Sumário1:
Compete aos tribunais da jurisdição administrativa conhecer da ação intentada pela empresa a que o Município adjudicou a gestão e exploração do estacionamento de veículos, requerendo de particular o pagamento da contraprestação devida pela utilização do referido estacionamento.
Data Rede, S.A. intentou procedimento de injunção contra AA, reclamando o pagamento de €480,41, correspondente ao valor (acrescido de juros) devido pelo estacionamento de viatura do requerido em locais onde a requerente presta serviços de parqueamento oneroso, na sequência de contrato de concessão celebrado com o Município de Setúbal.
Tendo o Requerido deduzido oposição na qual invocou, além do mais, a incompetência material do Tribunal Recorrido, foram os autos remetidos à distribuição, após o que foi a Autora notificada para responder à matéria de exceção, o que esta fez, pugnando pela improcedência das exceções e pela procedência da ação.
Foi depois proferida decisão que, por entender, no essencial, que a legitimidade da Autora na cobrança de um determinado montante pela utilização de tais parques de estacionamento tem subjacente um contrato administrativo de interesse público, pois como o próprio contrato menciona, são espaços públicos cuja gestão está a cargo do Município de Setúbal», considerou que a competência para apreciar as questões emergentes dessa relação cabia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do art. 4º n.º1 al. e) do ETAF.
Terminou com o seguinte dispositivo:
“Em face das razões de facto e de direito supra expostas, julgo verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria e, como tal, declaro os Juízos Locais Cíveis de Setúbal incompetentes em razão da matéria para tramitar e decidir a presente acção, pelo que absolvo a Ré da instância.(…)”
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Inconformada, interpôs a Autora recurso, formulando as seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso apresentado contra a Douta Sentença A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Setúbal para cobrança dos créditos da Autora.
b) No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou contrato com a Câmara Municipal de Setúbal, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
c) No seguimento deste contrato, a Data Rede adquiriu e instalou em vários locais da cidade, máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Enquanto utilizador do veículo automóvel ..-LV-.., o Réu estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, num total em dívida de € 480,41 que aquele se recusa pagar.
e) Para cobrança deste valor, a Autora viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.
f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não a de uma taxa.
g) Sendo as Taxas verdadeiros tributos (Art.3º Nr.2 da LGT), que visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e sendo a receita da utilização dos parqueamentos, propriedade da Data Rede, tal contrapartida escapa por definição ao conceito de taxa.
h) As ações intentadas pela Autora contra os proprietários de veículos automóveis, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
i) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, o contrato estabelecido com o automobilista, relativo à utilização dos parqueamentos, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade civil contratual por incumprimento.
j) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto, assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais.
k) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre a concessionária e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.
l) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
m) Proposta temporária, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela Autora, concorda com os termos de utilização propostos e amplamente publicitados no local.
n) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
o) A DATA REDE SA., não efetua, tão pouco, atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
p) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
q) Os montantes cobrados pela Data Rede SA., também não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações
r) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
s) A Data Rede, ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos.
t) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, sendo inconstitucional, corresponde a esvaziar de utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos, por falta de legitimidade processual ativa (Artigo 152º do CPPT), em direta violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto pelo Artigo 20º Nr.1 da Constituição da República Portuguesa.
u) Institucionalizar este entendimento, fomenta o incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, deixam de pagar deliberadamente, em claro incentivo ao incumprimento.
v) A cobrança judicial de tributos é feita mediante o recurso ao processo de execução fiscal, aplicando-se-lhe o regime estabelecido pelo Código de Procedimento e Processo Tributário, especialmente os artigos 148º e seguintes sobre execução fiscal.
w) Entender que o valor cobrado pela A., é uma taxa ou tributo, que apenas os órgãos de execução fiscal podem cobrar - artigo 152º do CPPT - retiraria à A. o poder de recuperar os seus créditos, retirando-lhe o acesso à tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20º da CRP
x) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a Data Rede SA., não pode, contudo, este primeiro contrato, contagiar ou ser equiparado, aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a Data Rede e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, até só pela forma como os seus intervenientes atuam.
y) Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de interesse público, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão hoje definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos com a redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que alterou as alíneas e) e f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF e posteriormente pela L 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao Nr.4 do Art.4º do E.T.A.F).
z) Da alteração introduzida pelo DL 214-G/2015, resultou que a matéria que antes se encontrava na alínea f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF, passou para a alínea e) do mesmo número, mas com conteúdo muito diferente, que não alude às circunstâncias acima referidas, que antes colocavam situações como a dos autos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
aa) Sendo certo que o contrato de utilização temporária de espaço público para estacionamento em causa nos autos, celebrado entre a empresa privada, ora apelante, e o utilizador privado ora apelado, não é um contrato administrativo, não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, não é celebrado por pessoa coletiva de direito público, e não é celebrado por qualquer entidade adjudicante.
MAL ANDOU, ASSIM, O TRIBUNAL “A QUO” AO DECLARAR-SE INCOMPETENTE EM RAZÃO DA MATÉRIA, POIS, O TRIBUNAL RECORRIDO É O COMPETENTE, MOTIVO PELO QUAL FORAM VIOLADOS, ENTRE OUTROS, OS ARTIGOS 96º, AL. A), 278º, NR.1 AL. A), 577º AL. A) E 578º DO CPC, QUER O ARTIGO 4º NR.1, AL. E) DO ETAF, QUER AINDA O ARTIGO 40º DA LEI 62/2013 DE 26 DE AGOSTO.
TERMOS EM QUE, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, E EM CONSEQUÊNCIA, SER A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA SUBSTITUIDA POR OUTRA, QUE JULGANDO COMPETENTE O JUÍZO LOCAL CÍVEL DE SETÚBAL, ORDENE O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS, CONFORME É DO DIREITO E DA J U S T I Ç A.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foi proferida decisão singular que julgou improcedente o recurso.
De novo inconformada, a Recorrente reclamou para a conferência, com as seguintes conclusões:
- Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a Data Rede SA., não pode, contudo, este primeiro contrato, contagiar, ou ser equiparado, aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a Data Rede e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada;
- O facto de a Câmara, enquanto Entidade Administrativa, regulamentar os termos de utilização dos Parques de Estacionamento, condicionando contratualmente a atividade económica da Autora enquanto concessionária, não implica, nem se traduz, na automática cedência de poderes de autoridade;
- Os valores cobrados pela Autora, pelos tempos de estacionamento nos Parques por si explorados, contra o entendimento do Tribunal A Quo e do Venerando Relator, não possuem natureza fiscal ou sancionatória;
- Sendo as Taxas verdadeiros tributos (Art.3º Nr.2 da LGT), que visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e sendo a receita da utilização dos parqueamentos, propriedade da Data Rede, tal contrapartida escapa por definição ao conceito de taxa.
- Entender que os tribunais competentes são os fiscais, esvazia de utilidade o Contrato de Cessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à cessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos;
- Neste redutor entendimento, a cobrança dos tempos de estacionamento, ficaria na discricionariedade, de muito improvável realização, dos poderes públicos, retirando à A. a possibilidade de reaver o seu crédito.
- Entender que os tribunais competentes para reaver os créditos da Autora, são os administrativos e, de entre estes, os fiscais, por se afirmar, erradamente, estarmos perante Taxas, implica sonegar à Autora o direito de reclamar os seus créditos, por falta de legitimidade para recorrer aos tribunais fiscais para cobrança de valores, que lhe pertencem.
- Apenas os órgãos de execução fiscal, possuem legitimidade ativa para promover a cobrança de dívidas fiscais. Artigo 152º do CPPT
- Institucionalizar este entendimento, fomenta o incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, deixam de cumprir semelhante obrigação.
- Ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de natureza pública, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão hoje definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos com a redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que alterou as alíneas e) e f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF e posteriormente pela L114/2019, que introduziu a alínea e) ao Nr.4 do Art.4º do E.T.A.F).
- Da alteração introduzida pelo DL 214-G/2015, resultou que a matéria que antes se encontrava na alínea f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF, passou para a alínea e) do mesmo número, mas com conteúdo muito diferente, que não alude às circunstâncias acima referidas, que antes colocavam situações como a dos autos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
- Sendo certo que o contrato de utilização temporária de espaço público para estacionamento em causa nos autos, celebrado entre a empresa privada, ora apelante, e o utilizador privado, ora apelado, não é um contrato administrativo, não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, não é celebrado por pessoa coletiva de direito público, e não é celebrado por qualquer entidade adjudicante.
- Da alteração introduzida pela Lei 114/2019, por sua vez, resulta que nos termos da alínea e) do Nr.4 do Art.4º, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
- Da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 167/XIII-4ª, que esteve na origem da L 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição.
- O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no Art.1º nº2 da L 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre prestador do serviço e utente é uma relação de direito privado.
TERMOS EM QUE SE REQUER A V.EXAS VENERANDOS DESEMBARGADORES SE DIGNEM SUBMETER O RECURSO DA APELANTE, A DELIBERAÇÃO DA CONFERÊNCIA, MERECENDO-O COM ADEQUADO ACÓRDÃO QUE, JULGANDO PROCEDENTE O RECURSO, SUBSTITUA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA POR OUTRA, QUE JULGANDO COMPETENTE O JUÍZO LOCAL CÍVEL DO PORTO, ORDENE O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS, CONFORME É DO DIREITO E DA J U S T I Ç A.”
Cumpre, pois, agora em conferência, apurar do mérito do recurso interposto.
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II. Objeto do recurso.
O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), ressalvado o conhecimento das questões que ocorra questão de apreciação oficiosa, pelo que, nos presentes autos importa apurar a que jurisdição – comum ou administrativa – compete, em razão da matéria, conhecer da ação que a requerente intentou contra a requerida exigindo-lhe o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15 000,00.
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III. Fundamentação de Facto.
Os elementos factuais relevantes constam, no essencial, do relatório elaborado, a que acresce o teor da decisão recorrida.
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IV. Fundamentação jurídica.
Como se assinalou na sentença recorrida, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pelos termos em que o autor propõe a ação, definida esta pela causa de pedir, pelo pedido, pela natureza das partes , ou seja em função dos termos em que o autor estrutura a pretensão que quer ver reconhecida e nos termos da Lei n.º 62/2013 -, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”.
No caso dos autos, a recorrente intentou procedimento de injunção tendente ao pagamento pela recorrida de determinadas quantias respeitantes ao estacionamento do seu veículo em zonas em que se mostra concessionada a exploração do estacionamento tarifado de superfície pela Câmara Municipal à recorrente.
Dúvidas não se colocam de que a Câmara Municipal Local transferiu, através do contrato de concessão em causa, a atividade pública, por si titulada, melhor : o “direito de gerir essa atividade no seu próprio nome”.
Sendo que, atendendo à competência regra ou residual dos tribunais judiciais (art. 211º n.º1 da CRP, 64º do CPC e 40º n.º1 da LOSJ), a atribuição da competência material aos tribunais administrativos e fiscais dependerá da identificação da regra legal que, perante as referidas circunstâncias da ação, sustente tal atribuição.
O âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais encontra-se concretizado, essencialmente, no artigo 4.º do ETAF, estabelecendo no n.º 1 alíneas e) e o) que lhes cabe, (no que para aqui poderia convocar-se) “a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; (…) e,
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. (…)”.
Consagrando esta última norma um “critério subsidiário e residual” atributivo da competência material à jurisdição administrativa e fiscal para conhecer de causas que tem por objeto matérias atinentes a relações jurídicas administrativas e fiscais que não lhe são atribuídas, especificamente, nem em legislação avulsa nem se incluem em qualquer das restantes alíneas do n.º 1 do artigo 4º do ETAF.
Relação jurídica administrativa é a relação jurídica de direito administrativo, aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração.
A Data Rede, S. A. é uma empresa privada que tem por objeto a concessão da exploração do estacionamento, por períodos limitados em áreas delimitadas do espaço público, designadamente nas vias sob jurisdição municipal, devidamente sinalizadas, sujeito ao pagamento de taxa.
Nestes autos, a Requerente exige do Requerido o pagamento da contraprestação devida pelo estacionamento do seu veículo automóvel zonas em vias da cidade de Beja em que de estacionamento está taxado e cuja exploração foi adjudicada pela Câmara Municipal à requerente mediante contrato de concessão celebrado entre ambas.
Em suma, exige o pagamento de quantia resultante de taxas unilateralmente fixadas e aprovadas pelo município nos termos do enquadramento legal aplicável e sendo concessionária do serviço público de estacionamento nas vias municipais, nesse âmbito, atua em substituição da autarquia e munida dos poderes que a esta são legalmente atribuídos nessa área.
Não pode, validamente, defender-se que os particulares podem, no âmbito da sua autonomia privada, cobrar uns aos outros quantias devidas pelo estacionamento na via pública. A Requerente só o faz por lhe terem sido outorgados poderes para o efeito por uma entidade pública, por virtude do contrato de concessão, poderes que se impõem aos particulares.
Como se referiu no Acórdão desta Secção de 05-06-2025, que continuamos a subscrever:
“a questão colocada tem sido jurisprudencialmente decidida, de forma consistente e unívoca, no sentido da atribuição da competência material à jurisdição administrativa e fiscal, com base em razões que se mostram persuasivas, a partir essencialmente das seguintes considerações [2]:
- partindo do art. 212º n.º3 da CRP e do art. 1º do ETAF, afirma-se que o conceito de «relação jurídica administrativa» seria o critério determinante da repartição de jurisdição (e assim da definição do âmbito da justiça administrativa). O conceito é, a um tempo, reduzido mas também ampliado pelo elenco constante do art. 4º n.º1 do ETAF. De entre as hipóteses nesta norma consideradas, apela-se essencialmente às al. e) e o) do n.º1 daquele artigo, na medida em que atribuem à jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciar litígios que se reportem a questões relativas à execução de contratos administrativos por pessoas colectivas de direito público (al. e) ou questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas demais alíneas (al. o).
- em especial quanto à segunda das referidas hipóteses legais, e na falta de definição legal do que seja a relação jurídica administrativa, esta pode entender-se num sentido estrito tradicional de relação jurídica de direito administrativo, por oposição às relações de direito privado em que intervém a Administração, permitindo considerar relações jurídicas públicas aquelas «em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» [3] ou até, mais amplamente, as relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.
- a regulação e gestão do estacionamento em locais e vias públicas constitui actividade de interesse público. Este interesse público da matéria é notório e evidente, dispensando desenvolvimentos adicionais, dada a sua conexão com a forma como usamos ou podemos usar espaços acessíveis a todos, integrados no domínio público, estando em causa utilização que tem uma aptidão impeditiva ou condicionadora do uso do mesmo espaço pelos demais. A consagração e recepção legal deste interesse público encontra-se no regime relativo às condições de utilização dos parques e zonas de estacionamento, aprovado pelo DL 81/2006, de 20.04, do qual deriva, em geral, um conjunto de regras impositivas atinentes ao funcionamento dos parques e zonas de estacionamento e, em particular, a atribuição a regulamento municipal, ou aos órgãos municipais, do encargo de regular as condições de utilização daqueles parques e zonas de estacionamento e as taxas aplicáveis (art. 2º n.º2 e 3 daquele regime) - e que a regulamentação do estacionamento deve constar de regulamento decorre também do art. 70º n.º2 do CEstrada. Nesta linha, atribui-se à câmara municipal competência para intervir na matéria (art. 33º n.º1 al. rr) da Lei 75/2013, de 12.09). A natureza pública da intervenção camarária reflecte-se ainda na qualificação legal da contrapartida exigida ao utente como taxa (municipal), estabelecendo uma conexão entre a utilidade prestada (gestão de áreas de estacionamento) e o valor (taxa) cobrado (art. 6º n.º1 al. d) da lei 53-E/2006, de 29.12). A dimensão pública desta actuação deriva ainda do facto de este diploma também impor que a taxa obedeça a um critério proporcional e funcional, pois, sendo fixada de acordo com o princípio da proporcionalidade, não deve ultrapassar o custo da actividade pública local ou o benefício auferido pelo particular, e se pode ser fixada com base em critérios de desincentivo à prática de certos actos ou operações, ainda aí continua vinculada àquela proporcionalidade (art. 4º n.º1 e 2 daquela Lei 53-E/2006). Colocando tal intervenção, pois, fora do domínio económico comum, domínio este subordinado às regras de mercado e visando uma projecção lucrativa. Neste quadro de correspectividade entre a disponibilização de espaço público para uso particular e o pagamento de uma contrapartida, a qualificação legal da contrapartida paga (como taxa) até se tende a mostrar ajustada ao conceito normativo da taxa [4], no sentido de que a finalidade tributária (angariação de receita), surge relacionada «com a compensação de um custo ou valor das prestações de que o sujeito passivo é (...) beneficiário», estabelecendo uma relação de bilateralidade entre dada prestação administrativa e a compensação dessa prestação (v. o referido Ac. 291/2024 do TC, e art. 4º n.º2 da LGT). Este conjunto normativo revela que a câmara municipal (ente público) está dotada de poderes de autoridade, revelados desde logo no poder regulador da utilização dos espaços de estacionamento através de regras impositivas, vertidas em regulamento (regulamento que constitui acto de gestão pública, porque emitido ao abrigo de normas de direito público, e com vocação reguladora geral e abstracta, contendo por isso normas jurídicas [5]). E poderes de autoridade vinculados à prossecução do interesse público ou comum. No caso, aquele poder foi actuado através da aprovação do Regulamento Municipal de Estacionamento Público Tarifado e de Duração Limitada no Concelho de Setúbal (publicado no DR II de 26.08.2016).
- de forma sucinta e genérica, este regulamento define zonas de estacionamento diferenciadas, períodos de permanência máxima, o regime de validade do estacionamento, e, em particular, procede à previsão do pagamento de taxas pelo uso do espaço público para estacionamento, taxas a que se assinalam finalidades públicas (racionalizar e organizar o estacionamento, reprimir estacionando abusivo e contribuir para melhoria da qualidade de vida dos residentes), e taxas cujos valores são também por aquele regulamento fixados.
- daqui decorre que a relação a estabelecer entre o município e o utente teria que ser caracterizada como uma relação administrativa, dada a qualidade de um dos sujeitos, e o exercício de poderes regulativos públicos (que justificam a posição de domínio na fixação das condições do estacionamento e na imposição de uma contrapartida), em ordem à prossecução de interesses comuns à comunidade. Mais ainda, é também evidente que a relação seria disciplinada por normas (regulamentares) de direito administrativo. Relevando, assim, directamente para os termos da referida al. o) do nº 1 do art. 4º do ETAF (na falta de outra alínea aplicável).
- os termos desta avaliação não se alteram com a intervenção (ou melhor, interposição) da recorrente. Com efeito, e na linha da desintervenção estatal do Estado regulador, alargou-se «a possibilidade de intervenção dos particulares no sector das actividades públicas nos casos em que a lei confere à Administração o poder de delegar ou conceder o respectivo exercício».
- é nesse âmbito que surge a actuação da recorrente, desempenhando, por concessão, poder administrador e regulador próprio da Administração (local). O que significa que a sua actividade mantém a mesma natureza da intervenção da Administração, uma vez que por aquela concessão «o titular do serviço público cede uma parcela dos direitos e poderes inerentes à titularidade do serviço público». Ora, atendendo à exposta caracterização da posição da entidade concedente (exercendo poderes públicos de autoridade, ainda que por via do regulamento aprovado, com vista à realização de finalidades públicas), está-se então «perante uma entidade particular no exercício de um poder público e actuando com vista à realização de um interesse público».
- asserção que se confirma pelo facto de as condições do estacionamento, incluindo o «preço» (a taxa), a que se submetem os particulares derivarem do referido regulamento administrativo, pelo que a recorrente, quando actua, fá-lo exercendo poderes derivados do regulamento e na aplicação daquele regulamento, e a partir dos poderes púbicos que estão na origem do regulamento. Não tem poderes para fixar regras ou preços, mas apenas para aplicar (numa actividade de gestão e fiscalização, como deriva do contrato de concessão) normas jurídicas pré-determinadas, que correspondem a um regime de direito público e visam a satisfação de um interesse geral. O que exclui, aliás, a tese da sua actuação como qualquer particular, pois nem ela nem os visados se encontram num plano privatístico e tendencialmente paritário: ao invés, os utentes estão sujeitos às regras regulamentares inflexíveis, não negociais (o que cria uma relação de supra-infra ordenação entre a entidade reguladora e o utente), regra que a recorrida apenas aplica ou cuja aplicação observa. Sendo o regulamento que funda a juridicidade da relação estabelecida, é por força da sua vinculatividade, e não com base numa relação negocial, que é exigível o pagamento das taxas. Por isso, aliás, que o contrato de concessão seja omisso quanto à atribuição à recorrente de poderes conformadores das regras de estacionamento. E por isso também que a invocação das relações contratuais de facto (figura, aliás, dominantemente rejeitada) seja desajustada pois, mais que discutir uma relação negocial (assente na materialidade subjacente), importa atender a que está em causa uma relação normativamente enquadrada por via do regulamento administrativo aprovado (que define as condições de utilização do serviço público de estacionamento) [6] e, por essa via, uma relação administrativa: só por via do regulamento pode a recorrente cobrar as taxas (sem liberdade para recusar o estacionamento, ou para alterar valores, etc.). E asserção que se manifesta também, simetricamente, pelo facto de a relação com os utentes não estar sujeita às regras do mercado, mormente na fixação de preços ou num escopo lucrativo, como deriva do exposto quanto à forma de fixação e finalidade das taxas cobradas. Donde ser justificado afirmar que «os actos praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público» [7].
- tudo justificando que, para efeitos de inclusão no contencioso administrativo, a actuação da recorrente se integre nas relações jurídicas administrativas externas, pois nestas, compreendendo as relações entre a Administração e os particulares, também se incluem as relações entre entes que actuem em substituição de órgãos integrados na administração (mormente no contexto do exercício por particulares de poderes públicos, por exemplo, os tradicionais concessionários) e os particulares [8]. O que convoca a aplicação do regime do referido art. 4º n.º1 al. o) do ETAF.
- aliás, por esta via também se pode sustentar que estariam em causa contratos administrativos, para os termos da al. e) do n.º1 do ar. 4º do ETAF, por via da sua sujeição a normas (ainda que regulamentares) de direito público que regulam aspectos, e aspectos determinantes, do seu regime (na linha da posição eu defende a integração naquela alínea de «todo o contencioso dos contratos», superando os seus exactos termos literais).
- a invocação do art. 4º n.º4 al. e) do ETAF é descabida pois esta norma apenas se reporta aos serviços públicos essenciais, e, como a própria recorrente admite, aí se não insere o estacionamento (art. 1º n.º1 e 2 da Lei 23/96, de 26.07) - aliás, sustenta-se que o elenco deste art. 1º n.º2 tem natureza taxativa, sendo insusceptível de ampliação interpretativa.
- o facto de a nota de cobrança estar «desprovida de força executiva, não podendo (...) dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal», é irrelevante: apenas coloca a recorrente na posição do normal credor, obrigado a obter um título executivo judicial (na ordem jurisdicional competente).
- o facto de a recorrente não dispor de poderes sancionatórios não serve para descaracterizar a sua posição, tal como exposta, não sendo aqueles poderes nota imprescindível da relação jurídica administrativa para os efeitos em causa.
Assim, existindo regra atributiva da competência material aos tribunais administrativos e fiscais, fica excluída a competência regra ou residual dos tribunais comuns. Trata-se esta de conclusão pacificamente acolhida pelos tribunais, como se verifica pelo panorama da jurisprudência recente dos tribunais comuns. Assim, neste sentido, sem ser exaustivo (os Acs. citados remetem também para outras decisões, recentes e mais antigas), v., mais recentemente, os Ac. do TRE de 16.12.2024, proc. 42536/24.7YIPRT.E1 ou de 30.01.2025, proc. 42537/24.5YIPRT.E1, do TRL de 10.04.2025, proc. 143397/23.2YIPRT.L1-6, de 04.02.2025, proc. 118032/24.5YIPRT.L1-7, de 20.03.2025, proc. 86424/24.7YIPRT.L1-6, de 23.01.2025, proc. 118584/24.0YIPRT.L1-6, ou do TRP de 20.03.2025, proc. 126593/24.2YIPRT.P1, de 11.03.2025, proc. 69259/24.4YIPRT.P1, de 24.02.2025, proc. 143394/23.8YIPRT.P1, de 20.02.2025, proc. 79555/24.5YIPRT.P1, de 10.02.2025, proc. 126592/24.4YIPRT.P1, de 28.01.2025, proc. 69243/24.8YIPRT.P1.
Solução que vinha já sendo sustentada, também sem divergência, por exemplo nos Acs. do TRL de 20.01.2011, proc. 918/09.5TBPDL.L1-8, de 07.10.2010, proc. 1763/09.3TBPDL.L1-8, de 13-07.2010, proc. 825/09.1TBPDL.L1-8, de 24.02.2010, proc. 1950/09.4TBPDL.L1-2, ou de 24.06.2010, proc. 466/09.3TBPDL-A.L1-6, ou do STJ de 12.10.2010, proc. 1984/09.9TBPDL.L1.S1.
A mesma linha decisória é acolhido pelo Tribunal de Conflitos. Assim, o Ac. de 08.05.2025, proc. 0118584/24.0YIPRT.L1.S1 (com a mesma data, e os mesmos juízes, foram proferidos idênticas decisões nos proc. 0126592/24.4YIPRT.P1.S1, 042536/24.7YIPRT.E1.S1, 079534/24.2YIPRT.P1.S1 ou 0118032/24.5YIPRT.L1.S1), ou o Ac. de 02.03.2011, proc. 024/10, na linha dos Acs. de 25.11.2010, proc. 021/10, e de 09.06.2010, proc. 05/10.
Sendo ainda solução que os tribunais administrativos admitem (v. Ac. TCAS de 09.10.2014, proc. 11379/14, ou de 09.05.2013, proc. 09701/13, e Ac. do STA, de 25.10.2017, proc. n.º 0300/17) [9]. (…)”
Não vemos qualquer motivo ou argumento para alterar os termos da questão ou a jurisprudência citada, pelo que sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela improcedência do recurso.
Estamos perante uma relação jurídica gerada pela utilização de zonas de estacionamento de duração limitada, que gera a obrigação de o beneficiário, seu utilizador efetuar o pagamento de uma taxa, fixada nos termos dos poderes tributários conferidos pela Constituição e pela Lei ao Município, que assume a natureza de questão fiscal ou tributária e cuja questão da cobrança se encontra sob a égide da competência dos tribunais tributários.
Por isso, cabe a competência jurisdicional para apreciar e decidir o litígio em presença à Jurisdição Administrativa e Fiscal, tal como decidido no Acórdão do Tribunal de Conflitos, o que determina que, tal como bem decidido na sentença recorrida, se declare a incompetência absoluta dos tribunais judiciais para o litígio em presença, obstando a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância, nos termos dos art°s 494°, alínea a) e 493°, nº 2 do CPC., sendo competente para a cobrança das taxas em questão a jurisdição administrativa e fiscal.
Refira-se finalmente que tal entendimento não implica qualquer violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto pelo Artigo 20º Nr.1 da Constituição da República Portuguesa, porquanto não se nega o direito de ação ou de acesso aos Tribunais, apenas se diz que é noutra jurisdição que oferece as mesmas garantias, que o direito em causa deve ser discutido.
Acresce que o art. 152º do CPPT se reporta à legitimidade do exequente - questão a ser eventualmente tratada em sede executiva - e o que está em causa neste momento é saber qual o tribunal competente, portanto duas coisas distintas.
Improcede, pois, o recurso.
*
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam, agora em conferência, em julgar improcedente o recurso.
Custas pela Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
13-11-2025
Ana Pessoa
Susana Ferrão da Costa Cabral
Manuel Bargado
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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎
2. Disponíveis, de forma mais desenvolvida, na jurisprudência a final invocada.↩︎
3. J. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Almedina 2006, pág. 57/8.↩︎
4. Como é sabido, a qualificação como taxa depende do regime jurídico fixado, e não de uma qualificação legal ou sequer «da qualificação expressa do tributo como constituindo uma contrapartida de uma prestação provocada ou utilizada pelo sujeito passivo» (v. Ac. 291/2024 do TC, disponível no site do TC).↩︎
5. V. M. Rebelo de Sousa e A. Salgado de Matos, Direito administrativo geral, tomo III, D. Quixote 2007, pág. 238.↩︎
6. Assim, o utente não pode recusar o pagamento, alegando por exemplo estar em causa espaço público, de acesso livre, não por se ter vinculado contratualmente com as regulações da recorrente, mas porque deve obediência ao poder de regulação da administração, que em parte esta cedeu ao concessionário.↩︎
7. Ac. do TRL de 22.04.2010, proc. 1950/09.4TBPDL.L1-2.↩︎
8. J. Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 68, que se seguiu de perto.↩︎
9. Todos os acórdãos citados no texto encontram-se em 3w.dgsi.pt.↩︎