Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- o art. 6º da Lei 7/2001, de 11.05, não impede que, após a decisão da entidade responsável pelo pagamento, seja instaurada acção judicial visando verificar se existiu realmente união de facto nas condições legais.
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I. A Caixa Geral de Aposentações, I.P., intentou a presente acção contra AA, «com vista à declaração da inexistência de uma união de facto entre o Réu e BB».
Alegou para tanto, em síntese, que:
- o R. habilitou-se a receber pensão de sobrevivência por óbito de subscritora da CGA, alegando ter vivido com ela em união de facto, tendo-lhe sido reconhecido aquele direito.
- o R. não teria vivido com aquela subscritora da CGA durante todo o período alegado.
O R. contestou, sustentando ter vivido em união de facto com a subscritora da CGA nas condições alegadas. Invocou ainda a litigância de má fé da A..
Foi depois proferido despacho saneador, no qual se decidiu pela ilegitimidade activa da A., baseando-se nas seguintes razões:
(...) A Lei nº7/2001, de 11 de maio, pela qual são adotadas medidas de proteção das uniões de facto, sofreu sucessivas alterações, sendo a versão mais recente a decorrente da Lei nº71/2018, de 31 de dezembro.
No que concerne ao art. 6º, relativo ao regime de acesso às prestações por morte, e que é o que para o caso presente importa, teve tal artigo as seguintes redações:
(...)
Da a análise das sucessivas redações dadas ao preceito constata-se que, num primeiro momento, o reconhecimento do direito às prestações por morte do unido de facto dependia de ação a propor contra a entidade responsável pelo pagamento da prestação com vista ao reconhecimento do direito, passando posteriormente a ser dispensada tal ação. Invertendo a lógica inicialmente prevista, optou o legislador por conceder o direito à prestação uma vez verificados determinados requisitos, passando a caber à entidade responsável pelo pagamento da pensão o ónus de propor ação para comprovação da união de facto quando existissem fundadas dúvidas sobre a sua existência.
No momento presente, e de acordo com o regime legal em vigor, quando a entidade responsável pelo pagamento da prestação entenda que existem dúvidas fundadas sobre a existência da união de facto, solicita meios de prova complementares aos previstos pelo art. 2ºA da Lei nº 7/2001, de 11 de maio (artigo este aditado pela Lei nº 23/2010, de 30 de agosto) – art. 6º, nº2.
E quando entender que tais meios de prova suplementares não se mostram bastantes para suprir as dúvidas e tais dúvidas subsistam, deve a entidade promover a competente ação com vista à comprovação da união de facto.
Da leitura e interpretação de tal regime (para a qual contribui a sua evolução ao longo do tempo), afigura-se-nos claro que a propositura da ação para apreciação da existência da união de facto, quando seja promovida pela entidade responsável pela atribuição da pensão, será necessariamente anterior ao reconhecimento do direito à pensão e sua atribuição ao unido de facto sobrevivo. Ou seja, será sempre proposta antes da atribuição da prestação, e apenas nos casos em que a entidade responsável tenha dúvidas sobre a existência da união de facto.
Ultrapassada essa fase, e sendo a prestação por morte atribuída, significa que a entidade responsável pela atribuição não teve dúvidas sobre a existência da união de facto.
Nessa medida, uma vez atribuído o direito à prestação, deixa a ação de reconhecimento da união de facto de ser o meio próprio para os fins que o legislador lhe pretendeu atribuir.
Assim, surgindo suspeitas supervenientes de que a prestação foi indevidamente atribuída por não verificação dos respetivos pressupostos, poderá a entidade, eventualmente, revogar o ato, pedir a restituição do indevidamente recebido, ou recorrer a qualquer outro meio que não cabe aqui definir, assim se mostrem verificados os respetivos pressupostos (art. 52º e 53º do DL nº 142/73, de 31 de março), mas não lançar meio de uma ação que se destina a provar um pressuposto de um direito que já se mostra reconhecido pela própria.
A legitimidade da entidade responsável pela atribuição da prestação para obter o reconhecimento da união de facto encontra-se delimitada pela própria finalidade da ação no contexto em que ela é prevista pelo legislador, a saber, o processo de atribuição da prestação ao unido de facto sobrevivo, enquanto meio probatório do pressuposto do direito ao recebimento da prestação (e não como condição desse direito). Uma vez reconhecido o direito e atribuída a prestação, deixa a entidade responsável de ter legitimidade para propor uma tal ação, por falta de interesse em agir. Na verdade, o seu interesse em agir, nos termos no citado nº3 do art. 6º, limita-se ao esclarecimento de dúvidas para a atribuição ou não da prestação. Uma vez atribuída a prestação (o que pressupõe a inexistência de dúvidas sobre a união de facto), um tal interesse deixa de existir – art. 30º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Pelo que se entende, salvo melhor opinião, que, uma vez atribuído o direito à prestação por parte da Caixa Geral de Aposentações, deixou esta de ter legitimidade para propor a ação de reconhecimento da união de facto ao abrigo do disposto no nº3 do art. 6º da Lei nº 7/2001, de 11 de maio, na redação dada pela Lei nº 71/2018, de 31 de dezembro.
A ilegitimidade constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, e que obsta à apreciação do mérito da causa, conduzindo à absolvição do réu da instância – art. 577º, alín. e); 576º, nº2 e 578º, todos do Código de Processo Civil.
Em face de todo o exposto, julgo a autora Caixa Geral de Aposentações, IP, parte ilegítima na presente ação, razão pela qual absolvo o réu AA da instância.
Desta decisão interpôs a A. recurso, formulando as seguintes conclusões:
1ª A acção judicial, a que alude o nº 3 do artigo 6º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, pode ser proposta antes ou depois da atribuição da prestação.
2ª O juiz da primeira instância, ao considerar o contrário, ignorou os critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9º do Código Civil.
3ª Da redacção expressa do artigo 6º da Lei nº 7/2001 não resulta que, só na pendência do procedimento administrativo, podem as entidades de previdência social – CGA e ISS – intentar a acção judicial.
4ª Não há qualquer elemento gramatical que suporte tal entendimento.
5ª Para além de ignorar a letra da lei, na interpretação da lei, a primeira instância não teve em consideração o elemento teológico, previsto no artigo 9º do Código Civil, através do qual o legislador apela a que o intérprete faça um esforço para procurar encontrar a finalidade com que o legislador intentou prosseguir com a lei.
6ª Antes da alteração introduzida pela Lei nº 23/2010, de 20 de Agosto, decorria do artigo 6º da Lei nº 7/2001, para quem na qualidade de unido de facto pretendesse habilitar-se à pensão de sobrevivência, a obrigação de intentar uma acção judicial para o reconhecimento da união de facto.
7ª No âmbito de uma acção judicial, a produção de prova, e a sua análise por um magistrado. assegurava a existência ou não de uma união de facto. Esse reconhecimento judicial permitia que a Administração Pública, aplicando recursos financeiros públicos, com confiança, atribuísse a um unido de facto uma pensão de sobrevivência.
8ª O novo regime, introduzido pela Lei nº 23/2010, converteu o procedimento, anteriormente misto (parte judicial, parte administrativo), em procedimento integralmente administrativo.
9ª A alteração foi favorável para os interessados, na medida em que tornou o procedimento mais simples, célere e acessível.
10ª Mas potenciou o aparecimento de inúmeras fraudes já que a prova da união de facto passou a fazer-se através de um documento – a declaração da junta de freguesia – que se baseia tão só no depoimento de duas testemunhas apresentadas pelo próprio requerente, as quais muitas vezes afirmam o que não corresponde à verdade.
11ª O legislador salvaguardou os casos em que existam fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, determinando que, nestes casos, antes ou depois de proferida a decisão, a entidade responsável pelo pagamento das prestações possa promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação (artigo 6º, nº2).
12ª O entendimento da primeira instância, ao limitar a propositura da acção judicial às situações em que o direito ainda não foi reconhecido, implica ou que, não obstante a existência de dúvidas sobre os requisitos de que depende o direito, as entidades públicas continuem a pagar a pensão a quem eventualmente não tem direito a ela ou, em alternativa, com base apenas em dúvidas, sem certezas, declarem extinto o direito.
13ª Há interesse em agir na situação em apreço: existindo uma situação de incerteza sobre a união de facto existente entre a falecida BB e o Réu, a Caixa Geral de Aposentações necessita do processo judicial para que, perante a decisão judicial proferida, com rigor e respeito pelos princípios constitucionais que enformam a sua actuação, possa, ou não, reconhecer o direito à pensão.
14ª A decisão impugnada, ao considerar que a Caixa Geral de Aposentações não tem interesse em agir, viola o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
15ª A decisão recorrida deve ser revogada porque violou o disposto nos seguintes artigos: 6º da Lei nº 7/2010, de 11 de Maio, 2º do Código do Processo Civil, 20º da Constituição da República Portuguesa e 9º do Código Civil.
Não foi apresentada resposta.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, importa avaliar se a recorrente tem legitimidade para intentar a presente acção, ou, mais amplamente, se existe obstáculo derivado do art. 6º da Lei 7/2010, de 11.05, à instauração da acção.
III. Os factos relevantes, de natureza processual, constam do relatório do acórdão, e foram colhidos das peças processuais pertinentes.
IV.1. A decisão recorrida assenta na seguinte asserção: a acção de reconhecimento da união de facto só pode ser proposta pela recorrente quando ainda não existe decisão a conceder o benefício social em causa. Isto porque a finalidade da acção se esgota na resolução de dúvida sobre pressuposto (a existência de união de facto) do direito ao recebimento da prestação. Ora, após aquela decisão a reconhecer o direito, o que supõe que a dúvida foi resolvida, já não se pode propor a acção pois inexiste a dúvida que justifica a acção. E assim não teria a recorrente interesse em agir, daí derivando a sua ilegitimidade activa (art. 30º n.º1 e 2 do CPC).
Independentemente do acerto desta conclusão, ou seja, da exacta natureza do vício processual derivado daquela asserção, é o acerto de tal asserção (que a acção só é legalmente admitida antes da decisão responsável pelo pagamento) que importa avaliar.
2. Pode, a partir do regime do art. 6º da Lei 7/2001, de 11.05, aceitar-se que subjacente a tal regime se encontra a ideia de que a acção é instaurada antes da decisão da entidade responsável pelo pagamento. Mas daí não decorre necessariamente que só nesse momento é a acção admissível, ou seja, que fica excluída a possibilidade de a acção ser intentada após aquela decisão.
Tal carece de demonstração autónoma, a realizar a partir da interpretação da lei, no quadro do art. 9º do CC e dos elementos hermenêuticos para que remete.
Interpretar a lei consiste em fixar o seu sentido regulativo. No caso, e dados os termos da questão suscitada, importa sobretudo avaliar se o regime legal derivado da Lei 7/2001 exclui ou proíbe a instauração de acção como a vertente após a decisão da entidade responsável pelo pagamento.
3. O art. 6º da Lei 7/2001 teve as seguintes redacções:
Artigo 6º na redacção original, da Lei 7/2001:
Regime de acesso às prestações por morte
1 - Beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes no artigo 2020.º do Código Civil, decorrendo a acção perante os tribunais cíveis.
2 - Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.
Artigo 6º, na redacção intermédia, dada pela Lei 23/2010, de 30.08:
Regime de acesso às prestações por morte
1 - O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, independentemente da necessidade de alimentos.
2 - A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação.
3 - Exceptuam-se do previsto no n.º 2 as situações em que a união de facto tenha durado pelo menos dois anos após o decurso do prazo estipulado no n.º 2 do artigo 1.º
Artigo 6º na redacção actual, dada pela Lei 71/2018, de 31.12:
Regime de acesso às prestações por morte
1 - O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, independentemente da necessidade de alimentos.
2 - A entidade responsável pelo pagamento das prestações, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, pode solicitar meios de prova complementares, designadamente declaração emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira ou pelo Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., onde se ateste que à data da morte os membros da união de facto tinham domicílio fiscal comum há mais de dois anos.
3 - Quando, na sequência das diligências previstas no número anterior, subsistam dúvidas, a entidade responsável pelo pagamento das prestações deve promover a competente ação judicial com vista à sua comprovação.
4. Atendendo à letra da norma (elemento gramatical) na sua redacção actual, verifica-se que esta nunca se refere expressamente ao facto de a acção avaliativa da união de facto dever preceder a decisão sobre a concessão, ou não, da prestação de protecção social. Assim:
- o n.º1 só consagra o direito geral às prestações em causa, dispensando a necessidade de alimentos.
- o n.º2 estabelece que, em caso de dúvida, cabe à entidade responsável pelo pagamento diligenciar pela obtenção de meios de prova complementares. A dúvida é o pressuposto factual do regime, mas este regime não delimita, em termos literais, o momento em que a dúvida pertinente surge, se antes ou depois da decisão que concede a prestação. A menção à entidade responsável pelo pagamento é, do ponto de vista em causa, no mínimo neutra, pois tal menção é compatível com um momento anterior ou posterior à decisão: a entidade responsável pelo pagamento é a mesma nos dois momentos, e a sua definição através da sua qualidade como responsável pelo pagamento também nada diferencia.
- o n.º3 regula a situação de dúvida subsequente aos meios complementares de prova, que estes não resolvam, impondo àquela entidade responsável a obrigação (dever) de impor uma acção judicial com vista à comprovação da união de facto. De novo, daqui não deriva literalmente qualquer distinção quanto ao momento em que surge a dúvida.
Assim, do elemento literal apenas se retiram, no que agora releva, as seguintes asserções: i. que a acção judicial é um meio ajustado para verificar a existência da união de facto no quadro da prestação social em causa; ii. que a acção deve ser usada de forma subsidiária, apenas em caso de estrita necessidade probatória (situação de dúvida não excluída pelos meios de prova preferenciais, não judiciais); e iii. que o uso da acção constitui uma obrigação da entidade responsável, no caso de existir aquela dúvida. Já se não retira, em termos assertivos, claros ou gramaticais que se visa apenas a dúvida surgida em momento anterior à decisão ou, de forma mais radical, que se exclui a possibilidade de utilizar a acção declarativa perante a dúvida posterior à decisão atributiva do direito. Tal é apenas inferência realizada a partir de outros elementos, mormente da ideia de que a prova (da união de facto) precede necessariamente a decisão.
Deste modo, a interpretação da decisão recorrida (que retira daquele regime a exclusão do acesso à acção declarativa) não é a única consentida pelo sentido literal da norma.
5. Do ponto de vista do elemento histórico (onde se atende ao contexto histórico da criação da norma, aos trabalhos preparatórios, à evolução histórica do preceito, ou ás suas fontes), releva, primeiramente, o facto de a Lei 7/2001 surgir num contexto de atribuição de estatuto legal específico à união de facto, mormente quanto à protecção social do unido de facto na eventualidade de morte do beneficiário. Nesse contexto surgiam os problemas atinentes à demonstração da união de facto, que o regime legal regulou de forma diferenciada ao longo do tempo. Assim:
- a redacção original do art. 6º impunha aos interessados a proposição de acção contra a entidade responsável pelo pagamento como forma de efectivar o direito às prestações. A acção precedia assim necessariamente a decisão da entidade responsável. Acção em que, além da união de facto, se tinha também que demonstrar a existência de necessidade de alimentos.
- a redacção dada ao art. 6º pela Lei 23/2010, de 30.08, prescindiu da necessidade de alimentos (como pressuposto do direito à protecção social) e alterou o procedimento probatório. A exposição de motivos da iniciativa legislativa (do BE), embora sucinta nesta parte [1], revela que se pretendeu eliminar a obrigação de recurso ao tribunal pelos próprios interessados, para verem reconhecido o seu direito, tendo-se também procurado facilitar a prova da união de facto, mormente por oposição ao regime então vigente, que fazia depender a prestação por morte de uma decisão do tribunal. Nessa linha, aquela Lei 23/2010 aditou o art. 2º-A à Lei 7/2001, relativo aos meios de prova, passando-se a admitir, como regra, qualquer meio de prova legalmente admissível. E reservou a via judicial para as situações de dúvida probatória, tornando-a subsidiária, e via cuja promoção incumbia à entidade responsável pelo pagamento.
Ainda simultaneamente, a Lei 23/2010 alterou também os art. 40º e 41º do DL 142/3, de 31.03, passando a contemplar expressamente a pessoa em união de facto e remetendo os termos da prova dessa união de facto para a Lei 7/2001.
- a redacção do art. 6º dada pela Lei 71/2018, de 31.12, reforçou o carácter subsidiário do recurso à acção judicial.
Tratando-se de mera situação de facto, a união de facto coloca um problema de prova dos factos que a constituem. Os dados expostos revelam que o legislador tratou apenas, nas normas em causa, de regular a prova da união de facto. Naturalmente, como a união de facto é pressuposto da concessão das prestações sociais, a necessidade dessa prova surgirá primeiramente antes da decisão, como elemento prévio à decisão atributiva. Mas esse aspecto da questão não foi preocupação do legislador, que não tratou de o regular. Por isso que não restringiu directa ou expressamente o problema de prova ao momento prévio à decisão.
É certo que no regime original a utilização da acção judicial antes da decisão da entidade responsável também limitava, ou excluía, a possibilidade de a utilizar após aquela decisão. Mas isso era mero efeito do procedimento de demonstração da união de facto adoptado, pois, de um lado, a acção era a única forma de demonstrar a união de facto, e, de outro lado, decidida a acção, o caso julgado que se formava tornava a demonstração (ou não) da união de facto em princípio inatacável. Estas razões tornavam tendencialmente irrelevante uma dúvida subsequente à decisão (atento justamente o caso julgado já formado). O carácter prévio da acção era, pois, resultado ou efeito das regras criadas e não propriamente uma opção autónoma, e restritiva, do legislador quanto ao momento em que a acção era admissível. A evolução subsequente interveio apenas, também, no problema dos meios de prova, e não propriamente na regulação do momento em que a prova pode ser necessária. E a eliminação da exclusividade da acção judicial como meio de demonstração da união de facto eliminou o carácter necessariamente prévio da acção judicial face à decisão da entidade responsável.
O máximo que se pode dizer é que, na regulamentação criada, está subjacente uma situação normal ou regular (em que a demonstração da união de facto que precede a decisão também esgota a avaliação, não se voltando a colocar um problema de demonstração). Mas aquela regulamentação não constituiu essa situação como elemento do regime, não condicionando expressa ou intencionalmente a acção ao momento prévio à decisão, por oposição a um momento subsequente à decisão, onde já não seria admissível.
6. O elemento sistemático (o quadro legislativo em que se insere a norma interpretanda) conduz a avaliação semelhante. É certo que quer o regime da Lei 7/2001 (a união de facto é pressuposto do regime e precede a concessão dos direitos: v.g. art. 2-A n.º1, 3º e 6º n.º1), quer o regime do DL 142/73, de 31.03 (o direito está dependente da prova da união de facto: art. 41º n.º2) fazem depender o direito à prestação da prova da união de facto. E, assim, fica exposta a natural necessidade de a demonstração anteceder a decisão. Mas o regime é mais amplo, pois apenas exige a prova da união de facto como elemento do direito, já não especificando que essa necessidade de prova, no que ao uso da acção judicial concerne, se coloca apenas antes da decisão. Deste modo, do regime apenas decorre a necessidade da demonstração da união de facto como pressuposto do direito, e já não que aquela demonstração judicial apenas é necessária ou possível antes da decisão.
Num plano mais amplo, deve levar-se em conta que o acesso ao tribunal como mecanismo de superação de conflitos (em sentido amplo) constitui a regra, sendo excepcionais as limitações (art. 1º e 2º n.º2 do CPC e art. 20º n.º1 da CRP). A essa luz se deve também compreender a norma em causa, considerando, também face ao demais exposto, que ela não contém uma intenção restritiva da utilização da acção judicial.
7. O elemento teleológico, ou racional, vem a revelar-se determinante. Respeitando às razões ou fins prosseguidos pelo legislador ou pela lei, podem, mormente a partir dos elementos já expostos, assinalar-se algumas ideias quanto ao regime actualmente vigente:
. a demonstração da união de facto é legalmente tida por essencial à atribuição do direito. Pela mesma lógica, é também essencial à sua conservação, pois a revelação da sua inexistência deve conduzir à eliminação da prestação. Trata-se de decorrência do regime, e assim da intenção legal subjacente, e tende a revelar que o interesse no acesso à acção (clarificadora) pode subsistir após a decisão.
. a abertura do regime aos meios de prova extrajudiciais não excluiu a possibilidade de recorrer à acção judicial, em caso de dúvida. A manutenção desta possibilidade revela que o legislador pretendeu que a decisão da entidade responsável esteja revestida de certeza (assente em dados seguros, que superem a dúvida). Ora, tal tanto vale para a decisão que concede como para a decisão que retira a prestação.
. o regime tem um cunho favorável ao pretendente da prestação social. Assim quando o desonerou do encargo de intentar a acção. Mas também, e sobretudo, quando impede que a dúvida sobre a situação seja resolvida contra si: perante a dúvida, a entidade responsável não pode decidir contra o interessado [2]. Tem o dever de intentar a acção judicial (para clarificar a situação, assim se libertando também o interessado do ónus de reagir à decisão desfavorável). Tal também pode valer para a dúvida subsequente à decisão. Pois a esta dúvida subsequente pode ser dado o mesmo tratamento, significando que é legítimo considerar que a dúvida não deve ser resolvida de modo desfavorável ao interessado, e que pode ser resolvida com a segurança inerente à acção judicial.
. a instauração da acção vem constituída como uma obrigação, não uma faculdade (a entidade «deve promover» a acção judicial comprovativa da união de facto) justamente em obediência à intenção de certeza quanto à verificação, ou não, da união de facto (o que, como se disse, favorece o interessado no caso de dúvida). Esta razão legal (obtenção de certeza) é válida também perante a dúvida subsequente à decisão, justificando a acção.
. o facto de a dúvida surgir após a decisão também tende a significar que os meios probatórios documentais estão esgotados ou são insuficientes para esclarecer a dúvida. O recurso à acção constitui então, em caso de conflito [3], o meio legalmente tido por necessário. Natural, pois, que seja então usada a acção que o legislador teve por ajustada à superação da dúvida probatória, e que seja usada por iniciativa da entidade responsável.
. em articulação com o exposto, cabe notar que o objecto da acção, antes ou depois da decisão da entidade responsável, é exactamente o mesmo (avaliação da união de facto, tal como definida pela Lei 7/2001), reduzindo-se a uma questão estritamente civil, sem, em si, revestir caracteres administrativos. O que constitui elemento que também aproxima as situações (antes e depois da decisão).
. o carácter subsidiário da acção leva subjacente, ao menos de forma lateral, um efeito desonerador dos tribunais [4]. Este efeito não é desvirtuado pela admissibilidade da acção subsequente à decisão quando esta se baseia na mesma dúvida (também porque esta acção subsequente supõe que inexistiu acção anterior à decisão [5]).
. além disso, e estando a instauração da acção constituída como obrigação imposta para superar a dúvida, também significa que o regime visou impor a acção em caso de dúvida, e já não proibir a instauração da acção após a decisão (ou, o que é o mesmo, limitar a acção ao momento prévio à decisão) - até porque a dúvida pode surgir também após a decisão. Neste sentido, não é lícito retirar tal proibição (após a decisão) do regime.
Assim, estes dados revelam que, de um ponto de vista material, inexistem razões que permitam retirar do regime um antagonismo radical à instauração da acção após a decisão. Ao invés, os fundamentos do regime toleram ou são mesmo conformes a tal instauração. Não é possível, como faz a decisão recorrida, dizer que a acção só realiza os seus fins se for anterior à decisão.
8. Deveria, de acordo com certa visão, atender-se também a um elemento prático da interpretação [6], considerando os resultados ou consequências práticas da interpretação e aplicação da lei. A solução que admite a interposição da acção judicial em caso de dúvida fundada surgida após a decisão da entidade responsável é a mais harmoniosa, em termos práticos, por permitir resolver de imediato e em termos finais (caso julgado) a dúvida, assim pacificando a situação. Outra solução cria incerteza quanto aos comportamentos ajustados e aos meios a adoptar, e, em princípio, irá onerar o interessado com o ónus de reagir a decisão que suspenda ou revogue o benefício (a actuar em tribunais administrativos).
9. Do ponto de vista do método hermenêutico, nota-se também que a interpretação proposta pela decisão recorrida constituiria uma interpretação enunciativa ou a contrario sensu, no sentido de que parte da solução normativa que sustenta (que o legislador só previu a acção judicial em momento anterior à decisão da entidade responsável) para dela retirar outra regra de sentido oposto: que o legislador não quis a acção após aquela decisão da entidade responsável. Esta segunda regra não está, como se viu, expressa na lei. Ora, este modelo interpretativo suscita dificuldades por pressupor uma regulação autónoma absoluta, que não contempla outras soluções, e por isso se tende a reservar para normas excepcionais: normas que regulam com exclusividade e excepcionalidade certa situação, excluindo qualquer outra forma de regulação. Tal não está, como se viu, demonstrado. Acresce que se trata de interpretação formal, que não atende a razões materiais, e interpretação reversível ou ao menos frágil, pois pode sempre sustentar-se que o legislador não teve uma intenção reguladora total, ou não visou a situação contrária.
10. Por fim, cabe ainda atender a que, como deriva do exposto, o regime da Lei 6/2001 não visou criar uma regulação geral do direito de acção da entidade responsável pelo pagamento. Apenas fixa pressupostos específicos limitativos da acção (subsidiariedade da acção face a outros meios de prova, sendo a acção utilizável apenas em caso de dúvida que aqueles meios de prova não permitam excluir). Assim, e ainda que se aceite que a regulação legal valeria apenas para o momento prévio à decisão, isso apenas significaria que, após a decisão, aquela entidade podia lançar mão da via judicial como qualquer outro interessado, de acordo com os critérios gerais do direito de acção. Haveria apenas que averiguar se se verificavam os pressupostos específicos do exercício do direito de acção, mormente a competência material (passível de admitir dada a natureza estritamente civil da questão, em tudo paralela à acção anterior à decisão e à luz do facto de a decisão administrativa não ser directa ou indirectamente pressuposto ou objecto da acção), a legitimidade (que, não valendo a interpretação negatória da decisão recorrida, parece clara, face ao art. 30º do CPC) ou o interesse em agir (que também parece poder afirmar-se, como aliás, já foi afirmado, com boas razões e para situação análoga, por Ac. do TRC proc. 3531/21.5T8FNC.L1-2 de 01.06.2023 - disponível em 3w.dgsi.pt).
11. O que o exposto revela é que o regime não permite sustentar a proibição de utilização da acção judicial após a decisão da entidade responsável. E sendo o acesso ao tribunal legítimo face aos princípios gerais, o regime da Lei 7/2001 não apenas não o exclui como até o sustenta pelas razões, mormente racionais, expostas.
Deste modo, e de forma conclusiva, pode-se afirmar que o problema da prova através da acção se coloca sempre que a existência da união de facto se mostra duvidosa (face aos demais meios de prova disponíveis), e que o regime legal acomoda esta asserção.
Donde se não verificar o pressuposto legal que justificaria a imputada ilegitimidade.
12. O art. 527º n.º1 do CPC contempla duas regras de responsabilização tributária. Uma primeira, principal, responsabiliza quem deu causa à acção (ou recurso). Não é aplicável no caso já que o recurso não radica na posição de alguma das partes (a questão da legitimidade foi suscitada oficiosamente, e o recorrido não a sustentou, não tendo respondido ao recurso). Uma segunda, parte da inexistência de vencimento para onerar quem tirou proveito da acção (ou recurso). No caso, existe vencimento da recorrente, o que também exclui esta regra (a qual, aliás, tem em vista outro tipo de situações, como a inerente à divisão de coisa comum). Deve, assim, considerar-se que se trata de situação em que legalmente fica prejudicada a condenação em custas, por não corresponder a situação em que a condenação é devida. Embora, por inexistir taxa de justiça adicional a pagar nem encargos (e a taxa já paga é suportada pelo impulso processual), tal tem apenas efeitos no âmbito das custas de parte, de que a taxa paga pelo recorrente fica excluída.
V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida quando absolve o R. da instância por considerar a A. parte ilegítima.
Sem custas.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
António Fernando Marques da Silva - relator
Susana Ferrão da Costa Cabral - adjunta
Maria João Sousa e Faro - adjunta
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1. Com o seguinte teor: No entanto, a Lei 7/2001 nunca foi regulamentada, pelo que durante todo este tempo permaneceram dúvidas sobre diversos aspectos da sua aplicação. A começar, desde logo, pela prova da existência da união de facto. Mas também quanto à manutenção de um regime absurdo no que diz respeito ao direito às prestações por morte, pois faz depender essa prestação da necessidade de alimentos, e obriga a recorrer a um processo judicial contra a Segurança Social e a uma decisão do Tribunal (Projecto de Lei 225/XI: texto disponível no site do parlamento).↩︎
2. O que seria o resultado natural da dúvida, que significaria que teria ficado por revelar o pressuposto do pedido de pagamento.↩︎
3. Quando o interessado não reconheça, como será normal, que a união de facto não existia.↩︎
4. Não parece que tal fosse realmente assumido como um objectivo do regime.↩︎
5. A ter existido, o caso julgado impediria a segunda acção, como já se notou.↩︎
6. António Cortês, Comentário ao CC, Parte Geral, UCP Editora 2023, pág. 61.↩︎