no pedido de pagamento à Autora, do preço da mercadoria objecto de contrato de compra e venda;


3. Se há fundamento para a condenação da Ré como litigante de má-fé.


*


***


II. FUNDAMENTAÇÃO


*


***


A. De facto


*


Reprodução integral dos factos provados e não provados da decisão da matéria de facto como constam da sentença sob recurso (sem negrito e itálico da origem):


“(…)


1.1. Factos provados (…)


1. A A. é uma sociedade que se dedica ao comércio de couros, peles e curtumes.


2. A R. é uma sociedade por quotas que se dedica ao fabrico de calçado.


3. A e R. iniciaram a sua relação comercial no ano de 2015, através de AA que, desde essa data e até 2018, exerceu funções de agente comercial da A..


4. No início da relação com a R. (em 2015), com a intermediação de AA, A. e R. acordaram que os preços a praticar a cada requisição seriam apostos pela R. na respetiva nota de requisição e aceites ou não pela A., após a receção das aludidas notas.


5. A partir de 2018, AA deixou de faturar à A. os serviços prestados na qualidade de seu agente comercial, mas continuou a remeter requisições de produto da R. à A., bem como amostras de peles.


6. A maioria das requisições que deram origem a fornecimentos da A. à R. a partir de 2018 e até 2024 chegaram por email, com origem no endereço do cônjuge de AA.


7. Nas encomendas de peles com cor diferente das anteriormente fornecidas pela A., a R. entregava a AA, conjuntamente com a nota de requisição, uma amostra da pele pretendida.


8. A maioria das amostras enviadas pela R. à A. para fornecimentos, a partir de 2018 e até 2024 chegaram à A. por entrega de AA aos transportadores a que a A. recorria para entregas na zona norte do país.


9. Após recebimento das requisições da R., a A. entregava as peles encomendadas nas instalações da R., através de transportadores seus, sendo transmitido pela A. a AA a data prevista para entrega, a qual, por sua vez, AA comunicava à R.


10. A R. sempre procedeu ao pagamento das mercadorias entregues pela A., a pronto e por transferência bancária.


11. No dia 04-01-2024, a R. emitiu uma nota de requisição de 2000 pés de pele Texas castanho, de cor «igual à amostra», peles de segunda escolha e espessura de 20 linhas, pelo preço de 2,00€, indicando as seguintes condições de pagamento: «Pronto pagamento, transferência bancária com 3% e desconto.» e o seguinte prazo de entrega: «15 de Janeiro se for possível».


12. A nota de requisição referida em 11 foi acompanhada de uma amostra da pele pretendida pela R..


13. A R. entregou a nota de requisição referida em 11 a AA, tendo este assinado o original, que ficou na R., e ficado com um duplicado do mesmo, que remeteu à A. por email.


14. Em 12-01-2024, a A. faturou 2.035,50 pés de pele de vaca texas castanho à R mediante a emissão da fatura n.º FA 2024/8, no valor de 5.007,33€, a pronto pagamento.


15. Do verso da fatura referida em 14, bem como de outras faturas que foram, anteriormente, emitidas pela A. à R. constava o seguinte:


«Só se aceitam reclamações ou devoluções dentro do prazo de 8 (oito) dias a contar de Receção da Mercadoria. (…)


Todas as reclamações ou devoluções deverão ser efetuadas por escrito e trazer discriminados os respetivos motivos.»


16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., da quantidade de pele indicada na nota de requisição referida em 11.


17. A cor e a espessura das peles referidas em 16 não eram iguais à amostra referida em 12, e não podiam ser utilizadas pela R. para fabrico do calçado a que as destinara.


18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada mas situada entre 16-01-2024 e 30-01-2024, reclamando das diferenças referidas em 17 e pedindo a devolução das peles à A..


19. AA comunicou o referido em 18 à A., logo após o contacto de BB.


20. No dia 29-02-2024, o funcionário da A. EE, enviou um email para a R. com o seguinte teor: «Estando em processo de conferencia de contas, vimos por este meio solicitar a V. Exas o envio de extrato de conta (todos os movimentos) referente período de Janeiro de 2023 até à presente data. Gratos pela atenção dispensada Atentamente».


21. Após vários contactos de AA com a A. para que esta recolhesse as peles referidas em 16 sem que esta o fizesse, AA recolheu as peles nas instalações da R. e deixou-as nas instalações da A., em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2024.


22. Em 02-04-2024, a A. emitiu a nota de devolução n.º DV 2024/0008, com o seguinte teor: «Devolução de artigo referente a vossa fatura nº 2024/8 devido a côr e expessura da pele estar incorreta texas castanho 2035,50 pe», no valor de 5.007,33€.


23. A nota de devolução referida em 22 foi entregue a AA, tendo um duplicado (assinado por este) ficado na posse da R. e outro sido entregue por AA nas instalações da A., conjuntamente com as peles referidas em 16.


24. Por carta datada de 23-04-2024, expedida no dia 30-04-2024 e recebida pela R. em 02-05-2024, à qual foi junta a nota de devolução referida em 22, a A. comunicou à R. o seguinte:


«Assunto: V. nota Devolução DV 2024/008


Exmos. Sr(s)


Recebemos com espanto a V. Nota devolução DV 2024/0008 datada de 2024/4/2 referente à nossa fatura nº 2024/8 de Janeiro de 2024.


Não podemos aceitar a devolução em Abril de umas peles entregues em Janeiro de 2024, que nunca nos foram reclamadas.


Por isso não procedemos ao levantamento das peles nas Vossas instalações e devolvemos em anexo a esta carta o original e duplicado da V. Nota devolução DV 2024/0008 para que possam proceder á sua anulação.


Solicitamos o pagamento imediato da fatura 2024/8 para a nossa conta do Montepio Geral, IBAN ....»


25. A R. não respondeu às comunicações referidas em 20 e 24.


26. A R. não procedeu ao pagamento da fatura referida em 14.


27. No dia 18-06-2024, o funcionário da A. EE, enviou um email para a R. com o seguinte teor: «Vimos por este meio solicitar a liquidação da factura n.º 8/2024. Atentamente».


28. No dia 12-07-2024, o funcionário da A. EE, enviou um email para a R. com o seguinte teor: «Estando em processo de conferencia de contas, vimos por este meio solicitar a V. Exas o envio de extrato de conta (todos os movimentos) referente período de Janeiro de 2023 até à presente data. Gratos pela atenção dispensada Atentamente».


1.2. Factos não provados


a) O contacto referido em 18 teve lugar no próprio dia 15-01-2024.


b) O contacto referido em 18 apenas teve lugar em abril de 2024 ou, pelo menos, após o dia 23-01-2024.


c) A R. remeteu à A. a nota de devolução referida em 22 por correio, sem que a mesma tivesse sido acompanhada das peles nela identificadas.


d) A A. despendeu a quantia de 100,00€ com portes de correio, deslocações e honorários de advogados, para cobrança do valor referido em 14.


*


***


Do recurso da decisão da matéria de facto


*


Vem o presente recurso interposto, em primeira linha, da matéria de facto da decisão de primeira instância, considerando a Recorrente que foram incorrectamente julgados e apreciados factos dados como provados e não provados.


Concretamente, entende que devem ser alterados os pontos 10, 15, 16, 17, 18, 19, 21 e 23 dos Factos Provados e a alínea b) dos Factos Não Provados, bem como acrescentado um novo facto provado, tudo nos seguintes termos:


i.


Facto Provado 10:


“10. A R. sempre procedeu ao pagamento das mercadorias entregues pela A., a pronto e por transferência bancária.”


Deverá passar a ter a seguinte redacção:


“10. Apesar da A. exigir pronto pagamento no ato de entrega da mercadoria, a Ré pagava quando entendia, mediante transferência bancária, após exame da mercadoria, dependendo da disponibilidade do seu Legal Representante.”


ii.


Facto provado 15:


“15. Do verso da fatura referida em 14, bem como de outras faturas que foram, anteriormente, emitidas pela A. à R. constava o seguinte: «Só se aceitam reclamações ou devoluções dentro do prazo de 8 (oito) dias a contar de Receção da Mercadoria. (…) Todas as reclamações ou devoluções deverão ser efetuadas por escrito e trazer discriminados os respetivos motivos.»”


Deverá passar a ter a seguinte redacção:


“15. Do verso da fatura referida em 14, bem como de outras faturas que foram, anteriormente, emitidas pela A. à R. constava o seguinte: «Só se aceitam reclamações ou devoluções dentro do prazo de 8 (oito) dias a contar de Receção da Mercadoria. (...) Todas as reclamações ou devoluções deverão ser efetuadas por escrito e trazer discriminados os respetivos motivos. As análises das peles que eventualmente venham a ser reclamadas terão de ser feitas no Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena e de acordo com as normas ISO aceites pelo Instituto Português da Qualidade.»”


iii.


Facto provado 16:


“16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., da quantidade de pele indicada na nota de requisição referida em 11.”


Deverá passar a ter a seguinte redacção:


“16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., de 96 peles com 2.035,50 pés, em 14 pacotes, entrega efetuada na sequência da nota de requisição referida em 11.”


iv.


Facto Provado 17:


“17. A cor e a espessura das peles referidas em 16 não eram iguais à amostra referida em 12, e não podiam ser utilizadas pela R. para fabrico do calçado a que as destinara.”


Deverá passar ao elenco dos factos não provados, por não se ter sido feita qualquer prova, válida, quanto à espessura da pele e, bem assim, porque quanto à cor a mesma poderia ser utilizada, conforme resultou das declarações do legal representante da Ré.


v.


Facto provado 18:


“18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada mas situada entre 16-01-2024 e 30-01-2024, reclamando das diferenças referidas em 17 e pedindo a devolução das peles à A..”


Deverá passar a ter a seguinte redacção:


“18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada, mas decorrido o prazo de reclamação identificado no verso da fatura.”


vi.


Facto provado 19:


“19. AA comunicou o referido em 18 à A., logo após o contacto de BB.”


Deverá passar ao elenco dos factos não provados.


vii.


Facto provado 21:


“21. Após vários contactos de AA com a A. para que esta recolhesse as peles referidas em 16 sem que esta o fizesse, AA recolheu as peles nas instalações da R. e deixou-as nas instalações da A., em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2024.”


Deverá passar a ter a seguinte redacção:


“21. Em 02-05-2024, data em que a R. recebeu a carta referida em 24. as peles vendidas através da fatura referida em 14 estavam na posse da R., nas suas instalações, não tendo sido devolvidas à A..”


viii.


Facto provado 23:


“23. A nota de devolução referida em 22 foi entregue a AA, tendo um duplicado (assinado por este) ficado na posse da R. e outro sido entregue por AA nas instalações da A., conjuntamente com as peles referidas em 16.”


Deverá passar ao elenco dos factos não provados.


ix.


Facto não provado b):


“b) O contacto referido em 18 apenas teve lugar em abril de 2024 ou, pelo menos, após o dia 23-01-2024.”


Deverá passar ao elenco dos factos provados.


*


Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:


“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:


a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;


b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”


*


A Recorrente incidiu o seu recurso da matéria de facto, concretizando os factos provados e não que desejam ver modificados ou aditados, indicando, para cada um deles, a redacção que deve, ou não, ser consagrada. Também indicam os meios de prova que, relativamente a cada um dos factos impugnados, justificam, em sua opinião, a alteração da decisão de 1ª instância, fazendo-o, por transcrição quanto aos meios de prova pessoal registados em audiência de julgamento.


Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do número 1 do artigo 640º do CPC.


*


Nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “[m]odificabilidade da decisão de facto”, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.


Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607º e da alínea a) do n.º 2 do art.º 5º, ambos do C.P.C. ( 1 ), tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na al.ª c) do n.º 2 do art.º 662º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.


Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado polo Juiz Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1 ( 2 ), para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”


Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1, ( 3 ) “…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma).


Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.


Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.).


Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).”


*


Tendo presentes estes considerandos, analisemos cada um dos concretos pontos da matéria de facto que a Recorrente pretende ver alterados.


*


i.


Facto provado número 10.:


“10. A R. sempre procedeu ao pagamento das mercadorias entregues pela A., a pronto e por transferência bancária.”


Sustenta a Recorrente que da prova produzida resultou que “…a Ré pagava quando entendia, mediante transferência bancária, após exame da mercadoria, dependendo da disponibilidade do seu Legal Representante”, o que foi por este expressamente confessado no seu depoimento prestado em audiência do dia 06.03.2025, passagens 10:08 e 10:11.


Analisando a alegação em apreço devemos, antes do mais, ter presente que o facto referente ao pagamento da obrigação não é constitutivo do direito da Autora, nem vem por esta alegado nos seus articulados. Trata-se de defesa por excepção da Ré e só assume verdadeira relevância quanto aos fornecimentos que estão na origem do direito de crédito arrogado pela Autora na presente demanda.


Deste modo, não é correcto invocar a “confissão” por parte do legal representante da Ré para alterar um facto que, na verdade, não é susceptível de confissão por não ter sido sequer alegado pela Autora.


O que poderá estar em causa é uma insuficiência da prova produzida pela Ré para provar um facto que será do seu interesse demonstrar.


Isto dito, respondeu BB, legal representante da Ré (cfr. minutos 10:10 a 10:47, 24:14 a 24:55 e 25:16 a 25:21), à Sr.ª Juíza de 1ª instância:


“Ah… o… o fornecedor exigia sempre um pronto pagamento, mas não quer dizer que a gente, pronto pagamento, pronto seja as peles entravam e a gente tinha de ter tempo de analisar as peles não é, por vezes eu há seis anos também tive um AVC e às vezes, não estou sempre na empresa, não é? E depois ordem para receber, as minhas filhas estão a trabalhar na empresa, são competentes que eu ensinei-as quando eu não estou às vezes telefonam-me, ó pai posso tomar conta?”


Juíza: “…se neste caso concreto quando o Sr. foi ver a mercadoria para ver se estava conforme com a sua experiência, foi no dia em que a mercadoria chegou ou foi passado algum tempo?


BB: “Não foi no dia… aquilo, se calhar passou um dia ou dois, agora não me posso estar a recordar de coisas…”


Juíza: “Poderá ter passado uma semana, por exemplo?”


BB: “Eu acho que não passou uma semana sem eu ver as peles, porque eu, se não for ao outro dia, dois dias, eu…onde é que está a mercadoria que veio de fulano, onde e que está a mercadoria que veio de sicrano…e eu vou e vou ver as peles…” (…)


Minutos 25:16 a 25:21:


BB: “…eu disse à Sr.ª Doutora que podia ter passado dois dias que eu fui ver as peles…”.


Resulta efectivamente das declarações do legal representante da Ré que o pagamento era realizado depois de analisadas as peles, o que a expressão “a pronto” contida na redacção do facto provado número 10., não deixa perfeitamente evidente, inculcando a ideia incorrecta de que o pagamento ocorria imediatamente no acto da entrega.


Assim, deverá a redacção ser, neste particular, alterada, substituindo-se a expressão “a pronto” por “após o exame da mercadoria”, de modo a reflectir a prova resultante das declarações de parte em apreço.


Já a alteração proposta no sentido de que a Ré pagava “quando entendia” “dependendo da disponibilidade do seu legal representante”, merece tratamento distinto.


Desde logo, trata-se de alegação que nem a Autora, nem a Ré produziram nos seus articulados. Depois, induz que o momento do pagamento estava sujeito à boa vontade e disponibilidade do legal representante, quando a prova apenas aponta para que dependesse do procedimento de verificação. Acresce que, tal como decorre do depoimento de parte do legal representante da Autora - CC -, prestado em julgamento no dia 2 de Abril de 2025, a Ré não costumava atrasar-se na realização dos pagamentos (cfr. minutos 34:35 a 34.40), razão pela qual a subjectividade das expressões cuja introdução vem pretendida pela Recorrente não reflecte a pontualidade habitual dos pagamentos evidenciada pela prova.


Deverá, por isso, acolher-se parcialmente a impugnação do facto provado n.º 10 que passará a assumir a seguinte redacção:


“10. A R. sempre procedeu ao pagamento das mercadorias entregues pela A., após o exame da mercadoria e por transferência bancária.”


ii.


Facto provado n.º 15:


“15. Do verso da fatura referida em 14, bem como de outras faturas que foram, anteriormente, emitidas pela A. à R. constava o seguinte:


«Só se aceitam reclamações ou devoluções dentro do prazo de 8 (oito) dias a contar de Receção da Mercadoria. (…)


Todas as reclamações ou devoluções deverão ser efetuadas por escrito e trazer discriminados os respetivos motivos.»”


Entende a Recorrente que o teor do facto provado em apreço deveria conter também outra parte do texto constante do verso das facturas em apreço, referente aos meios de prova que devem acompanhar as reclamações ou devoluções quanto à mercadoria fornecida.


Efectivamente, consta do verso das facturas enviadas com a mercadoria que: «As análises das peles que eventualmente venham a ser reclamadas terão de ser feitas no Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena e de acordo com as normas ISO aceites pelo Instituto Português da Qualidade.»


É certo que a Autora não alegou o acordo da Ré, ou o seu conhecimento, quanto à necessidade de realizar as análises no CTICA.


Todavia, a alteração propugnada pela Autora do facto provado em apreço limita-se ao teor da inscrição constante do verso das facturas e não ao conhecimento ou ao acordo, por parte da Ré, relativamente a tal procedimento.


Tratando-se de conteúdo constante de meios de prova documental junta aos autos que pode assumir relevância na ponderação do cumprimento, pela Ré, do dever de denúncia dos defeitos, admite-se a alteração da redacção do facto provado no sentido pretendido, passando a assumir a seguinte:


“15. Do verso da fatura referida em 14, bem como de outras faturas que foram, anteriormente, emitidas pela A. à R. constava o seguinte:


«Só se aceitam reclamações ou devoluções dentro do prazo de 8 (oito) dias a contar de Receção da Mercadoria. (…)


Todas as reclamações ou devoluções deverão ser efetuadas por escrito e trazer discriminados os respetivos motivos. As análises das peles que eventualmente venham a ser reclamadas terão de ser feitas no Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena e de acordo com as normas ISO aceites pelo Instituto Português da Qualidade.»”


iii.


Facto provado n.º 16:


“16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., da quantidade de pele indicada na nota de requisição referida em 11.”


Entende a Recorrente que, de acordo com a prova produzida nos autos, não foi a quantidade de pele indicada na nota de requisição referida no facto provado número 11. - de 04.01.2024, referente a 2000 pés de pele Texas castanho, de cor «igual à amostra», peles de segunda escolha e espessura de 20 linhas (reproduzida no documento n.º 1 junto com a oposição a Ré) -, a entregue pela A. nas instalações da R., mas sim 2.035,50 pés como resulta da fatura identificada no facto provado 14.


Compulsada a factura n.º 2024/8 junta, quer como documento n.º 2 da oposição da Ré à injunção, quer como documento n.º 1 da resposta da Autora à matéria de excepção, cujo teor não foi impugnado pelas partes da acção, foram efectivamente entregues nas instalações da Ré, 96 peles com 2.035,50 pés, o que representa mais 35,50 pés que na “nota de requisição” junta como documento n.º 1 do anexo à oposição.


Assiste, assim, razão à Autora / Recorrente, devendo o facto provado em apreço passar a ter a seguinte redacção:


“16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., de 96 peles com 2.035,50 pés, em 14 pacotes, entrega efetuada na sequência da nota de requisição referida em 11.”


iv.


Facto provado n.º 17:


“17. A cor e a espessura das peles referidas em 16 não eram iguais à amostra referida em 12, e não podiam ser utilizadas pela R. para fabrico do calçado a que as destinara.”


Entende a Recorrente que a matéria em apreço deve ser declarada não provada, quer porque do depoimento do legal representante da A. não resultou admitida / confessada a falta de espessura da pele fornecida, quer também porque a medição alegadamente realizada pelo legal representante da Ré foi efectuada por um aparelho não sujeito a aferição periódica e das condições de venda resulta que a reclamações da peles terão se ser submetidas a análise pelo Centro Tecnológico da Industria de Curtumes de Alcanena, de acordo com as normas ISO definidas pelo IPQ – Instituto Português da Qualidade.


Compulsado o depoimento de parte do legal representante da Autora prestado no dia 02.04.2025, minutos 43:33 a 44:10, constata-se que, contrariamente ao mencionado na motivação da decisão recorrida sobre formação da convicção quanto a este facto provado (onde consta que o legal representante da A. admitiu “…que a pele que vendeu à R. não atingia a espessura indicada na requisição referida em 11 dos factos provados.”), o legal representante da Autora disse apenas que a amostra enviada pela R. tinha uma espessura inferior aos 2 mm / 20 linhas, que constavam da requisição mencionada no facto provado n.º 11.


Isto não equivale a dizer que a pele que vendeu e entregou tenha sido igual à espessura da amostra e inferior aos 2 mm, nem permite retirar tal confissão. Tanto assim que, a minutos 43:55 a 44:08, o legal representante da Autora disse que “…a amostra do cliente tinha uma espessura inferior a 2 e o bocado das peles que entreguei estava exactamente dentro da espessura que o cliente pediu na requisição.”


Está, assim, incorrecta a afirmação constante da motivação da sentença recorrida, no sentido de que o legal representante da Autora admitiu que a pele que vendeu não tinha a espessura da requisição.


Todavia, a prova que consistiu nas declarações de parte dos legais representantes da Ré, BB e DD, conjugados com o testemunho de AA, permitiu confirmar que houve diferenças:


- na tonalidade da cor entre a amostra e as peles fornecidas; e


- na espessura entre a requisição (20 linhas / 2 mm) e as peles fornecidas.


Na verdade, BB, em termos que se mostraram convincentes, disse que (cfr. minutos 16:21 a 17:46 e 17:58 a 18:25):


“…veio e eu, quando tive oportunidade fui e eu abro sempre um volume que tenho lá uma mesa, abro um volume de pele e vou ver. A primeira coisa que eu vejo é a espessura das peles porque, tendo a experiência quase que nem preciso de aparelho, mas eu … vi as peles e vi logo que faltava a espessura, a espessura é a grossura, não dando para… aquela espessura não se faz um artigo como eu faço, como eu tenho de fazer, trabalhamos com amostras de confirmação nos nossos clientes então, a pele analisei, a cor estava ligeiramente diferente mas prontos, mas pela cor a gente até que conseguiria com um acabamento escurecer, mas a grossura da pele é que não, nunca pode dar para fazer, se eu peço uma pele com 20 linhas são 2 … 20 linhas são 2 milímetros de espessura e a pele não fazendo essa espessura entre 20, 21, 22 por aí, não dá para trabalhar o artigo que nós estamos especializados.”


Essa pele não tinha a espessura, automaticamente nós ligámos. Eu mandei ligar e em seguida liguei eu ao Sr. AA: que não queria aquelas peles que se entendesse com o fabricante que tinham de me repor umas peles que tivessem a espessura correcta para eu poder gastar as peles.” (sublinhados nossos).


Decorre das declarações em apreço que embora houvesse uma ligeira diferença de cor esta não era impeditiva do uso da pele, mas no que respeita à espessura da pele é peremptório em dar nota de que não tinha a necessária e requisitada para poder ser utilizada com a finalidade a que a Ré se propunha.


DD, por seu turno, à pergunta da Sr.ª Juíza de 1ª instância sobre se houve algum problema com a última encomenda da “Last Discover”, disse (cfr. minutos 16:41 a 17:11) que:


“Nesta última entrega sim… foi que a espessura da pele e a cor não estava corretamente como a gente tinha pedido… as linhas da pele tinham à volta de 16, 18, nós na nossa requisição pedíamos 20 linhas que é uma pele mais forte e a cor não estava de acordo com a amostra que tínhamos enviado na altura.”


Também AA que informou ser a pessoa que vendeu peles da “Last Discover” em algumas fábricas de calçado como a Ré (a Ré entregava-lhe uma requisição dirigida à Autora que a testemunha assinava a enviava para esta, o produto era depois carregado na fábrica da Autora e descarregado na fábrica da Ré, sendo os pagamentos feitos directamente pela Ré à Autora), disse (cfr. minutos 9:27 a 9:39, 12:05 a 12:22 e 13:16 a 13:21):


9:27 “Depois, o Sr. Leite ligou-me a mim a dizer que aquilo não estava… ligou a dizer que as peles não estavam em condições nem na cor, nem na espessura.” 9:39


12:05 “Disse-me que as peles estavam com qualidade muito fraca a nível de espessura, não tinham qualidade da espessura, não era a espessura pedida e também a cor não estava bem… e que as peles não lhe serviam para o artigo que ele precisava.” 12:22


13:10 Advog. Ré: “E liga-lhe o Sr. Leite a dizer: AA, as encomendas não têm a espessura…”


13:16 “As peles, as peles não têm nem a espessura, nem tinham a cor… a cor não estava bem.” 13:21


Deste modo, resulta não apenas das declarações dos legais representantes da Ré, mas também da testemunha vinda de elencar que, em termos convincentes, a remessa das peles em apreço tinha uma espessura inferior à que consta da requisição (16 a 18 linhas, em vez das 20 linhas pretendidas).


Argumenta ainda a Autora que a medição alegadamente realizada pelo legal representante da Ré não é rigorosa porque foi efectuada com um aparelho não sujeito a aferição periódica e das condições de venda resulta que a reclamações das peles terão se ser submetidas a análise pelo Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena, de acordo com as normas ISO definidas pelo IPQ – Instituto Português da Qualidade.


A este respeito importa recordar que não foi alegado pela Autora que a Ré tivesse conhecimento e/ou manifestado a sua concordância relativamente à condição de prova dos defeitos das peles, através da sua submissão para análise ao Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena, redigida no verso das facturas.


Por outro lado, nem do testemunho de AA, nem do depoimento de parte do legal representante da Autora, resultou que durante os contactos mantidos com a Autora até à devolução das peles, devido à falta das qualidades de cor e espessura requisitadas, esta houvesse solicitado ou exigido que as peles fossem pela Ré sujeitas a análise do CTICA como condição para aceitação da sua devolução.


Mostrou-se convincente BB, nas declarações que prestou sobre a questão, em que deu conta de que fez a medição através de um instrumento próprio para o efeito, denominado “PecLise” comprado em estado de novo há cerca de 2 a 3 anos (cfr. minutos 28:50 a 29:39), apesar das tentativas do ilustre advogado da Autora para, sem ter apresentado um critério válido, pôr em causa a calibragem do instrumento (cfr. minutos 34:32 a 35:50):


28:44 Advog Ré: “Já nos explicou aqui, a instâncias da Mm.ª Juiz toda a sua experiência e sensibilidade que tem na análise das peles… mas tem um mecanismo que lhe permite, estamos a falar de milímetros? 28:57


28:57 BB: “Tem, tem um que eu chamo-lhe peking list… mas eu tenho tanta experiência que eu ao pôr a mão na pele, eu sei dizer as linhas que tem… mas para ter a confirmação tenho um aparelho próprio de medir peles que mede a espessura das peles.” 29:21


29:21 Advog. Ré: Confirma que é este o aparelho? 29:24


29:24 BB: É. Isto é em tempos chamava-se palmer, outros chamam-lhe peking list, outros chamam… prontos, é este aparelho que a gente quando tem dúvida da espessura, vai e confirma…” 29:39


34:32 Adv. Autora: “Ó Sr. BB, este PecLise que o Sr tem aqui, que o Sr, que foi junto, que foi exibida a fotografia, há quanto tempo é que ele não é calibrado?”


34:46 BB: “Ó Sr. Dr., o Sr. peço desculpa mas o Sr. como eu acabei de dizer, estou nas peles há 40 anos e há 40 anos que existia um aparelho mais pequenino do que esse de medir peles e eu, esse aparelho, talvez seja dois anos ou três anos que eu o comprei esse novo, que é um aparelho que não mede só nas pontas das peles, que vai mais longe, mais dentro que é para não estar a medir numa ponta da pele e a gente anda ao redor da pele e vê que a espessura não está…”


35:22 Adv. Autora: “A questão há quanto tempo é que ele não é calibrado Sr. BB?”


35:26 BB: “Não, esse aparelho, é um aparelho que está equilibrado de ofício, porque o Sr. não tem conhecimento, mas o aparelho é como um relógio, o aparelho está no ponto zero e no zero passa o um, dois, três, quatro, cinco e por adiante e estão ele estando… tem um molazinha…, e estando a zero está equilibrado.” 35:50


Também DD, em termos que se afiguraram convincentes, deu conta nas declarações que prestou em julgamento a 06.03.2025, da verificação que fizeram, nos seguintes termos:


20:19 Juíza: “Quando é que foram ver a espessura da pele (…)?”


20:24 NL: “Foi na mesma semana, foi na mesma semana, eu agora concretamente eu não sei, mas talvez no dia seguinte (…);”


20:47 Juíza: “E quem é que verificou, foi a Sr.ª ou foi o seu pai?”


20:50 NL: “Na altura verifiquei, só que nesse, provavelmente como o meu pai, prontos agora tem um problema de saúde, no dia seguinte mostrei-lhe e verificou que a pele não estava conforme àquilo que a gente queria fazer (…).”


21:31 Juíza: “Foi o seu pai que viu isso ou a Sr.ª também constatou isso?”


21:35 NL: “É assim, eu tou a aprender, eu fui aprendendo com ele e eu vi assim por alto que não estava muito bem, mas ele percebia melhor e depois nós com o nosso aparelho que temos lá, eu chamo-lhe o peking list, é o medidor de peles e a gente apercebeu-se que aquilo não tinha a espessura correcta para o produto que queríamos fazer.”


Por fim, ainda, AA afirmou que as peles não estavam em condições:


25:31 Juíza: “E quando fala com o Sr. EE, imaginando que foi com o Sr. EE, o Sr. já disse que não consegue precisar mas acha que foi, a resposta que lhe é dada é logo negativa, ou seja, não, nós não vamos aceitar essa devolução, por isso ou por aquilo?”


25:44 MD: “Vai-se ver… e depois não aceitamos porque as peles já estão aí há algum tempo, mas depois, mais tarde… as peles que não estavam em condições, não estavam.” 25:52 (sublinhado nosso).


Não havendo razões válidas para pôr em causa as declarações e testemunho convergentes, deverá manter-se inalterada a redacção do facto provado n.º 17.


v.


Facto provado número 18:


C.5 - Ponto 18 dos Factos provados


“18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada mas situada entre 16-01-2024 e 30-01-2024, reclamando das diferenças referidas em 17 e pedindo a devolução das peles à A..”


Entende a Recorrente que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provada a matéria em apreço por ignorar que DD confessou ter efectuado a reclamação fora do prazo estabelecido no verso da fatura quando, a minutos 29:55 respondeu, “[s]im, não respeitámos esse prazo porque a gente nem nunca olhou pó pó verso da fatura nós olhamos sempre para a parte da frente seja o fornecedor que for.”, à pergunta do advogado da Ré: “[p]orque é que não respeitaram esse prazo?” (inscrito no verso da factura).


Trata-se, todavia, de uma alegação estribada numa única resposta de DD, induzida pelo modo como a pergunta foi feita, descontextualizando-a do conjunto das suas declarações das quais decorre, clara e repetidamente, que fizeram a reclamação ao Sr. AA na mesma semana em que receberam a mercadoria.


Não houve, por isso, a alegada confissão, como se verifica da transcrição mais completa, produzida de seguida:


29:47 Adv. R.: “No verso das faturas têm sempre o prazo para reclamação.


29:50 DD: “Sim.”


29:52 Adv. R.: “Porque é que não respeitaram esse prazo?


29:55 DD: “Sim, não respeitámos esse prazo porque a gente nem nunca olhou pó pó verso da fatura nós olhamos sempre para a parte da frente seja o fornecedor que for.”


30:05 Adv. R.: “Mas respeitaram o prazo só que não foi por escrito?”


30:09 DD: “Foi.” (…)


30:22 Adv. R.: “…o que fizeram foi o quê, ligar?”


30:25 DD: “Ligámos, ligámos e nem foi derivado a esse termo de data que estava no verso porque a gente nem sabíamos.” (…)


30:43 Adv. R.: “Quando dão conta que as peles não têm as tais 20 linhas, o que é que fazem?


30:47 DD: “Reclamámos nessa mesma semana.


30:50 Adv. R.: “Como?”


30:51 DD: “Foi por telefone, não foi por escrito.”


30:54 Adv. Ré: “A quem?”


30:55 DD: “Sr. AA. (…)” (sublinhados nossos).


Aliás, DD havia já produzido declarações no mesmo sentido, questionada pela Sr.ª Juíza, como decorre da transcrição que segue:


20:19 Juíza: “Quando é que foram ver a espessura da pele, foi no próprio dia, foi o dia a seguir, foi passados três dias, foi dali a duas semanas?”


20:24 NL: “Foi na mesma semana, foi na mesma semana, eu agora concretamente eu não sei, mas talvez no dia seguinte porque as anomalias não estando correctas eu tenho que avisar o meu pai antes de ir o artigo para a produção (…) temos que reclamar.”


20:47 Juíza: “E quem é que verificou, foi a Sr.ª ou foi o seu pai?”


20:50 NL: “Na altura verifiquei, só que nesse, provavelmente como o meu pai, prontos agora tem um bocado problema de saúde, como ele não está 100% na empresa, eu no outro dia a seguir, provavelmente podia ter acontecido que eu agora não me recordo mas sei que foi nessa semana, mostrei-lhe a pele e a pele não estava conforme àquilo que a gente queria fazer” (…)


25:12 Juíza: Portanto, não terá sido no próprio dia em que receberam esta pele que fizeram a reclamação ao Sr. AA, terá sido na mesma semana?


25:24 NL: “Na mesma semana, agora o dia exacto da semana não sei quando foi, mas…”


25:30 Juíza: Dia 15 foi uma quarta-feira, tem alguma ideia se terá sido antes do fim de semana ou depois do fim de semana. Quando diz ainda na mesma semana, é antes do fim de semana que se seguiu?


25:40 NL: Não sei, agora não me recordo, podia ter sido na semana a seguir, segunda-feira, não sei, agora ao certo não sei.” (sublinhados nossos).


É, deste modo, infundado o argumento da Recorrente para pôr em crise o teor do facto provado numero 18 que deverá manter a sua redacção.


vi., vii. e viii.


Factos provados números 19, 21 e 23:


“19. AA comunicou o referido em 18 à A., logo após o contacto de BB.”


“21. Após vários contactos de AA com a A. para que esta recolhesse as peles referidas em 16 sem que esta o fizesse, AA recolheu as peles nas instalações da R. e deixou-as nas instalações da A., em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2024.”


“23. A nota de devolução referida em 22 foi entregue a AA, tendo um duplicado (assinado por este) ficado na posse da R. e outro sido entregue por AA nas instalações da A., conjuntamente com as peles referidas em 16.”


Entende a Recorrente que o tribunal comete um erro de apreciação da prova por ter:


- ignorado que o Legal Representante da Ré, BB, confessou no seu depoimento que tinha as peles nas instalações da R. depois do pedido de pagamento que só chegou à Ré em 02.05.2024 (cfr. minutos 18:57 e 51:10 das suas declarações);


- ignorado o depoimento de DD, do qual se retira que não apresentaram reclamação até ao recebimento da carta de 02.05.2024;


- acreditado no depoimento de AA que faltou à verdade, se contradisse e foi desmentido pelos outros depoimentos, ignorando que não pode considerar isento quem não usou a oportunidade de pegar num pacote de peles, mandar analisar no laboratório do CTIC, entidade independente e habilitada para decidir uma alegada reclamação quanto à espessura e cor da pele;


Logo, conclui a Recorrente, se umas peles estão nas instalações da Ré quando esta recebeu, em 02.05.2024, o pedido escrito para as pagar, não podem ter sido deixadas nas instalações da Autora em data anterior, entre 02.04.2024 e 05.04.2024.


Analisemos os fundamentos da discórdia da Recorrente.


No que respeita às alegadas confissões de BB e DD relativas à presença da mercadoria nas instalações da Ré no dia 02.05.2024, estamos perante uma leitura enviesada, uma interpretação claramente infundada das declarações por estes prestadas.


BB não disse que as peles estavam nas suas instalações no dia 02.05.2024 ou na data em que recebeu a carta enviada pela Autora a 30.04.2024 e recebida a 02.05.2024 (melhor descrita no facto provado número 24). Na verdade, o sócio-gerente da Ré não fala, nesse contexto, em qualquer data, carta ou comunicação escrita. A Recorrente é que, sem justificação, tira das suas palavras uma conclusão que estas não consentem.


BB disse que: “…um dia eu chateei-me tanto com o Sr. AA e disse-lhe: ó Sr. AA, você não está a ser homem nenhum, você veja essa situação, eu tenho lá o Last Discover, a empresa, a pedir-me o pagamento, as peles estão aí eu não as gasto, você desenrasque-se, pegue nas peles (…)” (sublinhado nosso).


Se atentarmos nas suas declarações imediatamente anteriores - em que BB diz “[e]ssa pele não tinha a espessura, automaticamente nós ligámos. Eu mandei ligar e em seguida liguei eu ao Sr. AA: que não queria aquelas peles que se entendesse com o fabricante que tinham de me repor umas peles que tivessem a espessura correcta para eu poder gastar as peles. Insisti pronto… e ninguém quis saber. Aquilo passou-se, passou-se, passou-se e eu sempre a insistir com o sr. AA. Aquilo acabou por… as peles foram ficando ali e eu não as gastava e recusavam-se a levantar as peles (…)” (sublinhado nosso) – facilmente compreendemos que, ao recusar-se a levantar as peles desconformes com a requisição, a Autora e aqui Recorrente não estava a aceder ao pedido de devolução da mercadoria que já havia sido feito pela Ré através de AA, o que tinha por consequência a obrigação de pagamento por parte da compradora, da factura que já havia sido emitida e recebida, no respectivo prazo de vencimento.


O que é consonante com o que, a instâncias do mandatário da Autora, BB (cfr. minutos 45:25 a 46:00) declarou, descrevendo que depois de informar AA do problema de qualidade da pele, este lhe disse que ia contactar a Last Discover para levantar as peles, mas esta o não fez e que só por muita insistência do legal representante da Ré, AA acabou por levá-las, nos seguintes termos:


45:39 ML: “Certo é que nunca ninguém deu seguimento àquilo e eu de vez em quando chateava outra vez o Sr. AA, então como é que é, tenho aí a factura, estão-me a pedir o dinheiro da factura, as peles não estão conforme, o Sr. resolva esse problema, mande-me as peles embora e resolva o problema. 46:00 (…)


50:53 ML: “…o Sr. AA, segundo ele dizia que estava farto de contactar a Last Discover (…) contactava e certo é que reclamavam o pagamento mas não levantavam as peles.”


51:15 Adv. A.: “Mas o Sr. AA disse que eles aceitaram a reclamação?”


51:18 ML: “Não (…).”


51:31 Adv. A.: “…eu perguntei-lhe se o Sr. AA lhe disse que eles teriam aceite a reclamação?”


51:36 ML: “Não, o Sr. AA, eu pressionei, tanto pressionei, porque mandei pegar nas peles tal e qual como foram, mandei pôr à beira da porta, ligar ao Sr. AA, ou fui eu que liguei (…) pegue lá as peles, faz favor carregue-as consoante você quiser e ele lá carregou as peles.” 52:05


Do mesmo passo, também DD disse (minutos 22:40 a 24:05) que depois de informado AA da desconformidade das peles, este disse que ia informar a Autora e demorou a responder, acabando por lhes dizer que não havia resposta da parte desta, o que determinou o pedido ao Sr. AA para levar o artigo para a Autora e a emissão de nota de devolução por parte da Ré, tendo o Sr. AA levado a nota de devolução e o artigo.


Note-se que a referência da Recorrente às declarações produzidas por DD dos minutos 30:13 a 30:40, não tem qualquer relevância para o efeito pretendido pela Recorrente como suposta admissão de que a Ré não apresentou reclamação até ao recebimento da carta no dia 02.05.2024.


São as seguintes, as declarações em apreço:


30:10 Adv. R.: “Então entraram em contacto porquê? Porque era assim que faziam até então?”


30:13 DD: “Não, nós cumpríamos aquele, aquelas datas, de cumprir o pagamento dentro daquelas datas.”


30:18 Adv. R.: “Não, mas estou a dizer que, quando digo não cumpriram é que não foi por escrito. Mas o que fizeram foi o quê? Ligar, como é que?”


30:24 DD: “Ligámos… ligámos, nem foi derivado a esse termo de data que estava no verso porque a gente nem sabia…”


30:31 Adv. R.: “Mal… então mal viram que…”


30:32 DD: “Mal vimos aquela carta depois, é que nos apercebemos…”


DD estava a referir-se aos dizeres constantes do verso das facturas, significando com as suas afirmações que só depois de terem recebido a carta - a 02.05.2024 - se aperceberam que do verso das facturas constava, entre outros dizeres, que a reclamação deveria ser feita por escrito. Mais: DD é clara na manifestação de que tinham feito a denúncia dos defeitos telefonicamente e só depois, quando receberam a carta, se aperceberam de que as facturas mencionavam que devia ser feita por escrito.


Vista a falta de fundamento das objecções colocadas pela Recorrente com base nas declarações de BB e DD, detenhamo-nos agora na questão da falta de credibilidade da testemunha AA.


Segundo a Recorrente, AA não pode ser considerado isento por não ter usado a oportunidade de pegar no pacote de peles, mandar analisar no laboratório do CTIC, entidade independente e habilitada para decidir uma alegada reclamação quanto à espessura e cor da pele.


Não concordamos, na medida em que não era incumbência ou obrigação de AA que, note-se, interveio como angariador de encomendas para a Autora (cfr. minutos 22:20 a 22:50 do seu testemunho, era o legal representante da Autora quem lhe pagava uma gratificação pela sua intervenção nos negócios de vendas de peles), fazer essa diligência.


Não vemos, portanto, como é que a isenção a testemunha poderia depender da realização da análise no laboratório da CTIC.


No mais, a Recorrente limita-se a imputar supostas contradições intrínsecas ao testemunho de AA, na descrição que fez do dia do transporte das peles para Alcanena.


Ouvido o testemunho de AA, não ser vislumbra contradição relevante.


Veio pela A1. Almoçou antes de chegar às instalações da Ré, no restaurante “Cabaça”, à saída da A1. Foi carregar peles a outro fabricante de Alcanena e foi descarregar as peles às instalações da Autora.


Contrariamente ao que entende a Recorrente, a circunstância de AA ter ido carregar primeiro peles a outro fabricante e descarregado depois as peles da Autora, não nos suscita estranheza relevante, desde logo porque disse que a sua viatura tem capacidade para cerca de 5 mil pés de pele, pelo que sobrava espaço para quase 3 mil pés. Por outro lado, não resultou apurada qualquer dificuldade no manuseamento ou acomodação da carga que impedisse ou dificultasse a descarga dos pouco mais de 2 mil pés de pele devolvida pela Ré, depois da colocação da pele que AA veio buscar (cuja quantidade é, aliás, desconhecida).


Deste modo, nenhuma das objecções colocadas pela Recorrente quanto aos meios de prova nos quais o tribunal de 1ª instância se sustentou para prova dos factos provados números 18, 21 e 23, colhe, devendo manter-se nos precisos termos da decisão recorrida.


ix.


Facto não provado b) / aditamento de facto provado:


“b) O contacto referido em 18 apenas teve lugar em abril de 2024 ou, pelo menos, após o dia 23-01-2024.”


Entende a Recorrente que o facto em apreço deve passar para o elenco dos provados e que sua no rol dos não provados ignora a prova que foi feita através da confissão, relevante, de DD, da seguinte forma:


29:51 Adv. R. – “...no verso das faturas têm sempre um prazo para reclamação. Porque é que não respeitaram esse prazo?


29:55 DD – “Sim, não respeitámos esse prazo porque a gente nem nunca olhou pó pó verso da fatura nós olhamos sempre para a parte da frente seja o fornecedor que for.”


Uma vez que o fundamento invocado pela Recorrente repete um dos argumentos usados na sua discordância quanto ao teor do facto provado número 18, dão-se aqui por reproduzidas as considerações expendidas em v. supra, a propósito das declarações prestadas por DD, das quais resulta que, contrariamente ao alegado pela Recorrente, a Ré fez a reclamação ao Sr. AA na mesma semana em que recebeu a mercadoria, pelo que a matéria do facto não provado em apreço não se mostra por esta confessada.


Termos em que também improcede este ponto da impugnação da matéria de facto da sentença recorrida.


*


Matéria de facto provada:


*


Em consequência das supra determinadas alterações, a matéria de facto provada a considerar é a seguinte: 4


1. A A. é uma sociedade que se dedica ao comércio de couros, peles e curtumes.


2. A R. é uma sociedade por quotas que se dedica ao fabrico de calçado.


3. A e R. iniciaram a sua relação comercial no ano de 2015, através de AA que, desde essa data e até 2018, exerceu funções de agente comercial da A..


4. No início da relação com a R. (em 2015), com a intermediação de AA, A. e R. acordaram que os preços a praticar a cada requisição seriam apostos pela R. na respetiva nota de requisição e aceites ou não pela A., após a receção das aludidas notas.


5. A partir de 2018, AA deixou de faturar à A. os serviços prestados na qualidade de seu agente comercial, mas continuou a remeter requisições de produto da R. à A., bem como amostras de peles.


6. A maioria das requisições que deram origem a fornecimentos da A. à R. a partir de 2018 e até 2024 chegaram por email, com origem no endereço do cônjuge de AA.


7. Nas encomendas de peles com cor diferente das anteriormente fornecidas pela A., a R. entregava a AA, conjuntamente com a nota de requisição, uma amostra da pele pretendida.


8. A maioria das amostras enviadas pela R. à A. para fornecimentos, a partir de 2018 e até 2024 chegaram à A. por entrega de AA aos transportadores a que a A. recorria para entregas na zona norte do país.


9. Após recebimento das requisições da R., a A. entregava as peles encomendadas nas instalações da R., através de transportadores seus, sendo transmitido pela A. a AA a data prevista para entrega, a qual, por sua vez, AA comunicava à R.


10. A R. sempre procedeu ao pagamento das mercadorias entregues pela A., após o exame da mercadoria e por transferência bancária.


11. No dia 04-01-2024, a R. emitiu uma nota de requisição de 2000 pés de pele Texas castanho, de cor «igual à amostra», peles de segunda escolha e espessura de 20 linhas, pelo preço de 2,00€, indicando as seguintes condições de pagamento: «Pronto pagamento, transferência bancária com 3% e desconto.» e o seguinte prazo de entrega: «15 de Janeiro se for possível».


12. A nota de requisição referida em 11 foi acompanhada de uma amostra da pele pretendida pela R..


13. A R. entregou a nota de requisição referida em 11 a AA, tendo este assinado o original, que ficou na R., e ficado com um duplicado do mesmo, que remeteu à A. por email.


14. Em 12-01-2024, a A. faturou 2.035,50 pés de pele de vaca texas castanho à R mediante a emissão da fatura n.º FA 2024/8, no valor de 5.007,33€, a pronto pagamento.


15. Do verso da fatura referida em 14, bem como de outras faturas que foram, anteriormente, emitidas pela A. à R. constava o seguinte:


«Só se aceitam reclamações ou devoluções dentro do prazo de 8 (oito) dias a contar de Receção da Mercadoria. (…)


Todas as reclamações ou devoluções deverão ser efetuadas por escrito e trazer discriminados os respetivos motivos. As análises das peles que eventualmente venham a ser reclamadas terão de ser feitas no Centro Tecnológico da Indústria de Curtumes de Alcanena e de acordo com as normas ISO aceites pelo Instituto Português da Qualidade.»


16. No dia 15-01-2024, a A. procedeu à entrega, nas instalações da R., de 96 peles com 2.035,50 pés, em 14 pacotes, entrega efetuada na sequência da nota de requisição referida em 11.


17. A cor e a espessura das peles referidas em 16 não eram iguais à amostra referida em 12, e não podiam ser utilizadas pela R. para fabrico do calçado a que as destinara.


18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada mas situada entre 16-01-2024 e 30-01-2024, reclamando das diferenças referidas em 17 e pedindo a devolução das peles à A..


19. AA comunicou o referido em 18 à A., logo após o contacto de BB.


20. No dia 29-02-2024, o funcionário da A. EE, enviou um email para a R. com o seguinte teor: «Estando em processo de conferencia de contas, vimos por este meio solicitar a V. Exas o envio de extrato de conta (todos os movimentos) referente período de Janeiro de 2023 até à presente data. Gratos pela atenção dispensada Atentamente».


21. Após vários contactos de AA com a A. para que esta recolhesse as peles referidas em 16 sem que esta o fizesse, AA recolheu as peles nas instalações da R. e deixou-as nas instalações da A., em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2024.


22. Em 02-04-2024, a A. emitiu a nota de devolução n.º DV 2024/0008, com o seguinte teor: «Devolução de artigo referente a vossa fatura nº 2024/8 devido a côr e expessura da pele estar incorreta texas castanho 2035,50 pe», no valor de 5.007,33€.


23. A nota de devolução referida em 22 foi entregue a AA, tendo um duplicado (assinado por este) ficado na posse da R. e outro sido entregue por AA nas instalações da A., conjuntamente com as peles referidas em 16.


24. Por carta datada de 23-04-2024, expedida no dia 30-04-2024 e recebida pela R. em 02-05-2024, à qual foi junta a nota de devolução referida em 22, a A. comunicou à R. o seguinte:


«Assunto: V. nota Devolução DV 2024/008


Exmos. Sr(s)


Recebemos com espanto a V. Nota devolução DV 2024/0008 datada de 2024/4/2 referente à nossa fatura nº 2024/8 de Janeiro de 2024.


Não podemos aceitar a devolução em Abril de umas peles entregues em Janeiro de 2024, que nunca nos foram reclamadas.


Por isso não procedemos ao levantamento das peles nas Vossas instalações e devolvemos em anexo a esta carta o original e duplicado da V. Nota devolução DV 2024/0008 para que possam proceder á sua anulação.


Solicitamos o pagamento imediato da fatura 2024/8 para a nossa conta do Montepio Geral, IBAN....»


25. A R. não respondeu às comunicações referidas em 20 e 24.


26. A R. não procedeu ao pagamento da fatura referida em 14.


27. No dia 18-06-2024, o funcionário da A. EE, enviou um email para a R. com o seguinte teor: «Vimos por este meio solicitar a liquidação da factura n.º 8/2024. Atentamente».


28. No dia 12-07-2024, o funcionário da A. EE, enviou um email para a R. com o seguinte teor: «Estando em processo de conferencia de contas, vimos por este meio solicitar a V. Exas o envio de extrato de conta (todos os movimentos) referente período de Janeiro de 2023 até à presente data. Gratos pela atenção dispensada Atentamente».


*


***


B. De direito


*


No que respeita à apreciação do pedido formulado pela Autora da presente acção, a Recorrente não discorda das considerações jurídicas vertidas na sentença recorrida, fundando o recurso exclusivamente nas consequências que a alteração da matéria de facto por si propugnada teria na aplicação do direito ao caso.


Na precedente apreciação da impugnação da matéria de facto, foi alterada a redacção dos factos provados números 10, 15 e 16.


Vejamos, por isso, se tais alterações condicionam o destino do pedido da acção, à luz do direito aplicável ao caso.


*


Do regime da compra e venda mercantil “sobre amostra ou por designação de padrão”


*


As partes da acção celebraram entre si, no âmbito das respectivas actividades sociais, contrato de compra e venda que, no regime previsto pelos art.ºs 874º e 879º, do Código Civil, “...transmite a propriedade de uma coisa, ou de outro direito, mediante um preço”, tendo como efeitos essenciais, para além daquela transmissão de propriedade e da obrigação de pagar um preço, a obrigação de entrega da coisa vendida.


Sendo A. e R. sociedades comerciais e o objecto da compra e venda resultado da produção para revenda da Autora, destinado ao fabrico de calçado para revenda por parte da Ré, estamos perante um acto de comércio praticado por comerciantes e um contrato de compra e venda comercial (cfr. artigos 2º, 13º, n.º 2 e 463º, n.º 1, todos do Código Comercial).


No caso, decorre do facto provado número 11 que as peles foram vendidas com base numa amostra da pele para aferição da cor “igual à amostra” e numa requisição na qual se indicava “peles de segunda escolha e espessura 20 linhas”, ambas previamente remetidas pela R. à A..


Reproduz-se, a propósito, a pertinente passagem da sentença recorrida: “…[n]este tipo de contratos, por o objeto a vender não estar presente no momento do acordo de vontades, o mesmo é substituído por outro referente, que tanto pode ser uma amostra (ou seja, uma coisa que, não sendo o objeto do contrato, é do género dele e permite às partes identificarem de forma clara e entre si as características e qualidades que o objeto do contrato deverá ter), como uma referência à qualidade e/ou padrão conhecidos no mercado (que tem sido apelidada, nos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, de «amostra mental») e que permite também logo identificar o bem objeto do contrato.”


Como a compra e venda em apreço incidiu sobre objecto que não se encontrava presente no momento do acordo de vontades, feita “sobre amostra” e “por designação de padrão” de qualidade indicado na requisição, nos termos e para os efeitos previstos pelo artigo 469º do Código Comercial, “…considera[m]-se sempre como feita[s] debaixo da condição de a coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada.”


E tratando-se de uma venda comercial sobre condição, é-lhe aplicável o disposto no artigo 471º do Código Comercial, sobre a “conversão em perfeitos dos contratos condicionais”, do qual decorre que:


As condições referidas (…) haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.


§ único. O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado.”


A norma do art.º 471º do Código Comercial em apreço estabelece um regime próprio para a perfeição da venda mercantil sob condição, do qual decorre que a eficácia do contrato celebrado não depende do mero acordo de vontades, inerente transmissão da propriedade da coisa e constituição das obrigações de entrega da coisa pelo vendedor e correspetivo pagamento do preço pelo comprador, estando ainda dependente da conformidade entre a amostra / padrão de qualidade e o objecto entregue.


De tal modo que a verificação da conformidade entre o objecto e a amostra / padrão, não se situa no âmbito do cumprimento pontual do contrato (cfr. art.º 406º do CC), mas num momento anterior que é o da perfeição do negócio jurídico.


Como bem consta da sentença recorrida:


“Neste tipo de convénio, o acordo de vontades alcançado tem o significado jurídico da celebração de um contrato de compra e venda, mas sob uma condição suspensiva negativa que é a de não reclamação do comprador por desconformidade entre a amostra e o bem fornecido pelo vendedor. (…)


Assim, caso o comprador nada reclame nos aludidos prazos, o contrato de compra e venda não precisará de mais nada para se firmar e vingar na ordem jurídica (sem prejuízo de, encontrando-se defeito na coisa - diferente da falta de conformidade com a amostra - ter aplicação o regime de venda de coisas defeituosas regulado no Código Civil). Já se houver reclamação por parte do comprador no prazo legal, o negócio de compra e venda pura e simplesmente cai, como se nunca tivesse sido celebrado.” (sublinhados nossos).


Estas particularidades da compra e venda mercantil sob condição, encontram-se patentes na fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.10.2011, relatado pelo Juiz Conselheiro Nuno Cameira no processo n.º 1453/06.9TJVNF.P1.S1, 5 no qual podemos ler que:


“Conforme explica o Prof. Filipe Cassiano dos Santos (Direito comercial português, vol. I, Dos actos de comércio às empresas: o regime dos contratos e mecanismos comerciais no direito português, 2007, Coimbra Editora, pág. 148), “(...) se o comprador reclamar no acto de verificação ou nos oito dias seguintes à entrega (caso a verificação não tenha ocorrido no acto de entrega) contra a desconformidade entre aquilo que foi entregue e a amostra (...), a condição entende-se não verificada e o contrato cai por não verificação da condição negativa (que é a inexistência de reclamação). Para que o negócio possa ficar apto a produzir os seus efeitos próprios é preciso que não haja reclamação no prazo do art. 471.º (condição suspensiva negativa) (...)” (sublinhado nosso). 6


*


Da reclamação das desconformidades


*


Aqui chegados, recorda-se que resultou provada a existência de uma diferença entre a cor e espessura das peles fornecidas pela Autora à Ré e, respectivamente, a amostra e requisição por esta enviadas àquela.


Estamos perante duas desconformidades impeditivas da utilização da pele fornecida para o fim pretendido Ré (cfr. facto provado número 17).


Tendo sido entregues as 96 peles com 2.035,50 pés, em 14 pacotes, nas instalações da R., no dia 15.01.2024, o legal representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data situada entre 16.01.2024 e 30.01.2024, reclamando das diferenças de cor e espessura referidas e pedindo a devolução das peles à A. (cfr. factos provados 16 e 18).


Sobre a eficácia perante a sociedade Autora, da reclamação realizada pela R. a AA, remeteremos para completas considerações vertidas na sentença recorrida que, não só nos merecem inteira concordância como não foram questionadas nas alegações de recurso, reproduzindo-se em seguida apenas as passagens tidas por mais relevantes:


“…a factualidade apurada nos autos revela que todos os contactos atinentes à relação comercial de compra de peles da R. à A. se haviam efetuado, desde o início desta relação e até janeiro de 2024, por intermédio da pessoa de AA, não recusando, aliás, a A. que todos os negócios que este intermediou a tenham obrigado.


É certo que não se apurou que AA tivesse poderes de representação da A. nem que tivesse, à data da encomenda em causa nos autos, uma relação contratual com a A. que lhe permitisse celebrar negócios em seu nome ou receber reclamações pelos produtos fornecidos em cumprimento de tais encomendas.


Todavia, como se viu já, esta compra e venda tem cariz mercantil, pelo que se lhe aplica o disposto no artigo 248.º do Código Comercial, que descreve a figura do «gerente de comércio» como «todo aquele que, sob qualquer denominação, consoante os usos comerciais, se acha proposto para tratar do comércio de outrem no lugar onde este o exerce ou noutro qualquer.»


Como sublinha Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (in «A Preposição», apud «Revista de Direito comercial», disponível online no endereço https://www.revistadedireitocomercial.com/a-preposicao, página 181, consultado em 15-09-2024), «… a noção do art. 248º do Código Comercial não corresponde a um conceito, e muito menos a uma definição. Antes, traduz uma descrição tipológica de uma realidade: a preposição.» (…)


Assim, estabelecendo-se que estamos perante um preposto, tem aplicação o disposto no artigo 249.º do Código Comercial (nos termos do qual «O mandato conferido ao gerente [de comércio, i.e., ao preposto], verbalmente ou por escrito, enquanto não registado, presume-se geral e compreensivo de todos os actos pertencentes e necessários ao exercício do comércio para que houvesse sido dado, sem que o proponente possa opor a terceiros limitação alguma dos respectivos poderes, salvo provando que tinham conhecimento dela ao tempo em que contrataram.»


Por outro lado, o artigo 250.º do Código Comercial prevê ainda que estes gerentes de comércio, ou prepostos, «tratam e negociam em nome de seus proponentes», resultando do proémio do artigo 251.º que, quando assim procedam, todas as obrigações por eles contraídas recaem sobre os proponentes.


Destarte, aquele que negoceie com alguém que se apresente como atuando em nome de uma sociedade comercial, ou que exerça perante esse alguém os direitos que pudesse opor à aludida sociedade, pode reclamar dessa sociedade o cumprimento das obrigações decorrentes do exercício desses direitos, caso prove que a pessoa com quem negociou se apresentou como estando colocado à frente do todo ou de parte do comércio dessa empresa, de modo público e estável. (…)


Voltando ao caso sub judice, o que a factualidade apurada revela é que AA sempre se apresentou como a única cara da A. perante a R. e o seu Legal Representante, negociando os preços e condições de fornecimento iniciais, recolhendo requisições e amostras da R. e fazendo-as chegar à A., sem que se tenha alegado ou provado que a A. alguma vez, em 9 anos de uma relação comercial assim estabelecida, tenha alertado a R. para o facto de este seu preposto, afinal, já não a representar ou não a representar para efeitos de eventual reclamação de defeitos ou desconformidades dos produtos fornecidos.


Assim sendo, e tendo-se provado que a R. reclamou a AA a desconformidade que encontrou nas peles fornecida pela A. em janeiro de 2024, não lhe será oponível a circunstância de não o ter feito diretamente à A., pois, perante si, sempre foi este intermediário que se apresentou como pessoa habilitada a receber encomendas, amostras e propostas e a garantir o cumprimento das obrigações de fornecimento que delas advinham para a A.


Tão pouco será oponível à R. a circunstância de, no verso das faturas emitidas, vir expressa a necessidade de as reclamações serem efetuados por escrito, pois se a R. comunicou a reclamação a alguém que, perante si, sempre representou a A. (permitindo a A. que esta perceção se mantivesse e dela beneficiando), e não tendo essa pessoa (AA) advertido a R. para a necessidade de fazer a reclamação por escrito (antes comunicando à A. a reclamação e aceitando as peles devolvidas e nota de devolução) seria um venire contra factum proprium da A., intolerável pelo Direito, pretender não se vincular (apenas) quanto a este comportamento do seu preposto.” (fim de citação)


As razões expostas levam-nos, tal como a decisão em recurso, a concluir que a Ré apresentou à Autora, por intermédio do seu preposto AA, reclamação válida quanto à qualidade da mercadoria recebida.


*


Da caducidade do direito da Ré


*


Vimos já que é de 8 dias, o prazo peremptório previsto pelo artigo 471º do Código Comercial para o exercício do direito de reclamação pelo comprador que obsta à consumação do negócio.


Este prazo é de caducidade do direito do comprador obstar à perfeição do negócio de compra e venda mediante invocação das desconformidades com a amostra / padrão (cfr. artigo 298.º, n.º 2, do Código Civil).


Assim, uma vez demonstrado o decurso dos oito dias contados a partir da data da entrega da mercadoria, sem que ocorra reclamação, considera-se preenchida a condição de conformidade com a amostra ou o padrão designado, ficando o contrato de compra e venda perfeito e plenamente eficaz.


Aplicando à situação vertente as regras da repartição do ónus da prova previstas nos números 1 e 2 do artigo 342º do Código Civil, impende sobre o comprador o ónus de alegar e provar que apresentou a reclamação como elemento constitutivo do seu direito a impedir a perfeição do negócio, sendo sobre o vendedor que que recai o ónus de alegação e prova de que o comprador o fez para além dos oito dias previstos na norma em apreço, enquanto facto impeditivo daquele direito do comprador.


Compulsados os autos, encontra-se provado que os 2.035,50 pés de peles foram entregues à Ré no dia 15.01.2024 e que o legal representante desta entrou em contacto com AA, em data situada entre 16.01.2024 e 30.01.2024, reclamando das diferenças de cor e espessura referidas e pedindo a devolução das peles à A..


Assim, a Autora / vendedora não logrou provar que a reclamação foi produzida necessariamente depois de 23.01.2024, data correspondente aos oito dias volvidos sobre a entrega a 15.01.2025.


Não resultando da matéria de facto provada que o direito de reclamação das desconformidades das peles estivesse caducado no momento em que foi pela Ré exercido, conclui-se que esta obstou, com a sua prática, à perfeição do negócio de compra e venda celebrado entre as partes, razão pela qual não assiste à Autora direito de exigir da Ré o preço das peles que, para além do mais, foram já devolvidas e entregues nas instalações da Autora.


*


Bem andou, por isso, a sentença da 1ª instância quando julgou improcedente o pedido formulado pela Autora.


*


Da condenação da A. como litigante de má-fé


*


A Recorrente insurge-se também contra a sua condenação como litigante de má-fé, invocando, em síntese, que:


a) - “assentou no facto de o Tribunal a quo ter considerado que a testemunha AA, seria representante / funcionário / vendedor trabalhador / comissionista da recorrente…” quando não foi alegada nos autos essa relação;


b) - não resultou apurado, da prova produzida, que tivessem sido entregues “…as peles ao legal representante da Autora, para que dessa forma fosse um facto do qual devesse ter conhecimento direto e pessoal, e por essa via, necessariamente as suas declarações tivessem de ser em sentido diverso do que foram (negou a entrega das peles)”;


c) - mostrava-se “…necessário integrar a condenação numa das condutas previstas em qualquer das alíneas do artigo 542º, n.º 2 do CPC, em ordem à posterior condenação, e, bem assim, a considerar-se provado o elemento subjetivo das condutas normativas consagradas na lei”, nada tendo sido considerado provado a esse respeito pelo tribunal a quo.


Antes de entrar na análise de cada um dos enunciados pontos das alegações recursivas, afigura-se conveniente esclarecer que as considerações feitas pela Recorrente sobre os testemunhos de AA e de EE, bem como o depoimento de parte de CC (cfr. conclusões n.ºs 94 a 104) - para concluir que dos mesmos não resulta terem as peles devolvidas sido entregues à pessoa do legal representante da Autora e que, consequentemente, devia o tribunal colocar a hipótese de este não ter tido conhecimento dessa mesma entrega - são totalmente irrelevantes e desnecessárias. Irrelevantes porque não têm em vista a alteração de qualquer facto provado ou não provado da sentença que possa influir no juízo realizado sobre a litigância de má-fé da Autora. Desnecessárias porque da matéria de facto provada não resulta que a mercadoria foi entregue ao legal representante da Autora, mas tão somente, como do facto provado número 21 decorre, que “…AA recolheu as peles nas instalações da R. e deixou-as nas instalações da A., em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2024.”


Outra nota prévia dirige-se à alegada confissão do legal representante da Ré (cfr. conclusões de recurso n.ºs 112 e 113), relativamente à qual o que havia a dizer consta já da decisão da impugnação da matéria de facto, onde se concluiu que não houve confissão.


Analisemos agora os argumentos da Recorrente sintetizados das alíneas a), b) e c) supra:


a)


Quanto ao entendimento da Recorrente, de que a sua condenação como litigante de má-fé “…assentou no facto de o Tribunal a quo ter considerado que a testemunha AA, seria representante / funcionário / vendedor trabalhador / comissionista da recorrente (…)”, verifica-se que esta leitura não tem adesão aos fundamentos da sentença recorrida, pois o que destes resulta é que AA foi um mero “intermediário” no negócio em apreço: remetendo por email requisições de produto; entregando pessoalmente as amostras de pele; sendo pela A. informado das datas da entrega e comunicando-as à Ré; recebendo desta e transmitindo àquela reclamações; fazendo o transporte de peles devolvidas.


É o que consta, entre outras passagens:


- dos factos provados números 5 a 9, 13, 18, 19 e 21 (reiterados nos parágrafos 6º a 9º de fls. 32) da sentença, com o seguinte teor:


“5. A partir de 2018, AA deixou de faturar à A. os serviços prestados na qualidade de seu agente comercial, mas continuou a remeter requisições de produto da R. à A., bem como amostras de peles.


6. A maioria das requisições que deram origem a fornecimentos da A. à R. a partir de 2018 e até 2024 chegaram por email, com origem no endereço do cônjuge de AA.


7. Nas encomendas de peles com cor diferente das anteriormente fornecidas pela A., a R. entregava a AA, conjuntamente com a nota de requisição, uma amostra da pele pretendida.


8. A maioria das amostras enviadas pela R. à A. para fornecimentos, a partir de 2018 e até 2024 chegaram à A. por entrega de AA aos transportadores a que a A. recorria para entregas na zona norte do país.


9. Após recebimento das requisições da R., a A. entregava as peles encomendadas nas instalações da R., através de transportadores seus, sendo transmitido pela A. a AA a data prevista para entrega, a qual, por sua vez, AA comunicava à R. (…)


13. A R. entregou a nota de requisição referida em 11 a AA, tendo este assinado o original, que ficou na R., e ficado com um duplicado do mesmo, que remeteu à A. por email. (…)


18. Na senda da receção das peles referidas em 16, o Legal Representante da R., BB, entrou em contacto com AA, em data não concretamente apurada mas situada entre 16-01-2024 e 30-01-2024, reclamando das diferenças referidas em 17 e pedindo a devolução das peles à A..


19. AA comunicou o referido em 18 à A., logo após o contacto de BB. (…)


21. Após vários contactos de AA com a A. para que esta recolhesse as peles referidas em 16 sem que esta o fizesse, AA recolheu as peles nas instalações da R. e deixou-as nas instalações da A., em data não apurada, mas situada entre 02-04-2024 e 05-04-2024. (…)” (sublinhados nossos).


- da motivação sobre a decisão da questão da oponibilidade à Autora da reclamação apresentada pela Ré junto AA (cfr. parágrafos 4º de fls. 25 e 3º de fls. 28 da sentença):


“É certo que não se apurou que AA tivesse poderes de representação da A. nem que tivesse, à data da encomenda em causa nos autos, uma relação contratual com a A. que lhe permitisse celebrar negócios em seu nome ou receber reclamações pelos produtos fornecidos em cumprimento de tais encomendas.”


“Assim sendo, e tendo-se provado que a R. reclamou a AA a desconformidade que encontrou nas peles fornecida pela A. em janeiro de 2024, não lhe será oponível a circunstância de não o ter feito diretamente à A., pois, perante si, sempre foi este intermediário que se apresentou como pessoa habilitada a receber encomendas, amostras e propostas e a garantir o cumprimento das obrigações de fornecimento que delas advinham para a A.” (sublinhados nossos).


- e dos fundamentos sobre a questão da litigância de má-fé (cfr. parágrafo 5º de fls. 33 da sentença):


“Ora, como se adiantou já, a prova produzida em julgamento revelou uma versão da realidade diferente da que a A. alegou ter ocorrido, ou melhor, revelou ser verdade o que a A. negou perentoriamente, evidenciando que AA intermediou toda a relação comercial entre A. e R. desde o seu início e até 2024, sendo que, até 2018, foi mesmo pago por esses serviços de intermediação que prestou à A., e que lhe faturou, e, depois dessa data, continuou a ser a única ponte entre A. e R. na recolha de requisições e amostras de produtos junto da R. e sua remessa à A. e o único ponto de contacto da A. que a R. conhecia.” (sublinhados nossos).


Resultando evidente que a decisão em apreciação não conferiu outro papel a AA, para além do de intermediário no negócio que dá causa à presente acção, é também incontornável que a A. / Recorrente negou, nos artigos 5º, 6º, 8º e 11º do seu requerimento de resposta às excepções, junto no dia 06.12.2024, que a referida testemunha tivesse efectuado a intermediação do negócio com a Ré, assim como a entrega das peles nas instalações da Autora, limitando-se a admitir que por razões de amizade com os representantes da A. e da R., a testemunha fazia “pontuais entregas de peles à Ré” (cfr. artigos 9º e 10º do mesmo requerimento).


Deste modo, a alegação produzida pela Autora não belisca a fundamentação da sentença recorrida, nem a conclusão de que ao negar a existência da intermediação da testemunha no negócio em apreço, contra a verdade dos factos, a Autora condicionou o andamento do processo, já que AA constituía e constituiu o elo de transmissão da informação entre as partes sobre a qualidade da mercadoria transacionada.


b)


Quanto à circunstância de não ter resultado apurado, da prova produzida, que tivessem sido entregues “…as peles ao legal representante da Autora, para que dessa forma fosse um facto do qual devesse ter conhecimento direto e pessoal, e por essa via, necessariamente as suas declarações tivessem de ser em sentido diverso do que foram (negou a entrega das peles).”, recordemos, primeiramente, o que consta da motivação da sentença em sede de apreciação da questão da litigância de má-fé:


“Ademais, do cotejo da demais prova produzida (nomeadamente do cruzamento do depoimento da testemunha AA com o testemunho de EE e com o depoimento de parte da A.) resultou evidenciado que, contrariamente ao que a A. negou perentoriamente e por várias vezes no articulado de resposta às exceções, AA deixou, efetivamente, as peles cujo preço é peticionado nos autos nas instalações da A.


Atendendo a que esta realidade foi confessada pelo Legal Representante da A., é evidente que o mesmo conhecia a verdade que esta negou na peça processual apresentadas nos autos em 06-12-2024.”


Quanto ao primeiro parágrafo dos fundamentos transcritos, resulta, como aí se afirma, efectivamente provado que AA deixou as peles nas instalações da A..


Se foi o legal representante da Autora ou um funcionário desta a abrir a porta e a recebê-las de AA, não se mostra relevante, já que qualquer um deles representaria a pessoa colectiva que é a Autora no acto de recebimento.


Por isso, a partir do momento em que a mercadoria foi entregue nas suas instalações, não pode a Autora invocar o desconhecimento de um facto que lhe é pessoal.


Embora o segundo parágrafo transcrito coloque o enfoque na pessoa do legal representante da Autora (estamos em crer que por estar a referir-se ao seu depoimento de parte), a verdade é que a condenação como litigante de má fé se não dirige a CC, mas à sociedade comercial Autora, sendo a conduta processual desta (pese embora representada por aquele) que está em causa.


Note-se ainda que segundo a sentença recorrida, não é o depoimento de parte do legal representante da Autora que dá fundamento à condenação desta como litigante de má-fé, mas a posição assumida pela Autora no articulado de resposta às excepções, em que negou a entrega das peles nas suas instalações.


Aliás, com a eliminação no actual artigo 544º do CPC, da referência “…a uma pessoa colectiva ou a uma sociedade…” outrora prevista no texto do art.º 458º da versão anterior do CPC, no qual se previa a responsabilidade pelo pagamento das custas, da multa e da indemnização do representante legal que estivesse de má-fé na causa, a responsabilidade pela litigância de má fé passou a ser definitivamente das pessoas colectivas ou sociedades, sem que seja necessário comprovar que os seus representantes estivessem de má fé, assim deixando de existir a responsabilidade substitutiva. Neste sentido, entre outros, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2022, relatado pelo Juiz Conselheiro Vieira e Cunha no processo n.º 1986/06.7TVLSB-D.L1.S1, cujo sumário refere “[n]o regime actual do Código de Processo Civil de 2013, a eventual conduta de litigante de má fé da autora, sociedade comercial, ser-lhe-á directamente imputável, respondendo o seu património, em termos gerais, pelas custas, multas e indemnização em que, a esse título, deva ser condenada, como decorre da norma dos actuais art.ºs 542.º n.º 1 e 544.º CPCiv, este último ainda que interpretado a contrario sensu7, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.11.2022, relatado pelo Juiz Desembargador Edgar Taborda Lopes no processo n.º 7819/18.4T8LSB-D.L1-7. 8


Termos em que também este argumento avançado pela Autora se mostra desprovido de razoabilidade para pôr em crise os fundamentos da decisão da 1ª instância.


c)


Falta-nos, apenas, abordar a terceira objecção colocada pela Recorrente que consiste na necessidade de enquadrar a “…condenação numa das condutas previstas em qualquer das alíneas do artigo 542º, n.º 2 do CPC…” e na falta de factos dos quais resulte o “…elemento subjetivo das condutas normativas consagradas na lei.”.


Consta dos fundamentos da decisão de condenação da A. como litigante de má-fé que:


“(…) Temos, pois, que a A. na resposta às exceções que apresentou em 06-12-2024, alterou a verdade dos factos que o seu Legal Representante conhecia e que (porque chamado oficiosamente pelo Tribunal para prestar depoimento de parte – e apenas por isso) acabou por confessar, assumindo, assim, uma posição nos articulados que não poderia ignorar ser inverídica e que importou um labor acrescido de prova e litigância, que não teria ocorrido acaso tivesse assumido uma posição objetivamente honesta e processualmente leal quanto aos factos que a R. invocara na sua oposição.


Denote-se que, no caso, a não prova do facto que a A. negou, sendo essencial para o enquadramento jurídico da causa, poderia ter importado por si só o sucesso da lide, sendo que foi na sua prova que se alicerçou o sucesso da defesa por exceção apresentada pela R..


A conduta da A. consubstancia, assim, uma paradigmática alteração da verdade dos factos, que forçou a Tribunal a produzir prova sobre matéria que, de outra forma, poderia ter dado desde logo por assente, com desnecessária ocupação dos meios judiciais, pelo que é de concluir que a A. litigou de má-fé.” (sublinhados nossos).


As partes sublinhadas da sentença são claras quanto à modalidade da conduta processual censurável da Autora, traduzida na “alteração da verdade dos factos” (como previsto na al.ª b) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil).


O art.º 542º do C.P.C. prevê um conjunto de elementos objectivos e subjectivos determinantes da litigância de má-fé.


São elementos objectivos as condutas descritas nas alíneas do n.º 2, as quais abrigam um rol de condutas processuais contrárias, reprováveis e censuráveis face aos deveres processuais de boa-fé e de cooperação que impendem sobre os sujeitos processuais.


O elemento subjectivo é a culpa, nas modalidades do dolo ou da negligência grave / grosseira.


Deste modo, ainda que o comportamento processual preencha o circunstancialismo das alíneas a) a d) do n.º 2, este só constituirá litigância de má-fé quando susceptível de revelar um juízo de culpa sobre a parte, seja resultante de conduta dolosa, seja também por negligência grosseira.


Detalhando:


- o dolo supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida – dolo substancial directo – ou da alteração da verdade dos factos ou da omissão de um elemento essencial – dolo substancial indirecto -, podendo ainda traduzir-se no uso consciente e manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais;


- a negligência grave ou grosseira, existirá quando, ainda que a falta de fundamento da pretensão / oposição ou a alteração da verdade dos factos / omissão de elemento essencial, não fosse do conhecimento da parte, lhe seja de tal forma censurável esse desconhecimento que choca ao sentido profundo de justiça e da boa-fé aceitar, sem mais consequências, a forma temerária como apresenta a lide / defesa.


Parece-nos pertinente recordar o que, sobre estas categorias da culpa no âmbito da alteração da verdade dos factos pela parte (alínea b) do n.º 2 do art.º 542º do CPC), se refere na fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21.11.2023, relatado pelo Juiz Desembargador Luís Cravo no processo n.º 1184/21.0T8GRD.C1, tendo por base LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO (inCódigo de Processo Civil anotado”, volume 2º, 2001, a págs. 194-195:


“A concretização do dolo revela-se numa intencionalidade da parte; agirá dolosamente, por exemplo, quem sabe que procede a uma descrição dos factos essenciais não coincidente com a realidade. Do ponto de vista da negligência, nem toda é relevante, mas apenas a mais acentuada, portanto, a que supõe uma atuação sem o mínimo de cautelas ou qualquer espécie de ponderação, a imprudência grosseira na atuação da parte; e agirá assim, por exemplo, aquele que, sem fazer apelo ao mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da sua desrazão, opte temerariamente por proceder à descrição dos factos, que se vêm mais tarde a revelar desconformes com a realidade apurada.” (sublinhados nossos).


Retomando as incidências do caso, vimos que a Autora alegou, falsamente, no articulado de defesa relativamente à matéria de excepção invocada pela Ré, que:


- AA (a quem a Ré comunicou as desconformidades do objecto da compra e venda por amostra / padrão de qualidade) não exerceu qualquer intermediação no negócio em apreço; e


- a mercadoria desconforme lhe não foi entregue para devolução.


Trata-se de dois factos decisivos para o desfecho da acção.


O primeiro (intermediação) porque dele depende a possibilidade da Ré impedir a produção dos efeitos do negócio de compra e venda mercantil por amostra / padrão de qualidade.


O segundo (entrega da mercadoria) porque, se não se verificasse a causa impeditiva da perfeição do negócio aludida do parágrafo precedente, sempre proporcionaria um injusto locupletamento da Autora à custa da Ré, decorrente da obrigação de pagamento do preço de mercadoria que se encontra, afinal, na posse da Autora.


São também factos que a Autora bem sabia, na ocasião da propositura da acção e da apresentação do articulado de resposta, terem sido praticados por AA porque ocorridos entre si (por intermédio dos seus empregados ou representantes) e esta testemunha, em data anterior à entrada da acção em juízo.


Deste modo, a Autora era conhecedora de que estava a fugir à verdade ao negar como negou, a intermediação e a entrega das peles por parte de AA, pretendendo convencer o tribunal de uma realidade que sabia ser diferente, deturpando e corroendo factos pessoais e do seu conhecimento pessoal cuja prova se fez em sentido contrário.


Esta deturpação consciente da verdade de factos essenciais imputável a título doloso é merecedora de censura a título de litigância de má-fé nos termos afirmados pela sentença recorrida.


Razão suficiente para negar o último argumento do recurso interposto da condenação da Autora como litigante de má-fé.


*


***


Custas


*


Não havendo norma que preveja isenção (art. 4º, n.º 2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).


No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.


No caso, a Recorrente não obteve vencimento no recurso pelo que deve suportar as respectivas custas.


*


***


III. DECISÃO


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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:


1.


Julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar o dispositivo da sentença recorrida.


2.


Condenar a Recorrente nas custas do recurso.


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Notifique.


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Évora, d.c.s.


Ricardo Miranda Peixoto


Ana Pessoa


Manuel Bargado

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1. Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, p. 30.↩︎

2. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5c62d7680bfd396180258b8500342396?OpenDocument↩︎

3. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/60b3c297e4f932ed8025820f0051557d?OpenDocument↩︎

4. Incorpora as seguintes modificações resultantes da precedente exposição: alteração da redacção dos factos provados 10, 15 e 16.↩︎

5. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1a564fbb3b2516de8025793c0038e9bc?OpenDocument↩︎

6. Cujo sumário reza:

“I - Celebrado um contrato comercial de compra e venda por amostra (arts. 469.º e 471.º do CCom), o ónus, que incumbe ao comprador, de invocar e demonstrar a desconformidade entre a mercadoria entregue e a amostra que serviu de base ao contrato não se confunde com a denúncia de defeitos, respeitando, antes, à verificação da condição negativa a que se encontra subordinado o contrato – a condição de a coisa ser conforme à amostra –, da qual depende a consideração do negócio como perfeito.”

II - A não invocação de desconformidade relativamente à amostra não afasta a possibilidade de a coisa entregue enfermar de defeito, designadamente, de vício que impeça a realização do fim a que é destinada, como a falta, não patente, de aptidão para tal finalidade.

III - O prazo previsto no corpo do art. 471.º do CCom, de oito dias a partir da entrega da mercadoria, para exame e reclamação, é um prazo de caducidade, conforme resulta do disposto no art. 298.º, n.º 2, do CC.

IV - Quando estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes a caducidade não é apreciada oficiosamente pelo tribunal, devendo ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 303.º, ex vi do art. 333.º, n.º 2, do CC). (…)”↩︎

7. Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/37be40e7891bee5f8025885b0031ef0f?OpenDocument↩︎

8. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/57af10a8b35070c78025890a00562a83?OpenDocument↩︎