REIVINDICAÇÃO
USUCAPIÃO
INVERSÃO DE TÍTULO
PRIVAÇÃO DE USO
Sumário

Sumário:
I - Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão.

II - A inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impõe que o primeiro torne, diretamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de atuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em atos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos.

III - Não integra tal inversão, a utilização exclusiva de um imóvel pelo réu ao longo de vários anos, se este não logra demonstrar ter dado conhecimento ao proprietário do imóvel da intenção a que se alude em II.

Texto Integral

Proc. nº 5412/21.3T8STB.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I - RELATÓRIO


AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Município de Cidade 1, pedindo que este seja condenado a reconhecer o autor e os restantes comproprietários, como donos do prédio rústico denominado Quinta..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 7512, da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo 92, Secção E, bem como a pagar as quantias correspondentes que se somarem desde a citação até à entrega do prédio, livre e desocupado de pessoas e bens, à razão de € 1.000,00 por cada mês.


Alegou, em síntese, que é comproprietário do aludido prédio, o qual está ocupado pelo réu, que assim impede o autor de utilizar o imóvel e inviabiliza qualquer rentabilização económica do mesmo, através da locação ou da venda do espaço.


O réu contestou, arguindo a nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, e impugnou a generalidade da factualidade alegada, concluindo pela improcedência da ação.


O autor requereu a intervenção principal provocada do Grupo Moto Clube Xupa Cabras, do Clube Cultural Desportivo e Recreativo das Curvas e da Junta de Freguesia de Local 2, que foi admitida.


Contestaram os chamados, defendendo a improcedência da ação.


Na sua contestação, o Clube Cultural Desportivo e Recreativo das Curvas deduziu reconvenção, alegando que lhe foi cedida uma parcela de terreno, e que passou a entregar uma quantia para ajudar a pagar as contribuições, mas que nunca se tratou de um arrendamento. Entende deste modo ter adquirido por usucapião a parcela de terreno por si ocupada, e concluiu pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre tal parcela.


O autor apresentou réplica, concluindo pela improcedência da reconvenção.


Foi admitida a habilitação de BB, Unipessoal. Lda., para nos autos passar a intervir como autora, em virtude de ter adquirido o prédio em discussão.


Foi admitida a reconvenção, fixado o valor da causa e determinada a remessa dos autos ao Juízo Central Cível de Setúbal, por ser o competente em razão do valor, tendo o processo sido distribuído ao Juiz 1.


Na sequência de despacho nesse sentido, a autora apresentou petição inicial aperfeiçoada, pedindo que seja reconhecido que é a proprietária do prédio dos autos, determinando-se a entrega do mesmo livre de pessoas, bens e animais.


Os réus exerceram o contraditório, reiterando as posições anteriormente assumidas, incluindo o Clube Cultural Desportivo e Recreativo das Curvas, que renovou o pedido reconvencional.


Exercido o contraditório por parte da autora, teve lugar a audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador tabelar com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.


Na mesma diligência, na sequência de requerimento de desistência da instância que não mereceu oposição, foi proferida decisão que julgou extinta a instância quanto aos réus Município de Cidade 1, Grupo Moto Clube Xupa Cabras e Junta Freguesia do Local 2.


Foi requerida e admitida a ampliação do pedido por forma a ser repristinada a segunda parte do pedido inicialmente formulado (pagamento das quantias correspondentes que se somarem a contar da citação até à entrega do prédio, livre e desocupado de pessoas e bens, à razão de € 1.000,00 por cada mês).


Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:


«Por tudo o que vem de ser exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condeno o R. a:


a) reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o prédio rústico denominado Quinta..., sito em ..., descrito na 2ª CRP de Cidade 1 sob o n.º 7512 da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo 92, Secção E;


b) restituir à A. a parcela de terreno do referido prédio que ocupa, livre de pessoas, bens e animais.


Absolvo o R. do demais peticionado.


Julgo a reconvenção improcedente, absolvendo a A. dos pedidos.


Custas pela A. e pelo R. na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em 1/5 e 4/5, respetivamente.»


Inconformado, o réu Clube Cultural Desportivo e Recreativo das Curvas apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:


«1º Não obstante a profundidade e excelência do acórdão proferido na forma como aplicou o direito aos factos, discorda os ora recorrentes da forma como foi fixada parte da matéria de facto provada nos autos.


Senão,


2º O R. tem a posse da parcela de terreno de 14000m2 desde outubro de 1975.


3º A posse adquirida pelos R., em consequência da tradição da mesma pelos Autores, é uma posse de boa‐fé, pacífica, pública, conquanto não registada.


4º A Ré sempre exerceu a posse em nome próprio, nunca em nome de CC, nem isso foi alegado nos autos.


5º Pelo que, devem ser reapreciadas as seguintes faixas com os depoimentos das testemunhas:


‐ Declarações do Autor das 10:56 às 11:13 do dia 20/02/2025


‐ Testemunho de DD, das 10:02 a 10:24 do dia 20/02/2025


‐ Testemunho de EE das 15:35 às 15:57 do dia 20/02/2025


‐ Testemunho de FF das 15:57 às 16:17 do dia 20/02/2025


‐ Testemunho de GG das 16:17 às 16:49 do dia 20/02/2025;


‐ Testemunho de HH, das 9:30 às 10:15 do dia 14/03/2025;


‐ Testemunho de II, das 10:35 às 11:00 do dia 14/03/2025


6º Das declarações do autor, apenas se conclui pela questão económica, admitindo a posse do R. com autorização e conhecimento dos anteriores proprietários.


7º A testemunha DD, confirmou a existência de um acordo e a intenção cara dos anteriores proprietários em ceder/doar a parcela de terreno ao R.


8º A testemunha EE afirmou que para si aquele espaço era do R.!


9º A testemunha FF, presidente de junta que foi, também afirmou a existência de muita actividade no clube, ora R.


10º A testemunha GG, também afirma que tudo fala que aquilo (terreno), é do R., acrescenta que o cidadão comum identifica como curvas ora R.


11º A testemunha CC afirmou que não tendo falado inicialmente em 1975 com os anteriores proprietários, mas que em 2004 foi novamente dito pelo Sr. CC “vocês continuam lá, aquilo é vosso!


12º Para que não houvessem duvidas, quando os anteriores proprietários decidiram vender a restante herdade, tiveram o cuidado de colocar vedações a delimitar a herdade, sem que fosse englobada a parcela na posse do R.


13º A testemunha II, confirmou a cedência do espaço pelos anteriores proprietários, para a construção do campo de futebol e estruturas anexas, tendo o Sr CC acompanhado de perto as obras e assim se manteve até à sua morte.


14º Claramente uma cedência para estas construções desta importância e envergadura, necessariamente são para o resto da vida!


15º O R. desde pelo menos 1975 que tem a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, que se chama usucapião.


16º Contudo muita da prova feita em audiência discussão e julgamento, o Tribunal a quo, erradamente, ignorou totalmente.


17º Nos termos do n.º 1 do artigo 205º, da atual versão da Constituição Portuguesa as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.


18º Estabelecidos os factos, entra em cena a indicação interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, isto é, o comando do artigo 607º do Código de Processo Civil.


19º O que com o devido e merecido respeito ao tribunal “a quo”, não nos parece ter feito.


20º A posse do R. sobre a parcela de terreno é, consequentemente, uma posse prescricional ou posse boa para usucapião ‐ artigos 1287º e 1293º, "a contrario".


21º Decorridos mais de 49 anos desde a aquisição da posse, pelo R. em Outubro de 1975, aqueles, à data da propositura desta acção e mercê da posse que sobre eles vinham exercendo, tinham já adquirido o respectivo direito de propriedade ‐ artigo 1296º do Cód. Civil.


22º Isto porque, ainda neste caso, a posse do R. é uma posse de boa‐fé, pacífica e pública, a qual conduz, quando expressamente invocada, como foi o caso, à usucapião da parcela de terreno do imóvel que pretendiam adquirir sob a forma de aquisição resolúvel.


23º Não se tendo provado quaisquer factos de que tivesse resultado a descaracterização da posse do R. numa mera detenção, a actuação destes sempre correspondeu à exteriorização do direito de propriedade sobre o dito imóvel, nos termos de uma posse plena, dotada de "corpus" e de "animus rem sibi habendi".


24º É que, conforme constitui jurisprudência pacífica e lição da doutrina, o "animus" do possuidor presume‐se, ilidindo‐se esta presunção por qualquer facto que, objectivamente, descaracterize a posse numa detenção, facto esse que não se encontra provado nos autos.


25º Por conseguinte, cabia ao Autor provar qualquer facto que descaracterizasse a posse do R. sobre a parcelas de terreno, numa mera detenção ‐ enquanto facto impeditivo do direito à usucapião por estes invocada ‐, o que não logrou.


26º O R. terão que adquirir, por usucapião, a parcela de terreno com a área de 14000m2, onde está construído o campo de futebol e as construções de apoio ao mesmo, parcela a desanexar do prédio descrito sob o número 7512, inscrito na matriz sob o aludido artigo 92 Secção E da freguesia de ..., concelho de Cidade 1.


27º A sentença recorrida resvalou para um terreno pantanoso, agarrando‐se a um conceptualismo formal, ficando muito aquém da apreciação profunda, que o caso sub judice impunha.


Termos em que deverá o recurso de apelação interposto ser julgado provido e, por via dele, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que declare ter o recorrente adquirido, por usucapião, a parcela de terreno com a área de 14000m2, onde está construído o campo de futebol e as construções de apoio ao mesmo, parcela a desanexar do prédio descrito sob o número 7512, inscrito na matriz sob o aludido artigo 92 Secção E da freguesia de ..., concelho de Cidade 1 e assim se fará, com o douto suprimento, a acostumada JUSTIÇA!!!»


Não foram apresentadas contra-alegações.


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – ÂMBITO DO RECURSO


Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:


- impugnação da matéria de facto;


- aquisição originária, pelo réu, da parcela de terreno em discussão nos autos.


III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA


Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos1:


1. Encontra-se registada a favor da autora, através da Ap. 6058 de 2022/11/30, a aquisição, por compra, do prédio rústico denominado Quinta..., sito em ..., descrito na 2ª CRP de Cidade 1 sob o n.º 7512 da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo 92, Secção E.


2. A autora adquiriu o referido prédio por escritura pública de compra e venda de 28.11.2022, pelo preço de € 325.000,00, na qual se faz menção de que a compradora destinou a aquisição a revenda.


3. Os vendedores do referido prédio, entre os quais os herdeiros de CC, falecido em ........2018, tinham registado a propriedade a seu favor através das AP. 12 de 1992/09/03, 31 de 2001/08/14, 84 de 2002/05/03 e 2581 de 2009/10/06.


4. A aquisição a favor de CC, na proporção de 38,002%, foi registada através da AP. 12 de 1992/09/03.


5. No referido prédio existiam vinhas, árvores de fruto, sobreiros, casas de habitação (hoje em ruínas) e currais para animais.


6. Em 1975, CC anuiu ao pedido do réu para utilizar uma parcela de terreno do prédio referido em 1., permitindo que ali fosse construído um campo de futebol e balneários, o que implicou a realização de trabalhos de terraplanagem.


7. Pedindo apenas que o réu pagasse uma quantia para ajudar a amortizar os impostos relativos ao prédio.


8. Quantia essa que inicialmente era no valor de Esc. 150$00 por ano, valor esse que, depois de subir para de Esc. 250$00, passou a ser de € 100,00 por ano.


9. Sendo que a referida quantia foi paga apenas até ao ano de 2004, altura em que foi comunicado ao réu que o prédio iria ser vendido.


10. O que não veio a acontecer.


11. Ao longo dos anos, o réu tem utilizado o campo de futebol para o desenvolvimento de atividades desportivas e culturais, inclusivamente entrando em campeonatos com as suas equipas de futebol.


E foi considerado não provado que:


CC cedeu definitivamente ao réu a parcela de terreno, que sempre a utilizou com a convicção de ser o proprietário da mesma, à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém, e de estar a exercer um direito próprio e de não estar a prejudicar terceiros.


Da impugnação da matéria de facto


Dispõe o art.640º, nº1, do CPC:


“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


“a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


“b) - Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas”.


Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, e o mesmo sucede quanto à exigência da decisão alternativa, conforme fixação de jurisprudência, através do AUJ nº 12/2023 de 17.10.2023, publicado no DR 1ª Série de 14.11.2023.


Para além deste ónus primário, a lei impõe ainda um ónus secundário [art.640 nº2 a) CPC], pois quando os meios de prova tenham sido gravados «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».


A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que «[n]a verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade»2, ou que «a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no artº 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco»3.


Porém, como refere Abrantes Geraldes4, «em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões» e acrescenta «são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635º, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões» e reafirma na nota 2745 que «ainda que não tenha utilizado no art. 640º uma enunciação paralela à que consta do nº 2 do art. 639º sobre o recurso da matéria de direito, a especificação nas conclusões dos pontos de facto a que respeita a impugnação serve para delimitar o objeto do recurso» (sublinhados nossos).


De igual modo, pode ler-se no sumário do acórdão do STJ de 27.02.20246:


«I - Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação» (sublinhado nosso).


Ora, nas conclusões do recurso, o recorrente limita-se a alegar a que tem a posse do imóvel em discussão desde outubro de 1975, que a exerce em nome próprio, de boa‐fé, de forma pacífica e pública, ainda que não registada, remetendo para a reapreciação das faixas da gravação com os depoimentos das testemunhas que indica, e as declarações de parte da autora, mas sem que indique um único concreto ponto da matéria de facto - provada e não provada - que deva ser alterado, identificação que, como se viu, não pode deixar de figurar nas conclusões, visto estas delimitarem o âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão, o que vale por dizer que o recorrente não cumpriu o aludido ónus primário.


Omitindo o recorrente o cumprimento daquele ónus processual fixado na al. a) do nº 1 do art. 640º do CPC, impõe-se a imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento7.


Por conseguinte, nenhuma alteração será feita à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto


Da aquisição pelo réu, por usucapião, da parcela de terreno dos autos


Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida, onde se fez uma correta subsunção dos factos ao direito, e se concluiu acertadamente pela procedência parcial da ação e improcedência total da reconvenção.


Entendeu-se na sentença recorrida, que no caso em apreço, o réu «não exerceu uma posse apta à aquisição do direito por usucapião, uma vez que a ocupação ocorreu por mera tolerância de CC, o que configura uma posse precária ou mera detenção, sem que tenha sido alegado, e muito menos provado, qualquer facto suscetível de configurar a inversão do título da posse (arts. 1253º, al. a), e 1263º, al. d) do CC)», acrescentando-se «que não estará verdadeiramente em causa a presunção prevista no n.º 2 do art. 1252º, que só funciona nos casos de dúvida».


E entendeu-se bem, adiantamos já.


A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265º do CC).


Trata-se, portanto, da conversão de uma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus detenendi passa a deter-se a título de animus possidendi.


O detentor da coisa passa a exteriorizar um direito próprio sobre ela ou, como outros preferem, a afirmar uma posse em nome próprio.


No caso, não se verificando a inversão por ato de terceiro capaz de transferir a posse, a inversão só poderia operar por oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía.


Constitui entendimento pacífico que esta oposição se há de traduzir em atos positivos (materiais ou jurídicos), inequívocos, isto é, reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem e praticados na presença ou com o conhecimento daquele a quem se opõe. Além disso, é necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor, através de atos que traduzam o exercício do direito a que este pertence8.


Deste modo, tais atos só alcançam relevância modificativa, quando, por via judicial ou extrajudicial, são levados ao conhecimento do possuidor.


Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela9, «o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito».


Por sua vez, refere Durval Ferreira10 que «não deve bastar, para ser relevante uma inversão pelo detentor, que apenas se constate um comportamento exteriorizador (declarativo) do novo animus do detentor e o seu conhecimento pelo possuidor mediato: haverá que se exigir algo mais». «Tem que haver uma oposição formal, por meios notificativos directos e levados ao conhecimento do possuidor».


«Não bastará», por isso, «que o detentor emita em público, perante outras pessoas, a pretensão de se considerar como dono»11.


Também Orlando de Carvalho12 afirma que «a declaração tem que ser levada ao conhecimento do possuidor (ainda que com funcionamento da teoria da recepção) e não apenas para que a posse do inversor seja pública mas para que a própria inversão se verifique e, por conseguinte, se adquira a posse».


Revertendo ao caso concreto, percorrendo a factualidade dada como provada, não se encontra um único facto suscetível de configurar uma oposição formal, expressa, por meios notificativos diretos e levados ao conhecimento dos anteriores proprietários, o falecido CC e os seus herdeiros.


Nem tão pouco a factualidade apurada permite concluir que tenha havido uma oposição implícita.


Como ensina Orlando de Carvalho13, «[h]á oposição implícita se através de um acto inequívoco o detentor revelar que se arroga uma posição jurídica real, ou uma posição jurídica mais densa do que aquela de que já disfruta. Não há, pois, declaração nenhuma, no sentido de uma declaração por meios notificativos directos. Há, porém, um ou vários factos concludentes e até, ao invés do que se exige na declaração de vontade tácita (em que basta uma concludência probabilisticamente segura), factos absolutamente concludentes. Esses factos podem ser factos empíricos – v.g., a aposição de marca ou cunho próprio – como factos jurídicos e factos judiciários; é o caso da alienação da coisa por quem não está legitimado para isso, mas se assume como dono dela, ou de quem transige judicialmente sobre a propriedade, o usufruto ou o direito de servidão …».


Ora, nos autos apenas vem provado que em 1975, CC anuiu ao pedido do réu para utilizar uma parcela do prédio rústico acima identificado, permitindo que ali fosse construído um campo de futebol e balneários, o que implicou a realização de trabalhos de terraplanagem, tendo apenas pedido ao réu que pagasse uma quantia para ajudar a amortizar os impostos relativos ao prédio, quantia essa que era inicialmente de 150$00 por ano, valor esse que, depois de subir para 250$00, passou a ser de € 100,00 por ano, sendo que a referida quantia foi paga apenas até ao ano de 2004, altura em que foi comunicado ao réu que o prédio iria ser vendido.


Significa isto, pois, que em momento algum houve oposição do réu contra o dito CC, sendo que a utilização pelo réu, ao longo dos anos, do campo de futebol para o desenvolvimento de atividades desportivas e culturais, em nada altera os dados da questão, pois tal utilização resultou unicamente da tolerância do proprietário do imóvel.


Note-se, para finalizar, que não é concebível a aplicação por analogia (art. 10º CC), ao caso dos autos, da usucapio libertatis (art. 1574º CC), que autores como Oliveira Ascensão14, aceitam que se aplique a outras figuras dos direitos reais.


Consequentemente, a exceção de usucapião do direito de propriedade exclusiva alegada pelo réu improcede, pelo que bem andou a sentença recorrida ao julgar improcedente a reconvenção.


Por conseguinte, o recurso improcede.


Vencido no recurso, suportará o réu/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.


IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


Custas pelo recorrente.


*


Évora, 13 de novembro de 2025


Manuel Bargado (Relator)


António Marques da Silva


José António Moita


(documento com assinaturas eletrónicas)

____________________________________

1. Mantém-se a numeração e redação da sentença recorrida.↩︎

2. Cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 28.04.2016, proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1 e de 21.03.2019, proc. 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponíveis, como os demais adiante citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.↩︎

3. Acórdão do STJ de 09.12.2021, proc. 9296/18.0T8SNT.L1.S1.↩︎

4. In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., p. 165↩︎

5. Pág. 168.↩︎

6. Proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1.↩︎

7. Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 09.02.2021, proc. 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1.↩︎

8. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, p. 86.↩︎

9. Código Civil Anotado, cit., p. 360.↩︎

10. Posse e Usucapião, 3ª edição, pp. 213-214, citado no acórdão do STJ de 19.09.2013, proc. 433/2001.C1.S1.↩︎

11. Idem, p. 216.↩︎

12. Introdução à Posse, RLJ, ano 124.º, n.º 3810, p. 263.↩︎

13. Ibidem, pp. 263-264.↩︎

14. Direitos Reais, 4ª edição, p. 324.↩︎