Sumário:
I. O contrato de depósito é «o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida» (artigo 1185.º do CC).
II. Nada obsta a que seja gratuito e tem natureza real, pois a guarda ou custódia da coisa é o objeto do contrato, pelo que a perfeição do contrato exige a entrega do bem a guardar ao depositário, que fica com a obrigação de a restituir. Assim, enquanto o depositário guardar a coisa, o contrato de depósito mantêm-se. A entrega deve ocorrer no fim do prazo, ou não tendo sido estipulado prazo para o depósito, quando for solicitada a entrega ao depositário, sob pena de entrar em mora.
III. Não tendo o Réu devolvido os bens quando lhe foi pedida a restituição e não tendo provado que lhe pertenciam aqueles que alegava ter comprado ao Autor, não logrou provar, como lhe competia, a recusa legítima de os restituir, pelo que incumpriu o contrato, assistindo ao Autor o direito de pugnar judicialmente pela restituição dos bens depositados.
Tribunal recorrido: TJ Comarca Évora, Juízo Local Cível de Montemor-o-Novo – J2
Apelante: AA
Apelado: BB
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
1. BB instaurou ação declarativa, com processo comum, contra AA pedindo que seja o Réu seja condenado a restituir-lhe, na sua morada, os bens identificados no artigo 1.º da p.i., em bom estado de conservação.
2. Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese apertada, que entre os dias 11 e 15 de maio de 2020, pelas razões que invoca, entregou ao Réu os bens móveis que discrimina no artigo 1.º da p.i., com o acordo deste e para sua guarda e posterior restituição, no valor de €40.750,00, em bom estado de conservação, não tendo sido acordado um prazo para a restituição, nem qualquer contrapartida pecuniária pela guarda dos bens.
3. Porém, quando pretendeu reaver os bens, o Réu recusou-se a devolvê-los, apesar da interpelação que lhe fez através de uma notificação judicial avulsa.
4. Contestou o Réu por impugnação e por exceção. Também deduziu reconvenção (aperfeiçoada após convite). Alegou, em suma, que o Autor por causa de questões relacionadas com o seu divórcio, pediu-lhe para guardar os bens identificados nas alíneas a) a d) do artigo 1.º da p.i., mas os restantes, ou seja, os identificados nas alíneas f) a ee) dos factos provados, foram comprados pelo Réu ao Autor (com exceção do referido na alínea s) – botas), pelo preço global de €2.500,00.
Que o Autor, apesar da notificação avulsa, nunca mais o contatou nem compareceu na residência do Réu para levantar os bens não vendidos e que os mesmos ocupam espaço e que tal lhe causa prejuízos diários, formulando, por essa razão, pedido de condenação do Autor a pagar-lhe €2.650,00 a título de indemnização por uso e parqueamento indevido e abusivo do Autor e guarda/vigilância dos bens identificados nas alíneas a) a d) da petição inicial.
5. O Autor apresentou réplica onde impugna o pedido reconvencional defendendo a sua improcedência.
6. Foi admitida a reconvenção e feito o saneamento do processo, admitiu-se a introdução da seguinte factualidade (tida como resposta a matéria excetiva):
“- No dia 17 de Outubro de 2022, deslocaram-se à Herdade do Réu os Srs. CC e DD munidos de uma camioneta para transporte dos bens;
- O Réu recusou-se a entregar os bens.”
7. Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou o Réu na restituição ao Autor dos bens identificados no ponto 1. dos factos provados no estado de conservação em que se encontrarem (sem prejuízo da posição que venha a ser assumida pelo fiel depositário do semi-reboque, marca IFOR WILLIAMS, matrícula L-......, cor castanho, que apresenta registado encargo de arresto), julgando totalmente improcedente o pedido reconvencional, absolvendo o Autor do respetivo pedido.
8. Inconformado, apelou o Réu defendendo a revogação da sentença e, consequentemente, a sua absolvição do pedido e a condenação do Autor no pedido reconvencional, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES (após aperfeiçoamento):
«I) DA AUSÊNCIA DE QUALQUER VALOR PROBATÓRIO DAS DECLARAÇÕES DE PARTE DO AUTOR (arts.º 5.º a 10.º)
a) O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão na prova documental, testemunhal e declarações de parte do Autor, bem como nas regras da experiência comum e ónus da prova (art.º 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC e art.º 342.º CC).
b) O Autor/Recorrido esteve presente na sala de audiências, junto ao seu Ilustre Mandatário, durante toda a audiência de discussão e julgamento, acompanhando toda a prova produzida, e as suas declarações de parte foram prestadas apenas após a produção integral da prova testemunhal, conforme ata de 12.11.2024, tendo sido incorretamente registadas como declarações do Réu, quando foram efetivamente do Autor.
c) Pelo que, o depoimento/declarações do Autor, não deverão ser aceites como prova convincente e valorada, tanto mais quando se encontra desacompanhada de outro meio de prova, como foi o caso dos autos.
d) Ao que acresce que tais declarações, para além de falsas, tendenciosas, parciais e ficcionadas estão carregadas de lapsos e inverdades, sendo que a sua valoração, mesmo ainda que ténue, na prolação da sentença configura uma violação do estabelecido no artigo 640.º n.º 2 al. a) do CPC, por manifesto erro na apreciação da prova produzida e gravada.
II) DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA (art.ºs 11.º a 18.º)
e) O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre os dois documentos juntos com a contestação, os quais não foram impugnados pelo Autor.
f) De acordo com o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C., a sentença recorrida é nula, uma vez que o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre o conteúdo/teor dos mencionados documentos, os quais contém questões que deveria apreciar, relacionadas com a questão material controvertida nos autos e invocadas na contestação.
III) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE INCIDE SOBRE OS FACTOS PROVADOS número 1 als. a) a d) - quanto ao valor atribuído pelo Tribunal recorrido aos bens (arts.ºs 19.º a 28.º)
g) O Tribunal errou quanto ao valor atribuído aos bens.
h) O Tribunal recorrido no n.º 1 als. a) a d) dos factos provados, deu como assente o valor atribuído pelo Autor, na sua P.I., a cada um dos bens aí elencados.
i) Já relativamente aos demais bens, os do número 1 als. f) a ee) esse mesmo Tribunal, nas alíneas a) e b) dos factos não provados, e perante rigorosamente a mesma prova decidiu, considerar como não provados os valores atribuídos aos bens pelo Autor na P.I..
j) O Réu, de forma expressa, clara e inequívoca impugnou quer o valor global, quer parcial/individual de todos os bens indicados pelo Autor.
k) Cabia ao Autor, por via da regra do ónus da prova, fazer prova daquilo que invoca quanto ao valor quer global, quer individual de cada um dos bens reclamados – 342.º do Código Civil - o que não logrou fazer.
l) A sentença recorrida reconheceu expressamente, na página 17, a ausência de prova quanto ao valor dos bens peticionados, quer quanto ao seu valor global, quer quanto ao parcial, tendo o Tribunal determinado, após retificação da sentença, a entrega dos bens “em estado de conservação” (cfr. retificação à sentença, ref.ª 34833267, de dia 21.01.2025).
m) Ora, não terá sido feita qualquer prova nem do valor total, nem do valor parcial/individual dos bens reclamados, nenhum documento e nenhuma das testemunhas ou das partes foi inquirida a esse respeito, nem mesmo o autor.
n) Logo, e em face de todo o exposto que antecede, mostra-se como contraditória, errada, e excessiva, por não provada, a valorização dos bens constantes do n.º 1 al.s a) a d) dos factos assentes, o que constitui a nulidade a que se refere e reporta o art.º 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C., a qual se invoca e deixa aqui expressamente arguida para todos os devidos e legais efeitos.
o) Pelo que deve o número 1 dos fatos assentes ser corrigido, em conformidade, por forma a que das suas alíneas a) a d) deixe de constar o valor individual de cada um dos bens aí elencados, por tais valores não terem ficado provados.
IV) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE INCIDE SOBRE OS FACTOS PROVADOS N.º 5 E 6 AO ABRIGO DO ART.º 640.º DO C.P.C (arts.º 29.º a 49.º)
p) O Tribunal formou uma errada convicção quanto à conjugação das declarações de parte do Autor e do Réu, assim como, do teor do depoimento das testemunhas EE, CC e DD.
q) Os depoimentos das testemunhas CC, DD e as declarações do Autor não foram unânimes em confirmar que foi o Autor quem os contratou, nem identificaram concretamente os bens a transportar ou a capacidade do veículo a utilizar para tal.
r) Tais testemunhas referiram apenas ter sido contratadas pelo "FF" ou pelo seu filho, não tendo o Autor contactado diretamente o Recorrente para autorização de recolha dos bens.
s) Relativamente ao trator agrícola referido na al. a), n.º 1 dos factos provados, resultou claro que as testemunhas não pretendiam transportá-lo, nem o poderiam carregar, dada a incapacidade do veículo utilizado.
t) Pelo que, o Tribunal errou ao fundamentar a recusa exclusiva por parte do Recorrente, visto que, não ficou provado que as testemunhas tivessem comunicado ao Recorrente que iriam buscar pormenorizadamente os bens elencados no n.º 1, al. a) a d) dos factos provados, mas tão só: arreios, coisas de cavalos…
u) A testemunha DD confirmou que não possuía qualquer lista enviada pelo Autor, referindo apenas que iriam transportar arreios de cavalos, e a testemunha CC referiu ter recebido listagem apenas ao chegar à herdade, sem especificar a sua composição.
v) Ambas as testemunhas, CC e DD, afirmaram que não pretendiam carregar qualquer trator por não caber na camioneta da testemunha.
w) Face ao exposto, o Tribunal a quo, ao considerar provados os factos 5 e 6, agiu em manifesto erro, excesso e contradição, visto que não poderiam ser considerados factos provados, com excepção de que as aludidas testemunhas se deslocaram à herdade do Réu munidos de uma camionete cuja capacidade de carregamento não se logrou apurar, nem quais os bens que pretendiam transportar.
x) Pelo que, deverão ser estes factos dados como não provados.
V) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE INCIDE SOBRE OS FACTOS NÃO PROVADOS AL. E), AO ABRIGO DO ART.º 640.º DO C.P.C (arts.º 50.º a 60.º)
y) O Tribunal a quo considerou não provado que “e) Os bens apresentavam muito uso e desgaste”.
aa) Sobre este facto resulta da própria sentença recorrida (fundamentação da al. b) dos factos não provados) que o Autor não indicou quantos anos tinham os bens, nem o seu estado de conservação aquando da entrega ao Recorrente, acrescentando que, por se tratarem de bens usados, os seus valores dependiam do estado de conservação.
ab) Assim, deverá ser o facto não provado al. e) passar a constar dos factos provados.
ac) Ou, caso assim não se entenda, por uma questão de cautela de patrocínio, deverá passar a constar dos factos não provados o art.º 3.º da P.I - “todos estes bens estavam em bom estado de conservação”.
VI) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE INCIDE SOBRE O FACTO NÃO PROVADO AL. I), AO ABRIGO DO ART.º 640.º DO C.P.C (art.ºs 61.º a 70.º)
ac) No presente, os bens encontram-se ilegal e abusivamente na herdade do Recorrente e causam prejuízos ao mesmo.
ad) O Recorrente e a testemunha EE, ambos negociantes de cavalos, necessitam de espaço para armazenar alimentos dos animais e bens agrícolas, encontrando-se o Recorrente impossibilitado de usar livremente o seu armazém, tendo de deixar máquinas suas no exterior.
ae) Pelo que, o Tribunal errou ao considerar a al. i) como não provado, devendo o mesmo ser revogado e passar a constar dos factos dados como provados.
VII) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE INCIDE SOBRE OS FACTOS NÃO PROVADOS AL. J) E K) E DO NÚMERO 1 DOS FACTOS PROVADOS, AO ABRIGO DO ART.º 640.º DO C.P.C (arts.º 71.º a 127.º) af) As testemunhas DD e CC, em cujos depoimentos o Tribunal se fundamentou, apresentaram declarações imprecisas e contraditórias quanto à contratação do transporte e aos bens a transportar, não tendo confirmado as alegações do Autor.
ag) Não ficou provado que o Autor tenha demonstrado efetivo interesse na recolha dos bens, pois não acompanhou o transporte nem contactou diretamente o Recorrente após a sua libertação para levantar os bens identificados nas alíneas a) a d) do n.º 1 dos factos provados, imputando a sua não restituição aos Réus.
ah) Também se discorda da fundamentação constante na sentença ora recorrida para descredibilizar a versão do Recorrente e da testemunha EE, no tocante à existência de um negócio de compra e venda dos bens móveis (al. f) a ee) do n.º 1 dos factos provados), uma vez que, ao contrário do entendimento do douto Tribunal a quo, tanto as declarações do Réu como da testemunha EE foram, quanto ao negócio de compra e venda totalmente coincidentes, credíveis e verdadeiras.
ai) É verdade que o recorrente não soube dizer o dia e hora concreto do negócio, mas mais estranho e suspeito seria se após 4 anos depois do negócio o Recorrente, com 73 anos de idade, e negociante de profissão, soubesse dizer exatamente o dia e hora do mesmo.
aj) Tanto o Recorrente como a testemunha EE foram perentórios em afirmar que os bens elencados nas al. f) a ee) do n.º 1 dos factos provados, foram comprados pelo preço de € 2.500,00 no dia em que o Autor “teve que fugir de Évora”, devido a um processo em curso entre o Autor e a sua ex-mulher, com o auxilio do Recorrente e da Testemunha EE.
ak) E também como refere a sentença recorrida, o Recorrente é um homem de negócios, que o Autor se encontrava numa situação de fragilidade financeira e que tanto o Autor como o Réu atestaram ter celebrado anteriormente negócios entre si, sem qualquer papel, declaração de compra e venda, recibo, quitação, o que também contraria o constante da página 13 da sentença recorrida, o que corresponde a uma nulidade da sentença ao abrigo do art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, o que se invoca para todos os legais efeitos).
al) Tendo sido ao abrigo do pleno exercício da liberdade contratual que as partes acordaram a compra e venda nos precisos moldes alegados pelo Réu.
am) Também é verdade que não existe factura e/ou recibo sobre o negócio entre o Recorrente e o Autor, mas a experiência comum e da vida, diz-nos que neste tipo de negócios não é costume, nem comum.
an) Tanto o Réu como a testemunha EE, prestaram declarações de forma honesta, colaboram, assumiram a existência dos bens em causa (que diga-se, se fosse pelas declarações do Autor nada se provaria relativamente aos bens), a guarda dos bens elencados nas al. a) a d) dos factos provados no n.º 1, a compra e pagamento dos bens elencados nas al. f) a ee) do n.º 1 dos factos provados, os termos e moldes do negócio e ainda, em certa medida, corroborada pelas testemunhas GG e HH.
ao) Pelo que, o Tribunal a quo errou ao considerar que estamos perante um contrato de depósito, ao abrigo do art.º 1185.º do CC.
ap) Ao invés, perante a prova produzida, o Tribunal a quo deveria ter dado como provado o negócio de compra e venda celebrado, ao abrigo dos art.ºs 405.º, 874.º, 875.º e 879.º, al. a) do CC, entre o Recorrido e o Recorrente, em que o Recorrido vendeu ao Recorrente, pelo preço de € 2.500,00, os bens constantes nas al. f) a ee) do n.º 1 dos factos provados, mediante a entrega de dinheiro vivo e sem recibo, devendo ser revogada as al. J) e k) dos factos não provados e passando a constar dos factos provados, bem como revogar, em parte, os factos provados no n.º 1, relativamente à entrega para guarda dos bens móveis als. d) a ee).
VIII) DA RECONVENÇÃO
aq) Perante a factualidade já descrita e uma vez que não ficou provado que o Autor se tenha deslocado à herdade do Recorrente, nem transferido os seus poderes a outrem, nem dado autorização expressa a terceiro, para proceder ao levantamento dos bens elencados nas al. a) a e) do n.º 1 dos factos provados, deverá ser revogada a sentença onde considera julgar improcedente in totum, por não provado o pedido reconvencional formulado pelo Réu, absolvendo o Autor do peticionado.
ar) Devendo ser, ao abrigo do já anteriormente explanado (IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE INCIDE SOBRE OS FACTOS PROVADOS N.º 5 E 6 e FACTOS NÃO PROVADOS AL.I) AO ABRIGO DO ART.º 640.º DO C.P.C.)
nomeadamente na factualidade sobre o transporte do trator e para o qual se remete por uma questão de economia e celeridade processual, o Recorrido ser condenado a pagar ao Recorrente a quantia de € 50,00 por cada dia em que não remover da herdade do Recorrente os bens referidos, a título de parqueamento abusivo e indevido.»
9. Não foi apresentada resposta ao recurso.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se , sucessivamente, apreciar:
- Questão (prévia): ausência de valor probatório das declarações de parte do Autor
- Nulidade da sentença
- Impugnação da decisão de facto
- Do mérito da sentença
B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
Factos Provados
«1. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os dias 1 1 e 15 de Maio de 2020 0 Autor entregou ao Réu, com o acordo deste e para sua guarda e posterior restituição, os seguintes bens em segunda mão:
a) Um trator agrícola, com forquilha, marca SAME, Modelo Explorer 90 4RM, matrícula
VE-..-.., de cor vermelha, € 12.500,00.
b) Uma roulotte para cavalos, marca IFOR WILLIAMS, matrícula L-......, cor castanho,
€ 7.500,00.
c) Uma moto 4 (quadriciclo), marca Honda, modelo TE21 (FOURTRAX 250 TM), matrícula ..-LT-.., cor vermelha, € 2500,00.
d) Uma moto 4 (quadriciclo), marca YAMAHA, modelo YFM 350 FX (4KB), matrícula ....-JS, cor vermelha, € 3.000,00
f) Uma máquina de tosquiar os cavalos - Agriloja
g) Um selim Relvas, cor creme, trabalhado
h) Um selim de marca Bates, cor preta
i) Um selim Relvas, de marca Lexis, cor castanha
j) Um Selim de marca Procavalo, cor preta, com chapa "Vítor Branco"
k) Uma sela portuguesa pequena, completa, com cilha, rabicheira, peitoral e xairel de cor preta com camurça creme
I) Uma sela portuguesa, completa, com filha, ravicheiral, peitoral e xairel de cor creme com camurça creme
m) Uma sela a espanhola completa
n) Um serrilhão
o) Quatro cabeções de cabedal para cavalos
p) Três cabeçadas de freio
q) Quatro cabeçadas de bridão
r) Cinco cabeçadas de freio e bridão
t) Uma moto-enxada
u) Duas roçadeiras
v) Um corta sebes;
w) Duas motosserras still;
x) Um soprador a gasolina;
y) Um macaco hidráulico;
z) Dois tripés para automóveis; aa) Uma mala de ferramentas;
bb) Dois berbequins; cc) Uma aparafusadora; dd) Uma rebarbadora; ee) Um pulverizador,
2. Na data referida em 1, não foi acordado entre Autor e Réu um prazo para a restituição dos bens identificados em 1.
3. Na data referida em 1. não foi acordado entre Autor e Réu qualquer quantia a título de retribuição para guarda dos bens móveis acima identificados.
4, O Autor procedeu à notificação judicial avulsa do Réu em 12.10.2022 através de agente de execução tendo em vista a restituição dos bens identificados em 1. até ao dia 17 de Outubro de 2022.
5. No dia 17 de Outubro de 2022 por conta e a mando do Autor deslocaram-se a Herdade propriedade do Réu os Srs. CC e DD munidos de uma camioneta para recolha e transporte dos bens identificados em 1.
6. No dia 17 de Outubro de 2022 0 Réu recusou-se a entregar os bens identificados em 1. aos Srs. CC e DD que se identificaram como tendo sido contratados pelo Autor para assegurar a recolha e transporte dos bens do Autor identificados em 1,
7. Na presente data os bens identificados em 1 , permanecem na propriedade do Réu.
8. Na sequência do fim da relação conjugal entre o Autor e a mulher - II - em contexto de dificuldade, carência financeira o Autor pediu ao Réu se poderia guardar na
Herdade onde vive os bens identificados em 1,
9. O Réu aceitou guardar os bens identificados em 1. na sua propriedade/Herdade,
10. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre 2021/2022 o Autor saiu da prisão e foi viver para a zona de Cascais.
11. O semi-reboque, com a matricula L204425 atrelado Ifor Williams mod. HB506 encontra registado o seguinte encargo: Arresto no âmbito do processo n. 0 1271/20.1...-A».
Factos Não Provados
«a) Em data que se situa entre os dias 1 1 e 15 de Maio de 2020 0 Autor entregou ao Réu, com o acordo deste e para sua guarda e posterior restituição, os seguintes bens, com os respetivos valores: e) Uma moto 4 (quadriciclo) azul com 500 cc com guincho e mala atrás, sem matrícula, proveniência China, € 3500,00; s) Um par de botas de montar a portuguesa; € 250,00.
b) Os bens indicados no artigo 1.0 da petição inicial impetrada nos autos pelo Autor ascendem ao valor global de € 40.750,00 tendo os seguintes individualmente os valores:
f) Uma máquina de tosquiar os cavalos - Agriloja, € 400,00
g) Um selim Relvas, cor creme, trabalhado, € 1,500,00
h) Um selim de marca Bates, cor preta, € 2.000,00
i) Um selim Relvas, de marca Lexis, cor castanha, € 700,00
j) Um Selim de marca Procavalo, cor preta, com chapa "Vítor Branco", € 1.500,00 k) Uma sela portuguesa pequena, completa, com cilha, rabicheira, peitoral e xairel de cor preta com camurça creme, € 300,00 l) Uma sela portuguesa, completa, com filha, ravicheiral, peitoral e xairel de cor creme com camurça creme, € 600,00
m) Uma sela a espanhola completa, € 700,00
n) Um serrilhão, € 150,00
o) Quatro cabeções de cabedal para cavalos, € 100,00
p) Três cabeçadas de freio, € 450,00
q) Quatro cabeçadas de bridão, € 300,00
Ação de Processo Comum
r) Cinco cabeçadas de freio e bridão; € 250,00
t) Uma moto-enxada; € 600,00
u) Duas roçadeiras; € 300,00
v) Um corta sebes; € 250,00
w) Duas motosserras still; € 500,00
x) Um soprador a gasolina; € 250,00
y) Um macaco hidráulico; € 150,00
z) Dois tripés para automóveis; € 100,00 aa) Uma mala de ferramentas; € 100,00 bb) Dois berbequins; € 100,00 cc) Uma aparafusadora; €50,00 dd) Uma rebarbadora; € 50,00 ee) Um pulverizador; € 100,00.
c) O Réu tem feito uso das coisas entregues para guarda, sem autorização do Autor.
d) O Autor solicitou verbalmente, por várias vezes, ao Réu que procedesse à restituição dos bens.
e) Os bens apresentavam muito uso e desgaste.
f) Existiam episódios de violência doméstica perpetrados, pelo Autor contra a mulher.
g) Os episódios de violência doméstica perpetrados, pelo Autor contra a mulher acabaram por conduzir à prisão preventiva do Autor, designadamente no EP de Beja.
h) Após a notificação judicial avulsa, o Autor não contactou o Réu, por qualquer meio, para proceder ao levantamento dos bens.
i) O Autor com a ocupação de cerca de 50 m2 de terreno, junto ao monte de habitação do Réu além de causar uma má impressão visual a todos quantos frequentam o monte, parecendo uma sucata ou um estaleiro a céu aberto, impossibilita o Réu de aí colocar os seus bens, isto para além do custo/valor de utilização do próprio espaço em si.
j) No ano de 2020 em contexto de dificuldade, carência financeira, o Autor vendeu e entregou ao Réu, para que este deles se apropriasse, fizesse seus e utilizasse, enquanto único dono e legitimo proprietário os bens referidos nas alíneas f) a ee) da petição inicial, com excepção das botas al, s),
k) A venda referida foi feita pelo preço total/global de € 2.500,00 que o Réu pagou em dinheiro ao Autor e que este recebeu no imediato e integralmente, contra a entrega dos bens na herdade residência do Réu, por parte do Autor que para aí os transportou.
Os demais factos alegados nos articulados não foram objecto de pronúncia por parte do Tribunal por conterem matéria conclusiva, de direito ou irrelevante.»
C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
Passamos à apreciação das questões colocadas no recurso pela ordem em que o Apelante as colocou.
1.ª Questão (prévia): ausência de valor probatório das declarações de parte do Autor
Defende o Apelante que, por o Autor ter estado presente na sala de audiências até prestar declarações, assistindo, desse modo, a toda a audiência de discussão e julgamento, as declarações de parte não correspondem a prova convincente e não deve ser valorada tanto mais que se encontra desacompanhada de outro meio de prova.
Analisando a questão (prévia) suscitada, o Apelante não tem razão, porquanto decorre do artigo 466.º, n.º 1, do CPC, que «As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto», sendo esse meio de prova apreciado livremente, exceto se as declarações tiverem valor confessório (n.º 3 do mesmo preceito).
Deste modo, o próprio legislador ao estabelecer o referido limite temporal, sem que haja norma a proibir a presença da parte em julgamento, mesmo na eventualidade de pretender prestar declarações de parte imediatamente antes das alegações orais, é manifesto que, em face da lei, a parte pode assistir à produção de prova.
Coisa diferente é o valor probatória dessas declarações – se valem por si, ainda que apreciadas livremente ou, se o seu valor probatório fica dependente de serem coadjuvadas por outros meios de prova. Questão que deve ser colocada e apreciada se impugnada a decisão de facto e com esse fundamento (entre outros, naturalmente), ou seja, em face da concreta matéria impugnada e não em termos abstratos como constituindo uma forma de desvalorização deste meio de prova.
Em suma, improcede a questão prévia suscitada.
2.ª Questão: Nulidade da sentença
Alega o Apelante que a sentença é nula por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre o conteúdo/teor do documento junto aos autos – carta escrita pelo Autor datada de 01-02-2021 dirigida ao recorrente e à testemunha EE – da qual resulta a situação vivida antes e durante a prisão do Autor, a necessidade de dinheiro que tinha e consequente necessidade de se desfazer/sonegar bens ao controlo da mulher por causa do divórcio.
Acrescentando que, não o Autor impugnado tal documento, «deveria ter sido valorado como prova a favor do Recorrente».
Analisando a questão, adianta-se, desde já, que a sentença não é nula por omissão de pronúncia.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente da omissão de pronúncia (a invocada pelo Apelante), está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões1) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa2.
Também, como é bom de ver, a omissão de pronúncia não se reporta à valoração ou não valoração, ou, mesmo erro quanto ao valor probatório de determinado meio de prova, pois os meios de prova destinavam-se a provar factos e são estes que enformam as questões (matérias) a decidir em sede de sentença. Daí que a nulidade por omissão de pronúncia apenas se reporta às questões a decidir, à falta da sua apreciação, análise e decisão, e não aos meios de prova que suportam os factos controvertidos e onde se ancora a decisão em termos de fundamentação de facto.
Por conseguinte, o eventual erro na apreciação da prova, mesmo que esteja em causa um meio de prova com força probatória plena, não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Quanto muito determinará a alteração da decisão de facto se a factualidade visada com esse meio de prova for impugnada e a impugnação for admitida e reapreciada a decisão de facto ou se, estando em causa um meio de prova com valor tarifado, tiver ocorrido erro na sua valoração.
Nestes termos, improcede a arguição de nulidade da sentença.
3.ª Questão: impugnação da decisão de facto
O Apelante vem impugnar a decisão de facto quanto à seguinte matéria:
- Alíneas a) a d) do n.º 1 dos factos provados;
- Factos provados 5 e 6;
- Alíneas e), i), j) e k) dos factos não provados.
Analisando.
A impugnação da decisão da decisão de facto está sujeita ao cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, sob pena de rejeição.
Os poderes-deveres de cognição da Relação em termos de reapreciação da matéria de facto (duplo grau de jurisdição) têm como pressuposto o cumprimento pelos impugnantes do estipulado no referido artigo 640.º do CPC, bem como os limites estabelecidos no artigo 662.º do CPC.
É com base nestes pressupostos que se passa a analisar a impugnação da decisão de facto.
Quanto às alíneas a) a d) do n.º 1 dos factos provados:
«1. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os dias 1 1 e 15 de Maio de 2020 0 Autor entregou ao Réu, com o acordo deste e para sua guarda e posterior restituição, os seguintes bens em segunda mão:
a) Um trator agrícola, com forquilha, marca SAME, Modelo Explorer 90 4RM, matrícula
VE-..-.., de cor vermelha, € 12.500,00.
b) Uma roulotte para cavalos, marca IFOR WILLIAMS, matrícula L-......, cor castanho,
€ 7.500,00.
c) Uma moto 4 (quadriciclo), marca Honda, modelo TE21 (FOURTRAX 250 TM), matrícula ..-LT-.., cor vermelha, € 2500,00.
d) Uma moto 4 (quadriciclo), marca YAMAHA, modelo YFM 350 FX (4KB), matrícula ....-JS, cor vermelha, € 3.000,00».
Pretende o Apelante que os valores atribuídos aos bens que constam destas alíneas sejam dados como não provados, alegando, em suma, que impugnou o valor global e parcial dos bens referidos no ponto 1. dos factos provados e que nenhuma prova foi feita pelo Autor, que foi quem deu valor aos bens e a quem cabia o ónus de prova, nos termos do artigo 342.º do Código Civil (CC). Apesar disso, contraditoriamente, o tribunal a quo deu como provado o valor dos bens referidos no ponto 1., alíneas a) a d) dos factos provados, mas não os valores referentes aos bens que constam do mesmo n.º 1., alíneas f) a ee) dos factos provados.
Conclui com base no assim alegado que a sentença é nula, nos termos do artigo 615.º n.º 1 al. c) do CPC.
Vejamos.
Quanto à arguição de nulidade, já acima se referiu que as nulidades da sentença não se reportam a erros de julgamento sobre a decisão de facto, o que se aplica igualmente à alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, que estipula a nulidade da sentença quando «os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
Conforme é comumente aceite, a nulidade prevista na primeira parte da alínea c), verifica-se quando haja uma contradição lógica no processo de decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados devam conduzir logicamente ao resultado oposto ao que veio a ser expresso na decisão, ou, pelo menos, de sentido diferente.
Este vício formal não se reporta a situações em que se parte de pressupostos errados (por exemplo, apreciação e interpretação dos factos ou do direito), caso em que existe um vício de conteúdo (error in judicando), mas não nulidade da decisão.3
Já a ambiguidade ou obscuridade da sentença reporta-se à sua parte decisória e apenas ocorre quando gera ininteligibilidade, ou seja, quando um declaratário normal, nos termos do artigo 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do Código Civil (CC), não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. 4
No caso, a alegação da recorrente situa-se nitidamente no plano da errada valoração da prova, o que extravasa o âmbito de aplicação do normativo que invoca, pelo que improcede a arguida nulidade.
Existira, contudo, a contradição assinalada?
O Réu na contestação, após proclamar que impugna toda a p.i. (o que não corresponde a uma verdadeira impugnação, porquanto o artigo 571.º, n.º 2, do CPC, estipula que o Réu para impugnar tem de contradizer os factos articulados na p.i. ou afirmar que os mesmos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor, ou seja, a impugnação tem de ser motivada e não meramente genérica), logo de seguida impugnou, quer o valor global, quer o parcial/individual de todos os bens indicados pelo Autor justificando essa impugnação com o facto de serem bens em segunda mão, com muito uso e desgaste e diminuto valor comercial. Desse modo, tem de se ter por impugnado o valor dos bens apresentados na p.i.
E sendo assim, o ónus de prova do valor impendia sobre o Autor, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC, por o facto em causa ser constitutivo do direito que se arroga nesta ação, ou seja, a restituição dos bens no estado de conservação em que se encontravam quando saíram da sua posse (que alega ser bom), e, consequentemente, tendo os mesmos o valor que lhe atribuiu.
Analisada a fundamentação da sentença no que concerne ao valor dos bens, apenas se encontra uma justificação em relação aos factos não provados, ali constando:
«Quanto aos valores dos bens as testemunhas inquiridas a que supra se fez alusão e cujos depoimentos se tem aqui por reproduzidos não resultaram coincidentes, sendo antes precisas em aludir que como se tratam de bens em segunda mão, usados os valores são variáveis dependendo do estado de conservação dos mesmos. lnexistindo nos autos qualquer outra prova segura, documental (faturas, orçamentos estimativos de materiais semelhantes) resultam não provados tais valores que se encontram impugnados por parte do Réu.»
Analisada toda a prova, concorda-se que efetivamente não foi feita prova do valor dos bens, mas não apenas dos que constam das alíneas f) a ee) dos factos não provados, mas de todos os que o Autor pretende reaver, ou seja, o que inclui também dos do ponto 1., alíneas a) a d) dos factos provados.
Efetivamente, não existe prova documental que permita aferir do valor dos bens e da restante prova – declarações de parte e testemunhal, mormente prestada pela testemunha HH, correeiro de profissão, com conhecimento na área de negócios em causa nos autos – também não resulta, tanto mais que esta testemunha referiu que os preços são variáveis em função de vários critérios e circunstâncias negociais e que nem sempre o facto de serem bens em segunda mão significa que tenham um valor menor. Não havendo prova pericial sobre a esta matéria, tem de se concluir que não foi feita prova do valor dos bens em causa nos autos.
Deste modo, procede a impugnação, pelo que se altera a redação do ponto 1., alíneas a) a d) dos factos provados, que passam a ter a seguinte redação:
«1. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os dias 1 1 e 15 de Maio de 2020 0 Autor entregou ao Réu, com o acordo deste e para sua guarda e posterior restituição, os seguintes bens em segunda mão:
a) Um trator agrícola, com forquilha, marca SAME, Modelo Explorer 90 4RM, matrícula
VE-..-.., de cor vermelha.
b) Uma roulotte para cavalos, marca IFOR WILLIAMS, matrícula L-......, cor castanho.
c) Uma moto 4 (quadriciclo), marca Honda, modelo TE21 (FOURTRAX 250 TM), matrícula ..-LT-.., cor vermelha.
d) Uma moto 4 (quadriciclo), marca YAMAHA, modelo YFM 350 FX (4KB), matrícula ....-JS, cor vermelha.
Mais se decide que os valores que constavam destas alíneas passam a constar dos factos não provados; ou seja, não se provou que os bens referidos no ponto 1. dos factos provados alíneas a) a d), tenham, respetivamente, o valor de €12.500,00, €7.500,00, €2.500,00 e €3.000,00.
Quanto aos ponto 5 e 6 dos factos provados:
«5. No dia 17 de Outubro de 2022 por conta e a mando do Autor deslocaram-se a Herdade propriedade do Réu os Srs. CC e DD munidos de uma camioneta para recolha e transporte dos bens identificados em 1.
6. No dia 17 de Outubro de 2022 0 Réu recusou-se a entregar os bens identificados em 1. aos Srs. CC e DD que se identificaram como tendo sido contratados pelo Autor para assegurar a recolha e transporte dos bens do Autor identificados em 1.»
Pretende o recorrente que a respetiva factualidade seja dada como não provada.
Invoca para o efeito as declarações de parte do Autor e do Réu e os depoimentos das testemunhas EE, CC e DD.
Questiona que, em face desta prova, o tribunal estivesse em condições de dar como provado que tenha sido o Autor a contratar as duas últimas testemunhas para ir à Herdade do Réu buscar os bens, que, aliás, não sabiam identificar e que o veículo que levavam não tinha sequer capacidade para trazer todos os bens, nomeadamente o trator agrícola.
Da fundamentação da decisão de facto quanto a estes pontos provados verifica-se que o tribunal se louva nos depoimentos das testemunhas EE (filho do Réu e presente no momento da deslocação à Herdade do pai para recolha e transporte dos bens), CC e DD (pessoas que ali se deslocaram para recolher e transportar os bens), bem como nas declarações de parte do Autor e do Réu, fazendo uma análise criteriosa e pormenorizadas destes meios de prova, conjugando-os com o teor da notificação judicial avulsa para justificar o modo como formou a sua convicção.
Analisada a prova em causa (sendo que as declarações e depoimentos se encontram transcritos no recurso), afigura-se-nos que nenhuma censura merece a decisão de facto impugnada.
As declarações de parte do Réu são manifestamente confusas, contraditórias em muitos aspetos, lacunares e muito pouco convincentes. Não se pode deixar de mencionar que reconhece que as testemunhas acima referidas lá se deslocaram com aquele propósito, enredando-se em explicações para justificar a não entrega que foram sofrendo nuances conforme a instância. Ora, não entregou porque as comprou, ora porque o Autor lhe devia determinado valor e queria fazer contas com ele, ora, porque não conhecia o FF a mando de quem iam, apesar de logo de seguida se contradizer e dizer que sabia que o Autor era filho do mesmo. A incongruência chega ao ponto de reconhecer a assinatura aposta na justificação judicial avulsa, mas dizer que não se interessou por saber o que lá estava escrito, argumento muito pouco convincente, pois das suas próprias declarações sobressai perfeitamente que sabe quais são os bens que estão em causa. Aliás, o único fio condutor das declarações é sublinhar que comprou alguns dos bens ao Autor e que este lhe deve dinheiro e que, posteriormente, nenhum contato manteve com ele para se entenderem em termos negociais. Chega a negar a amizade com o Autor quando juntou aos autos uma carta escrita pelo Autor que lhe foi dirigida e ao seu filho EE, onde trespassa uma relação de amizade de longa data. Sendo que, em determinado momento das declarações, afinal já reconhecia a amizade que tinha com o Autor e o relacionamento amigável e negocial de longa data.
Não convenceu. As suas declarações de parte são imprestáveis em termos probatórios e como as mesmas são livremente apreciadas atento o disposto no artigo 466.º, n.º 3, do CPC, não podem contribuir para alterar a formação da convicção do julgador em sede de segunda instância.
Quanto às declarações de parte do Autor, encontram-se no polo oposto das declarações de parte do Réu. Seguras, claras, explicativas de forma racional, enxutas e desprovidas de hesitações, não se refugiando o declarante em aspetos laterais e marginais ao cerne das questões.
Explicou como os bens foram parar às mãos do Réu. O que combinou com o mesmo. O que lhe entregou e a recusa do Réu em devolver os bens, mesmo após a notificação judicial avulsa. A derradeira tentativa de mandar terceiros recolher os bens e a recusa perentória do Réu em entregá-los.
No que concerne a este último aspeto, as declarações de parte foram corroboradas pela testemunhas que ali se deslocaram para a recolher e transportar os bens. Sobretudo o depoimento da testemunha CC, a quem o serviço foi encomendado pelo pai do Autor (vizinho da testemunha), mas a mando e no interesse do filho que, na véspera do dia marcado para a deslocação, confirmou com a testemunha o que prendia que fosse feito e, no dia, lhe mandou por mensagem o teor da notificação judicial avulsa onde consta a descrição dos bens, dizendo-lhe que se o Réu mostrasse vontade de entregar os bens, lhe dissesse, que mandaria uma veículo onde pudesse ser transportado o trator que não cabia no veículo que levava.
Também a testemunha DD, que acompanhou a testemunha CC, confirmou o que acima se referiu. Fê-lo de forma mais lacunar e menos assertiva, mas percebeu-se que tinha menos conhecimento da situação, mas sabia o que iam fazer e presenciou a recusa determinante do Réu em entregar os bens a recolher.
Quanto ao depoimento da testemunha EE (filho do Réu e presente no momento da deslocação à Herdade do pai para recolha e transporte dos bens) o seu depoimento é confirmativo das declarações do pai no concernente ao negócio celebrado entre Autor e Réu, mas não chegou para lhe dar credibilidade. Enredou-se em aspetos relacionados com a amizade que mantinham com o Autor e negócios que foram realizando mas sem conseguir transmitir um conhecimento profundo dos mesmos. Como a própria testemunha disse: o «chefe é o meu pai».
Estranhou-se, por inusitado em termos de experiência comum, o que disse em relação ao momento em que o pai foi confrontado com as testemunhas que iam recolher os bens. Chamou o pai e afastou-se, foi embora, deixando o pai a falar com os senhores. O que se nos afigurou foi que, com essa explicação, não quis ser confrontado com a razão invocada pelo pai para não permitir a recolha e entrega dos bens.
Em termos probatórios, este testemunho também é pouco credível e seguro e não pode ser visto como coadjuvante das declarações de parte do Réu no sentido de corroborar o que o mesmo veio defender na contestação.
Por conseguinte, as críticas que o recorrente apõe à decisão de facto quanto aos pontos provados 5 e 6 não podem ser acolhidas nesta sede de reapreciação da decisão de facto, pois formou-se convicção semelhante à da 1.ª instância em relação a esta matéria.
Improcede, assim, a respetiva impugnação.
Alínea e) dos factos não provados:
«Os bens apresentavam muito uso e desgaste».
O recorrente pretende que a correspondente matéria seja dada como provada. Ou caso assim não se entenda, que fique a constar como provado que «os bens estavam em bom estado de conservação».
Quanto a esta segunda pretensão, a mesma não pode sequer ser apreciada, dada a sua natureza não factual, mas conclusiva.
Quanto à matéria da alínea e) dos factos não provados, alega o impugnante que o Autor não indica a idade dos bens, o seu estado de conservação aquando da entrega e tratando-se de bens usados, os seus valores dependiam do estado de conservação.
Na análise que fazemos desta impugnação, até se nos afigura que os argumentos utilizados comprovam a falta de prova quanto ao uso e desgaste dos bens. Efetivamente, se não há prova do estado de conservação dos bens e do valor aquando da entrega ao Réu, sabendo-se apenas que eram usados, não se pode dar como provado qual o uso e desgaste que apresentavam.
Sendo que da prova que o recorrente indica para justificar a impugnação (declarações de parte do Réu e depoimento das testemunhas EE e HH) apenas resulta que eram bens usados e não resulta se eram muito ou pouco usados e em que estado estavam.
Improcede, pois, também este segmento da impugnação.
Alínea i) dos factos não provados:
«O Autor com a ocupação de cerca de 50 m2 de terreno, junto ao monte de habitação do Réu além de causar uma má impressão visual a todos quantos frequentam o monte, parecendo uma sucata ou um estaleiro a céu aberto, impossibilita o Réu de aí colocar os seus bens, isto para além do custo/valor de utilização do próprio espaço em si.»
Pretende o recorrente que esta matéria passe a constar dos factos provados.
Chama à colação as suas declarações de parte e o testemunho do filho EE para frisar que ficou provado que, por causa dos bens do Autor, ficou impossibilitado de usar o armazém, tendo de deixar máquina suas no exterior.
A impugnação não procede, porquanto ninguém depôs sobre a questão do impacto causado no terreno, seja visual, seja em termos de ocupação. Nem tão pouco sobre o custo da ocupação. E quanto à ocupação do armazém, da prova indicada não decorre qual o espaço que as máquinas ocupavam e onde estavam armazenadas. Mencionaram a necessidade de espaço no armazém, mas sem se perceber se a necessidade resultava apenas do armazenamento dos bens em causa nos autos.
Improcede também este segmento da impugnação.
Alíneas j) e k) dos factos não provados:
«j) No ano de 2020 em contexto de dificuldade, carência financeira, o Autor vendeu e entregou ao Réu, para que este deles se apropriasse, fizesse seus e utilizasse, enquanto único dono e legitimo proprietário os bens referidos nas alíneas f) a ee) da petição inicial, com excepção das botas al, s),
k) A venda referida foi feita pelo preço total/global de €2.500,00 que o Réu pagou em dinheiro ao Autor e que este recebeu no imediato e integralmente, contra a entrega dos bens na herdade residência do Réu, por parte do Autor que para aí os transportou.»
O Apelante defende que esta matéria deve ser dada como provada.
Invoca os depoimentos das testemunhas DD e CC e a sua natureza contraditória quanto à matéria da recolha e transporte e falta de confirmação das declarações de parte do Autor.
Quanto a este aspeto remete-se para o que acima se analisou e conclui em relação aos depoimentos das testemunhas DD e CC, donde resulta que não existe qualquer contradição entre estes depoimentos e as declarações de parte do Autor.
Invoca também o depoimento de EE e declarações de parte do Réu no tocante à questão do negócio celebrado entre o Autor e o Réu em relação aos bens referidos nos autos.
Cabe reiterar que a versão do Réu, corroborada pelo seu filho, não nos mereceu qualquer credibilidade pelas razões já acima mencionadas para as quais remetemos.
Quanto aos depoimentos das testemunhas GG e HH também nada se colhe em termos probatórios que faça inverter a convicção formada do tribunal recorrido, que aqui se corrobora, em relação a esta matéria.
Alega o recorrente quem «em certa medida» o negócio referente à compra dos bens referidos nas alíneas f) a ee) do n.º 1 dos factos provados, é corroborada por estas testemunhas.
Não cremos que assim seja.
As testemunhas GG e HH não participaram, nem tinham conhecimento direito do negócio em discussão nos autos.
O primeiro aludiu de forma vaga a ter visto «materiais» na casa do Réu (dois tratores, duas roulottes, motos 4), mas desconhecia o negócio e valores, dizendo que «não sei dizer isso», referindo-se apenas a que as partes tinham vários negócios de compra e venda de arreios, selas e «dessas coisas».
Quanto à segunda testemunha mencionada, o Apelante nem sequer invoca qualquer segmento do depoimento que sirva de suporte à impugnação.
Em conclusão, nenhuma censura merece a decisão de facto quanto a estas alíneas, tendo-se formado convicção semelhante à do tribunal a quo.
Finalmente, e mais uma vez, o recorrente relaciona a impugnação da decisão de facto com as nulidades da sentença, invocando que ocorreu a nulidade prevista no n.º 1, alínea c), do artigo 615.º do CPC, por a sentença se reportar à inexistência de documento escrito comprovativo da alegada compra e venda que o Réu invoca.
Remete-se para o acima referido sobre a nulidade prevista neste normativo, reiterando-se que os erros na apreciação da prova – a existirem, o que não se verifica no caso, como à saciedade ficou analisado e demonstrado – não correspondem a nulidades da sentença.
Nestes termos, improcede a impugnação em relação a esta matéria.
4.ª Questão: do mérito da sentença
O Apelante continua a defender que celebrou com o Autor um contrato de compra e venda no que concerne aos bens identificados no ponto 1., alíneas f) a ee) dos factos provados, tendo adquirido a propriedade destes bens por ter pago a quantia de €2.500,00, em dinheiro vivo, sem recibo comprovativo de tal transação, remetendo para o disposto nos artigos 405.º, 874.º, 875.º e 879.º, alínea a), do CC.
Só que os factos apurados em sede de julgamento não suportam este entendimento.
Sendo que a alteração da redação do ponto 1., alíneas a) a d) dos factos provados em nada alteram esta conclusão até porque em relação a esses bens, o Réu, ora recorrente, nunca alegou que os tinha comprado.
O que os factos provados suportam é precisamente a existência de um contrato de depósito, regido pelos artigos 1185.º a 1198.º do CC.
Decorre destes normativos que o contrato de depósito é «o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida» (artigo 1185.º do CC).
Nada obsta a que seja gratuito (artigo 1186.º do CC).
Tem natureza real, pois a guarda ou custódia da coisa é o objeto do contrato, pelo que a perfeição do contrato exige a entrega do bem a guardar ao depositário, que fica com a obrigação de a restituir (artigo 1187.º, alíneas a) e c), do CC). Assim, enquanto o depositário guardar a coisa, o contrato de depósito mantêm-se. A entrega deve ocorrer no fim do prazo, ou não tendo sido estipulado prazo para o depósito, quando for solicitada a entrega ao depositário, sob pena de entrar em mora (artigos 813.º e ss, do CC).5
Exceto se provar que é proprietário da coisa ou tem sobre ela outro direito (artigo 1192.º, n.º 1, do CC).
No caso dos autos, tendo-se provado que o Autor entre os dias 11 e 15 de maio de 2020 entregou ao Réu os bens discriminados no ponto 1., alíneas a) a bb) dos factos provados para este os guardar e, posteriormente, os restituir ao Autor, encontram-se preenchidos os requisitos do contrato de depósito.
Não tendo o Réu devolvido os bens quando lhe foi pedida a restituição e não tendo provado que lhe pertenciam aqueles que alegava ter comprado ao Autor, não logrou provar, como lhe competia, a recusa legítima de os restituir (artigo 342.º, n.º 2, e 1201.º, n.º 1, do CC), pelo que incumpriu o contrato, assistindo ao Autor o direito de pugnar judicialmente pela restituição dos bens depositados.
Nestes termos, e como se alcança da sentença recorrida, que se corrobora, a ação deve ser julgada procedente com a condenação do Réu no pedido.
Em relação à reconvenção, a mesma improcede por o Réu não ter provado o prejuízo em que assentava o pedido reconvencional, ónus a seu cargo atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC.
Em face de todo o exposto, improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 13-11-2025
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria João Sousa e Faro (1.ª Adjunta)
Ana Pessoa (2.ª Adjunta)
___________________________________
1. Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt↩︎
2. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt↩︎
3. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol.2.º, 3.ª ed., Almedina 2017, pp. 736-737.↩︎
4. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, ob. cit., p. 735.↩︎
5. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., págs. 754 a 756 e 777.↩︎