Sumário1:
I. o art.º 130º do Código de Processo Civil, que proíbe a prática de atos inúteis, tem plena aplicação em sede de apreciação de impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, que deve obedecer a um princípio de utilidade, na medida em que só importa considerar o que poder ser relevante segundo as soluções de direito com que o Tribunal se vai confrontar.
II. O procedimento cautelar comum deve ser decretado sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objeto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível.
Comarca de Setúbal, Juízo Local de Setúbal – Juiz 2
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I. Relatório
AA, BB, CORJOR – ADMINISTRAÇÃO, COMPRA E VENDA DE BENS IMÓVEIS, UNIPESSOAL, LDA., CC e DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM, NN, OO, PP, QQ, UNIPESSOAL, LDA, RR, e SS, TT, UU, VV e WW, XX, moveram contra YY, procedimento cautelar comum, pedindo que com inversão de contencioso, seja:
“A) o caminho do Prédio do Requerido declarado como caminho público;
B) o Requerido condenado a, no prazo de 10 (dez) dias contados da Sentença, remover a vedação e os portões que bloqueiam o caminho de acesso à praia 1;
C) o Requerido condenado no pagamento de sanção pecuniária compulsória no montante de € 500,00 (quinhentos euros) por cada dia de incumprimento da injunção referida na alínea antecedente; ou
D) o Requerido condenado a, no prazo de 10 (dez) dias contados da Sentença, manter os portões abertos, para que o acesso à praia 1 se possa fazer pelo referido caminho; e
E) o Requerido condenado no pagamento de sanção pecuniária compulsória no montante de € 500,00 (quinhentos euros) por cada dia de incumprimento da injunção referida na alínea antecedente; e, em todos os casos,
F) reconhecido que o Requerido atua em abuso de direito, na vertente de venire contra factum propium; e, em todos os casos.”
Para tanto, sustentaram, em síntese, que todos são utilizadores da praia 1 e têm direitos reais sobre imóveis que pouco distam da mesma, que o Requerido colocou uma vedação e um portão a impedir o acesso à referida praia, bloqueando a passagem de qualquer pessoa pelo referido caminho, sendo que desde tempos imemoriais o acesso à praia 1 pelos Requerentes, seus antecessores e público em geral, sempre se fez (também) pelo caminho existente no prédio, o qual sempre foi de uso direto, pacífico e imediato pelo público.
Mais alegaram que a praia tem acesso de barco, por uma estrada mais longa e pelo aludido caminho, sendo este o modo mais rápido e seguro de aceder à praia, pelo que obstrução do caminho pode causar perigos e prejuízos, designadamente em caso de incêndio ou outras circunstâncias que obriguem a uma evacuação imediata.
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O Requerido foi citado e deduziu oposição, impugnando a natureza pública do caminho, referindo que não impediu o acesso à praia 1, pois existe um caminho oficial que é utilizado pela maioria da população, impugnando os factos alegados para fundar o perigo de demora e concluindo pela improcedência do procedimento cautelar, por não se verificarem os respetivos pressupostos.
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Foi designada data para a audiência final, no termo da qual veio a ser proferida decisão cujo dispositivo é o seguinte:
“ Pelos fundamentos supra expostos e nos termos das disposições legais aludidas, julgo improcedente e decido não decretar o procedimento cautelar comum requerido por AA, BB, Corjor – Administração, Compra e Venda de Bens Imóveis, Unipessoal, Lda, CC e DD, EE, FF, GG, II, JJ, KK, LL e MM, NN, OO, PP, QQ, Unipessoal, lda, RR, SS, TT, UU, VV e WW e XX, contra o Requerido YY.
Valor do procedimento: € 5.000,01.
Custas pelos Requerentes (cfr. artigo 539.º, n.ºs 1 do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.”
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Inconformados com a decisão proferida, os Requerentes dela interpuseram recurso, apresentando alegações e formulando, após despacho de aperfeiçoamento, as seguintes conclusões:
A. Nos termos do artigo 303.º, n.º 1, aplicável ex vi artigo 304.º, n.º 3, alínea d) do CPC, a sentença deve ser retificada quanto ao valor da causa, por lapso de escrita, já que o Tribunal a quo o alterou sem qualquer fundamento.
B. O Tribunal julgou improcedente o procedimento cautelar comum, não decretando as medidas necessárias para garantir o acesso à praia 1 pelo caminho roxo, o qual foi bloqueado pelo Apelado com vedação e portões.
C. Os Apelantes alegaram, e provaram, por testemunhas com 89 anos de idade, em síntese, a utilização pública e imemorial do caminho roxo, essencial não só para acesso à praia 1, mas também como único caminho de fuga em caso de incêndio.
D. A decisão recorrida padece de erro na apreciação e valoração da prova, o que terá conduzido a uma errada aplicação do Direito, devendo alguns factos ser reformulados e outros considerados como provados.
E. Impõe-se aditar o facto de que, com o bloqueio do caminho roxo, mais do que quem se encontra no caminho azul é obrigado a percorrer 1446 metro pelos caminhos azul amarelo e vermelho (412 metros + 422 metros + 612 metros) para chegar à praia, pois o pedido da providência não versa sobre comodidades, dizíamos, com o bloqueio do caminho roxo, e em caso de incêndio com origem a nascente e quem se encontre no caminho azul, fica sem acesso à praia ficando verdadeiramente encurralado e à mercê do fogo.
F. Devem ser reformulados os factos 26, 30 e 32, eliminando-se o facto 35 por irrelevante para a decisão da causa, e dados como provados os factos B, D, H e I, conforme demonstrado pela prova documental e testemunhal.
G. Ficouprovado que o chamado “caminho roxo”existe e é utilizado desde tempos imemoriais, muito antes de 1958, constituindo o único caminho de fuga para quem se encontra no caminho azul.
H. Caminho que, e para quem fica preso pelo fogo, é, com toda a certeza, utilizado por quem lá se encontrar, não obstante não ter uma sinalética, nem ter 70 centímetros de largura em vez de 90 centímetros, e mesmo não estando limpo de vegetação à sua volta (diríamos, como é evidente), para mais para quem há gerações percorre o referido caminho donde que o conhece como a palma da mão;
I. O caminho roxo nunca foi “dois caminhos distintos”, mas umúnico caminho que sofreuuma alteração de trajeto, somente no seu início, em 1958, por ocasião da construção da escada.
J. Resultou da prova testemunhal produzida que o uso do caminho é contínuo, público e pacífico.
K. Aliás, tal facto é igualmente confirmado pela prova documental, nomeadamente a escritura de 1951 e a caderneta predial do prédio que comprovam a existência do caminho e a sua função de acesso.
L. A praia 1 situa-se em área de vegetação densa e não existem alternativas viáveis de evacuação. O caminho roxo é a única rota de fuga em caso de incêndio para os moradores do caminho azul, risco evidenciado pelas testemunhas e pela realidade geográfica.
M. Nesse sentido, encontram-se preenchidos os requisitos do artigo 362.º do CPC – o fumus boni iuris e o periculum in mora – desde logo porque existe forte probabilidade de existência do direito invocado (a existência e qualificação do caminho como público) e o risco iminente e grave causado pelo bloqueio do acesso à praia pela privação da única de rota de fuga possível em caso de incêndio.
N. A jurisprudência consolidada – designadamente o Acórdão da Relação de Coimbra de 04.11.1980 e o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19.04.1989 – estabelece que é público o caminho usado livre e diretamente pelo público desde tempos imemoriais, independentemente da sua construção ou manutenção. O presente caso enquadra-se integralmente nessa definição.
O. O Apelado não demonstra qualquer prejuízo com a reabertura do caminho, que serve a coletividade, pelo menos, há mais de um século – nem poderia fazê-lo, pois inexiste.
P. E, na verdade, não se se verifica qualquer conflito de interesses, pois, por um lado para o Apelado verificar-se-á, tão só, a manutenção de um status quo com mais de um século de existência, e, por outro, para os Apelantes, na sua (evidente) ótica, está em causa o real perigo de não ter caminho de fuga em caso de incêndio,
Q. Como tal, outra solução não se pode impor, para mais em sede de providência cautelar, que não seja o seu decretamento.
R. Nestes termos, deve ser revogada a sentença recorrida e proferida nova decisão que reconheça o carácter público do caminho roxo, ordene a remoção imediata da vedação e portões, aplique a sanção pecuniária compulsória requerida e defira a providência cautelar ao abrigo do artigo 362.º do CPC, com a consequente inversão do contencioso nos termos do disposto no artigo 369.º do CPC.”
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O Requerido respondeu, apresentando, após alegações, a seguinte síntese conclusiva:
“133. O recurso interposto pelos Requerentes carece, em absoluto, de fundamento fáctico e jurídico, devendo ser integralmente mantida a douta sentença recorrida.
134. Ficou provado que o caminho em litígio atravessa propriedade privada do Requerido, não se demonstrando, por prova direta ou documental idónea, qualquer uso público pela população em geral antes de 1958.
135. Os interesses invocados pelos Requerentes revestem natureza estritamente privada e económica, relacionados com a exploração turística dos seus imóveis, não constituindo interesse público ou coletivo apto a justificar restrição ao direito de propriedade.
136. A diferença de percurso para aceder à praia 1 traduz-se apenas em questão de comodidade, desprovida de relevância jurídica para efeitos de imposição de servidão de passagem.
137. A alegada função de rota de fuga em caso de incêndio não encontra respaldo técnico ou legal, estando provado que o caminho não reúne, nas atuais condições, os requisitos mínimos de segurança, existindo outros acessos alternativos.
138. A invocação de “tempos imemoriais” carece de prova bastante, não se verificando uso público continuado, pacífico e reconhecido pela Administração, nem registo ou título que o consagre.
139. A existência de outros acessos — alguns encerrados voluntariamente pelos próprios Requerentes — demonstra a contradição da sua posição e reforça a improcedência da pretensão formulada.
140. Não se mostram preenchidos os requisitos do fumus boni iuris nem do periculum in mora, atenta a inexistência de perigo concreto e a presença de outras vias de acesso.
141. O direito de propriedade, constitucionalmente protegido (art. 62.º CRP) e consagrado no art.1305.º do Código Civil, apenas pode ser restringido nos casos previstos na lei e mediante prova inequívoca dos respetivos pressupostos, o que não se verifica no presente caso.
Termos em que deve a, aliás, mui douta sentença ser mantida nos exatos termos em que foi proferida por a mesma fazer correta aplicação do direito aos factos válida e fundadamente considerados como provados, não merecendo a mesma qualquer reparo sobre o ponto de vista técnico-jurídico.”
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II. Objeto do recurso
Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC).
São questões a decidir:
- Se deve ser alterada a decisão de facto nos termos propugnados pelos Recorrentes;
- Se se mostram verificados os pressupostos de que depende a procedência da providência cautelar em causa.
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III. Fundamentação
III.1. De Facto
III.1. A. Na decisão recorrida, com interesse para a decisão a proferir, foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos:
1. Da Ap. 3 de 27-06-2006, resulta que se encontra registada a aquisição, por partilha da herança, a favor de ZZ, casado no regime de comunhão de adquiridos com AAA, do prédio urbano sito em Lugar 1, na Local 2, inscrito na matriz sob o artigo 740 da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 1591/19891002.
2. Da Ap. 4793, de 06-11-2023, resulta que se encontra registada a aquisição por compra, a favor de BB, do prédio urbano sito em Lugar 1, Serra da Local 2, inscrito na matriz sob o artigo 5756, da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 2749/19950216.
3. Da Ap. 29 de 22-05-1996, resulta que se encontra registada a favor de Corjor – Administração, Compra e Venda de Bens Móveis e Imóveis S.A., a aquisição, por compra, do prédio urbano sito no Casal 1 ou Casal 2, inscrito na matriz sob o artigo 1120, da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 6175/20091123.
4. Da Ap. 1693, de 17-10-2022, resulta que se encontra registado, a favor de BBB e de DD, o usufruto por reserva em doação de 1/3 do prédio urbano sito em Lugar 1, Serra da Local 2, inscrito na matriz sob o artigo 3080 da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 1559/19890814.
5. Da Ap. 3455 de 30-11-2012, resulta que se encontra registada a aquisição, por compra, a favor de CCC, do prédio urbano sito em Lugar 1, Casal 1, Lugar 1, Serra da Local 2, inscrito na matriz sob o artigo 637 da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 2264/19930215.
6. Da Ap. 22 de 11-02-2005, resulta que se encontra registada a favor de DDD a aquisição por permuta de 1/14 do prédio urbano, sito em Lugar 1, Local 2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 10015, da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 4861/20030723.
7. Da Ap. 2925, de 09-10-2020, resulta que se encontra registada a favor de LL e MM a aquisição, por partilha, de ¼ do prédio misto, sito no Lugar 2– Lugar 1 – Serra da Local 2, inscrito nas matrizes prediais urbanas sob os artigos 3062, 3064, 3066, 3068 e nas matrizes prediais rústicas sob os artigos 15 e 11, da freguesia de Local 3 e inscrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 6478/20110413.
8. Da Ap. 2540 de 02-05-2013, resulta registada a aquisição, por partilha, a favor de XX de ¼ do prédio acima referido e a favor de KK de ¼ do prédio e de 1/16 a favor de JJ.
9. Da Ap. 3765 de 28-01-2022, resulta que se encontra registada a aquisição, por partilha de herança, a favor de NN, da fração autónoma designada pela letra B do prédio urbano sito no Casal 3 em Lugar 1, Local 2, inscrito na matriz predial sob o artigo 11725-P, da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 783/20220128-B.
10. Da Ap. 10 de 09-05-1994, resulta que se encontra registada a aquisição, por doação, a favor de OO, casado no regime de comunhão de adquiridos com EEE, do prédio urbano, inscrito na matriz sob o n.º 635, da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 2631/19940509.
11. Da Ap. 3378, de 21-07-2011, resulta que se encontra registada a aquisição, por doação, a favor de PP casado com FFF, do prédio urbano sito em Lugar 1, Casal 1, Lugar 1, Serra da Local 2, inscrito na matriz predial sob o artigo 626 da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 2263/19930215.
12. Da Ap. 2921, de 28-07-2020, resulta que se encontra registada a favor de QQ, Unipessoal Lda. a aquisição por compra, do prédio urbano sito no Lugar 2, Serra da Local 2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 480 da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 6747/20170804.
13. Da Ap. 257 de 04-08-2017, resulta que se encontra registada a favor de RR, a aquisição por partilha de ½ do prédio urbano sito na Local 2, inscrito na matriz sob o artigo 36, da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial deCidade 1, sob o n.º 6474/20110408.
14. Da Ap. 36 de 23-04-1996, resulta que se encontra registada a favor de SS e marido GGG, casados no regime de comunhão de adquiridos, o prédio urbano sito em Lugar 1, Serra da Local 2, inscrito na matriz sob o artigo 648, da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 2859/19960327.
15. Da Ap. 10 de 07-05-2003, resulta que se encontra registada a favor de HHH casada no regime da comunhão geral com III, a aquisição por partilha de herança, do prédio urbano sito em Lugar 1, Serra da Local 2, inscrito na matriz sob o artigo 4926 da freguesia de Local 3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 2814/19950830.
16. Da Ap. 10 de 04-02-1964 (atualização da Ap. 4 de 26-04-1957), resulta que se encontra registada a favor de JJJ, casada com KKK, a aquisição do prédio misto, denominado Casal 1 ou Casal 2, sito na Serra da Local 2, composto por terras de semeadura e mato, quatro casas, forno de cozer cal, telheiro, uma lapa ou gruta, omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 6004/20090318.
17. LLL faleceu em ...-...-2022 e, em 10 de setembro de 2020, outorgou documento autêntico, intitulado de “testamento”, declarando instituir herdeiro da sua quota disponível YY, da qual faz parte o prédio referido em 16.
18. No prédio referido em 16., existe um percurso com cerca de 109 metros, com início no final da “estrada branca”, rodeado de vegetação, acidentado e pedonal que dá acesso à praia 1.
19. Em data que não se consegue precisar, mas pelo menos, desde 07 de fevereiro de 2025, o Requerido colocou uma vedação e um portão a impedir o acesso praia 1, em local georreferenciado com as coordenadas GPS Latitude 38º 28.067 N / Longitude 8º 59.449 O.
20. Em data não concretamente apurada, mas após a colocação do portão acima referido, o Requerido colocou um novo portão no fim do percurso que atravessa o prédio referido em 16.
21. Com a instalação dos aludidos portões e vedação, o Requerido bloqueou o percurso existente no prédio referido em 16. até à praia 1.
22. É possível aceder à praia 1 através do percurso referido em 18., de barco ou através de uma estrada em terra batida que atravessa o Vale 1, por zona densamente florestada, pela qual é possível circular a pé ou através de viatura, com 612 metros de comprimento desde a cancela que existe na estrada principal até à praia.
23. Da cancela existente na estrada nacional até ao início da estrada branca distam cerca de 422 metros e do início da estrada branca até ao primeiro portão colocado pelo Requerido, distam cerca de 412 metros.
24. Quem se dirige da estrada nacional para a praia 1 pode percorrer o percurso com 612 metros ou o percurso com 943 metros (109 metros + 422 metros + 412 metros).
25. Parte de um muro de betão existente no caminho referido em 18. apresenta fissuras e o revestimento aí colocado encontra-se em mau estado de conservação e a desintegrar-se por ter sido colocado em cima de pontos de drenagem de água.
26. Até ao ano de 1950 os terrenos onde se encontram edificados os prédios acima referidos pertenciam à família do Requerido e, posteriormente, entre 1950 e 1960, foram vendidos aos antepassados dos Requerentes.
27. Desde data não concretamente apurada e até ao ano de 1958, existia um caminho pedonal atualmente desativado e existente a sul, junto à falésia, que convergia com parte do percurso referido em 18.
28. No ano de 1958, MMM, mediante acordo firmado com NNN, OOO, PPP e pelo Sr. Prior, autorizou a construção de umas escadas ao percurso referido em 18., tendo os trabalhos sido monetariamente suportados pelos últimos.
29. Nas datas acima referidas, o caminho mencionado em 22., que tem inicio na cancela existente na estrada nacional (ilustrado a vermelho no print supra) tinha ligação ao caminho que conflui com o início da “estrada branca” (ilustrado a amarelo no print supra).
30. Os moradores, familiares e amigos acediam à praia 1, até 1958, pelos caminhos referidos em 27. e 29., e, posteriormente, pelo caminho referido em 18.
31. A população em geral, para aceder à praia 1, desde 1958 e até à data de colocação dos portões acima referidos utilizava os caminhos referidos em 18. e 22. e 29.
32. O Requerido procedeu à limpeza da vegetação da área do percurso referido em 18.
33. Um número não concretamente apurado de imóveis construídos nas imediações da praia 1 funciona como alojamento local.
34. A zona da Local 2 tem uma predominância de ventos a noroeste e apresenta vegetação densa, sendo uma zona suscetível à ocorrência de incêndios.
35. Existem outros acessos ao litoral (limite do mar) através de casas particulares e da Lapa 1.
36. Numa construção existente no prédio referido em 16., é visível um grafiti e vidros partidos.
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III.1.B. Na mesma decisão considerou-se que não resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:
A. O Requerente FF é proprietário da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão, a qual faz parte do prédio urbano, afeto ao regime de propriedade horizontal, situado no Casal 3 em Lugar 1, Local 2, descrito sob o número 783 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, da freguesia de Local 3, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 11725, da união de freguesias de Local 4).
B. GG e HH são possuidoras e legítimas proprietárias do prédio urbano junto à praia 1, perto do Lugar 2», descrito sob o número 846 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, da freguesia de Local 3 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 846, da união de freguesias de Local 4).
C. TT, UU, VV e QQQ são possuidores e legítimos proprietários do prédio urbano sito em Lugar 1 - Lugar 2, descrito sob o número 2814 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, da freguesia de Local 3 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4926 da freguesia de Local 3;
D. Pelo menos há 100 anos, o acesso à praia 1, pelos Requerentes e pela população em geral, é feito através do percurso referido em 18.
E. Atualmente, quando a população acede ao percurso referido em 18., faz barulho e festas na praia que duram a noite toda.
F. As pessoas fazem fogueiras e dormem na praia, descem e sobem o percurso acima referido a ouvir música com alto volume.
G. Fumam, bebem e deixam grandes quantidades de lixo e destroem azulejos no caminho referido em 18.
H. A mãe do Requerido, aquando da venda dos lotes para construção das casas dos Requerentes, fê-lo atribuindo um caminho de passagem à praia 1.
I. O percurso referido em 18., é o único caminho de fuga possível em caso de incêndio.
J. O muro referido em 25., encontra-se em risco de ruir devido ao peso das árvores.
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III.2. Da impugnação da matéria de facto
Os Apelantes discordam do juízo probatório relativo aos factos que o Tribunal Recorrido considerou provados e não provados, pretendendo:
i. A inclusão do seguinte facto: «Com exceção do Requerido, quem se encontra no caminho azul e pretende se dirigir para a praia 1 é obrigado a percorrer o conjunto dos caminhos azul, amarelo e vermelho, com 1446 metros (412 metros + 422 metros + 612 metros)»;
ii. A reformulação dos factos vertidos nos nºs. 26, 30 e 32;
iii. Que seja eliminado o facto vertido nº 35 por irrelevante para a decisão da causa;
iv. Que os factos vertidos nos pontos B, D, H, I, sejam reapreciados e dados como provados.
Por se encontrarem, no caso dos autos, preenchidos os pressupostos a que alude o artigo 640.º do Código de Processo Civil nas alegações de recurso dos Recorrentes, importa proceder à apreciação da referida impugnação.
Tarefa que cumpre levar a cabo, tendo em consideração o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Assim, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respetiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas, sendo que o rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
Deve ainda ter-se em conta que o art.º 130º do Código de Processo Civil, que proíbe a prática de atos inúteis, tem plena aplicação nesta sede de impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, pelo que a impugnação da matéria de facto deve obedecer a um princípio de utilidade, na medida em que só importa considerar o que poder ser relevante segundo as soluções de direito com que o Tribunal se vai confrontar.
Vejamos então.
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No que concerne ao facto que se pretende ver aditado, o mesmo resulta já da conjugação dos factos vertidos nos pontos 18. a 21., 23 e 24, retirando-se com clareza da imagem referida no ponto 24 as distâncias a percorrer relativamente a cada um dos caminhos, pelo que irrelevante e por isso, inútil, se revela aditar tal facto.
Do mesmo modo, as pequenas alterações que pretendem ver introduzidas nos artigos 26. e 30. dos factos provados, bem como o que se considerou na al. D dos factos não provados, em nada relevam para a decisão da causa, em face do que já consta dos artigos referidos e do artigo 31, dos quais se retira, quer a venda de terrenos a alguns dos antepassados dos Requerentes, quer a utilização pelas pessoas ali mencionadas e pela população em geral, do caminho em causa nos autos desde a data ali referida.
Acresce que os Apelantes não impugnam o facto referido no ponto 28. que se refere à data da construção das escadas existentes, que encontra suporte no documento que juntaram com o n.º 9 ao requerimento inicial, como também não impugnaram o referido em 27.
Nenhuma consequência útil se retira da impugnação do facto vertido no ponto 32, nem os Apelantes a tal utilidade fazem qualquer referência, sendo que o facto foi confirmado pelas testemunhas RRR e SSS.
Improcede, pois, nestes pontos, a pretensão recursiva.
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Pretendem os Apelantes que se desconsidere o facto vertido sob o ponto n.º 35 por entenderem que o mesmo não é pertinente à decisão da causa.
Mas não lhes assiste razão, porquanto estando em discussão, como os próprios referem, as possíveis rotas de fuga em caso de incêndio, a referência a caminhos existentes nas proximidades da praia não pode deixar de considerar-se importante.
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No que concerne à alínea B) dos factos que não resultaram indiciariamente provados, não se encontrando junta a certidão de registo predial relativa ao prédio aí mencionado, diversamente do que sucede quanto aos demais cuja titularidade se considerou demonstrada, não pode discordar-se do juízo probatório realizado pelo Tribunal Recorrido.
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Relativamente à al. H) dos factos não provados, o Tribunal Recorrido fundamentou o seu juízo em termos que se subscrevem, da seguinte forma:
“A matéria contida no ponto H., não ficou demonstrada, não tendo sido produzida prova suficiente nesse sentido e cumprindo, aqui, aludir ao documento junto com o requerimento com a referência citius n.º 8745594 e que configura uma escritura de compra e venda, datada de 28 de setembro de 1951, em que figuravam como vendedores os pais do Requerido e compradores TTT e UUU (avós do Requerente PP) e na qual é referido que o prédio declarado vender, confronta a norte e noroeste com caminho que “está a ser aberto em terreno deles primeiros outorgantes ao longo do qual fica a medir quarenta e um metros e vinte e meio centímetros”, mais dizendo que o aludido prédio só terá acesso pelo caminho que lhe fica a noroeste/norte e pelo caminho com a largura de um metro existente a sul.
Relativamente ao aludido documento, veio PP referir que a avó comprou um terreno em 1951 e outro em 1953 (não se encontrando tal escritura junta aos autos) e que na escritura do prédio de 1951 se fala do caminho a norte que à data se encontrava em fase de terraplanagem para a passagem de viaturas (o caminho referente à estrada branca), considerando que o caminho a sul (de um metro de largura), se reporta ao caminho anteriormente utilizado e se encontra desativado.
Faz, ainda, alusão ao documento n.º 2 junto com mencionado requerimento que se traduz numa caderneta da casa da VVV, existente a nascente e confiante com o prédio do Requerido que, igualmente, mencionada a existência de um caminho.
Por seu turno, o Requerido YY, refere que o terreno vendido tinha a configuração de um “L”, sendo que os caminhos aí mencionados se referem à estrada branca que se encontrava em construção (para permitir o acesso à casa do Engenheiro Abreu e do arquiteto WWW), sendo uma parte para norte e outra para sul, mais referindo que a aludida escritura não menciona a praia 1 e não faz qualquer menção à cedência de um caminho.
Assim, considerando a prova produzida, designadamente o teor da escritura em causa nos autos (de 1951) e bem assim, a data de construção das escadas (1958), não consideramos que tenha ficado indiciariamente demonstrado que o caminho mencionado na escritura se reportasse ao caminho que dá acesso à praia nem sequer ao anterior caminho que existia junto à falésia.”
Não podendo retirar-se da escritura pública a que os Recorrentes aludem qualquer menção a caminho destinado a acesso à praia, não pode concluir-se que a mesma se refere ao caminho em causa nos autos.
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O facto vertido na al. I. dos factos não provados é fulcral para a decisão do procedimento cautelar, dada a configuração da causa de pedir pelos ora Recorrentes.
Insurgem-se os mesmos contra a decisão recorrida por ter considerado tal facto não provado.
Afigura-se que não podia o Tribunal Recorrido julgar de forma diversa, perante as declarações prestadas pela testemunha XXX, Comandante Sub-regional de Emergência e Proteção Civil da Península de Setúbal, presente na diligência de inspeção ao local a que se procedeu, e que “questionado sobre o caminho em causa nos autos (ilustrado a roxo), referiu perentoriamente e de forma extremamente segura, que “está fora de questão” que o mesmo, nas “condições atuais”, possa ser um caminho de evacuação, alicerçando a sua posição no facto de no local não existir gestão de combustível, várias árvores se encontrarem em risco de queda, na ausência de largura de passagem e de faixa de segurança (realçando o facto de existirem combustíveis até ao muro), alertando, ainda, para a falta de sinalética. Acrescenta que, caso tais requisitos fossem cumpridos, haveria que que se proceder a uma avaliação de modo a aferir se tal via já poderia constituir um possível caminho de evacuação. Questionado, disse ainda que, em caso de incêndio, optaria por permanecer em casa até ser socorrido, considerando preferível o isolamento das paredes para evitar a rápida propagação do incêndio à utilização do caminho e, tendo observado que algumas das moradias tinham vegetação muita próxima, alertou para o facto da obrigatoriedade legal da limpeza florestal e respeito pelo perímetro legalmente determinado (50 e 100 metros). Por fim, ainda disse, com relevância que, apesar da predominância dos ventos a noroeste, a verdade é que existem fatores que se sobrepõem aos mesmos, o facto de se tratar de uma encosta e de ser virada a sul, considerando que, atendendo ao tipo de vegetação (com combustíveis mais secos por mais expostos), “muito provavelmente”, deflagrando um incêndio na zona, o mesmo adotaria uma trajetória de sul para norte, ou seja, subindo a encosta.”
A testemunha, com óbvio conhecimento na matéria em causa, afastou, pois, a versão dos factos que os Recorrentes entendem que demonstraram, pelo que bem andou o Tribunal Recorrido ao desvalorizar os demais depoimentos em face daquele que se reproduziu, pois foram produzidos por quem não tem razão de ciência sobre proteção civil.
E ainda que às forças de segurança caiba apreciar as condições de evacuação, o certo é que nenhum depoimento de pessoa dessa área foi produzido, que afaste a versão apresentada pelo referido Sr. Comandante XXX.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.
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III.3. Da reapreciação jurídica da causa.
Como é sabido e foi destacado na decisão recorrida, as providências cautelares têm um carácter de instrumentalidade em relação à ação a propor ou já pendente, e visam assegurar a eficácia da sentença – cfr. art.. 2.º, n.º 2, parte final, do C.P.C. - seja obviando a que a situação de facto de tal modo se altere que impossibilite a sua reintegração, seja antecipando o direito que, com toda a probabilidade, virá a ser reconhecido ao requerente, antecipação que a urgência na efetivação desse direito justifica - pretendem-se prevenir os prejuízos que decorrem da natural demora do processo - o periculum in mora.
Como se alcança da conjugação do disposto nos artigos 362.º e 368.º, ambos do Código de Processo Civil, são pressupostos de procedência do procedimento cautelar comum:
a) - não estar a providência a obter abrangida por qualquer dos outros procedimentos cautelares (característica da subsidiariedade);
b) - a probabilidade séria da existência do direito alegadamente ameaçado;
c) - o fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação;
d) - a adequação da providência solicitada para evitar a lesão; e) – que o prejuízo que para o requerido resulta da providência não seja superior ao dano que se pretende evitar.
Deve, pois, ser decretada, “sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objecto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível.
No caso, o Tribunal Recorrido realizou uma análise cuidada do direito em que os Recorrentes fundam a sua pretensão, concluindo pela respetiva inexistência.
Contudo, o que surge mais evidente dos factos indiciariamente provados é a falta do requisito referido sob a alínea c), que corresponde ao periculum in mora, pois os mesmos não permitem concluir pela verificação de lesão grave ao direito de aceder à praia pelos Requerentes, pois claramente resulta dos factos a existência de um caminho alternativo para ali aceder.
O caminho em causa comporta riscos, em face da deterioração a que se mostra sujeito, e a alternativa permite aceder à praia, com maior incómodo, é certo, mas aceder com normalidade ainda assim, não permitindo perspetivar uma situação de impossibilidade de reintegração específica dos ora Recorrentes no acesso ao referido local de veraneio.
Havendo alternativas, a eventual lesão, a ser apurada na ação definitiva, caso venha a ser proposta, não tem o grau de gravidade que justifique a providência antecipatória pretendida, tanto mais que se não provou o facto invocado como fundante da urgência da efetivação do direito, de que o caminho em causa seria a solução que melhor acautelaria os interesses em conflito em caso de incêndio resultou infirmada.
Não se demonstra, pois, a verificação de qualquer lesão é dificilmente reparável na pendência da ação de que os presentes autos são dependência.
Não há, consequentemente, fundamento consistente para revogar a douta decisão impugnada que, por isso, se confirma.
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IV. Dispositivo
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos Requerentes, vencidos – (artºs 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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Évora, 2025-11-13
Ana Pessoa
José António Moita
Maria Adelaide Domingos
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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎