ALTERAÇÃO DO PEDIDO
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
FACTOS SUPERVENIENTES
CONFISSÃO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
RESTITUIÇÃO DO SINAL EM DOBRO
Sumário

Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
Em acção de incumprimento de contrato promessa de compra e venda de imóvel, em que se pede a execução específica do contrato, é lícito ao autor, atento o disposto nos artigos 588º, n.º 1 e 2, e 611º, n.º 1, e 265º, n.º 6, do Código de Processo Civil, alterar a causa de pedir e o correspondente pedido, formulando agora o pedido de restituição do sinal em dobro, em função do facto superveniente, alegado pelo réu na contestação – consistente na invocação de que havia, entretanto, alienado o imóvel objecto do contrato, o que inviabilizava o pedido primitivo –, posto que a alteração da causa de pedir, com o novo facto, e a alteração do pedido, integram-se no âmbito da mesma relação jurídica controvertida, que respeita ao incumprimento do contrato promessa e suas consequências, conforme previsto no artigo 442º do Código Civil, adequando-se, assim, o objecto do processo à situação existente.

Texto Integral

Recurso de Apelação n.º 7146/23.5T8STB.E1

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I – Relatório


1. Nível Instantâneo Construções, SA., propôs acção declarativa, com processo comum, contra AA, Lda.., pedindo que seja proferida decisão que lhe reconheça o direito à execução específica do contrato promessa celebrado entre as partes, produzindo tal decisão os efeitos da declaração negocial faltosa.


2. Fundamentou a sua pretensão alegando, em síntese, que enquanto promitente-compradora do prédio identificado nos autos, pagou um sinal de € 20.000,00, bem como dois reforços de sinal de € 20.000,00 cada um (sendo o preço convencionado de € 100.000,00), mas que a escritura não se realizou por falta de comparência da R., apesar de para tal ter sido interpelada pela A., adoptando um comportamento que revela inequivocamente a intenção de não cumprir.


3. A R. contestou, defendendo-se por excepção, alegando a sua falta de personalidade judiciária, por se mostrar registado o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula, bem como a inutilidade superveniente da lide, decorrente do facto de já não ser a proprietária do imóvel, e também por impugnação, invocando que não se verificam os pressupostos da execução específica.


4. A A. apresentou articulado, no qual, além do mais, alegando aceitar a confissão da R., requereu a alteração do pedido por forma a que, prosseguindo a acção contra os sócios da R., sejam os mesmos condenados a pagarem a quantia de € 120.000,00, correspondente ao sinal em dobro, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa de 10,5%, contados desde 23.10.2023 (data para a qual esteve marcada a escritura), e ainda a quantia de € 16,48, correspondente à despesa efectuada no Cartório Notarial.


Notificada para exercer o contraditório, a R. opôs-se ao prosseguimento da acção contra os sócios e à alteração do pedido, por inadmissível, requerendo que se declare extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.


5. Foi proferido despacho (ref.ª 99744331), no qual se decidiu:

«…, atendendo à extinção da sociedade R. determina-se o prosseguimento da presente instância, sendo a R. substituída pela generalidade dos sócios representados pelos liquidatários (art.º 162º, 163º e 164º CSC).

Notifique-se a Exma mandatária da R. a fim de indicar nos autos a identificação dos liquidatários da R..»

A R. respondeu referindo que foi dissolvida através de um procedimento especial de extinção imediata de entidades comerciais, procedimento esse onde não existe a fase de liquidação e, consequentemente, não são designados liquidatários, não podendo proceder à identificação dos liquidatários em virtude de não existirem.


6. Foi, então, proferido despacho (ref.ª 100208582) no qual se consignou que:

«…, resultando da certidão constante dos autos que era gerente da sociedade extinta BB, sendo sócios o referido BB e CC, a acção prosseguirá considerando-se a R. substituída pelos mencionados sócios, representados por BB.»

7. Procedeu-se a audiência prévia com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 591º do Código de Processo Civil, na qual se decidiu:

Não admito a alteração do pedido requerida pela A., por não ser a mesma processualmente admissível; e

Julgo extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.


8. Inconformada, interpôs a A. recurso, concluindo pela revogação da decisão recorrida, e prosseguimento dos autos com a admissão da alteração do pedido, nos termos e com os fundamentos que constam das seguintes conclusões do recurso:


1.ª No presente recurso a questão decidenda consiste em saber se a decisão proferida está conforme aos factos constantes dos autos e ao Direito. Designadamente determinar se concorreram, para a produção da dita decisão, os factos efectivamente invocados na concretização da modificação do pedido, e se a lei foi correctamente aplicada.


2.ª E isto porquanto a sentença aqui posta em crise fez denegação da alteração do pedido, culminando na extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide.


3.ª Antecipando-se, a resposta é negativa. A isto acresce que os factos considerados pela decisão recorrida, suportando-a, não só não são os apropriados, assim como conduzem claramente à decisão da impossibilidade da execução específica que não a prolatada, e os que foram alinhados pelo A, na formulação do pedido, acabaram ignorados.


4.ª De sorte que de tudo quanto se deixa expendido resulta evidente o erro e julgamento.


5.ª Com efeito, a alteração do pedido foi formulada por virtude do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda por banda da R, que vendeu a terceiro o bem em promessa, em data posterior ao início da instância, com múltiplas vicissitudes de permeio, apesar de continuar válido e eficaz o dito contrato-promessa de compra e venda. Por conseguinte, ocorreu uma venda superveniente e cujo conhecimento chegou ao A. somente por via da notificação da contestação. Portanto, supervenientemente.


6.ª Dito de outro modo: a apresentação da alteração do pedido uma vez que inicialmente o A. peticionara a execução específica do c.p.c.v., que era absolutamente viável, foi desencadeada na sequência e por força da venda superveniente, confessada em sede de contestação.


7.ª Sucedeu que, manifestada a pretensão da alteração do pedido, a R., tomando posição, considerou-a, por ausência de acordo, inadmissível.


8.ª O Tribunal a quo, por seu lado, completamente desgarrado da factualidade dos autos, admitiu, acriticamente, a falta de acordo, e considerou inexistir qualquer confissão sobre matéria alegada no petitório, e, em reforço da sua tese, socorreu-se do acórdão da Relação do Porto, de 06.06.2024, cujo sumário parcialmente transcreveu, e, brevitatis causa, para o qual se remete.


9.ª A primeira crítica que aqui se suscita decorre da invocada falta de acordo por banda da Ré, aceite passivamente pelo Tribunal recorrido e, assim, obstar à alteração do pedido, visto que para além de não ter procurado alcançar um acordo (que com grande probabilidade poderia não ter sido obtido) não explicitou o motivo ou motivos por que acolheu a falta de acordo invocada e, sobretudo, porque, indiferente, não a contrariou apesar de ser notoriamente indecorosa.


10.ª É certo que o Tribunal a quo não podia impor um acordo, mas podia em face do que evidenciam os autos sindicar a fiabilidade da falta de acordo, havendo-a por inaceitável. Dito por outras palavras: o Tribunal recorrido exonerou-se de fazer justiça.


11.ª A segunda crítica, é a de que, constituindo a venda dos autos um facto superveniente, jamais poderia o A invocá-la de modo prévio. Esta, de resto, a razão, por que o A. declarou expressamente aceitar a realidade factual da venda (alegação da R.) de sorte a culminar em confissão.


12.ª Na verdade, a lei, na noção que dá sobre o instituto de “confissão” não só não estabelece qualquer condicionalidade à sua verificação, maxime que esteja condicionada à prévia alegação pela parte contrária da matéria sobre que incide, assim como não consente labirínticas lucubrações jurídico-interpretativas quanto é certo que “não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”


13.ª Nas suas lições, cuidando da figura da “confissão” Pires de Lima e Antunes Varela ensinam:


“1.A confissão pode incidir tanto sobre factos alegados pela parte contrária, como sobre factos não alegados.


Em princípio, a confissão deve ser expressa; mas pode ser tácita(presumida) nos casos indicados na lei (cfr. este Código,art314º,e Cód. de Proc. Civil, arts 484º, n.º1 e 490º n.º1”– vide os citados autores, in Cód. Civil Anotado, volume I, 3ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1982, pág. 311


14.ª Por conseguinte, quanto à interpretação do instituto da “confissão” prevalece a dos Professores de Coimbra.


15.ª Ainda sobre o mesmo instituto, o Recorrente socorre-se, igualmente, da jurisprudência. Concretamente do Ac do S.T.J. 14.06.2018, cujo sumário, em parte, transcreve infra:


“I. De harmonia com o disposto no artigo352º do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe desfavorece e favorece a parte contrária.


II.A confissão feita nos articulados pelo mandatário da parte e aceite pela contraparte, de forma expressa, clara e inequívoca, nos termos e para os efeitos dos artigos 46º e 465º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, adquire força probatória plena contra o confitente, nos termos do artigo 358º, nº1, do Código Civil, como modalidade de confissão judicial escrita.”


16.ª E do corpo do citado supra aresto, reproduzem-se os excertos seguintes:


“Quanto à confissão judicial feita nos articulados, ensina Alberto dos Reis que a mesma «consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo réu na contestação (…)».


Essencial é que, como refere o Acórdão do STJ, de 11.11.2010 (processo nº 1902/06.6TBVRL.P1. S1), «o sujeito processual tenha consciência de que o facto desfavorável que alega é real e, mesmo assim, alega-o, nisto se traduzindo o reconhecimento, que é uma «contra se pronunciatio».


Daqui se retira, que a confissão feita nos articulados e que, nos termos do disposto no art 358º, n.º1, do C. Civil, como modalidade de confissão judicial, não se confunde com a simples alegação de um facto feita pelo mandatário da parte em articulado processual.


Com efeito, como se afirma no supra citado acórdão, «nem todas as alegações de factos feitas pelas partes valem como confissões, como acontecerá, v.g, se o facto for alegado na suposição de estar correcto, vindo a demonstrar-se no julgamento da causa que assim não é ou não vindo a confirmar-se».”


17.ª Em suma: fica subtraída de qualquer controvérsia a existência de confissão no que toca à venda por iniciativa da Ré do bem prometido vender. Assim também como se mantém sólido que nem um penedo o facto superveniente, corporizado pela dita venda, e cuja qualificação jurídica sequer foi abalada. Coexistem, portanto, os dois requisitos legais suportando a alteração do pedido inicialmente deduzido. É o que aqui se impetra.


18.ª Do Ac. da Relação de Guimarães, de 06.02.2020, transcreve-se, para o que aqui releva, do respectivo sumário o trecho seguinte:


“O pedido e a causa de pedir podem ser modificados simultaneamente, por ampliação ou alteração, com as limitações referidas, desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida (art 265º, nº6 do CPC), contudo este preceito não contende com os pressupostos referidos nos nº 1 e 2 daquele dispositivo legal” – v Ac da Relação de Guimarães, de 06.02.2020, in Proc 992/18.3T8GMR.G1


19.ª Destaca-se resultar dos autos, no período de 14.09.2023 a 03.10.2023, através de cartas endereçadas à Ré, o propósito do A. de realizar a escritura de compra e venda, que apenas se não efectivou no dia 23.10.2023 por negligência da R. já que não procedeu ela ao levantamento de qualquer das ditas cartas na estação postal respectiva apesar de avisada para o efeito.


20.ª Consequentemente, a não-realização da escritura de compra e venda à data de 23.10.2023 deveu-se exclusivamente à conduta da R., que venderia o imóvel dos autos a 31.10.2023. Como é bem de ver, a alteração do pedido no sentido do recebimento em dobro do que prestado foi pelo A., de resto opção contemplada no texto contratual, constitui a única solução em vista a desfazer o desequilíbrio (leia-se fazer justiça), sob pena de verificação do enriquecimento sem causa.


21.ª Mais do que resulta dos autos não pode enfatizar o A. quão inaceitável é a conduta da R. e, caucionando-a, a decisão conferiu o seu beneplácito a uma fórmula de facilmente defraudar a lei, o que igualmente é inaceitável. Deste ponto de vista, o julgado nada tem de edificante.


22.ª A decisão recorrida fez, pois, violação do disposto nos artigos 9º, nºs 1 e 2, 341º, 342º, nº1, e 334º, do Cód. Civil; artºs 588º, nºs 1 e 2, e 265º, nº6, ambos do Cód. Processo Civil.


Termos em que,


Revogando-a, e, em seu lugar, outra produzida decretando a alteração do pedido, com o consequente prosseguimento da instância, Vossas Excelências farão sagaz e tecnicamente hábil Justiça!


9. Contra-alegaram os RR., sustentando que, a existir intenção de obter alterações à matéria de facto, não foram observados os ónus previsto no artigo 640º do Código de Processo Civil, concluindo, no mais, pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.


10. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*


II – Objecto do recurso


O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:

i. Da alteração da matéria de facto;

ii. Da reapreciação da decisão jurídica da causa, no sentido de apurar se, em face da alegação na contestação de que o imóvel objecto do contrato promessa de compra e venda foi, entretanto, vendido a terceiro, é, ou não, admissível a alteração do pedido inicial de execução específica para o pedido de restituição do sinal em dobro, com a alteração da causa de pedir, com as legais consequências.


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III – Fundamentação


A) - Os Factos


A.1. Na 1ª instância foram considerados como provados os seguintes factos, para além dos que resultam do relatório:


1. Por escritura pública denominada “compra e venda”, celebrada em 31.10.2023, BB, em representação da sociedade AA, Lda., vendeu à “A.S.E.L. – Sociedade de Construções, Lda.”, no acto representada por DD, pelo preço de € 110.000,00, o prédio urbano descrito na CRP de Vila 1 sob o n.º 5443 da freguesia de Vila 2, inscrito na matriz sob o artigo 10177.


2. A aquisição referida no ponto anterior foi inscrita no registo predial a favor da adquirente.


3. A presente acção deu entrada em juízo em 30.10.2023, tendo a R. sido citada na pessoa do seu representante legal, BB, em 27.02.2024.


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A.2. Nos termos do disposto nos artigos 607º, n.º 4, e 663º, n.º 2, do Código de Processo Civil, adita-se o seguinte facto:


4. Por escrito datado de 30 de Novembro de 2021, e assinado pelos legais representantes de ambas as partes, AA, Lda., na qualidade de promitente vendedora, e Nível Instantâneo, Construções, Lda., como promitente compradora, declaram prometer vender e comprar, respectivamente, o terreno para construção descrito na CRP de Vila 1 sob o n.º 5443 da freguesia de Vila 2, inscrito na matriz sob o artigo 10177, da mesma freguesia, pelo preço convencionado de € 100.000,00, a ser pago pela promitente compradora, sendo € 20.000, a título de sinal e princípio de pagamento, no acto de assinatura do contrato de promessa, e, o remanescente, no acto da escritura de compra e venda a realizar no prazo máximo de 12 meses (cf. doc. de fls. 9 a 14).


*


B) – Apreciação do Recurso/O Direito


1. Diz a A./recorrente nas alegações que o recurso incide sobre matéria de facto e matéria de direito, concluindo que a sentença enferma de erro de julgamento.


A respeito da matéria de facto, alega a recorrente “… que os factos considerados pela decisão recorrida, suportando-a, não só não são os apropriados, assim como conduzem claramente à decisão da impossibilidade da execução específica que não a prolatada, e os que foram alinhados pelo A, na formulação do pedido, acabaram ignorados”.


Em resposta, diz a recorrida que “[s]e existe intenção de obter, através do recuso, alterações à matéria de facto, …, não tendo a recorrente observado as condições imperativas impostas pelo artigo 640.º, do Código de Processo Civil deve, nesta parte, o recurso ser indeferido, permanecendo intacta a matéria que o Tribunal de Primeira Instância considerou provada.”


E, efectivamente, assiste razão à recorrida, pois, caso seja intenção da recorrente impugnar a matéria de facto, não deu minimamente cumprimento aos ónus de impugnação previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, do qual resulta a obrigação para o recorrente de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, alínea a)); - os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b)); e – a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (n.º 1, alínea c)).


E, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na parte respectiva, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (cf. n.º 2, alínea a)).


Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/10/2015 (proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1), disponível, como os demais citado sem outra referência, em www.dgsi.pt: «Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do n°1 do art. 640° do CPC; e um ónus secundário - tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do artigo 640°, n°2, al. a) do CPC).»


Em idêntico sentido, concluiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/06/2020 (proc. n.º 8670/14.6T8LSB.L2.S1):


«III- O art. 640.º do CPC estabelece que o recorrente no caso de impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que imponham decisão diversa e da decisão que deve ser proferida, sem contudo fazer qualquer referência ao modo e ao local de proceder a essa especificação.


IV - Nesse conspecto tem-se gerado o consenso de que as conclusões devem conter uma clara referência à impugnação da decisão da matéria de facto em termos que permitam uma clara delimitação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, e que as demais especificações exigidas pelo art. 640.º do CPC devem constar do corpo das alegações.» [sumariado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/05/sumarios_civel_2020.pdf]


E, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/11/2020 (proc. n.º 294/08.3TBTND.C3.S1), «…, se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, entende-se facilmente que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas conclusões do recurso. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, importa que os pontos de facto por si considerados incorrectamente julgados sejam devidamente identificados nas conclusões, pois só assim se coloca ao tribunal ad quem uma questão concreta e objectiva para apreciar, sendo que, via de regra, apenas sobre estas se poderá pronunciar. Assim, se nas conclusões não forem indicados os pontos de facto que o recorrente pretende impugnar, o tribunal de recurso não poderá tomar conhecimento deles [Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil. Novo regime, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 141-146; Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, Coimbra, Almedina, 2005, p. 466; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2007 (Pinto Hespanhol), proc.06S3405; de 13 de Julho de 2006 (Fernandes Cadilha), proc.06S1079; de 8 de Março de 2006 (Sousa Peixoto), proc.05S3823 – disponíveis para consulta in www.dgsi.pt].»


Acresce, que o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 17/10/2023 (proc. n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1), decidiu uniformizar a jurisprudência, consignando que, “[n]os termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”, e o Tribunal Constitucional, através do acórdão n.º 148/2025, de 27 de Março, decidiu “[n]ão julgar inconstitucional o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de que ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto se impõe o ónus suplementar de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que se indica para o evidenciar” (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).


Ora, no caso concreto, a recorrente, nem no corpo alegatório nem nas conclusões do recurso enuncia os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, e, consequentemente também não indica qual o sentido decisório pretendido, nem invoca as provas em que se fundamenta, afigurando-se-nos que a referência ao erro de julgamento se reporta ao enquadramento dado aos factos alegados na decisão recorrida e não à impugnação da matéria de facto, propriamente dita.


Deste modo, permanece inalterada a matéria de facto enunciada na sentença, sem prejuízo do aditamento do facto enunciado em 4, a que se procedeu oficiosamente ao abrigo dos citados artigos 607º, n.º 4, e 663º, n.º 2, do Código de Processo Civil, para melhor compreensão da questão decidenda.


2. No que se reporta à questão jurídica em causa, a mesma consiste em saber se tendo a A. (promitente compradora) pedido o reconhecimento do direito à execução específica do contrato, com fundamento no alegado incumprimento do contrato promessa de compra e venda por parte da R. (promitente vendedora), que se furta à realização da escritura de compra e venda, adoptando comportamentos, que no dizer da A. “revelam, inequivocamente, a intenção de não cumprir a prestação a que se obrigou”, pode a A., na sequência da alegação feita pela R. na contestação, de que já não é a proprietária do imóvel objecto do contrato, aceitando este facto, alterar o pedido, pedindo, agora, a restituição do sinal em dobro.


Na decisão recorrida respondeu-se negativamente a esta pretensão, porquanto se entendeu que:

«… não houve qualquer confissão de factos alegados na petição; o que houve foi a impugnação dos factos alegados pela A., por um lado, e a afirmação de que a instância deve ser julgada extinta por inutilidade superveniente da lide - considerando que o imóvel foi transmitido a terceiro -, por outro lado.

Não foi, pois, em consequência de qualquer confissão que foi requerida a alteração do pedido.

Em segundo lugar, porque não se trata apenas de uma alteração do pedido, mas de uma modificação simultânea do pedido e da causa de pedir, que só pode ser admitida se existir acordo das partes, nos termos do art. 264º (dispõe que, havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, a discussão e julgamento do pleito), como salientam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 333, a propósito do n.º 6 do art. 265º, referindo que “continua a prever a possibilidade de modificação simultânea do pedido e da causa de pedir, a qual, sendo coerente com a última redacção do art. 273º do CPC de 1961, enfrenta agora graves dificuldades em face do novo regime, que é mais restritivo, de modo que a sua aplicação se circunscreve naturalmente aos casos em que exista acordo das partes, nos termos do art. 264º”.

No mesmo sentido, pode ler-se o seguinte no sumário do acórdão da RP de 06.06.2024 (proc. n.º 4453/22.8T8OAZ-A.P1, in www.dgsi.pt):

“IV - Se a ré na contestação estrutura a defesa convocando também um facto distinto do alegado na petição para sustentar a sua defesa, essa convocação de facto distinto pela ré não consubstancia qualquer confissão, uma vez que o autor não alegou esse facto na petição.

V - Assim, a ampliação de um dos pedidos formulados na petição inicial feita com base em facto jurídico distinto daquele que integra a causa de pedir da acção, integra também alteração da causa de pedir.

VI - Pelo que, não existindo acordo, nem confissão pela demandada, a ampliação do pedido suportada em facto distinto daquele que constitui a causa de pedir da acção e que é feita após terem decorridos dez dias da notificação ao autor da contestação não é processualmente admissível.”.

Não sendo admissível a alteração do pedido requerida pela A., forçoso será então que se conclua pela extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, nomeadamente por impossibilidade de ser atingido o resultado visado, considerando a eficácia meramente obrigacional da promessa e o facto de o imóvel ter sido vendido a terceiro, obstando a que o Tribunal profira uma sentença que substitua a declaração negocial do contraente faltoso, que se traduziria numa venda de bem alheio, proibida pelo art. 892º do CC (o tribunal não pode ordenar a prática de actos proibidos por lei) - cf. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, CPC Anotado, vol. 1º, pág. 512; acórdão da RE de 20.10.2010, proc. n.º 2766/03.7TBPTM.E1, in www.dgsi.pt).

É o que se vai decidir, condenando-se o R. nas custas devidas a juízo, uma vez que a venda, sendo anterior à citação, é posterior à propositura da acção, e ponderando que a instância se inicia com a apresentação da petição inicial e que a impossibilidade deve considerar-se imputável ao R. (arts. 259º, n.º 1, e 536º, n.º 3 do CPC).»

A A. discorda, referindo, no essencial, que a “confissão” a que se reporta a norma do n.º 1 do artigo 265º do Código de Processo Civil, não se confunde com a simples alegação de um facto feita pelo mandatário da parte em articulado processual, que a confissão de venda do imóvel constitui facto superveniente, pelo que a A. não a podia ter antes invocado, e que é lícita a alteração simultânea do pedido e da causa de pedir, nos termos previstos do n.º 6 do artigo 265º do Código de Processo Civil, invocando, entre outros, a violação pela decisão recorrida desta norma e do artigo 588º, n.º 1 e 2, do mesmo código.


Vejamos.


3. Como consta dos factos provados, a petição inicial, na qual se pede a execução específica do contrato, com fundamento no incumprimento culposo da R., revelador da intenção de não cumprir o contrato, deu entrada em juízo no dia 30/10/2023, e a venda do imóvel a terceiro ocorreu no dia imediato, ou seja, por escritura celebrada a 31/10/2023, tendo este facto sido carreado para os autos pela R., com a contestação apresentada em 10/04/2024, estando documentalmente provado.


Resulta igualmente dos autos que o articulado, no qual a A. declara aceitar a “confissão” da R. relativamente à declaração de venda do imóvel a terceiro, e, considerando que tal alienação superveniente inviabilizou o pedido inicial, formula o pedido de restituição do sinal em dobro, foi apresentado nos dez dias seguintes à contestação.


4. Não subsistem dúvidas que o pedido agora formulado de restituição do sinal em dobro, com fundamento na impossibilidade de cumprimento decorrente da venda do imóvel a terceiro, é diferente do antes formulado de execução específica do contrato, que pressupunha a subsistência do contrato e a possibilidade de concretização do negócio prometido.


Mas será que não é admissível a alteração do pedido de execução específica para o pedido de restituição do sinal em dobro, quando nos movemos no âmbito da mesma relação relativa ao incumprimento do contrato promessa de compra e venda, decorrendo a alteração de facto admitido pelo próprio R. (o contraente faltoso), que revelou no articulado de contestação ter, entretanto, vendido o imóvel objecto do contrato a terceiros, constituindo o mesmo um facto superveniente (objectivamente, por ter ocorrido no dia imediato à propositura do da acção e que, por isso não podia ter sido conhecido pelo A. aquando da propositura da mesma), implicando esta inadmissibilidade a absolvição da instancia, por impossibilidade superveniente da lide, e, compelindo o A. a ter que instaurar nova acção, contra a mesma parte incumpridora, alegando o novo facto que esta já admitiu e está comprovado no processo, para efectivar o seu direito?


Não cremos que este entendimento deva ter acolhimento no regime do actual Código de Processo Civil, apenas com fundamento nas restrições impostas à alteração do pedido e causa de pedir, a que se reportam os actuais artigos 264º e 265º do Código de Processo Civil, podendo ser admitida a modificação simultânea destes dois elementos, desde que tal modificação não implique convolação para uma relação jurídica diversa da controvertida.


Mas vejamos melhor as razões deste entendimento com referência ao caso concreto.


5. Nos termos do disposto no artigo 260º do Código de Processo Civil, “[c]itado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”.


Efectivamente, “[a] citação do réu tem como efeito adjectivo essencial a estabilização da instância no que concerne aos seus elementos subjectivo e objectivo, ainda que sejam diversos os desvios que resultam dos incidentes de intervenção de terceiros, do incidente de habilitação de sucessores e do regime de alteração do objecto do processo, nos termos assinaladas nos arts. 261º e ss.” (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 313).


No que se reporta à alteração dos elementos subjectivos, no artigo 264º do Código de Processo Civil, prescreve-se que:

“Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito”.

Não havendo acordo das partes, importa reter a previsão do artigo 265º do mesmo Código, onde se prescreve:

«1 - Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.

2 - O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

(…)

6 - É permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.»

Em face deste preceitos, concluiu-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12/01/2021 (proc. nº 567/20.7T8VFR-A.P1):


«I - Como regra geral, o artigo 260º do Código do Processo Civil impõe o princípio da estabilidade da instância o que implica que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir.


II – Uma alteração estrutural daqueles pressupostos exige o acordo das partes.


III – Por isso, a ausência de acordo das partes implica um forte constrangimento para o autor que pretenda, após a citação, alterar a causa de pedir ou ampliar a causa de pedir ou o pedido; assim, a primeira só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor e, quanto ao pedido, apenas se aceita uma ampliação caso seja desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.


IV – O artigo 265º, nº 6 do Código do Processo Civil permite ainda a modificação do pedido e da causa de pedir naqueles casos em que não esteja em causa a convolação para uma relação jurídica diversa da controvertida mas apenas uma que seja dependente ou sucedânea da primeira.»


6. Na sentença entendeu-se que a formulação do novo pedido pela A., com base no facto alegado pela R., relativo à venda do imóvel objecto do contrato promessa a terceiro, consubstanciava uma alteração também da causa de pedir, não permitida em face do n.º 1 do citado artigo 265º, posto que o facto em causa não resultava de confissão feita pelo R., pois o A. não o havia alegado na petição.


Sucintamente, importa referir que concordamos que a causa de pedir subjacente ao novo pedido não coincide integralmente com a primitiva invocada na petição inicial, pois, tendo-se como assente que a causa de pedir se consubstancia nos factos jurídicos invocados pelo A. como fundamento da pretensão material exercida em juízo, embora haja uma coincidência parcial, relativamente aos factos atinentes à celebração do contrato e ao incumprimento do mesmo pela R., o novo pedido – de restituição do sinal em dobro –, além destes elementos factuais integra na causa de pedir um novo facto, já não propriamente relativo à intenção da R. em não querer cumprir o contrato, mas revelador do incumprimento definitivo, por impossibilidade de cumprimento, em face da venda do imóvel efectuada a terceiro.


Em anotação ao referido n.º 1 do artigo art 265º do Código de Processo Civil, salientam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 526), a respeito da alteração ou ampliação da causa de pedir por via da confissão feita pelo réu (ou pelo autor reconvindo) e aceite pelo autor (ou réu reconvinte) que: “Não se trata, porém, rigorosamente, de aceitar a confissão, que é sempre uma declaração unilateral de quem a faz /artigo 352º CC), mas de aceitar a modificação da causa de pedir resultante da introdução no processo de novos factos que dela são objecto.


De todo o modo, não cremos que a expressão “confissão feita pelo réu”, ínsita na norma do n.º 1 do artigo 265º do Código de Processo Civil, como fundamento para a alteração da causa de pedir pelo autor se reduza à confissão de factos que hajam sido alegados por este.


De facto, a confissão, de harmonia com o disposto no artigo 352º do Código Civil, mias não é do que “o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”, e, como, salientam Pires de Lima e Antunes Varela, “... pode incidir tanto sobre factos alegados pela parte contrária, como sobre factos não alegados” (cf. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e ampliada, pág. 313).


Ainda que se entenda que a alegação do R., de que procedeu à venda do imóvel a terceiro, no caso não implica o direito do A. à alteração da causa de pedir, ao abrigo da norma do n.º 1 do citado artigo 265º do Código de Processo Civil, certo é que estamos em presença de facto superveniente, como já se referiu, devendo o articulado do A. ser considerado ao abrigo do disposto no n.º 1 e 2 do artigo 588º do Código de Processo Civil [1- Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão. 2 - Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.], não se levantado nos autos qualquer questão quanto à tempestividade da invocação de tal facto.


E, como dão nota Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, (Ob. cit., pág. 696): “Relativamente ao autor, os factos constitutivos cuja alegação superveniente aqui se prevê tanto podem destinar-se a completar a causa de pedir inicial, como podem implicar uma efectiva alteração ou modificação da causa de pedir, o que significa que a superveniência é critério bastante para afastar as restrições fixadas no art. 265º (cf. Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, p. 1990 e Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pp. 299-300, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot., vol. II, 3ª ed., pp. 615-616 e 724 e RP 15-7-04, 0433943).”


7. Acresce que, nos termos do n.º 6 do artigo 265º do Código de Processo Civil, “[é] permitida a alteração simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida”.


«Como se refere no Ac. da Rel. de Lisboa de 29/11/2012, in www.dgsi.pt (com referência aos preceitos correspondentes ao CPC então vigente), o conceito de relação jurídica a que alude o nº 6 do artigo 265º do C.P.C. é diverso do conceito de causa de pedir traçado no artigo 581º, nº 4 do mesmo diploma. Esclarece Lebre de Freitas, em “Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, páginas 169 a 172 e também no seu Código de Processo Civil Anotado, que a norma do n.º 6 do artigo 273º do CPC (agora 265º) deve ser interpretada no sentido de possibilitar a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir quando o novo pedido se reporte a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira» (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12/01/2021, já citado).


Idêntico entendimento se seguiu no aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/09/2024 (proc. n.º 1737/21.6T8CSC-J.L1-7), onde concluiu que: «3. O art.º 265º, nº 6, do CPC, admite a modificação simultânea da causa de pedir e do pedido quando alguns dos factos que integram a nova causa de pedir coincidam com factos que integram a causa de pedir originária, ou a quando, pelo menos, o novo pedido se reporta a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira».


Ora, no caso em apreço, como resulta do já expendido, a invocação do novo facto, integra-se no âmbito da mesma relação jurídica controvertida, que respeita ao incumprimento do contrato promessa e suas consequências, conforme previsto no artigo 442º do Código Civil, pelo que se entende que, em face da alegação pela R. de que o imóvel objecto do contrato promessa de compra e venda havia, entretanto, sido alienado a terceiro, obstando tal facto à procedência do pedido de execução específica do contrato, perante a superveniência objectiva e subjectiva deste facto, era lícito ao A. conformar a relação material controvertida, alterando a causa de pedir e o correspondente pedido, ao abrigo das normas dos artigos 611º, n.º 1, 588º, n.º 1 e 2, e 265º, n.º 6, do Código de Processo Civil, devendo o tribunal lançar mão dos meios de adequação processual que se mostrem necessários com vista à apreciação do pedido em causa.


Se assim se não entendesse, estar-se-ia a onerar o A com a preposição de uma nova acção, com base em facto que o próprio R. já reconheceu na presente acção, em violação do princípio da economia processual.


8. Deste modo, concluindo-se pela possibilidade de alteração da causa de pedir e do pedido, procede a apelação, com a consequente revogação da decisão recorrida, em conformidade com o supra referido.


Custas a cargo da Recorrida, nos termos do artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.


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C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]


(…)


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IV – Decisão


Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, admitindo-se a alteração da causa de pedir e do pedido formulado pela A., com o consequente prosseguimento dos autos para apreciação do mesmo.


Custas a cargo da Recorrida.


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Évora, 13 de Novembro de 2025


Francisco Xavier


José António Moita


Maria Adelaide Domingos


(documento com assinatura electrónica)