Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- perante acidente de viação que é simultaneamente acidente de serviço, o FGA não responde pelas quantias que o Estado Português tenha pago a lesado enquanto empregador (art. 51º n.º1 do RSORCA).
I. O Estado português intentou a presente acção contra AA e o Fundo de Garantia Automóvel (doravante FGA), pedindo que sejam «os Réus condenados, solidariamente, a pagarem ao Estado Português a quantia de EUR: 19.921,66 (dezanove mil novecentos e vinte e um euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal em vigor, computados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento».
Alegou para tanto, no essencial, que:
- em 10.07.2019, pelas 21.49 hrs., em Cuba, o 2º R. conduzia automóvel com uma TAS de 1,967 g/l.
- após militar da GNR lhe fazer sinal de paragem, o 2º R. fugiu, acabando por despistar-se.
- aí, militares da GNR dirigiram-se à viatura, tendo aquele R. feito marcha atrás e atingido um deles, causando-lhe lesões.
- este militar foi assistido no hospital e esteve de baixa, com incapacidade para o trabalho.
- frequentou consultas e fisioterapia, fez exames e comprou medicamentos, cujo valor o A. lhe pagou; a A. pagou ainda os vencimentos e abonos correspondentes ao período de inactividade.
O 2º R. apresentou carta manuscrita na qual, indicava ir «contestar, informar», tendo alegado que não dispunha de rendimentos que lhe permitissem pagar, e que ia pedir apoio judiciário.
O FGA contestou, tendo:
- invocado a excepção da sua ilegitimidade passiva por, nos termos do art. 51º do DL 291/2007, o direito de regresso em causa vale apenas contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar.
- invocado a excepção da preterição do litisconsórcio necessário passivo por não ter sido demandado o proprietário da viatura.
- impugnado especificadamente a generalidade dos factos alegados, e sustentado que apenas respondia por danos materiais.
O 2º R. foi convidado a constituir mandatário e pagar taxa de justiça, nada tendo feito, tendo sido declarada sem efeito a defesa apresentada.
Na sequência de despacho, o A. pronunciou-se pela inexistência da ilegitimidade passiva invocada (por não ser aplicável o art. 51º do DL 291/2007) e requereu que, após consulta do TMenu, fosse convidado a suprir a preterição do litisconsórcio necessário.
Após vicissitudes, o A. requereu a intervenção principal de BB enquanto proprietário da viatura, a qual foi admitida.
Citado, este chamado não contestou.
Foi depois proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade passiva do FGA e conheceu o mérito da acção, tendo proferido a seguinte decisão:
«julgo procedente por provada a ação deduzida pelo ESTADO PORTUGUÊS (Guarda Nacional Republicana), representando pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, contra o 1.º R. AA, e 2.º R., FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, e, consequentemente, condeno-os solidariamente a pagarem àquele a quantia de € 19.921,66, à qual deverão acrescer juros de mora calculados à taxa anual de 4% (cf. n.º 1 do artigo 559.º do CC e Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril), desde a citação - 06/07/2022 quanto ao 1.º R. e 07/07/2022 quanto ao 2.º R. - até efetivo pagamento.
Absolvo o 3.º R., BB».
Desta decisão foi interposto recurso pelo R. FGA, tendo formulado as seguintes conclusões:
A) A douta Sentença recorrida condenou o Fundo de Garantia Automóvel solidariamente com o 1º Réu AA a pagarem ao Autor a quantia de € 19.921,66, absolvendo o 3º Réu do pedido.
B) De referir o disposto no número 1 do art.º 51º do DL 291/2007 de 21.08:
“1 -Caso o acidente previsto nos artigos 48º e 49º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde pelos danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei especifica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, casos em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.” (sublinhado nosso)
C) Porquanto, estando no âmbito de um acidente de viação que é também um acidente de serviço, o Fundo de Garantia Automóvel só responderá pelos danos corporais que não obtenham ressarcimento no âmbito do acidente de trabalho, como seria o caso dos danos não patrimoniais.
D) Ora, todos os danos patrimoniais suportados pela Guarda Nacional Republicana, são danos subsumíveis no âmbito do acidente em serviço.
E) Sendo que as entidades que satisfaçam tais pagamentos têm direito de regresso apenas contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente – Cfr. N.º 4 do art.º 51º do DL 291/2007.
F) Por outro lado, como muito bem explanado na douta decisão recorrida:
“De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 80º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, a obrigação de seguro de responsabilidade civil constitui condição de admissibilidade dos veículos à circulação.
Esta obrigação de segurar, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do mesmo diploma legal, “impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário”.
No caso dos autos, tal obrigação recaía sobre o 3º R., na qualidade de proprietário do veículo causador do acidente (MI).”
G) Ora, fácil será de entender que a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel apenas ocorre porque o 3º Réu incumpriu a sua obrigação de segurar o veículo MI, de sua propriedade. Pois o incumprimento da obrigação de segurar é condição sine qua none de intervenção do FGA.
H) Sendo o Fundo de Garantia Automóvel um mero garante na satisfação de indemnizações decorrentes de acidentes de viação, não só deve a ação ser, obrigatoriamente, interposta contra os responsáveis civis e contra o Fundo de Garantia Automóvel, sob pena de ilegitimidade, nos termos do art.º 62º n.º 1 do D.L. 291/2007 de 21 de agosto, como a respetiva condenação deverá ser solidária entre todos.
I) Acresce que o FGA, ao cumprir o pagamento das indemnizações fica sub-rogado nos direitos do lesado, ora se o aqui lesado/Autor não vir o seu direito reconhecido contra o proprietário que incumpriu a obrigação de segurar, 3º Réu, o FGA também não poderá vir exercer sub-rogação contra aquele, em clara violação do disposto no n.º 3 do Art.º 54º do DL 291º/2007 de 21.08:
“3- São solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente sobre quem recaia a obrigação de seguro.”
J) A douta Sentença recorrida violou o disposto nos números 1, 3 e 4 do art.º 54º do DL 291/2007 de 21.08 e Art.º 62º n.º 1 do mesmo diploma legal [1].
O A. sustentou a manutenção da decisão recorrida, remetendo para o seu teor.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, importa avaliar:
- se o FGA é responsável perante o Estado Português pelo que este pagou ao lesado.
- na afirmativa, se o proprietário que não segurou a viatura deve ser também condenado a pagar os valores reclamados.
III. Foram considerados provados os seguintes factos [2]:
1. O 3.º R. é dono do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Seat, modelo Ibiza, cor preta, de matrícula ..-..-MI (MI);
2. No dia 10 de julho de 2019, pelas 21H49, na Rua 1, em Cuba, o 1.º R., AA, conduziu o veículo MI, circulando em ziguezagues e fazendo uso de sinais sonoros, sem que fosse titular de carta de condução ou outro título que lhe permitisse conduzir tal veículo.
3. Nessa ocasião, o 1.º Réu era portador de uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,967 g/l, correspondente à taxa de álcool no sangue de 2,07 g/l registada, deduzido o erro máximo admissível.
4. Nessa data, o veículo ..-..-MI não dispunha de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel válido.
5. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o militar da GNR CC, com recurso a um bastão luminoso efetuou sinal de paragem ao referido veículo conduzido pelo 1.º R.
6. O 1.º R. imobilizou o veículo automóvel a cerca de 20 a 30 metros do referido militar da GNR, após efetuou a manobra de marcha-atrás, colocando-se em fuga.
7. De seguida, foi encetado seguimento ao veículo MI conduzido pelo 1.º R. através de veículo caracterizado da GNR, com a matrícula L-.....
8. O 1.º R., no decurso dessa fuga, percorreu vários arruamentos da vila de Cuba e ao chegar ao final da Rua 2, desobedeceu ao sinal B2 STOP, tendo virado à sua direita, rumando à Estrada 3 (conhecida como reta da mata), e, de seguida, invadiu a faixa destinada ao trânsito em sentido contrário, entrando em despiste, tendo embatido no passeio, galgando-o, acabando por colidir numa árvore do jardim público, denominado Parque 4, em Cuba.
9. De imediato, a patrulha da GNR que o seguia imobilizou a viatura militar, lateralmente, junto à retaguarda do veículo MI de forma a efetuar a sua abordagem, encontrando-se a viatura militar com os sinais sonoros e luminosos acionados.
10. De seguida, os Militares da GNR DD e EE saíram da sua viatura e dirigiram-se ao 1.º R. a fim de procedem à sua detenção.
11. O 1.º R. ao visualizar os militares da GNR a deslocarem-se na sua direção, trancou as portas da viatura e, de seguida, colocou o seu veículo em funcionamento e iniciou a manobra de marcha-atrás, dirigindo assim o seu veículo na direção daqueles militares.
12. De seguida, o 1.º R. embateu com a lateral direita do veículo MI contra os membros inferiores e superiores e a zona pélvica do militar da GNR DD.
13. Ato contínuo, o 1.º R. embateu com a lateral direita do veículo MI contra a lateral esquerda da viatura militar, prensando o corpo de DD contra a porta esquerda da viatura militar, levando dessa forma, a que o corpo deste militar ficasse comprimido entre a sua viatura e o veículo MI.
14. Por sentença proferida em 11/07/2019, transitada em julgado em 26/09/2019, no processo sumário com o n.º 53/19.8..., que correu termos neste Juízo, o aqui 1.º R. foi condenado pela prática, em 10 de julho de 2019, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de um crime de condução sem habilitação legal, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por idêntico período e subordinada a regime de prova, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 12 meses, e na pena de multa de 80 dias de multa, à razão diária de € 6,00, num montante total de € 480,00, relativamente aos factos que são objeto desta ação.
15. DD era Militar da Guarda Nacional Republicana e aquando da atuação supra descrita agiu sempre no exercício das suas funções.
16. DD foi transportado pelo INEM, tendo sido assistido e tratado no serviço de urgência do Hospital Distrital de Beja, onde deu entrada pelas 22h31 com o episodio de urgência n.° ....
17. Por tal episódio de urgência, o Autor despendeu a quantia de € 85,91.
18. Como consequência da atuação supra descrita do 1.º Réu, o Militar da GNR DD sofreu dores nas regiões atingidas, bem como sofreu traumatismo do membro inferior direito e membro superior esquerdo e contusão da anca, coxa e região dorsal da bacia à direita.
19. Em consequência de tais lesões, o Militar da GNR DD esteve de baixa médica e, por isso, incapacitado para o serviço nos períodos entre 11.07.2019 a 08.10.2019 e entre 17.11.2019 a 29.04.2020, num total de 252 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho em geral.
20. Durante esse período, o Autor viu-se privado do serviço que DD lhe deveria prestar.
21. O mencionado Militar da GNR DD teve de recorrer a consultas no Centro de Saúde de Cuba, no Hospital da Misericórdia de Évora e no Hospital St. Louis, nomeadamente nos dias 22.07.2019, 27.08.2019, 09.09.2019, 27.09.2019, 07.10.2019, 08.10.2019, 07.11.2019, 06.12.2019, 16.12.2019, 21.01.2020, 15.02.2020, 26.05.2020, no que despendeu a quantia total de EUR: 51,45.
22. Teve ainda de frequentar sessões de fisioterapia na Physio Sr, Lda., em Beja, nomeadamente nos dias 12.09.2019, 24.09.2019, 26.09.2019, e de realizar vários exames de diagnóstico, no que despendeu a quantia total de EUR: 296,00.
23. E de adquirir medicamentos que lhe foram receitados em consequência das lesões de que sofreu, pagando a quantia de EUR: 227,22.
24. As quantias referidas de EUR: 51,45, EUR: 296,00 e de EUR: 227,22, no total de EUR: 574,67, foram pagas pelo Autor ao Militar da GNR em questão.
25. O Autor, através da Direção de Saúde e Assistência na Doença da GNR, pagou ainda diretamente às respetivas entidades prestadoras de serviços de saúde, a quantia total de EUR: 636,35, referente às despesas com as consultas médicas de ortopedia e neurocirurgia e exames de diagnóstico realizados pelo Militar da GNR DD.
26. Em consequência do descrito em 19. e 20., o A. suportou ainda os vencimentos e abonos a favor do Militar DD no valor de EUR: 18.624,73 (dezoito mil seiscentos e vinte e quatro Euros e setenta e três cêntimos).
Não foram elencados factos tidos por não provados.
IV.1. Está em causa acidente de viação em que interveio viatura não segurada, sendo o condutor desta viatura responsável pela produção do acidente. Tal torna, em princípio, o FGA garante pelo pagamento das indemnizações devidas (art. 47º n.º1, 48º n.º1 al. a) e 49º n.º1 al. a) e b) do DL 291/2007, de 21.08, na redacção original [3] - doravante RSORCA [4]).
Tal acidente provocou lesões corporais em militar da GNR, tendo o Estado suportado o pagamento de remunerações em períodos em que o lesado não pode realizar a sua actividade profissional em virtude da lesões sofridas (incapacidade para o trabalho), e bem assim o pagamento de despesas associadas à assistência médica.
Pagamentos estes realizados por imposição legal.
Com efeito, o acidente em causa constitui simultaneamente acidente de viação e acidente de serviço. Esta qualificação como acidente de serviço foi assumida na decisão recorrida, o que não foi impugnado e se mostra acertado (mormente à luz das regras legais naquela decisão invocadas: v.g. art. 16º al. b) e c) do DL 297/2009, de 14.10, que «aprova o Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana», e art.º 3.º n.º 1 al. b) e 7º n.º1 do DL n.º 503/99, de 20.11, e ainda art. 8º da Lei 98/2009, de 04.09).
Estando, assim, em causa um acidente de serviço, o Estado (no qual, como força de segurança de natureza militar, se integra a GNR) ficou obrigado a realizar as prestações em causa, nos termos dos art. 3º n.º1 al. b), 7º n.º1, 11º e 15º do DL 503/99, de 20.11, por força do art. 2º n.º1 do DL 503/99 citado, e dos art. 7º do DL 298/2009, de 14.10, e 89º n.º4 (este como expressão do princípio geral) do DL 30/2017, de 22.03.
Realizadas essas prestações, passou a dispor de direito de regresso [5], nos termos do art. 46º n.º1 do referido DL 503/99, que o Estado invocou.
É este direito de regresso que o Estado pretende exercer, na acção, perante o FGA.
2. O recorrente invoca o disposto no art. 51º n.º1 do RSORCA para excluir essa obrigação de pagamento, norma esta na qual se dispõe que:
Caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.
A questão radica, assim, na devida interpretação desta norma, no quadro do art. 9º do CC e dos elementos hermenêuticos para que remete.
3. Atendendo aos momentos literais da norma, e no que importa para a situação em análise, verifica-se que:
- a previsão da norma assenta na ocorrência de acidente de viação que seja, simultaneamente, um acidente de serviço. Perante a verificação desta previsão (já constatada), segue-se a seguinte estatuição:
- o FGA só responde pela reparação dos danos que não sejam abrangidos pela lei da reparação do acidente de serviço, e
- quanto às demais prestações (relativas aos danos abrangidos pela lei da reparação do acidente de serviço), estas incumbem ao empregador [6].
Do sentido textual da norma parece assim decorrer, de forma até linear, que tal norma tratou, em caso de acidente de serviço, de definir dois pontos regulativos: de um lado, limitou a responsabilidade do FGA aos danos não cobertos pelo regime do acidente de serviço; de outro lado, mas coerentemente com aquela limitação, atribui a responsabilidade pelos danos cobertos pelo acidente de serviço ao empregador (o Estado).
Deste modo, as duas faces da estatuição ajustam-se de forma cabal, redundando numa forma fechada e integral de delimitação e distribuição da responsabilidade pelo dano: em primeira linha e no limite da lei do acidente de serviço, responde o empregador; no que excede aquele limite, intervém então o FGA.
A própria epígrafe do artigo («limites especiais à responsabilidade do Fundo») tem um sentido preciso: limitar a responsabilidade significa restringi-la, estabelecer fronteiras ou marcos a partir dos quais tal responsabilidade já não vale. Já não significa estabelecer hierarquias entre entidades pagadoras, ou adiar o pagamento apenas para quando exercido direito de regresso ou inerente a sub-rogação do primeiro pagador, pois isso não constitui uma forma de limitação da responsabilidade.
4. Ainda de um ponto de vista literal, a norma não se ajusta a uma intenção de regulação apenas da actuação do lesado, mormente impedindo que este deduza pretensão contra ambas as entidades (FGA e empregador) pelo mesmo dano, ou definindo a quem pode pedir o pagamento da indemnização (sem visar regular a repartição de responsabilidades entre o FGA e a entidade a quem cabe suportar parte dos danos). Não é esse o sentido literal da norma, que aponta para uma intenção verdadeiramente limitativa da responsabilidade do FGA (ou de distribuição da responsabilidade entre entidades pagadoras). Aliás, o lesado não é sequer directamente considerado na norma, que a ele se não refere. Estando garantida a satisfação do interesse do lesado na integral reparação do seu dano, a norma dirige-se apenas às entidades pagadoras, distribuindo entre elas a responsabilidade por aquela reparação e nessa medida regulando a forma como se relacionam face ao dano a reparar.
5. Assim, a norma, no seu sentido imediato, aponta para a limitação da responsabilidade do FGA, excluindo dessa forma a intervenção deste FGA na reparação de dano já coberto pelas demais entidades em causa [7].
A exclusão de um direito do Estado oponível ao FGA é corolário desta regra de limitação, e inerente distribuição, de responsabilidade contida no art. 51º n.º1 do RSORCA. Pois se a responsabilidade do FGA não abrange certo dano, não pode a entidade que o suportou pretender repercuti-lo no FGA: a isso se opõe justamente aquela limitação da responsabilidade do FGA.
Aliás, a admitir-se um direito da entidade pagadora indicada no art. 51º n.º1 do RSORCA perante o FGA, a distribuição de responsabilidades não teria sentido útil (o FGA seria sempre, em último termo, o pagador).
6. Esta asserção é corroborada pelo art. 51º n.º4 do RSORCA, quando estipula que as entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.
Pois a norma não prevê que o direito de regresso seja exercido contra o FGA, o que tende a confirmar que a responsabilidade que se atribui às entidades elencadas exclui a responsabilidade do FGA, devendo aquelas entidades reagir apenas contra o responsável civil e quem incumpriu a obrigação de segurar. É certo que existem outras normas (fora do RSORCA) que permitem a tais entidades, em certas condições, reclamar de outrem o que pagaram ao lesado. Mas, de um lado, aqui importa sublinhar a coerência interna das regras do RSORCA, desresponsabilizando o FGA nestes casos. E, de outro lado, aquelas normas, como se verá infra, não alteram o exposto.
7. Tal asserção tende ainda ser confirmada, e de forma cabal, por outros elementos, mormente sistemáticos e racionais (teleológicos). Assim:
- como deriva da natureza do FGA e se mostra expresso no seu regime legal (mormente nos art. 5º n.º3, 47º n.º1, 48º n.º1 ou 49º n.º1 do RSORCA), o FGA não é directamente responsável perante os lesados, nem é directamente responsável pela indemnização que seja àqueles devida, intervindo como mero «garante do cumprimento das obrigações do responsável civil pela reparação dos danos causados ao lesado», satisfazendo a indemnização quando esta não possa ser obtida a partir de seguradora para quem a responsabilidade foi ou devia ter sido transferida. O FGA desempenha uma função de tutela da vítima, sendo esta o referencial do regime. E uma função que, perante a vítima, assume, no âmbito do sistema de socialização do risco, uma natureza complementar e, em certo sentido, subsidiária. Pois sendo aquela socialização efectivada primacialmente através da imposição da celebração de contratos de seguro de responsabilidade civil, o FGA intervém como medida complementar desta socialização do risco, apenas para quando o mecanismo principal de reparação não seja viável e a vítima fique desprotegida. Neste sentido, e porque o FGA não é devedor directo da indemnização, se pode falar de subsidiariedade do seu papel, intervindo apenas onde e quando a posição da vítima esteja sem cobertura. Ora, o regime do art. 51º n.º1 citado é ainda expressão desta subsidiariedade, e justifica-se em função dessa subsidiariedade. Pois a existência de outras entidades que possam e devam intervir na assunção dos pagamentos devidos, ficando nessa parte tutelada a posição da vítima, torna desnecessária a intervenção do FGA, à luz do seu papel de mero garante subsidiário do pagamento, intervindo somente quando tal pagamento não possa ser obtido por outra via [8]. De certo modo, atribui-se prioridade ao papel social daquelas entidades face à posição meramente subsidiária, ou de «actuação de segundo grau», do FGA. O referente do FGA, e do seu regime, é a vítima/lesado, e já não quem também concorre, legalmente, na cobertura do dano (mormente o Estado). Deste não cura o FGA, pois nem ele constitui vítima desprotegida (carecida de tutela) nem vale para ele o papel social do FGA.
- solução esta que está conforme com as orientações comunitárias sobre o tema, na medida em que a ênfase se coloca na tutela da vítima, num duplo aspecto: a sua tutela é o objectivo imediato das Directivas atinentes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (codificadas na Directiva 2009/103/CE); e a existência de organismo como o FGA é forma de alcançar essa tutela integral da vítima (v. art. 10º n.º1 desta Directiva). Cabendo aos Estados-Membros a possibilidade de atribuírem à intervenção dessa instituição um carácter subsidiário ou não, e de regularem direitos de regresso (art. 10º n.º1 §2), ficou consignado nos considerandos daquela Directiva que «as pessoas colectivas que estejam, por lei, sub-rogadas nos direitos da pessoa lesada perante a pessoa responsável pelo acidente ou a empresa de seguros desta (tais como, por exemplo, outras empresas de seguros ou organismos de segurança social) não deverão ter direito a apresentar o respectivo pedido de indemnização ao organismo de indemnização» (considerando 49). Ora, o regime criado, tal como descrito, é expressão do imperativo de tutela do lesado, cuja posição salvaguarda, mas também actua a ideia contida naquele considerando (ao excluir a responsabilidade do FGA perante terceiros sub-rogados ou que exercem um direito de regresso), ideia que se harmoniza ainda com o papel subsidiário do FGA (no sentido exposto).
- este papel subsidiário do FGA manifesta-se também nos n.º2 e 3 do referido art. 51º [9], importando aqui salientar a hipótese do n.º2, que imputa à seguradora de danos próprios a reparação dos danos cobertos pelo seguro, deles desresponsabilizando o FGA. Esta norma, estando em causa seguro facultativo (danos próprios), só se compreende como uma imposição quer ao lesado (que tem que accionar o seguro [10]) quer à seguradora (que tem que suportar o pagamento, e reagir apenas contra o responsável civil nos termos do referido n.º4 do art. 51º), e só se justifica pela desnecessidade de tutela do lesado (cuja posição também não é agravada, já que o prémio do seguro não pode ser alterado, por força do n.º6 do art. 51º).
- embora em termos gerais, sempre se nota que interpretar as regras do art. 51º n.º1 como atribuindo ao FGA o papel de último ou derradeiro pagador carece de justificação bastante também por, em último termo, redundar numa imposição de actos intermédios inúteis.
- a avaliação do regime legal também revela que a lei não atribui às entidades responsáveis, mormente ao Estado, direitos dirigidos contra o FGA.
Assim, de um lado, os art. 47º e 49º do RSORCA impõem ao FGA a reparação dos danos decorrentes de acidentes rodoviários, deste modo atribuindo o direito à indemnização aos directos portadores de tais danos (os lesados). O RSORCA não prevê de forma expressa que o FGA tutele directamente terceiros que, por sua vez, suportaram a reparação de danos do lesado (que o indemnizaram).
De outro lado, e partindo da situação em análise, o invocado art. 46º n.º1 do DL 503/99 [11] atribui um direito de regresso ao Estado, mas dirigido apenas contra o terceiro civilmente responsável (incluindo a seguradora, o que se compreende pois esta substitui aquele), assim restringindo o exercício desse direito contra o principal obrigado (o devedor) [12].
Delimitação esta do direito de regresso do Estado que se mostra justificada, pois tal direito obedece a uma estrutura e teleologia que não contempla a posição do FGA. Com efeito, o direito de regresso parte da situação em que o dano é coberto por entidade que não é dele causador, mas que, por força de relação contratual ou legal, ficou obrigado a reparar o dano do lesado. Porém, como tal entidade não é o «principal devedor», ou responsável pelo dano, deve poder agir sobre o património do responsável pelo dano, e responsável que deve, em linha com a sua responsabilidade pessoal exclusiva, suportar por inteiro o dano [13]. O que não ocorre com o FGA, que se situa num plano diferente, não assumindo qualquer responsabilidade própria pelo dano, e por isso não deve suportar o que, por contrato ou lei, foi suportado por outra entidade: esta ocupa uma posição paralela à do FGA perante o responsável, e não uma posição autónoma perante o FGA, em que este surgiria como devedor, já que o FGA não tem essa posição ou função.
Assim, pode dizer-se, também de acordo com a lógica interna do direito de regresso (ou da sub-rogação), que como o lesado deve obter a reparação de certos danos da entidade diversa do FGA (mormente o Estado ou a seguradora laboral), nos termos do art. 51º n.º1 do RSORCA (que assim restringe o alcance do art. 49º do RSORCA), nunca teve, nessa parte, um direito próprio perante o FGA que possa ser transmitido ao pagador (sub-rogação) ou que possa fundar a criação de um direito de regresso.
Ou, ao menos, pode dizer-se que a indemnização do dano do lesado elimina a necessidade de intervenção do FGA, meramente subsidiária, e assim nenhuma posição jurídica subsiste perante o FGA que possa ser transmitida ou fundar um direito de regresso.
8. Donde se entender que o art. 51º n.º1 do RSORCA desresponsabiliza o recorrente pelos pagamentos solicitados, e por isso não pode proceder a acção no que a ele respeita [neste sentido, para o lugar paralelo da seguradora por acidentes de trabalho, Ac. do STJ proc. 6330/03.2TVLSB.L1.S1 de 30.05.2013; note-se que esta solução tem sido sustentada perante o DL 522/85, de 31/12, apesar de este diploma não conter norma análoga ao art. 51º n.º1 do RSORCA (a solução é feita derivar da natureza e extensão da intervenção do FGA) - v. Acs. do STJ proc. 664/04.6TBBGC.P2.G1.S1, de 30.03.2017, proc. 862/04.2TBPMS.C1.S1 de 14.03.2013 ou proc. 620/1999.C1.S1 de 05.05.2011, ou do TRP proc. 4043/10.8TBVLG.P1 de 09.10.2018, ou proc. 894/14.2T8VNG.P1 de 28.10.2015 [14]].
9. Esta conclusão prejudica o conhecimento da segunda questão colocada.
10. Decaindo, o recorrido suporta as custas do recurso. Quanto à acção, existe igualmente decaimento na medida em que o R. FGA é absolvido do pedido. Decaimento este que, partindo da repartição fixada na primeira instância (não impugnada, e que não onerou o Estado Português pelas custas do decaimento quanto ao 3º R.), se julga ajustado fixar em 35% das custas da acção (art. 527º n.º1 e 2 do CPC) - ficando o restante a cargo do 1º R..
V. Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida quanto à R./recorrente FGA, que é absolvida do pedido, mantendo-se no mais a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo Estado Português, suportando ainda 35% das custas da acção.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
António Fernando Marques da Silva - relator
Ana Pessoa - adjunta
Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto - adjunto
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1. Reprodução sem os sublinhados de origem.↩︎
2. Em reprodução literal (mas sem negrito ou itálico, onde aplicável).↩︎
3. Em vigor à data dos factos. As alterações introduzidas pelo DL 26/2025, de 20.03, não teriam, de qualquer modo, relevo no caso.↩︎
4. Regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.↩︎
5. É a terminologia legal, que se adopta (o mesmo se fazendo perante outras previsões legais referidas no texto).↩︎
6. A exposição limita-se a este perante as circunstâncias do caso. Mas valeria, mutatis mutandis, para as demais situações e obrigados, em caso de acidente de trabalho.↩︎
7. A afirmação de que o art. 51º n.º1 do RSORCA estabelece uma limitação da responsabilidade do FGA é constante na jurisprudência, embora em situações distintas daquela sob apreciação (mormente quando, estando em causa acidente de trabalho, o FGA pretende excluir totalmente a sua responsabilidade - e não apenas exclui-la quanto aos danos cobertos por outra entidade) - v. Ac. do STJ proc. 3621/19.4T8VR.P1.S1 de 02.03.2023 (que não deixa de referir que «Quando exista um seguro automóvel de danos próprios ou o lesado tenha direito a prestações sociais, a responsabilidade do FGA é meramente subsidiária, ou seja, está limitada ao pagamento do valor que não possa ser pago pela outra entidade»).↩︎
8. Neste sentido, refere F. Albuquerque Matos que nesta matéria «se explicita claramente a actuação prioritária das empresas de seguros de acidentes de trabalho, ou do Fundo de acidentes de trabalho quando estiverem em causa acidentes de trabalho ou de serviço» (F. Albuquerque Matos, O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social, Direito E Justiça, vol. 1 (Especial) 2011, Vol. 1 N.º Especial (2011), pág., 560 nota 6; v. também Ac. do STJ proc. 916/16.2T8GRD.C1.S1, de 20.06.2023.↩︎
9. Embora, quanto ao n.º3, a questão seja mais controvertida.↩︎
10. V. ainda o art. 62º n.º3 do RSORCA. que impõe a intervenção desta seguradora na acção de responsabilidade civil, assim se garantindo que a sua responsabilidade é accionada (embora da norma não se retire argumente decisivo, por poder ter outros sentidos úteis).↩︎
11. Com a seguinte redacção: 1 - Os serviços e organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no presente diploma têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas.↩︎
12. E o mesmo ocorre com as sub-rogações previstas no art. 17º n.º4 da Lei 98/2009, de 04.09, ou no art. 5º-B do DL 142/99, de 30.04.↩︎
13. A justificação vale também para a sub-rogação legal. A distinção entre o direito de regresso e a sub-rogação nas situações em causa (ou a qualificação da figura) não se mostra evidente nem fácil; pode ao menos admitir-se, em tese, que o direito de regresso, constituindo um direito novo, tende a supor a existência de uma relação entre os co-devedores, visando o direito de regresso regular essa responsabilidade interna, enquanto a sub-rogação, transmitindo um direito pré-existente, visa apenas permitir imputar ao principal devedor (responsável) o pagamento final.↩︎
14. Todos os acórdãos citados no acórdão encontram-se disponíveis em 3w.dgsi.pt.↩︎