CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
REQUISITOS
Sumário

Sumário:
Não configura causa prejudicial a ação proposta posteriormente à ação que se pretende suspender, ainda que nela se discuta questão conexa (como a prescrição do direito em causa), pois inexiste o requisito temporal e a necessária relação de dependência entre as ações (a decisão de uma constitua pressuposto necessário da decisão de outra).

Texto Integral

CONFERÊNCIA

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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,

1. Relatório:


Cervejaria ..., S.A. propôs a presente ação declarativa, constitutiva com processo ordinário, contra:


1.º - AA;


2.º - Fundação ...; e


3.º - BB.


pedindo que seja julgada procedente a impugnação dos atos de disposição gratuita do Primeiro Réu, descritos na petição inicial, a favor da Segunda e do Terceiro Réu e, em consequência declarar-se os referidos atos ineficazes relativamente à Autora.


Alegou para tanto que o devedor desfez-se de património que põe em causa a satisfação do crédito que detém sobre o mesmo, declarado por sentença arbitral.


Os réus contestaram, pondo em causa o crédito de que a autora se arroga titular e concluíram pela absolvição do pedido.


Após a realização do julgamento foi proferida sentença que julgou a presente ação totalmente procedente, decidindo, assim, declarar, em relação à autora Cervejaria ..., S.A., a ineficácia dos atos de disposição patrimonial do réu AA, reconhecendo à autora o direito de executar os bens, com vista a obter a satisfação do seu crédito.


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Desta sentença interpuseram os RR recurso de apelação, que foi admitido.


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Entretanto, estando o processo já nesta Relação, preparado para a prolação de Acórdão, por requerimento autónomo, AA e Fundação ..., Réus e Apelantes, requereram a suspensão da instância, invocando, em síntese, que:

1. Em 12 de janeiro de 2025 propuseram, contra a aqui Autora, uma ação declarativa constitutiva, que corre termos pelo Juízo Central Cível de Lisboa, pedindo:

a. Que se reconheça a prescrição da sentença arbitral proferida no Brasil, declarando-se a insusceptibilidade de ser executada em Portugal, com as legais consequências.

2. A referida sentença arbitral condenou o primeiro réu e ora requerente, no pagamento, à Autora, do valor correspondente ao direito de crédito em que se funda a presente causa.

3. A sentença de reconhecimento dessa sentença em Portugal, cujo trânsito em julgado é um elemento essencial aos presentes autos e pelo qual eles estiveram a aguardar, com suspensão da instância.

4. O mote da propositura dessa nova ação é sério, porque, apuraram recentemente os aqui Réus e ora requerentes, que o direito em que a aqui Autora funda os presentes autos terá prescrito, à luz do direito brasileiro, na medida descrita na petição inicial dessa nova ação e do parecer jurídico com ela junto.

5. A nova ação é causa prejudicial da presente dado que, se julgada procedente, ditará a extinção, na ordem jurídica portuguesa, do direito de crédito em que se funda a presente causa.

6. A ação não foi proposta unicamente para se obter a suspensão.

7. A fase processual dos presentes autos não é motivo suficiente para obstar à suspensão das instâncias.

8. As vantagens são assaz superiores às desvantagens na medida em que o direito de crédito da Autora posto em crise pela nova ação é um elemento-chave da causa de pedir dos presentes autos.

9. Se estes autos não forem suspensos e a sentença recorrida transitar em julgado e se a nova ação vier a ser julgada procedente, o resultado será uma contradição jurídica e judicial direta e no essencial.

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A autora, Cervejaria ..., S.A., respondeu pugnando pelo indeferimento do pedido de suspensão invocando, em síntese, que:

• o momento processual de ambos os processos – deste e da nova ação agora intentada –, faz com que os supostos benefícios que a suspensão originaria sejam muito inferiores aos prejuízos que seriam produzidos com essa suspensão (cf. artigo 272.º, n.º 2, última parte do CPC);

• os Réus intentaram aquela nova ação justamente com o propósito de suspender os presentes autos, sendo mais uma manobra dilatória do Réu AA, a par das tantas que já fez e que já lhe valeram uma condenação com litigante de má-fé, no acórdão do Tribunal Constitucional, de 21.07.2023;

• a suspensão dos presentes autos, em face da nova ação judicial intentada pelos Réus, é inútil, e, assim, ilícita (artigo 130.º do CPC): os Réus tiveram até ao encerramento da discussão para invocarem, caso assim o entendessem, a exceção de prescrição do crédito da Autora, o que não fizeram, pelo que ficou precludida a possibilidade de invocarem tal exceção (quer nos presentes autos, quer noutros processos).


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Foi proferida decisão singular que indeferiu o pedido de suspensão da instância, com os seguintes fundamentos:


- a referida ação n.º 1109/25.3... (intentada para reconhecimento da prescrição da sentença arbitral) não é causa prejudicial, porque foi instaurada posteriormente à presente ação (esta em 2012, aquela em 2025) e a sua decisão em nada prejudica a decisão desta ação.


- Não existe vantagem na suspensão, sendo que estes autos já estão numa fase adiantada (em fase de recurso) enquanto a ação 1109/25 foi há pouco intentada, não tendo tido ainda audiência final.


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Inconformados com esta decisão, os RR e apelantes AA e Fundação ... reclamam para a conferência (ref. citius 53644777 de 14-10-2025), dizendo, em síntese, que:


- Em 12 de janeiro de 2025, propuseram, contra a aqui Autora, uma ação declarativa constitutiva, pedindo que se reconheça a prescrição da sentença arbitral proferida no Brasil, declarando-se a insusceptibilidade de ser executada em Portugal, com as legais consequências.


- Essa nova ação constitui causa prejudicial da presente ação, pois, se a mesma for procedente e o crédito vier a ser declarado prescrito, a presente impugnação pauliana improcede, por inexistência de crédito.


- O entendimento do tribunal de que a eventual procedência da outra ação não prejudica o presente julgamento é errado pois a inexistência do crédito inviabiliza a impugnação.


- Mantendo-se a procedência da impugnação, decidida em primeira instância e recentemente confirmada pela segunda, a aqui Autora pode fazer-se pagar do crédito por si invocado, executando os bens objeto dos presentes autos, apesar de adquiridos pelos Réus atualmente seus proprietários.


- Deixar a execução dos bens da segunda e do terceiro Réus prosseguir livremente, será dar causa a um dano muitíssimo grave e mais que tudo irreparável, mediante a aquisição desses bens, na execução, pela aqui Autora ou por terceiros, com todas as consequências inerentes, como, por exemplo, a privação deles pelos Réus seus proprietários, e os riscos de dano ou transformação desses bens, e da sua ulterior transmissão a outros terceiro.


- A prescrição só foi arguida agora por se fundar em direito brasileiro e decorrer da própria inação da Autora.


Concluem requerendo que a presente instância seja suspensa até trânsito em julgado da referida ação intentada em Janeiro de 2025.


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O Réu BB manifestou a sua adesão à reclamação para a conferência.


A autora apelada pugna pela improcedência da reclamação e pela manutenção da decisão recorrida.


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Cumpre, pois, agora em conferência, decidir se deve ou não ser mantida a decisão singular que indeferiu o pedido de suspensão da presente ação intentada em 2012, com fundamento na existência de causa prejudicial: a ação que os AA intentaram em janeiro de 2025, a pedir que se reconheça a prescrição da sentença arbitral proferida no Brasil, declarando-se a insusceptibilidade de ser executada em Portugal.


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2. Fundamentação:


2.1. Fundamentação de facto


Os elementos factuais relevantes são os que constam do relatório.


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2.2. Fundamentação de direito:


O fundamento do pedido de suspensão da instância formulado pelos recorrentes é a pendência de causa prejudicial.


Como refere Abrantes Geraldes, em anotação ao artigo 272.º do CPC, apenas podem motivar a suspensão da instância com motivo na pendência de causa prejudicial “ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa” 1, e em que se comprove “uma efetiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efetivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na ação prejudicial, a qual constitui pois um pressuposto da outra decisão. O nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas acões e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda.”


Como se assinala na decisão recorrida, a ação n.º 1109/25.3T8LSB, intentada para o reconhecimento da prescrição da sentença arbitral, não configura causa prejudicial, nos termos e para os efeitos do artigo 272.º do CPC, porque foi instaurada posteriormente à presente ação (esta proposta em 2012, aquela em 2025) e porque, ainda que a ação agora intentada venha a ser julgada procedente, o eventual efeito prático limitar-se-á à impossibilidade de execução do decidido, sem, contudo, afetar o mérito da presente causa, ou seja, a decisão dessa ação não prejudica a decisão destes autos.


Não assiste, assim, razão aos recorrentes quando sustentam que a ação em que pedem que seja declarada a prescrição do direito da Recorrida de executar a sentença arbitral é prejudicial em relação à presente, por nela se discutir e decidir da subsistência (ou não) do direito de crédito da aqui Recorrida. Com efeito, mesmo que se viesse a decidir naquela ação que o crédito da aqui Autora já tinha prescrito, esse facto – extintivo do direito que a autora se arroga nesta ação – já não poderia ser atendido nestes autos, pois encerrada a discussão em primeira instância e proferida a sentença, cristaliza-se a matéria de facto sobre a qual este Tribunal deverá aplicar o direito e extrair as ilações jurídicas que dessa aplicação decorrerem.


Neste sentido pronunciou-se o acórdão do STJ, datado de 12-07-2011 e relatado por Lopes do Rego, citado nas contra alegações,: “1. A norma constante do art. 663º, nº1 [atual artigo 611.º do CPC], só permite a consideração de factos supervenientes até ao momento do encerramento da discussão e julgamento da causa, ou seja, perante a 1ª instância, não sendo possível vir invocar, em recurso de revista, a ocorrência de factos novos, posteriores à prolação da decisão da 1ª instância, por ser no momento do encerramento da discussão da causa que ocorre a irremediável e definitiva cristalização e estabilização da base factual do litígio.”2.


Do mesmo modo, Abrantes Geraldes in ob. Cit., a fls. 733 explica que “Quanto aos factos posteriores ao encerramento da discussão que aproveitem ao Réu apenas poderão ser apreciados em sede de oposição à execução.”.


Conclui-se, assim, que a nova ação, proposta em 2025 pelos Recorrentes, não pode influenciar a decisão a proferir nestes autos, porque o facto que ali se discute já não pode ser considerado – atentas as limitações resultantes dos artigos 588.º, 589.º e 611.º - nestes autos, inexistindo, assim, qualquer relação de dependência entre as ações.


Deste modo, não se verificam os pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 272.º do CPC, para a suspensão da instância.


Ainda que assim não fosse, o deferimento da suspensão também não se justificava, uma vez que a presente causa já se encontra em fase de recurso enquanto a ação 1109/25 ainda se encontra numa fase embrionária. A requerida suspensão acarretaria, portanto, apenas um atraso no trânsito em julgado do acórdão, sem qualquer vantagem.


Invocam os recorrentes que a vantagem seria “prevenir que, mediante bens de terceiros que não tiveram relação direta com a Autora, esta se pague de um crédito que, a final, pode muito bem vir a ser inexistente.”.


Ora, conforme resulta do supra exposto, tal argumento não procede: essa alegada prevenção não tem cabimento nesta fase processual, porque os factos relativos à eventual prescrição não podem, nem devem ser considerados em fase de recurso.


Improcede, pois, a reclamação.


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3. Decisão.


Pelo exposto, acordam os juízes que compõem o Tribunal coletivo desta 1.ª secção cível, agora em conferência, em manter a decisão recorrida que indeferiu o pedido de suspensão da instância


Custas pela Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil.

• Registe e notifique.


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Évora, 13 de novembro de 2025


Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)


José António Moita (1.º Adjunto)


Manuel Bargado (2.º Adjunto)

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1. Em conjunto com Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa , in Código de Processo Civil Anotado, Vol I, pág. 314.↩︎

2. Acessível in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/13a822ecf3483d49802579040038981f?OpenDocument↩︎