NEGÓCIO USURÁRIO
ANULABILIDADE
CAUSA DE PEDIR
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CADUCIDADE
Sumário

Sumário:
I. A causa de pedir da presente ação é abrangente no sentido dos concretos factos alegados tanto poderem serem subsumíveis a uma situação de erro-vício ou erro-motivo causado por atuação dolosa da compradora como a uma situação de negócio usurário.

II. A qualificação jurídica depende da concreta factualidade apurada, cabendo ao tribunal fazer essa qualificação nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

III. De acordo com o artigo 282.º do Código Civil são três os elementos do negócio usurário: situação de inferioridade do declarante, obtenção de benefícios excessivos ou injustificados e intenção ou consciência do usuário de explorar aquela situação de inferioridade.

IV. O prazo para requerer a anulabilidade com base em negócio usurário começa a contar desde a cessação da situação de inferioridade e da sua influência na motivação do declarante.

Texto Integral

Processo n.º 559/22.1T8ALQ.E1 (Apelação)

Tribunal recorrido: TJ Comarca Faro, Juízo Local Cível de Loulé – J1


Apelante: Colourful Battle, Unipessoal, Ld.ª


Apelada: AA


Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora


I – RELATÓRIO


1. AA, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de BB, veio intentar a ação constitutiva, com processo comum, contra COLOURFUL BATTLE, UNIPESSOAL, LDA., pedindo:


Pedido principal: que seja declarado anulado o contrato de compra e venda do imóvel, melhor identificado no artigo 1.º da p.i., celebrado por escritura pública no dia 07-06-2018, pelo sócio-gerente da Ré.


Pedido subsidiário: caso o tribunal decida que o suprarreferido contrato não pode ser anulado, peticionou que a Ré seja condenada a pagar o valor de €20 456,62, correspondente ao remanescente do preço em falta.


2. Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em suma, que, na sequência do óbito de sua mãe, que ocorreu em ...-...-2021, veio a saber que, em 07-06-2018, a sua mãe havia transmitido para a Ré a propriedade da sua habitação, tendo, porém, o ato sido precedido por um conjunto de operações com contornos e circunstâncias que inquinam a validade do mesmo, por dolo da Ré e até se mostram ofensivos de valores sociais relevantes, pois que podem consubstanciar a prática de um crime.


3. Contestou a Ré por exceção e por impugnação, alegando, respetivamente, a caducidade do direito à anulação do contrato de compra e venda e que BB tinha pleno conhecimento e celebrou todos os negócios de livre vontade, tendo o contrato de compra e venda, bem como o contrato de arrendamento e de opção de compra, sido atos normais da atividade social da Ré, igual a tantos outros que regularmente celebra e tem celebrado.


4. A Autora respondeu à exceção de caducidade no sentido da sua improcedência.


5. Os autos foram objeto de saneamento e realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a ação procedente, declarando a anulação do «contrato de alienação fiduciária» celebrado entre BB e a Ré, condenando esta a restituir à herança aberta por óbito daquela, o prédio urbano, destinado a habitação, situado em Lugar 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 4023 da freguesia de Local 2, inscrito na matriz sob o artigo n.º 1353 da União das Freguesias de Local 2, devendo, de igual modo, a referida herança restituir à Ré o valor €4.743,38 que lhe foi entregue por força do referido contrato.


6. Inconformada, apelou a Ré, defendendo a revogação da sentença, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES (sem negritos e sublinhados):


A. É fundamento do presente recurso a impugnação da matéria de facto dada como provada, por erro de julgamento, nomeadamente quanto à apreciação e análise critica da prova produzida em audiência de julgamento e insuficiência dos factos dados como provados pois houve omissão de factos que deveriam constar nos factos provados e que não constam e que no entender da recorrente são importantes para a boa decisão da causa bem como factos que foram dados como provados e que não o deveriam ter sido e ainda de factos dados como não provados e que deveriam ter sido dado como provados.


Erro de julgamento por errónea interpretação e aplicação do Direito.


B. Tribunal “a quo” fundou a sua convicção na apreciação crítica e livre de toda a prova produzida, designadamente da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, no teor dos documentos juntos aos autos.


C. Tribunal a quo não valorou a prova que foi produzida em julgamento, obedecendo a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, nem interpretou de maneira adequada os dados objetivos que foram recolhidos.


D. A apreciação crítica das provas, consiste na exposição do processo racional e lógico pelo qual o Tribunal considerou os factos provados ou não provados, com base na prova produzida, de modo a permitir compreender o motivo pelo qual o Tribunal julgou suficientes ou prevalecentes os meios de prova que suportam a decisão negativa ou positiva da matéria de facto em causa.


E. Dito de outra forma, esta apreciação crítica de provas, como refere o nº 4 do art.º 607º do CPC, deve permitir uma melhor compreensão dos motivos, pelos quais o Tribunal julgou suficientes ou insuficientes os meios de prova que suportam e fundamentam a sua decisão quanto à matéria de facto em causa, sem contudo se possa extrair daí, qualquer limitação do principio da livre apreciação da prova por parte do Tribunal, de modo a produzir-se a final no homem médio, a convicção de que se fez justiça.


F. Não será demais fazer lembrar que “…o exame crítico das provas deve ser aferido com critérios de razoabilidade que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.” (Ac. STJ de 11.10.2000).


G. No entender da recorrente, o Tribunal a quo, na apreciação que fez das provas, excedeu-se quanto ao respeito pelo princípio da livre apreciação das provas a que se encontra vinculado.


H. O Tribunal “a quo” em face da prova produzida, da prova documental junto aos autos do depoimento do legal representante da Ré e das testemunhas CC e DD não poderia considerar provados os factos nº(s) 5º (nos termos em que o fez), 16 (nos termos em que o fez), 19º ,20º e 21º dos factos provados, bem como não poderia considerar não provados os factos C), D) F) e G) dos factos não provados.


I. Facto provado 5º deverá ter a seguinte redação


Facto provado 5º-O remanescente do dinheiro ou seja a quantia de €11. 350,00 foi entregue em numerário por CC a DD, em 2 ou 3 vezes, que por sua vez em 2 ou 3 vezes entregou esse valor em numerário a BB e pagou despesas associadas à hipoteca.


J. Tendo BB declarado na escritura de Hipoteca Unilateral que “ se confessa devedora a CC da quantia de 16.250 euros que o mesmo lhe concedeu de empréstimo” deverá tal facto ser dado como provado.


K. Facto provado 16 deverá ter a seguinte redação.


Facto provado 16º- O remanescente do preço , ou seja a quantia de €20.456,62,destinou-se ao pagamento da hipoteca ao credor CC na quantia de €16.500,00 e ainda de honorários de custos com obtenção de documentos, despesas diversas e pagamento de dividas fiscais relativas ao imóvel no montante de €3.956,62.


L. O facto 19º dos factos provados deverá ser considerado como não provado porque tal facto não está sustentado em qualquer meio de prova nos autos, seja documental ou testemunhal, tendo o Tribunal A “quo” se excedido na livre apreciação da prova.


M. O facto 20º dos factos provados deverá ser considerado como não provado porque tal facto não está sustentado em qualquer prova nos autos, seja documental ou testemunhal.


N. O facto 21º dos factos provados deverá ser considerado como não provado , sendo o contrato de mutuo com hipoteca e o contrato de compra e venda e contrato de arrendamento com opção de compra negócios distintos e autónomos, porquanto foram celebrados com pessoas diversas.


O. O facto C) dos factos não provados, deverá ser considerado provado em face dos documentos junto aos autos( escritura de compra e venda a que se refere o facto provado 14, contrato de arrendamento a que se refere o facto provado 9º e contrato de opção de compra a que se refere o facto provado 10º e o documento que foi junto aos autos em 09/02/2024 no âmbito das declarações que a mesma prestou no processo de inquérito nº1556/19.0...).


P. O facto D) dos factos não provados, deverá ser considerado provado, pois o facto provado 24 é contraditório do facto não provado D.


Q. Os factos F) e G) dos factos não provados, devem serem considerados provados em face dos doc. nº 8, 9 e 10 juntos com a contestação e dos depoimentos prestados pelo legal representante da Ré e pelas testemunhas por CC e DD.


R. Em face do depoimento legal representante da Ré deverá ser considerado provado e aditado aos factos provados o seguinte facto:


“A Ré , mesmo após o termo do prazo dos 36 meses previsto no contrato de opção , deu a possibilidade aos herdeiros da Srª BB, e consequentemente à autora a recompra do imóvel pelos mesmo valor que tinha sido alienado, ou seja €25.200, não tendo os mesmo aceitado”


S. Em face do depoimento legal representante da Ré e facto provado 6 deverá ser considerado provado e aditado aos factos provados o seguinte facto:


“O negócio objecto dos presentes autos tratou-se de um investimento imobiliário no âmbito do objecto social da Ré, em que foi celebrado um contrato de compra e venda e um contrato de arrendamento por 3 anos com opção de compra pelo mesmo valor que foi vendido(€25.200,00) e cuja rentabilidade para Ré era o valor das rendas pagas”.


T. É entendimento da recorrente que a alteração e o aditamento dos factos dados como provados e não provados anteriormente mencionados são relevantes para a boa decisão da causa.


U. O contrato de compra e venda, de arrendamento com opção de compra objecto dos presentes autos não é um contrato de mútuo com garantia real, sendo esta prestada através de um negócio fiduciário” conforme considerou o Tribunal “ A Quo” existindo um manifesto erro de julgamento por errónea interpretação e aplicação do Direito.


V. A Ré recorrente, nunca e em momento algum , nem faz parte do seu objecto social (facto provado 6) celebrou contratos de empréstimo/mútuo com garantia real. O objecto social da Ré é e sempre foi compra, venda e arrendamento de bens imobiliário, a Ré já efectou diversos negócios nos mesmos termos do objecto dos presentes autos, sendo que em todos eles a rentabilidade do negócio são/foram as rendas recebidas.


X. Ao contrario do interpretado pelo Tribunal A “Quo” não foi mutuada qualquer quantia, designadamente o valor da opção de compra (€25.200,00), e as rendas que eram pagas por BB referente ao contrato de arrendamento com opção de compra não são juros e correspondente a 62,62% relativamente ao valor da opção de compra (€25.200,00) e não existe qualquer negócio usurário.


Z. A Autora na sua P.I. não alegou que o negócio efectuado (compra e venda, contrato de arrendamento com opção de compra) entre a Ré e BB era um negócio usurário, não alegou quaisquer factos suscetíveis de integrar o conceito de negócio usurário previsto no artº282 do C.Civil, não tendo peticionado a anulação do contrato de compra e venda do imóvel com fundamento em negócio usurário previsto no artº282º do C.Civil. A Autora no seu pedido, peticionou a anulação do contrato de compra e venda com fundamento em erro sobre o objecto do negócio (artº251 do C.civil) e artº253 e 254º do C.Civil.


AA. A anulabilidade do negócio usurário previsto no artº282º do C.Civil não é de conhecimento oficioso, precisa de ser invocada pela parte a que aproveita (artº287 nº1 do C.Civil).


AB. O Tribunal “A quo” ao declarar que o contrato de compra e venda do imóvel que foi celebrado consubstancia um contrato de mutuo com garantia real e que o mesmo é um negócio é usurário e como tal declarou a anulação do contrato de compra e venda, violou os artigos 5º nº1 e 615 nº1 alínea d) e e) do Código Civil.Violou o artº5 nº1 do Código Civil porque a Autora na sua P.I. não alegou qualquer facto suscetível integrar o conceito de negócio usurário previsto no artº282 do C.Civil e o artº615 nº1 alínea d) e e) porque: “conheceu de questões que não podia tomar conhecimento”(a anulabilidade por usura não é de conhecimento oficioso); “ condenou a Ré em objecto diverso do pedido”


AC. Pelo que nos termos do artº 5º nº1 e artº615 nº1 alienas d) e e) do Código do Processo Civil Sentença ora em recurso é Nula. Nulidade da Sentença que se invoca para todos os efeitos legais.


Mas se for outro o entendimento


AD. O negócio objecto dos presentes autos é igual a muitos outros efectuados pela Ré e em nenhum deles os Tribunais que sindicaram tais negócios consideraram os mesmos usurários. No processo nº8064/19.7 T8SNT.L1 do Tribunal da Relação de Lisboa, em que a ora Ré então autor/recorrido, por acórdão datado de 14/09/2023 e relativamente à anulação por usura refere o seguinte:


“Para que haja negócio usurário, no amplo sentido que a lei deu a esta categoria, exige-se, como requisito de anulabilidade, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência psíquica de alguém. A anulabilidade não resulta , portanto apenas dum daqueles estados. É necessário que haja consciência (conhecimento) de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem”


“No acórdão do STJ de 30/06/2021, processo nº456/15.7T8ESP.P1.S1, disponível em WWW.dgsi.pt, que versa sobre uma situação semelhante à dos presentes autos, em que foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, figurando a A como promitente vendedora e aR com promitente compradora, bem com o um contrato de arrendamento…….. os concretos termos do negócio excluíam a sua configuração como negócio usurário….


“Em termos em tudo semelhantes acórdão do STJ de 9 de Julho de 2020, processo nº1128/17.3.T8PVZ.P.I..S1……… “No caso que nos ocupa, a Ré não logrou demonstrar a alegada situação de desespero, de fragilidade psicológica em que se entrava no momento em que outorgou o contrato de compra e venda, o contrato de arrendamento e o denominado contrato de opção de compra, nem o aproveitamento pela A desse estado. Pese embora a substancia diferença entre o preço de mercado do imóvel (€154.000,00) e o valor pelo qual foi vendido pela Ré à A (€50.000,00) releva sobremaneira a relação entre este e o valor pelo qual a Ré podia exercer o direito de compra do mesmo (€50.000,00), no prazo de seis meses. Sendo este valor igual, nenhum desequilíbrio se descortina , pois a Ré podia ter adquirido o imóvel pelo mesmo valor. Muito diferente seria se o valor previsto para a opção de compra pela Ré fosse próximo do valor de mercado, a implicar um desequilíbrio nas prestações contratuais. Não é o caso. “


AE. Não estão preenchidos os requisitos de negócio usurário previsto no artº282 º do C.Civil, não podendo tal negócio ser anulado com fundamento em negócio usurário. Devendo ser declarado que o negócio objecto dos presentes autos não é negócio usurário previsto no artº282º do C.Civil, com todas as consequências legais.


AF. Não estando provados os pressupostos do negócio usurário o prazo de caducidade direito anulação do contrato de compra e venda invocado pela Ré em sede de contestação não começou a correr apenas a partir de .../.../2021 data em que faleceu BB , mas sim a partir de 07/07/2018 data outorga do contrato de compra e venda junto aos autos e do qual se pede a anulabilidade , pelo que deverá ser considerada precedente a exceção de caducidade do direito de anulação invocada pela Ré e ser a RÉ/Recorrente absolvida do pedido de anulação do contrato de compra e venda formulado pela Autora.


AG. A Ré pagou a totalidade do valor constante na escritura de compra e venda, no entanto sendo entendimento que apenas ficou provado o pagamento pela Ré da quantia de €4.743,38 relativamente ao valor declarado na escritura , então deverá a Ré nesse caso ser condenada a pagar a Autora a quantia de €20.456,62 correspondente ao pedido subsidiário correspondente ao preço em falta, formulado pela A em sede de P.I., não podendo o contrato ser anulado por eventual falta de pagamento de parte do preço.


Mas se for outro o entendimento e a ser mantido a anulação do contrato de compra e venda


AH. A Ré recorrente para além da quantia de €4.743,38 que pagou a BB quando da celebração do contrato de compra e venda pagou ainda a quantia de €16.500,00 referente à hipoteca que incidia sobre o imóvel valor este que foi entregue ao credor hipotecário CC, bem como a quantia de €3.956,62 referente a honorários e custos com obtenção de documentos, despesas diversas e pagamento de dividas fiscais relativas ao imóvel. Pelo que, a ser mantido a anulação do contrato de compra e venda terá que ser restituído à Ré tudo o que foi prestado(artº289 nº1 do C.Civil).Não podendo por isso ser restituído á Ré apenas a quantia de €4.743,38 conforme consta no dispositivo da sentença ora em recurso.


AI. Devendo por isso, em caso de ser mantido a anulação do contrato de compra e venda ser a Autora na qualidade de representante da Herança Aberta por óbito de BB, ser condenada a restituir à Ré a quantia de €25.200,00, valor este que foi prestado pela Ré relativamente ao contrato de compra e venda objecto dos autos.


AJ. Pelo que deverá a sentença ora em recurso ser revogada e substituída por outra em que se considere o alegado/peticionado nos itens X, AC, AE, AF , AG, AI das presentes conclusões de recurso, com as demais consequências legais.


7. Na resposta ao recurso, a Recorrida defendeu a confirmação da sentença recorrida.


II- FUNDAMENTAÇÃO


A- Objeto do Recurso


Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:


1.ª Questão: Nulidade da sentença


2.ª Questão: Impugnação da decisão de facto


3.ª Questão: do mérito da sentença quanto à qualificação jurídica dos negócios em causa nos autos


4.ª Questão: caducidade do direito de ação (dependente do que for decidido na 3.ª questão)


B- De Facto


A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:


Factos Provados


1. A empresa MesmoValor, S.A. tem como objeto social a: “Consultoria para os negócios e a gestão. Negócios financeiros, excluindo apenas o exercício de atividades exclusivas das instituições e crédito, sociedades financeiras ou seguradoras. Administração de bens imóveis, avaliação e compra de bens móveis, designadamente viaturas, barcos, obras de arte, mobílias ou móveis soltos, joias, metais preciosos e heranças jacentas ou similares. Consultoria informática, software e instalações. Compra e venda e arrendamento de quaisquer imóveis, aquisição para revenda dos imóveis, incluindo promoção e mediação imobiliária e arrendamento de imóveis”.


2. Em 2018, BB não tinha liquidez e precisava de um empréstimo, tendo DD que prestava serviços para a empresa MesmoValor, S.A. sugerido a realização do negócio mencionado no ponto 3.. [instrução da causa]


3. Em 21/02/2018, BB celebrou uma escritura de “Hipoteca Unilateral” no Cartório sito na Estrada 2, em Local 3, através do qual declarou que: [artigo 6.º da PI]


a) é dona e legítima possuidora do prédio urbano de habitação situado no lugar de Lugar 1, freguesia de Local 2, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número 4023 da freguesia de Local 2;


b) que por esta escritura se confessa devedora a CC da quantia de 16250 euros, que o mesmo lhe concedeu de empréstimo sem juros, excluindo os que forem devidos em caso de mora; que se obriga a restituir o referido montante até ao dia trinta e um de agosto de dois mil e vinte e três nos seguintes termos: em sessenta e cinco prestações mensais iguais e sucessivas no valor de duzentos e cinquenta euros cada uma, com início em doze de abril de dois mil e dezoito, vencendo-se as seguintes prestações no dia doze de cada um dos meses seguintes; as prestações acima mencionadas serão por si pagas para o IBAN ... ou para outra que lhe for indicada pelo mutuante;


c) mais declarou que para garantia das responsabilidades por si assumidas nos termos deste contrato, constituiu hipoteca voluntária sobre o prédio acima descrito, a favor de CC.


4. Em 21/02/2018, CC transferiu para a conta bancária de BB, no Novo Banco, S.A. o valor de € 4900,00 (quatro mil e novecentos euros). [artigo 8.º da PI]


5. O remanescente do dinheiro, ou seja, a quantia de € 11 350,00 foi entregue por CC a DD. [instrução da causa]


6. A ré tem como objeto social a Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, compra, venda e arrendamento de bens imobiliários, atividades de mediação, angariação e avaliação imobiliária, administração de imóveis por conta de outrem; administração de condomínios, Promoção imobiliária (desenvolvimento de projetos de edifícios), construção de edifícios (residenciais e não residenciais), atividades especializadas de construção, demolição e preparação dos locais de construção, perfurações e sondagens, instalação elétrica, de canalizações, climatização e outras instalações, em construções, estucagem, montagem de trabalhos de carpintaria e de caixilharia, revestimento de pavimentos e de paredes, trabalhos de pintura e colocação de vidros, outras atividades de acabamento em edifícios, atividades de colocação de coberturas, Aluguer de equipamento de construção e de demolição, com operador. Formação e consultoria nas atividades realizadas. [artigo 27.º da Contestação]


7. Foi proposto à autora pela empresa de consultoria MesmoValor, S.A. na pessoa de DD, o negócio de compra e venda da sua habitação com celebração de contrato de arrendamento e opção de compra [artigo 29.º da Contestação]


8. A empresa MesmoValor,S.A. apresentou a documentação relativa ao imóvel descrito no ponto 3., alínea a) a vários investidores/ parceiros, tendo a ré aceitado realizar este negócio. [instrução da causa]


9. Em 05/04/2018, BB (segunda outorgante) outorgou com a ré (primeira outorgante) um ‘contrato de arrendamento para habitação com prazo certo’ nos seguintes termos: [artigo 10.º da PI]


a) Cláusula Primeira: Pelo presente contrato a primeira outorgante dá de arrendamento à segunda outorgante e esta toma-lhe de arrendamento o prédio urbano, destinado a habitação, situado em Lugar 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 4023 da freguesia de Local 2, inscrito na matriz sob o artigo n.º 1353 da ....


b) Cláusula Segunda: 1. O arrendamento é celebrado por prazo certo e terá a duração de três anos com início em 01 de maio de 2018 e termo em 30 de abril de 2021. 2. A senhoria desde já expressa a sua oposição à renovação automática do contrato, considerando-se desta forma efetuada a competente comunicação, ao que a arrendatária dá desde já a sua anuência, prescindindo da forma legalmente prescrita para o efeito. 3. A arrendatária pode, com prévio consentimento escrito da senhoria, proporcionar a terceiro o gozo, total ou parcial, do locado, por qualquer forma de cessão, gratuita ou onerosa, incluindo por subarrendamento, no todo ou em parte. (…)


c) Cláusula quarta: 1. O valor da renda mensal será de € 315,00: a) nos primeiros vinte e quatro meses de vigência do contrato o valor da renda será de € 250,00; a partir do 25.º mês a renda será de € 315,00. (…)


10. Em 05/04/2018, BB (segunda outorgante - arrendatária) outorgou com a ré (primeira outorgante - senhoria) um ‘contrato de opção de compra’ nos seguintes termos: [artigo 12.º da PI]


a) Cláusula Primeira (Objeto): prédio urbano, destinado a habitação, situado em Lugar 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 4023 da freguesia de Local 2, inscrito na matriz sob o artigo n.º 1353 da ....


b) Cláusula Segunda (Opção de compra): a senhoria confere à arrendatária o direito de adquirir o prédio urbano supra indicado, nos seguintes termos e condições: a) a opção de compra poderá ser exercida pela arrendatária, a todo o tempo de vigência do presente contrato de arrendamento mediante o envio, por correio registado com aviso de receção, à senhoria de uma comunicação de aceitação; b) A proposta considerar-se-á aceite no momento da receção, pela senhoria, da referida comunicação de aceitação. c) Cessa o direito de opção de compra por parte da arrendatária, nos seguintes casos: (i) se a arrendatária incumprir a obrigação de pagamento das rendas nos termos da legislação em vigor; (ii) se a arrendatária não comparecer no dia, hora e local para outorga do contrato definitivo; (iii) se a arrendatária não proceder ao pagamento integral do preço e de quaisquer quantias devidas por virtude deste contrato, na data de outorga do contrato definitivo. d) o valor de alienação do prédio, para efeitos do exercício do direito de opção de compra, é de 25.200,00€ (Vinte e cinco mil e duzentos euros) tendo em consideração o valor patrimonial dos imóveis ao tempo da assinatura desta opção de compra; e) No caso de alteração do valor patrimonial dos imoveis, acrescerá ao valor desta opção de compra o diferencial entre o IMT e IMI pagos e o que se vier a liquidar. 1) A escritura de compra e venda terá lugar em data, hora e local a indicar pela Senhoria a Arrendatária, por escrito, providenciando aquele pela respetiva marcação, a qual deverá ocorrer impreterivelmente nos 60 (sessenta) dias seguintes à receção da comunicação prevista na al, a) da presente cláusula. g) A Arrendatária entregará à Senhoria toda a documentação que da sua parte seja necessária à outorga da referida escritura, com a antecedência, mínima de 15 dias sobre a data da realização da mesma. h) O pagamento das rendas não constitui prestação de sinal e/ou principio de pagamento do valor estipulado na al. d) da presente cláusula. i) O preço será integralmente pago na data da outorga do documento de transmissão da propriedade, mediante cheque visado ou bancário. J) São por conta da Arrendatária, todas as despesas e encargos com a formalização da escritura de aquisição pelo exercício deste direito relativo aos prédios objeto do presente contrato, nomeadamente, registos provisórios ou definitivos, Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas, Imposto de Selo, despesas emolumentares de Cartório, Conservatória do Registo Predial ou de Documento Particular Autenticado, e toda a documentação necessária à formalização da mesma, que seja da sua responsabilidade.


11. Em 10/04/2018, já se encontrava efetuado o registo provisório de aquisição do imóvel mencionado no ponto 12. por parte da ré. [artigo 40.º da Contestação]


12. A empresa MesmoValor, S.A. ficou responsável para obtenção da licença de utilização, pagamento das dívidas fiscais, certificado energético e demais documentos necessários à realização da escritura pública de compra e venda. [artigo 35.º da Contestação]


13. Em 18/05/2018, a Câmara de Cidade 1 procedeu à emissão da licença de utilização. [artigo 38.º da Contestação]


14. Em 07/06/2018, foi celebrada no Cartório Notarial sito na Rua 3, perante a notária EE, uma escritura de compra e venda entre BB [representada no ato por FF] e a ré [representada pelo seu único gerente, FF], através da qual: [artigo 3.º da PI]


a) a primeira declarou vender à segunda, pelo preço de vinte e cinco mil e duzentos euros, o prédio urbano situado em Lugar 1, freguesia da União das Freguesias de Local 2, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial, Comercial e Automóveis de Cidade 1 sob o número 4023, com registo de aquisição a favor de GG, casado com HH sob o regime da comunhão geral, ambos já falecidos.


b) mais declarou a primeira que adquiriu este imóvel por sucessão de seus pais (HH e GG), de quem é única herdeira.


c) declarou ainda que sobre este prédio incide registada uma hipoteca a favor de CC, cujo cancelamento se encontra assegurado.


d) o segundo outorgante declarou que aceita esta venda nos termos exarados e que o bem imóvel ora adquirido se destina a revenda;


e) o segundo outorgante declarou ainda que o preço estipulado, que a sua representada já recebeu, foi pago pela seguinte forma:


i. por transferência bancária da conta número ... da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, CRL do montante de quatro mil, setecentos e quarenta e três euros e trinta e oito cêntimos para a conta número ..., do Novo Banco, S.A., no dia cinco de abril de dois mil e dezoito;


ii. através do cheque número ... sacado sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, CRL, do montante remanescente, hoje.


15. Em 05/04/2018, a ré procedeu ao pagamento da quantia de € 4 743,38 (quatro mil, setecentos e quarenta e três euro e trinta e oito cêntimos), conforme declarado na Escritura Pública mencionada no ponto 14., alínea e), ii).


16. O remanescente do preço, ou seja, a quantia de € 20 456,62, não foi pago a BB. [5.º e 16.º da PI]


17. BB tinha o quarto ano de escolaridade. [artigo 5.º do requerimento de 15/11/2022]


18. BB tinha conhecimento da venda do imóvel mencionado no ponto 14., bem como dos contratos de arrendamento e opção de compra indicados nos pontos 9. e 10. [artigo 4.º da Contestação]


19. Quando celebrou os negócios mencionados nos pontos 9., 10. e 14. e no decorrer da relação contratual, BB não conseguiu compreender a extensão e alcance dos documentos jurídicos. [artigo 25.º da PI]


20. A ré tirou proveito da situação de vulnerabilidade de BB e da necessidade que a mesma tinha de financiamento e liquidez. [artigo 27.º da PI e instrução da causa]


21. BB procedeu à celebração dos contratos indicados nos pontos 9., 10. e 14. no decorrer e por consequência do empréstimo contraído inicialmente com CC. [artigo 30.º da PI e instrução da causa]


22. Em 2018, o imóvel mencionado no ponto 13. foi avaliado em € 70 000,00 pela empresa MesmoValor,S.A.. [instrução da causa].


23. A ré sabia que o valor de aquisição do imóvel era inferior ao seu real valor de mercado. [artigo 33.º da PI]


24. BB procedeu ao pagamento das rendas mensais mencionadas no ponto 9. entre maio de 2018 e janeiro de 2019. [artigos 4.º e 11.º da Contestação]


25. Após esse período, BB não conseguiu suportar o pagamento das rendas mensais tal como estipulado e previsto no ponto 9.. [instrução da causa]


26. CC é investidor imobiliário, conheceu FF quando este trabalhava para o Banco BNP, tendo este último sido sócio de uma empresa a seu pedido. [artigo 24.º da PI e instrução da causa]


27. BB faleceu em .../.../2021. [artigo 2.º da PI]


28. A autora é filha de BB e foi nomeada cabeça-de-casal da sua herança. [artigo 1.º da PI]


29. Por decisão proferida em 02/09/2022, foi determinado o arresto do prédio descrito no ponto 14..


30. Em 28/10/2022, a autora propôs a presente ação.


Factos Não Provados


A) Há vários anos que BB tomava as decisões de vida com o apoio dos filhos e de duas vizinhas. [artigo 24.º da PI]


B) BB sempre foi acompanhada para a prática dos mais pequenos atos de gestão da vida quotidiana, como idas ao Banco, Finanças e contratação de serviços de telecomunicações. [artigo 5.º do requerimento de 15/11/2022]


C) Ao celebrar os negócios elencados nos pontos 9., 10. e 14. e até ao seu falecimento, a autora tinha pleno conhecimento e consciência de todas as suas cláusulas, das sua implicações jurídicas, dos pagamentos que foram efetuados e do que declarou ter recebido e de que teria de sair do imóvel caso não procedesse ao pagamento das rendas ou não exercesse a opção de compra no termo do contrato descrito no ponto 9..[artigos 4.º e 5.º da Contestação]


D) BB nunca se opôs à emissão dos recibos de renda nem colocou em causa a celebração do contrato de arrendamento. [artigos 4.º e 11.º da Contestação]


E) Era intenção de BB e da ré a celebração da escritura de compra e venda do imóvel no mesmo dia da celebração do contrato de arrendamento e opção de compra. [artigo 32.º da Contestação]


F) Antes da realização da escritura pública, a ré também procedeu ao pagamento da quantia de € 16 500,00 a CC, de forma a assegurar o cumprimento integral por parte de BB do contrato de mútuo mencionado no ponto 3. e o cancelamento da hipoteca mencionada no ponto 3.. [artigos 36.º e 38.º da Contestação]


G) A hipoteca mencionada no ponto 2. veio a ser cancelada mediante o pagamento da quantia de € 16 500,00 por parte da ré. [artigo 38.º da Contestação]


C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso


1.ª Questão: Nulidade da sentença


1. Alega a Apelante que a sentença é nula, nos termos dos artigo 5.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alíneas d) e e) do CPC, por ter declarado que o contrato de compra e venda do imóvel consubstancia um contrato de mútuo com garantia real constituindo um negócio usurário, sem que a Autora tenha alegado factos suscetíveis de integrar o conceito de negócio usuário previsto do artigo 282.º do Código Civil (CC).


Desse modo, a sentença conheceu de questões que não podia conhecer e condenou em objeto diverso do pedido, porquanto a anulabilidade por usura não é de conhecimento oficioso.


2. Vejamos, então, se ocorreu a arguida nulidade.


Em primeiro lugar, importa referir que no despacho de admissão do recurso não houve pronúncia, como se impunha em face do disposto nos artigos 641.º, n.º 1, e 617.º, n.º 1, do CPC, sobre a arguição de nulidade da sentença.


Porém, tal omissão irreleva para o caso, porquanto o n.º 5 do artigo 617.º do CPC, faculta ao relator um juízo de oportunidade sobre a baixa do processo relacionado com a (in)dispensabilidade da pronúncia do tribunal recorrido.


No caso, atenta a extensa e profunda fundamentação da sentença sobre a qualificação jurídica dos contratos em causa nos autos e a razão pela qual o tribunal procedeu a uma qualificação dos factos apurados diferente daquela que a Autora alegou na p.i., não se torna indispensável a baixa dos autos.


Efetivamente, lê-se na sentença:


«Não obstante não se entender que o negócio seja anulável com fundamento nos artigos 253.º e 254.º do Código Civil, sempre se diga que, nos termos do artigo 5.º, n.º 3 do Código do Processo Civil, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”. Deverá assim ser apreciado se o negócio em apreço poderá ser anulado com fundamento em outra norma jurídica.»


Resulta, pois, claro que a justificação dada pelo tribunal a quo para proceder a uma diferente qualificação jurídica dos factos determinaria, com toda a certeza, pronúncia no sentido da não verificação da arguida nulidade.


Desse modo, dispensa-se a remessa dos autos à primeira instância para cumprimento das normas suprarreferidas.


3. Passemos, então, à sua apreciação.


O artigo 5.º, n.º 1, do CPC, abriga o princípio essencial do processo civil – princípio do dispositivo -, por via do qual «Às parte cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas», embora seja logo mitigado pelos disposto no n.º 2 do mesmo preceito, situações que, para o caso em apreço, não são relevantes.


Todavia, releva para a apreciação em curso o disposto no mesmo artigo 5.º, no seu n.º 3, ao estipular que «O juiz não está sujeito á alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.»


Por sua vez, o artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, prescrevem do seguinte modo:


«1. É nula a sentença quando:


(…)


d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;


e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»


As nulidades da sentença, taxativamente elencadas no preceito em análise, correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.


As alíneas invocadas pela Apelante reportam-se aos limites da sentença, proibindo a omissão ou o excesso de pronúncia e a chamada condenação ultra petitum.


A omissão e o excesso de pronúncia estão relacionadas com o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, ou seja, o juiz não pode conhecer de questões (o que difere de meros argumentos ou razões ), salvo as de conhecimento oficioso, que não se reportem à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa .


A condenação ultra petitum, por sua vez, verifica-se quando o tribunal viola o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância (artigos 5.º e 552.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC) e condena em quantidade superior ou objeto diverso do pedido, ou seja, violando os limites da condenação a que se reporta o artigo 609.º do CPC.


No caso dos autos, o pedido formulado consiste, num pedido principal, de anulação do contrato de compra e venda e, num pedido subsidiário, de condenação do remanescente do preço da venda em falta da venda a que a herança se julga com direito.


A sentença julgou procedente o pedido de anulação da compra e venda pelo que conheceu do pedido principal formulado, daí retirando as respetivas consequências jurídicas, pelo que não existe excesso de pronúncia.


Quanto à causa de pedir e, como é sabido, no nosso processo civil vigora o princípio da consubstanciação, ou seja, e como refere Antunes Varela, entende-se como causa de pedir «o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido».


Dito de outro modo por Anselmo de Castro, a «causa de pedir é o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer “fattispecie” jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponde».


Em termos mais simples, o que releva na aferição da causa de pedir é o conjunto de facto constitutivos do direito alegado pelo autor, tendentes a evidenciar, quando provados, o direito de que se arroga titular, não podendo ater-se apenas à invocação de uma relação jurídica abstrata, sendo que a qualificação jurídica que faça dos factos alegados é irrelevante quanto à resolução do litígio, porquanto o juiz rege-se pelo critério plasmado no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, já acima referido.


Ora, no caso, a Autora subsumiu a sua alegação factual à anulabilidade da compra e venda por da mesma emergir, no seu entender, um erro sobre o objeto do negócio causado pela atuação dolosa da Ré, enquadrável nos artigos 251.º, 253.º e 254.º do CC. Preceitos que se enquadram na falta e vícios da formação da declaração negocial.


A alegação da Autora, mormente, nos artigos 22.º a 26.º, 30.º a 32.º, 36.º a 39.º da p.i. situam-se na vertente da atuação dolosa da Ré e, nessa medida, suscetíveis de serem reconduzidos juridicamente à opção da p.i. pela invocação da anulabilidade da declaração negocial por a vontade da vendedora se ter formado com base em erro sobre o objeto do negócio (erro-motivo ou erro-vício) provocado pela atuação dolosa da Ré.


Todavia, também alegou, nomeadamente, nos artigos 7.º, 9.º, 18.º, 19.º, 27.º e 40.º da p.i. de molde a poder subsumir-se a atuação da Ré como correspondendo à exploração da situação de necessidade, dependência e inexperiência negocial da vendedora, daí tirando a Ré um benefício excessivo, pois adquiriu um imóvel por um valor muitíssimo abaixo do seu valor real, ou seja, do valor de mercado. O que poderá ser enquadrado na previsão normativa do artigo 282.º do CC (negócio usurário).


Deste modo, a causa de pedir desta ação é abrangente no sentido dos concretos factos alegados tanto poderem serem subsumíveis a uma situação de erro-vício ou erro-motivo causado por atuação dolosa da compradora como a uma situação de negócio usurário.


A qualificação jurídica dependeria da concreta factualidade apurada, cabendo ao tribunal fazer essa qualificação nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.


Foi o que ocorreu, pelo que não se verifica a arguida nulidade da sentença.


2.ª Questão: Impugnação da decisão de facto


1. Alega a Apelante que o tribunal recorrido errou na apreciação das provas - documental, depoimento do legal representante da Ré, FF, e das testemunhas CC e DD – em relação aos factos provados 5, 16, 19, 20 e 21, bem como em relação aos factos não provados das alíneas C), D) F) e G).


Também pretende que seja aditada nova matéria aos factos provados e que corresponde ao que alega nas Conclusões R e S.


2. Vejamos, então, se ocorreu o alegado erro de julgamento ao nível da decisão de facto.


Os requisitos da impugnação da decisão de facto correspondem a ónus a cargo do recorrente impugnante, determinando a falta de acatamento dos mesmos a rejeição da impugnação na parte afetada, sendo que a jurisprudência tem vindo a proclamar em diversos arestos que não é admissível o convite ao aperfeiçoamento quanto ao cumprimento destes ónus.


Assim, decorre deste normativo que o ónus de impugnação da matéria de facto julgada exige que, cumulativamente, o recorrente indique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que constem dos autos ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que, o seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões impugnadas, e, finalmente, a indicação das exatas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira (artigo 640.º, n.º 1, alíneas a, b), e c) , e n.º 2, do CPC).


Consequentemente, desde que preenchidos os requisitos do artigo 640.º do CPC, compete à Relação no âmbitos dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do CPC, reapreciar a decisão de facto, em ordem a formar uma convicção própria com base na análise global e crítica da prova carreada para os autos, aferindo da correta valoração dos meios de prova produzidos e dos respetivos ónus de prova, tendo em conta a fundamentação da decisão de facto, bem como as razões da discordância invocadas pelas impugnantes.


3. É com base nestes pressupostos que passamos a analisar e decidir a impugnação da decisão de facto.


Facto provado 5:


«O remanescente do dinheiro, ou seja, a quantia de €11. 350,00 foi entregue por CC a DD.»


Defende a Apelante que o ponto 5 deveria ter a seguinte redação:


«O remanescente do dinheiro, ou seja, a quantia de €11.350,00 foi entregue por CC a DD, em 2 ou 3 vezes, que por sua vez em 2 ou 3 vezes entregou esse valor em numerário a BB e pagou despesas associadas à hipoteca.»


Invoca a recorrente para o efeito, a prova documental (escritura de hipoteca unilateral) e os depoimentos prestados por CC e DD.


A fundamentação da decisão de facto quanto a este ponto, em conjunto com os pontos de facto provados e não provados, faz uma apreciação crítica da prova documental junta aos autos, das declarações de parte do legal representante da Ré, FF, e dos testemunhos de DD e de CC, que revelam como o juiz a quo formou a sua convicção no sentido de apenas ter sido entregue à falecida BB o valor de €4.900,00 e não a totalidade do valor do empréstimo, tendo o remanescente sido entregue a DD.


Analisada toda a prova produzida, adiantamos, desde já, que não se descortina o alegado erro de julgamento.


Em primeiro lugar, consta da escritura pública de «HIPOECA UNILATERAL» junta aos autos com a p.i. que BB (que passaremos a identificar apenas como BB) confessa ser devedora de CC da quantia de €16.250,00 por via de um empréstimo que aquele lhe concedeu, obrigando-se a restituir aquele valor nos termos que constam do referido documento.


Tratando-se de um documento autêntico, a sua força probatória plena apenas se reporta às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (artigos 363.º, n.º 1 e 2, e 376.º do CC).


Não está, pois, em causa, a força probatória plena daquilo que foi declarado perante notário já que não foi arguida a falsidade do documento.


Contudo, a veracidade do teor da declaração não fica abrangido pela força probatória plena do referido documento. Ou seja, e como se refere no Ac. do STJ, de 03-04-2025 , a «prova plena do documento autêntico reporta ao que foi declarado no documento em causa, ou seja, apenas abrange a prova de que as partes fizeram aquelas declarações, mas não se estende à coincidência dessas declarações com a realidade, podendo fazer prova quanto à coincidência da referida declaração com a realidade.»


Como também menciona o referido aresto do STJ, a confidente (no caso seria a falecida, e agora os herdeiros da sua herança indivisa, i.e., a Autora) poderá fazer prova da falta de veracidade do facto e ilidir a referida força probatória legal, tendo apenas como limitação o uso de prova testemunhal e presunções judiciais, nos termos do s artigos 347.º, 393.º, n.º 2, e 351.º do CC.


Ora, no caso, o mutuário CC confessou que apenas entregou à mutuária a quantia de €4.900,00 (o que se encontra corroborado por prova documental - extrato bancário da conta titulada pela mutuária, junto com a p.i.), e a parte restante a DD, o que significa que se encontra ilidida a força probatória plena do documento autêntico quanto ao recebimento da totalidade do valor emprestado pela falecida mutuária (artigos 352.º, 355.º, n.ºs 1 e 2, e 358.º e 360.º do CC).


Em relação à entrega do valor remanescente por parte de DD à falecida mutuária, a prova não revela consistência suficiente que permita o aditamento requerido.


Veja-se que CC declarou que quem lhe devolveu os €16.250,00 foi DD e não a mutuária e que o remanescente era para pagar dívidas fiscais e legalizar a casa.


Por outro lado, do depoimento do legal representante da Ré (FF) resulta que o remanescente teria sido entregue a DD e que este teria usado esse valor para pagar as despesas com a hipoteca e demais despesas apuradas pela MesmoValor, S.A. (sem concretizar valores) tendo dito que paguei ao Sr. II. Ou seja, deste depoimento não resulta que o remanescente tenha sido entregue à mutuária por DD, bem pelo contrário.


Apenas DD depôs no sentido de ter entregue o remanescente à falecida, em várias tranches (não soube precisar quantas), em numerário (ou seja, sem qualquer documento de suporte) para que a senhora pudesse fazer obras (das quais nenhuma prova foi feita).


A prova é, pois, manifestamente insuficiente para dar como provado que o remanescente do valor do empréstimo foi também entregue à mutuária ou que, de algum modo, tenha sido usado, ainda que por terceiro, em seu benefício.


Improcede, pois, este segmento da impugnação da decisão de facto.


Facto provado 16:


«O remanescente do preço, ou seja, a quantia de €20.456,62, não foi pago a BB.»


Defende a Apelante que o ponto 16 deveria ter a seguinte redação:


«O remanescente do preço , ou seja a quantia de €20.456,62,destinou-se ao pagamento da hipoteca ao credor CC na quantia de €16.500,00 e ainda de honorários de custos com obtenção de documentos, despesas diversas e pagamento de dividas fiscais relativas ao imóvel no montante de €3.956,62.»


Em contraponto, pretende que as alíneas F) e G) dos factos não provados sejam dadas como provadas.


Estas alíneas têm a seguinte redação:


«F) Antes da realização da escritura pública, a ré também procedeu ao pagamento da quantia de € 16 500,00 a CC, de forma a assegurar o cumprimento integral por parte de BB do contrato de mútuo mencionado no ponto 3. e o cancelamento da hipoteca mencionada no ponto 3.»


«G) A hipoteca mencionada no ponto 2. veio a ser cancelada mediante o pagamento da quantia de €16. 500,00 por parte da ré.»


A Apelante invoca os documentos 8, 9 e 10 juntos com a contestação, declarações de parte do legal representante da Ré e os testemunhos de CC e DD nos termos já acima mencionados aquando da impugnação do facto provado 5.


Em relação à fundamentação da decisão de facto quanto ao ponto 16 dos factos provados (analisado juntamente com outros) remete-se para o acima referido em relação ao ponto 5 dos factos provados.


Quanto às alíneas F) e G) dos factos não provados consta da fundamentação da decisão de facto:


«(…) nenhuma prova foi obtida destes pagamentos, sendo certo que tendo sido demonstrado, até pelas declarações de parte do legal representante da ré, que o dinheiro não foi entregue a BB, sempre lhe caberia o ónus de provar o acordo entre si e a senhora para aplicação desse montante quer do cancelamento da hipoteca, quer de todos os outros encargos relacionados com a habitação (acordo esse que não foi demonstrado por qualquer dos documentos escritos celebrados entre as partes) - factos elencados nas alíneas F) e G).


E nem se diga que neste caso existe uma confissão extrajudicial constante da Escritura Pública uma vez que existiam nos autos vários princípios de prova escrita suficientemente verosímeis que abriam a possibilidade de complementar com outros meios de prova, designadamente a informação da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo Terras do Arade junta com a petição inicial (email – documento 9) a atestar que o cheque (mencionado na escritura pública) não foi emitido à ordem de BB, bem como o comprovativo junto com a contestação – documento 4 – a comprovar apenas a transferência do montante de €4. 743,38. E se tal não bastasse, sempre ficámos completamente esclarecidos quando o próprio legal representante da ré confirmou que o cheque não foi emitido em nome da vendedora, nem chegou a ser usado uma vez que depois optou por fazer os alegados pagamentos em dinheiro.


É certo que a hipoteca registada em nome de CC foi cancelada – mas também não se sabe quem procedeu ao pagamento da quantia e que dinheiro foi utilizado para o efeito [e se efetivamente o negócio de compra e venda contemplava que parte do preço serviria para o cancelamento, uma vez que nada foi alegado na escritura pública a respeito]. E, como se viu, se num primeiro momento DD e FF alegam que cumpriram escrupulosamente os termos do contrato, posteriormente se constata que os alegados financiamentos de € 16 500,00 e € 22 500,00, num total de € 39 000,00 apenas se traduziram num pagamento de € 9 643,38 a BB. O remanescente foi, alegadamente, para questões de legalização da habitação, para permitir a celebração da escritura de compra e venda e uma futura revenda por um preço mais vantajoso.


E ainda que FF refira que a casa tinha na altura um valor de mercado de apenas € 26 000,00, verifica-se, através do documento que a própria ré juntou na sua contestação, que o imóvel foi avaliado pela empresa MesmoValor, S.A. em € 70 000,00 – documento esse que a ré consultou e que possivelmente a convenceu a celebrar este negócio [factos elencados nos pontos 22. e 23.].»


Analisando a impugnação, adianta-se, desde já, que a mesma não procede.


Senão vejamos.


O que está em causa no ponto 16 dos factos provados é se BB recebeu o valor de €20.456,62.


Nas alíneas F) e G), por sua vez, está em causa saber se a Ré procedeu ao pagamento do remanescente do valor do empréstimo (€16.500,00) ao mutuário CC de forma a assegurar o cumprimento do contrato de mútuo pela mutuária, destinando-se esse valor ao pagamento das despesas do cancelamento da hipoteca, que veio a ser cancelada.


Ora, em relação ao valor do remanescente do valor do empréstimo já decorre do ponto 5 dos factos provados, cuja redação foi inalterada nesta sede, que o valor do remanescente do mútuo não foi entregue a BB, nem foi utilizado em seu proveito.


Donde não se poderia dar como provado, sob pena de contradição, que esse valor foi usado e teve o destino referido nas alíneas F) e G) dos factos não provados.


Em relação ao recebimento do remanescente do preço da venda (€20.456,62) ter sido, ou não, entregue a BB para os fins que a Apelante pretende ver aditados, a prova revela que a referida vendedora nunca chegou a receber esse valor. Apenas recebeu pela venda do imóvel a quantia de €4.743,38 (ponto 15 dos factos provados, não impugnado) por a Ré não ter feito prova, como lhe competia do pagamento do valor remanescente da venda, os referidos €20.456.62 (artigo 342.º, n.º 2, do CC).


Efetivamente, a prova invocada pela Apelante, não faz prova da realidade que invoca.


Os documentos 8, 9 e 10 correspondem, respetivamente, a uma Declaração emitida pela testemunha DD a declarar que recebeu os valores que menciona e que pretende aditar, e a documentação referente ao registo predial do imóvel e hipoteca voluntária a favor do mutuante CC, aquisição do imóvel a favor da Ré e registo de uma outra hipoteca voluntária a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de São Bartolomeu de Messines e São Marcos da Serra, CRL.


Nenhum destes documentos prova que BB recebeu os referidos €20.456.20, para além dos já referidos €4.743,38.


O restante valor que, na escritura pública consta como tendo sido pago no dia da celebração da mesma, através do cheque bancário n.º ... sacado sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, CRL, não foi recebido por via desse cheque, ou por outra forma de pagamento, pela vendedora, pois o cheque não foi emitido à ordem de BB como consta da declaração da entidade bancária acima referida e a Ré não logrou juntar qualquer comprovativo do pagamento do remanescente (€20.456,20).


E, apesar da MesmoValor, S.A. ter sido notificada para documentar nos autos as despesas com obtenção de licença de utilização, obtenção de registo de certificado energético, pagamento de dívidas fiscais relativos ao imóvel, pagamento de registos provisórios e outras despesas relativas ao imóvel, veio aos autos dizer que não dispunha de tal documentação (cfr. ata de julgamento do dia 23-01-2023 e requerimento de 15-12-2023, a fls. 69 dos autos físicos).


É manifesto que o documento 8 não é suficiente para provar as despesas que ali são referidas, considerando que é uma declaração unilateral assinada pela testemunha DD (documento particular sujeito à livre apreciação do tribunal), sem que haja outro suporte documental que o corrobore.


Os restantes meios de prova – declarações de parte da Ré e testemunhos de DD e CC –, para além de serem contraditórios em relação ao destino do remanescente do valor do empréstimo não entregue à mutuária, evidenciam que a teia de negócios que envolveu a Ré e que culminou com a alienação do imóvel por €25.200,00, ou seja, por um valor muito inferior ao da avaliação da MesmoValor, S.A (cfr. ponto 22 dos factos provados que o avaliou em €70.000,00), teve a participação de todos eles (em momentos diferentes dessa sequência negocial) que culminou com a alienação do imóvel, sem participação direta da vendedora, que emitiu uma procuração ao legal representante da Ré, entidade compradora, ficando, assim, exposto de forma inquestionável que todos os intervenientes nestes sucessivos negócios mantinham relações comerciais, auxiliando-se na realização dos mesmos, de forma reiterada, como bem é explicado na fundamentação da decisão de facto na parte extratada e na parte em que fundamenta os factos provados ora impugnados, para a qual remetemos por se ter formado nesta instância convicção semelhante à ali expressa.


Assim sendo, e não tendo a Ré logrado provar, como lhe competia, o pagamento do remanescente do valor da venda, evidenciando a prova que o cheque referido na escritura pública de compra e venda não foi emitido à ordem da vendedora, nem existindo nos autos qualquer prova segura donde se extraia a comprovação que o comprador destinou o referido valor remanescente ao pagamento da hipoteca e despesas associadas à mesma, ou outras, mormente de natureza fiscal, e revelando a prova por declarações de parte e testemunhal pouco credibilidade dadas as contradições em que incorreram (cfr. o que se disse a propósito da impugnação do ponto 5 dos factos provados) e do interesse que todos eles revelam na prática dos vários negócios em causa nos autos, dada a intervenção que neles tiveram, não sendo os mesmos totalmente alheios à sua atividade profissional relacionada com transações imobiliárias e negócios conexos com a mesma, o facto provado 16 não poderia ter outra redação, nem poderiam de ter-se como não provada a matéria das alínea F) e g) dos factos não provados.


Nestes termos, improcede este segmento da impugnação, nada havendo a alterar em relação à redação do ponto 16 dos factos provados.


Factos provados 19, 20 e 21:


«19.Quando celebrou os negócios mencionados nos pontos 9., 10. e 14. e no decorrer da relação contratual, BB não conseguiu compreender a extensão e alcance dos documentos jurídicos.»


«20. A ré tirou proveito da situação de vulnerabilidade de BB e da necessidade que a mesma tinha de financiamento e liquidez.»


«21. BB procedeu à celebração dos contratos indicados nos pontos 9., 10. e 14. no decorrer e por consequência do empréstimo contraído inicialmente com CC.»


Defende a Apelante que os pontos 19, 20 e 21 devem ser dados como não provados por falta de prova. Referencia ainda o documento provindo da PJ, as declarações de parte do legal representante da Ré e da testemunha DD.


Na fundamentação da decisão de facto quanto a esta factualidade consta o seguinte:


«Relativamente ao estado psicológico e financeiro de BB deve-se referir que as testemunhas arroladas pela autora, JJ e KK, vizinhas da autora, pouco sabiam – desconheciam a celebração destes negócios ou os seus reais problemas financeiros. Dá-se assim como não provada a factualidade elencada nas alíneas A) e B) uma vez que nenhuma prova concreta foi produzida a respeito.


Quem efetivamente confirmou o estado de necessidade da autora foram as testemunhas DD e FF. Tal como já se referiu, DD referiu que a situação de BB era tão precária que nem começou por sugerir o negócio de compra e venda e pediu um favor especial a um amigo – embora tenhamos já tecido considerações a respeito destas declarações, é a própria pessoa que serve de mediação em todos os negócios que afirma que efetivamente esta era uma pessoa que estaria numa situação bastante precária, sem liquidez, tendo visto nestes negócios (provavelmente pela forma aliciante como os mesmos foram apresentados…) o único modo de reverter, ainda que parcialmente, o seu estado de necessidade. FF também referiu que se num primeiro momento BB cumpriu no pagamento das rendas, ainda no decorrer do contrato, a mesma deixou de conseguir pagar as rendas, tendo-lhe comunicado que a quantia que ganhava mensalmente - € 450,00 não permitia que fizesse face às despesas. FF anuiu que a mesma apenas pagasse a quantia mensal de €100,00 durante dois ou três meses e depois aceitou que a BB não procedesse ao pagamento de rendas uma vez que a senhora não estava bem por ter muitas dificuldades financeiras [factos dados como provados nos pontos 24. e 25.].


Ainda assim, e não obstante ter descrito toda esta conjuntura, o legal representante da ré também referiu que BB queria vender a casa e que o negócio passaria por ser encontrado um comprador que oferecesse uma quantia superior ao que constava da escritura de compra e venda, de forma a que BB pudesse voltar a comprar a casa, pagar as rendas em dívida e ficar com o remanescente para poder comprar a casa em Lisboa que queria.


Sucede que, não é credível que uma pessoa que receba € 450,00 mensais, que não consegue pagar nem a quantia de € 100,00 mensais e que apenas ficou com um montante total de € 9 643,38, conseguisse ter dinheiro para voltar a comprar a sua casa. E também não é credível que um investidor imobiliário como a ré tivesse feito o negócio que fez e permitisse que a mesma, no final do contrato ou caso aparecesse comprador, ainda beneficiasse com este negócio, sendo certo que se verifica uma conduta reiterada de incongruências nos negócios praticados, designadamente em querer imputar na vendedora todos os encargos com a regularização da sua habitação, sendo certo que este negócio não foi concebido pelas partes como uma verdadeira compra e venda, mas sim como um contrato de mútuo com garantia do pagamento de uma dívida ou do cumprimento duma obrigação, através da transferência pelo devedor da titularidade do bem para o credor.


Decorrendo do artigo 5.º da Contestação apresentada pela ré que BB foi notificada para prestar declarações no âmbito do inquérito n.º 1556/19.0..., inquérito este que correu termos em momento prévio ao falecimento de BB o tribunal entendeu remeter ofício a este processo de forma a apurar se a mesma teria prestado declarações. Através da informação junta aos autos em 09/02/2024, verifica-se que a Inspetora fez consignar nos autos que em 22/10/2019, BB teria entrado em contacto com a polícia, tendo declarado o seguinte: “Que contraiu um empréstimo com a Colourful tendo sido celebrada escritura e após um contrato de arrendamento pelo mesmo imóvel onde agora habita, sito na Rua 4 n.º 93, Cidade 1. Que se encontra desde essa data a pagar mensalmente. Que terá opção de compra do imóvel no final do contrato e que não se encontra lesada”. Com estas declarações a ré quer fazer crer que BB sabia os exatos termos dos negócios celebrados e que ainda assim não se sentia prejudicada ou enganada com a atuação da ré. Não podemos interpretar esta declaração da mesma forma. Partindo do pressuposto que efetivamente foram estas as palavras de BB, apenas podemos extrair o contrário – que efetivamente a mesma não teve noção dos contratos que assinou e que estaria numa situação de falta de consciência da prejudicialidade de tais negócios. Desconhece-se o que lhe foi prometido, mas em face de todo o exposto, é seguro afirmar que a mesma nunca iria lograr conseguir reaver o imóvel uma vez que nem disponibilidade financeira teria para proceder ao pagamento de uma renda de € 100,00. Demais considerações serão tecidas em sede de fundamentação de direito.


Não obstante, não tendo sido colocada em causa, pelo menos neste processo, a falsidade das assinaturas dos documentos, e tendo BB mencionado os negócios celebrados nas declarações que terá feito através de contacto telefónico na polícia, entendemos que BB tinha conhecimento de ter celebrado os negócios [factos constantes do ponto 18.] – o que não é equivalente a ter consciência do alcance e das consequências jurídicas dos negócios celebrados – em face de todo o exposto e sem prejuízo de uma explicação mais completa em sede de fundamentação de direito, entendemos que a mesma nunca teve consciência das consequências jurídicas dos negócios que celebrou/ que permitiu que outros celebrassem em seu nome [factos constantes do ponto 19. e factos elencados na alínea c)].


Também ficou demonstrado, principalmente pelas declarações de parte do legal representante da ré, que a ré tinha conhecimento do estado de vulnerabilidade e dependência financeira de BB, tendo tirado proveito desse estado através da celebração dos negócios – facto que pode ser atestado objetivamente através das condições dos mesmos [factos constantes do ponto 20.]


E também ficou plenamente demonstrado que estes três intervenientes – DD, CC e a ré – têm/ tiveram relações comerciais, auxiliando-se/ apoiando-se neste tipo de negócios, sendo certo que pelas declarações destes intervenientes se verifica uma prática reiterada destes atos [factos constantes do ponto 26.] E ainda que a primeira intervenção tenha sido por DD, a ré tinha pleno conhecimento e consciência destes factos, bem conhecendo o modus operandi desta empresa.»


Como decorre do extratado, a decisão de facto sobre esta matéria encontra-se amplamente justificada com base nos meios de prova.


A apelante, porém, questiona a valoração feita pelo tribunal a quo.


Especificamente, em relação ao ponto 19 dos factos provados, remete para o documento junto aos autos em 09-02-2024, que corresponde ao teor de uma «COTA» consignada no processo crime a correr termos na PJ onde é investigado o legal representante da Ré por factos relacionados com a compra e venda destes autos.


Ora, salvo o devido respeito, este documento extraído de um processos de inquérito não se reporta sequer a declarações prestadas por BB naqueles autos, porquanto o documento diz que o consignado se reporta a um telefonema feito por BB para a PJ onde declarou o que ficou a constar da referida Cota.


Mesmo não questionando a veracidade do teor da Cota, é necessário levar em conta que não se trata de um documento que se insira no disposto no artigo 421.º do CPC, tendo o valor probatório referido neste preceito, porque lhe falta um requisito básico: não corresponde propriamente a um depoimento e muito menos foi produzido com audiência contraditória da parte. Ou seja, o documento tem um valor probatório residual, e dele não se pode concluir que BB ao celebrar os negócios em causa nestes autos conseguia compreender a extensão e alcance dos documentos jurídicos que subscreveu.


Pois uma coisa é saber que lhe foi concedido um empréstimo, que arrendou o imóvel e que paga uma renda, tendo opção de compra no final do contrato, não se sentido, naquela data (22-10-2019) lesada e, outra bem diferente, é perceber e interiorizar que a possibilidade real de readquirir a sua habitação como proprietária era manifestamente inexistente, e que desde a celebração do empréstimo, que nem sequer lhe proporcionou o valor emprestado, tudo foi conduzido no sentido de se alcançar o negócio visado e que era a compra e venda do imóvel por um preço inferior ao de mercado, como bem é explicado na fundamentação supra extratada.


Ora, nem outra conclusão é admissível em face do emaranhado dos negócios jurídicos celebrados, sequenciais e manifestamente tendentes a um desfecho único – a compra de um imóvel por um valor muito abaixo do mercado – tendo como vendedora uma pessoa com escolaridade mínima, em situação de carência económica, que se presta a vender a casa onde habita por um valor muito abaixo do mercado, onde a recompra é meramente ilusória porquanto nem sequer conseguiu pagar uma renda de muito baixo valor, quanto mais pagar o valor da recompra.


Sendo que o teor da referida Cota até revela que, na data referida na mesma (22-10-2019), se encontrava a pagar a renda quando, na verdade, já se encontrava em incumprimento desde fevereiro de 2019 (cfr. facto provado 24), o que evidencia que BB vivia numa ilusão e nem sequer tinha a perceção do impacto negativo que a falta de pagamento da renda causava em relação à viabilidade de reaver o imóvel.


As declarações de parte e os depoimentos das testemunhas que a Apelante invoca na impugnação da decisão e facto, como já se disse, revelam contradições e, essencialmente, visam fazer crer ao tribunal a versão dos factos que consta da contestação, merecendo pouca ou nenhuma credibilidade em face da intervenção que todos tiveram ao longo de todo o procedimento desde a concessão de um empréstimo aparentemente favorável a BB, mas que se veio a revelar-se altamente prejudicial à mesma, não só porque nem recebeu a totalidade do valor emprestado, mas também porque não recebeu o valor total da venda casa e muito menos o seu valor real.


Resulta, pois, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, que a prova produzida evidencia, em face das circunstâncias que rodearam os negócios, da sua complexidade e significância sequencial em termos de resultado alcançado – venda do imóvel por um preço residual – que existe uma interligação entre todos os atos realizados e que, BB sendo pessoa de poucos estudos, com carências económicas e com baixo rendimentos, se viu enredada nessa sequencia negocial que lhe prometia uma recompra do imóvel quando, na verdade, face à sua situação económica e ao diminuto encaixe financeiro que teve com a venda da casa, jamais conseguiria reaver a propriedade da sua habitação.


Todo este circunstancialismo é revelador da vulnerabilidade e estado de necessidade de BB, sendo conhecido da Ré, como era, dada a interligação entre todos os atos praticados e relações profissionais dos intervenientes nos mesmos, tendo tal estado sido aproveitado e explorado pela Ré, de tal forma que conseguiu que a proprietária de um imóvel de habitação ficasse a residir no mesmo como arrendatária ainda antes da realização da compra e venda, a pagar uma renda que não tinha condições económicas de suportar, munindo-se a Ré, desde o momento do arrendamento, de uma procuração com poderes especiais emitida a seu favor, concedendo-lhe poderes para vender e, consequentemente, também adquirir no mesmo ato, a propriedade do imóvel, como efetivamente veio a suceder.


Nestes termos, dúvidas não restam que os pontos 19 a 21 dos factos provados se encontram corretamente julgados porque revelam precisamente a realidade que neles ficou plasmada.


Improcede, assim, a impugnação em relação aos pontos 19 a 21 dos factos provados.


Alínea C) dos factos não provados:


«Ao celebrar os negócios elencados nos pontos 9., 10. e 14. e até ao seu falecimento, a autora tinha pleno conhecimento e consciência de todas as suas cláusulas, das sua implicações jurídicas, dos pagamentos que foram efetuados e do que declarou ter recebido e de que teria de sair do imóvel caso não procedesse ao pagamento das rendas ou não exercesse a opção de compra no termo do contrato descrito no ponto 9.»


Em relação a esta matéria entende a impugnante que a mesma dever ser dada como provada remetendo para a procuração outorgada por BB nos termos acima referidos, a escritura de compra e venda, o contrato de arrendamento, contrato de opção de compra e o documento emitido pela PJ.


A fundamentação da decisão de facto sobre esta questão já acima foi extratada.


Nesta fase da análise da impugnação, já não há muito mais a acrescentar para além do que já se deixou explanado em termos de valoração da prova produzida.


Cabendo apenas acentuar que, apesar dos atos jurídicos em causa terem sido formalmente praticados, constituíram apenas o instrumento jurídico que visou alcançar uma finalidade - aquisição de um imóvel por um valor muito inferior ao valor de mercado -, pois como bem está demonstrado nos factos provados, BB recebeu, no total a quantia de €9.643,38 (€4.900,00+€4.743,38) por um imóvel que estava avaliado por €70.000,00.


Apesar disso, a informação que prestou à PJ revela que, como se disse supra, vivia na ilusão que não estava lesada e que conseguia recuperar a casa. Mas a realidade não era de todo essa, como ficou acima demonstrado.


Consequentemente, o que a prova veio revelar à luz das regras da experiência e da normalidade da vida, é que BB, enquanto foi viva, e porque sempre se manteve a viver na casa, o que aparentava que tudo ia bem e corria como acordado, não tinha pleno conhecimento e consciência do significado e alcance jurídico dos contratos que tinha assinado e das declarações que fez quanto ao recebimento de valores que nunca recebeu e, sobretudo, da impossibilidade de reversão da venda do imóvel através de uma recompra.


Por conseguinte, não existe erro de julgamento em relação à alínea C) dos factos não provados, improcedendo a impugnação quanto à mesma.


Finalmente em relação à alínea D) dos factos não provados:


«D) BB nunca se opôs à emissão dos recibos de renda nem colocou em causa a celebração do contrato de arrendamento.»


Diz a Apelante que esta matéria deveria ter sido dada como provada, pois o facto dado como provado no ponto 24 é contraditório com a matéria aqui dada como não provada.


O ponto 24 dos factos provados tem a seguinte redação:


«BB procedeu ao pagamento das rendas mensais mencionadas no ponto 9. entre maio de 2018 e janeiro de 2019.»


Não vemos, salvo o devido respeito, qualquer contradição.


O contrato de arrendamento foi celebrado. BB pagou algumas rendas e depois deixou de pagar. Não vemos contradição com a alínea D) no que concerne à emissão de recibos de rendas pagas. Sendo que nem sequer se encontra provado que foram emitidos, pelo que não faz qualquer sentido retirar-se do pagamento/não pagamento da renda se houve ou não oposição à emissão de recibos de renda quando nem sequer existe prova da sua emissão.


O mesmo se diga em relação ao contrato de arrendamento. Do que ficou provado no facto provado 24 nada se pode extrapolar quanto a ter, ou não ter, colocado em causa o contrato de arrendamento.


Ademais, e como se refere na fundamentação da decisão de facto, a matéria da alínea D) corresponde a factos instrumentais do direito da Ré, impendendo sobre a mesma o ónus de prova, que não acatou dada a ausência de prova sobre tal factualidade.


Improcede, pois, a impugnação em relação á alínea D) dos factos não provados.


Pretende, ainda, a Apelante que seja aditada a seguinte factualidade (Conclusões R e S):


«R. Em face do depoimento legal representante da Ré deverá ser considerado provado e aditado aos factos provados o seguinte facto:


“A Ré , mesmo após o termo do prazo dos 36 meses previsto no contrato de opção, deu a possibilidade aos herdeiros da Srª BB, e consequentemente à autora a recompra do imóvel pelos mesmo valor que tinha sido alienado, ou seja €25.200, não tendo os mesmo aceitado”


S. Em face do depoimento legal representante da Ré e facto provado 6 deverá ser considerado provado e aditado aos factos provados o seguinte facto:


“O negócio objecto dos presentes autos tratou-se de um investimento imobiliário no âmbito do objecto social da Ré, em que foi celebrado um contrato de compra e venda e um contrato de arrendamento por 3 anos com opção de compra pelo mesmo valor que foi vendido (€25.200,00) e cuja rentabilidade para Ré era o valor das rendas pagas”.»


O requerido aditamento não pode ser atendido.


Em relação à Conclusão R. é evidente que não releva para dirimir o caso sub judice porque a compra e venda já se tinha consumado e a Ré até já tinha constituído uma hipoteca sobre o imóvel a favor de terceiro.


Ademais, é clara a falta se seriedade dessa alegada proposta, considerando que decorre das declarações de parte do legal representante da Ré que se desinteressou e decidiu não avançar com a proposta perante a reação dos herdeiros da vendedora após se terem inteirado dos contornos do negócio.


Quanto à Conclusão S. contém matéria jurídica e conclusiva, insuscetível de ser aditada em termos de decisão de facto (cfr. artigo 607.º, n.º 3, do CPC).


Em face de todo o exposto, improcede em toda a sua extensão a impugnação da decisão de facto.


3.ª Questão: do mérito da sentença quanto à qualificação jurídica dos negócios em causa nos autos


Nesta sede, a Ré alega que não se verificam os pressupostos do negócio usurário previstos no artigo 282.º do CC e, consequentemente, a anulabilidade da compra e venda.


Reitera, no essencial, o que veio defender quando invocou que a Autora alegou e peticionou a anulabilidade do negócio com fundamento em erro sobre o objeto do negócio (artigo 2151.º, 253.º e 254.º do CC), embora, naturalmente, não conceda que o negócio seja anulável por essa razão.


A questão da requalificação do fundamento jurídico da anulabilidade por a compra e venda se apresentar, no caso, como um negócio usurário já foi supra analisada, remetendo-se para esse segmento do acórdão por razões de economia processual.


A sentença recorrida, em face dos factos provados, fez a referida subsunção jurídica, ou seja, considerou que se encontravam preenchidos os requisitos do negócio usurário previstos no artigo 282.º do CC, escrevendo na respetiva fundamentação, para além do mais:


«Pode-se assim concluir que BB e a ré celebraram um contrato de mútuo com garantia real, sendo esta prestada através de um negócio fiduciário, para o que utilizaram, em termos atípicos, o modelo legal da compra e venda (com o que apenas se pretende frisar que não celebraram uma verdadeira compra e venda).


De acordo com o artigo 282.º, n.º 1 do Código Civil “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.


São assim três os elementos da usura: situação de inferioridade do declarante, obtenção de benefícios excessivos ou injustificados e intenção ou consciência do usuário de explorar aquela situação de inferioridade.»


De seguida, a sentença analisou cada um destes requisitos em face dos factos provados e conclui pela sua verificação.


Análise com a qual se concorda.


Efetivamente, em relação ao primeiro requisito (situação de inferioridade do declarante) os factos provados 2, 17, 19, 24 e 25 revelam à saciedade que BB, pessoa de pouca instrução, estava em situação de vulnerabilidade económica (tinha falta de liquidez e precisava de um empréstimo) tendo, por essa razão, se socorrido de terceiros para suprir essa necessidade. Porém, tendo sido esse o motivo que a levou a pedir inicialmente um empréstimo, todos os atos posteriores que realizou constituem negócios jurídicos muito mais complexos, completamente fora da sua capacidade de compreensão e alcance (contrato de arrendamento, opção de compra e, finalmente, compra e venda da sua habitação), que foram praticados por o empréstimo inicial não lhe ter suprido as necessidades que tinha, uma vez que, dos €16.500,00 que pediu emprestado, apenas recebeu €4.900,00. E a vulnerabilidade económica persistiu porque nem sequer conseguiu pagar a renda, aliás, de valor diminuto. A que acresce que, com a celebração da escritura de compra e venda do imóvel, também não viu o seu problema resolvido por nem sequer ter recebido a totalidade do preço.


Por conseguinte, este quadro fáctico revela o preenchimento do primeiro requisito.


Quanto ao segundo requisito (obtenção de benefícios excessivos ou injustificados) também os pontos 14, 15, 16 e 22 dos factos provados demonstram que a Ré adquiriu um imóvel que tinha um valor de mercado de €70.000,00 pelo preço de €25.200,00 e, ainda assim, apenas pagou à vendedora a quantia de €4.743,38, retendo a quantia de €20.456,62, que nunca entregou à vendedora.


O que corresponde a um benefício excessivo e injustificado, sendo que não logrou provar que tenha utilizado esse valor para pagar o empréstimo antes concedido à vendedora e despesas relacionadas com a hipoteca e respetivo cancelamento (cfr. alíneas F) e G) dos factos não provados).


Em suma, o que decorre dos factos provados é que o valor pelo qual a vendedora vendeu o imóvel corresponde a 36% do valor de mercado do bem e, para cúmulo, apenas recebeu 18,82% do valor da venda.


Como se refere no Acórdão do STJ de 08-11-2012, nos casos em que o valor da transação consignado no contrato de compra e venda ultrapassa em metade o valor de mercado do bem, abre-se caminho à possibilidade de anulação do contrato por usura.


Justificando esta conclusão do seguinte modo:


«A lei, manifestamente, não quis vedar que se fizessem “bons negócios” e “bons negócios” são frequentemente aqueles em que se compra ou vende (considerando o mais frequente dos contratos, a compra e venda) um bem por preço diferente do valor de mercado (maior, na perspetiva do vendedor, ou menor na do comprador).


Depois, não pode pretender imiscuir-se nas oscilações vulgares da vida, em que, com muita frequência, surgem situações de mais intensa necessidade de negociar por parte de algum dos intervenientes no contrato, nalguns casos até acompanhadas de urgência, cedendo a parte fragilizada algo relativamente ao valor de mercado.


Em terceiro lugar, não pretende a lei “permitir aos incautos, aos imprevidentes e aos despreocupados, depois de terem feito um mau negócio ao agirem dentro dos parâmetros da autonomia privada, desvincular-se agora do mesmo e das suas obrigações mediante a invocação de uma situação de inferioridade, alegadamente existente.” (Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, 557).


Todavia, tendo em conta estes limites, casos há em que o benefício é de tal modo grande, ou injustificado, obtido à custa de outrem fragilizado nos termos que se referiram, que se justifica a intervenção, com recurso à figura da usura, seja através da anulabilidade, seja pela modificação do contrato.


No referido volume e obra, a páginas 460, escreveu Menezes Cordeiro (já citado na decisão recorrida):


“Apesar de todos os alargamentos que se têm tentado – e que até já incluíram uma específica atuação do legislador – a usura mantém uma frágil capacidade de concretização.


Pouco invocada pelos interessados, em juízo, dadas as dificuldades de prova que acarreta, ela encontra escassa recetividade nos tribunais.”


E, mais adiante:


“A panorâmica jurisprudencial é pouco animadora. Todavia, a usura pode ser reanimada por uma interpretação integrada…”


X - A lei não fixou qualquer critério matemático para se aferir o que sejam “benefícios excessivos”. Deixou de parte a fixação expressa, como mínimo, do valor ultra dimidium - com larga tradição no domínio desta figura -, ou seja, do valor em que o benefício ascende a mais de metade do valor da coisa; não tendo, além disso, acolhido a referência, frequente também no nosso país, à laesio enormis.


Apesar disso, refere Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 537) “o critério do dobro do valor será um limiar a partir de cuja ultrapassagem se deve averiguar a existência das demais circunstâncias objetivas e dos requisitos subjetivos”. Do mesmo modo, Menezes Cordeiro, ob. e loc. citados, refere que “a lesão ultra dimidium – portanto equivalente a mais de metade do valor em jogo é – até por razões históricas – sempre excessiva.”.»


No caso em apreço, a lesão ultra dimidium apresenta uma expressão tão significativa (como se refere na sentença, «um negócio completamente ruinoso») que não temos dúvidas em afirmar que se verifica o segundo requisito supra enunciado.


Quanto ao terceiro requisito (intenção ou consciência do usuário de explorar aquela situação de inferioridade) também se encontra presente levando em conta o que ficou provado nos pontos 2, a 5, 7 a 9, 10, 14, 15, 16, 19, 20, 21, 22, 24, 25 e 26 dos factos provados, donde resulta, em suma, que houve, quer no mútuo (que serviu de negócio que alavancou os restantes), quer nos posteriores, nestes por parte da Ré, uma vontade consciente e inaceitável, totalmente contrária à boa-fé, de explorar a situação de carência económica de BB.


O que sai evidenciado da situação de dependência em que BB ficou após o mútuo, pois ficou a pagar prestações que não podia suportar, posteriormente transformadas em rendas pelo arrendamento do imóvel que era seu, até ao ponto do mesmo ser vendido nas condições já sobreditas. Acrescendo que todos os intervenientes, de forma diversa mas todos contribuindo para o objetivo final, se aproveitaram da situação de carência económica de BB e da sua fragilidade em termos de compreensão do real sentido e alcance dos negócios que celebrou, o que sai evidenciado, desde logo, do facto de declarar que recebeu valores que não recebeu.


Encontra-se, pois, também preenchido o terceiro requisito acima referido, pelo que nenhuma censura merece a sentença recorrida que, fundamentadamente, bem aplicou o direito aos factos provados.


Quanto ao alegado nas Conclusões AG a AI, as mesmas não podem conduzir à alteração da condenação, porquanto a alegação nelas inserta vai contra o que ficou provado.


4.ª Questão: caducidade do direito de ação (dependente do que for decidido na 3.ª questão)


Em face do decidido na questão anterior, importa analisar a questão da caducidade do direito de ação.


A Apelante discorda da sentença por entender que o prazo de um ano para anulação da compra e venda começou a correr a partir do dia 07-06-2018, data da celebração da escritura de compra e venda, e não da data do óbito da vendedora (...-...-2021) como decidido na sentença.


Vejamos.


O prazo de caducidade da anulabilidade de um negócio consta do artigo 287.º do CC e corresponde a «um ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.»


Como decidido no Acórdão da Relação de Guimarães de 01-02-2018 , citando Mota Pinto, Castro Mendes e Carvalho Fernandes:


«O prazo para requerer a anulabilidade com base em negócio usurário começa a contar desde a cessação da situação de inferioridade e da sua influência na motivação do declarante.»


Compreende-se que assim seja, pois, como sublinha Carvalho Fernandes, é esse o momento em que o declarante está em condições de exercer o seu direito de anulação, segundo o regime geral da caducidade previsto no artigo 329.º do CC, sendo o artigo 287.º do CC uma explicitação do mesmo.


Considerando a matéria de facto provada, BB não recebeu a totalidade do preço da venda da sua habitação, não resolvendo com esse último negócio a situação de inferioridade em que se encontrava em relação à Ré, tanto mais que não conseguia pagar a renda desde fevereiro de 2019, mantendo-se a habitar a casa numa situação de favor até à data da sua morte.


Por conseguinte, no caso dos autos, não é seguramente a data da celebração da escritura de compra e venda o momento em que se inicia a contagem do prazo de caducidade.


Sendo a caducidade uma exceção perentória que determina a extinção do direito (efeito jurídico dos factos articulados pelo autor) admitida pela lei substantiva (artigos 328.º a 333.º do CC e artigo 576.º, n.º 3, do CPC), o ónus de alegação e prova incide sobre a Ré (artigo 342.º, n.º 2, do CC).


A Ré não provou em que momento cessou a situação de inferioridade e da sua influência na motivação do declarante, pelo que não provou o esgotamento do prazo de anulabilidade antes da data da morte de BB.


Tendo a ação sido interposta menos de um após a morte, não se verifica a situação de caducidade do direito de intentar a presente ação por parte da herança indivisa da falecida vendedora.


É quanto basta para julgar a exceção de caducidade improcedente, ficando prejudicada a apreciação da caducidade quando o negócio usurário constitua crime (artigos 284.º do CC e 608.º, n.º 2, do CPC).


Em face de todo o exposto, improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.


Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


III- DECISÃO


Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


Custas nos termos sobreditos.


Évora, 13-11-2025


Maria Adelaide Domingos (Relatora)


José António Moita (1.º Adjunto)


Francisco Xavier (2.º Adjunto)