RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
JUSTA CAUSA
EFEITOS DIFERIDOS
Sumário

Sumário:1
1. A diferença essencial entre a resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa por parte do trabalhador e a figura da denúncia do contrato de trabalho por banda do trabalhador é a exigência de fundamentação ou a sua dispensa, e não a dispensa ou a obrigatoriedade de observância de um prazo de pré-aviso.

2. A inexigibilidade de manutenção de um contrato de trabalho sem termo deve ser vista à luz da impossibilidade de manutenção de uma sujeição jurídica duradoura, pelo que a existência de justa causa para a resolução do contrato, apreciada à luz do critério da inexigibilidade de manutenção da relação contratual, é compatível com o diferimento dos efeitos da resolução.

3. Intepretação diversa subtrai ao trabalhador a possibilidade de ponderar eventual desproporcionalidade entre o sacrifício que para si constituirá o prolongamento da sujeição jurídica durante muito curto prazo e os danos que a sua ausência imediata poderá provocar na esfera do empregador, o que é contrário ao princípio da boa fé na execução dos contratos.

4. Da mesma forma que lhe amputa a possibilidade de se eximir à responsabilidade civil contratual decorrente da possibilidade de, em sede judicial, não lograr fazer prova dos fundamentos da justa causa invocada.

5. A norma do n.º 1 do artigo 394.º do Código de Trabalho confere ao trabalhador o poder, e não a obrigação, de fazer cessar imediatamente o contrato.

6. Assim, quando entenda que lhe assiste justa causa para a resolução de uma contrato de trabalho, o trabalhador pode comunicar a sua intenção de fazer cessar o contrato, imediatamente, isto é, no momento da receção pelo empregador da declaração negocial de resolução, ou em momento diferido no tempo.

7. A interpretação segundo a qual uma declaração negocial de resolução de um contrato de trabalho, com invocação de justa causa, visando fazer cessar o contrato para dali a um mês, demonstra, por si mesma, a não verificação de uma situação de inexigibilidade de manutenção da prestação contratual, não tem arrimo legal.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora2

I. Relatório


AA intentou contra BB, Lda., a presente ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, peticionando que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia global de €28.021,40 (vinte e oito mil, vinte e um euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da citação até integral pagamento, quantia global que peticionou aos seguintes títulos:


€27.467,00 (vinte e sete mil, quatrocentos e sessenta e sete euros) a título da indemnização prevista no n.º 1 do artigo 396.º do Código do Trabalho;


€554,40 (quinhentos e cinquenta e quatro euros e quarenta cêntimos) a título de formação não prestada, no montante global de € 28.021,40.


Alegou, em síntese, quanto ao primeiro pedido, ter resolvido o contrato de trabalho que vigorava entre as partes, com invocação de justa, fundada em falta culposa de condições de segurança e saúde no trabalho. Quanto ao segundo pedido, fundou-o no facto de a demandada nunca lhe ter proporcionado qualquer formação contínua.


Realizou-se a competente audiência de partes, tendo-se frustrado a conciliação.


Contestou a ré, impugnando a validade da resolução contratual e deduzindo pedido reconvencional de condenação do autor/reconvindo a pagar-lhe a quantia de €877,80 (oitocentos e setenta e sete euros, oitenta cêntimos), com fundamento na inobservância parcial do prazo de pré-aviso concretamente exigível.


Discutida e julgada a causa, veio a ser proferida sentença pela qual se decidiu:


“(…) Em face do exposto julgo a ação parcialmente procedente e a reconvenção procedente e, em consequência:


a) declaro que o A., AA, resolveu sem justa causa o contrato que o unia à R. BB, Lda.;


b) condeno o Reconvindo, AA, a pagar à reconvinte, BB, Lda. 877,80 (oitocentos e setenta e sete euros e oitenta cêntimos);


c) condeno a R. BB, Lda. a pagar ao A. AA, a quantia de €554,40 (quinhentos e cinquenta e quatro euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetiva e integral pagamento;


d) absolvo a R. do demais peticionado.


e) Custas por A. e R. na proporção do respetivo decaimento. (…)”


Desta sentença apela o autor, alinhavando as suas alegações e respetivas conclusões.


Conclusões do apelante (síntese das conclusões relevantes):


1 – O autor, sempre com o respeito devido, não concorda e não aceita a douta sentença proferida, com fundamento em erro de interpretação e aplicação do direito.


2 – Na verdade, o autor, em 31 de março de 2023, remeteu à ré a comunicação de folhas 11 e a 12, nos termos do facto provado em 7.


3 - A ré recebeu a comunicação que antecede a 03 de abril de 2023, isto é, a declaração de resolução imediata do contrato de trabalho, com justa causa.


4 - A declaração de resolução é receptícia, fazendo cessar o contrato de trabalho aquando da sua receção, ou seja, a declaração negocial que tem destinatário torna-se eficaz logo que chegue ao seu poder ou é dele conhecida (art.º 224º do Código Civil).


5 - No caso em apreço, o autor exerceu o direito à resolução imediata do contrato de trabalho com justa causa ao remeter à demandada a carta em referência recebida pela ré, enunciando as causas constitutivas da justa causa.


6 - O nº 1 do art.º 394º do Código do Trabalho dispõe que: “2. Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.”


Com a norma em causa (nº 1 do art.º 394º do Código do Trabalho), consignando-se no texto a palavra imediatamente associada às palavras que o trabalhador pode fazer cessar pretendeu-se dizer que o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato logo que tenha conhecimento dos factos constitutivos da justa causa da resolução do contrato.


7 - Não cabe razão à demandada e ao tribunal a quo quando interpretam o termo imediatamente como ligado à palavra cessão, quando deveria ligar-se à palavra comunicação.


8 - Quanto à data da produção de efeitos, a cessação pode ocorrer na data da sua receção pelo destinatário/empregador, se o trabalhador nada disser em contrário (dado tratar-se de declaração receptícia), ou posteriormente, no momento em que o trabalhador o fixa na comunicação, conforme douto Ac. TRE, de 16-12-2015 relatado por Paula Leal de Carvalho que pode colher-se em www.dgsi.pt.


9 - O diferimento para momento posterior da produção dos efeitos da resolução não é necessariamente incompatível com a impossibilidade / inexigibilidade de manutenção da relação laboral, e, por consequência, com a existência de justa causa para essa resolução, conforme julgou o Acórdão da Relação do Porto supra citado e ainda, conforme resulta do Ac. STJ de 06/06/2007, in www.dgsi.pt.


10 - Mais refere este douto Acórdão do STJ que este é o entendimento por três razões:


(…) Em primeiro lugar, porque a lei não diz que, ocorrendo justa causa, o trabalhador tem de fazer cessar de imediato o contrato. Limita-se a dizer que, ocorrendo justa causa, pode o trabalhador fazer cessar imediatamente o contrato. Em segundo lugar, porque da própria lei resulta o contrário, uma vez que ao estipular que a declaração de resolução pode ser feita nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos integradores da justa causa (art.º 442.º, n.º 1), acaba por reconhecer que a resolução com invocação de justa causa não tem de ser feita de forma imediata. O trabalhador tem 30 dias para averiguar se a conduta do empregador constitui, ou não, justa causa de resolução do contrato e para decidir se opta, ou não, por exercer o correspondente direito. Poderia dizer-se aquele prazo de 30 dias se destina apenas a isso e que, uma vez feita a opção pela resolução do contrato, o trabalhador deve exercê-lo com efeitos imediatos, mas, como já foi dito, tal exigência não consta da lei e a concessão do aviso prévio justifica-se por uma questão de cautela, para que o trabalhador não venha a correr o risco de ser condenado a pagar uma indemnização ao empregador, por não lograr provar em juízo a justa causa invocada (vide art.º 446.º do C.T.).


Em terceiro lugar, por entendermos que a declaração de aviso prévio, no contexto em que foi inserida, não pode valer com o sentido que lhe foi dado na decisão recorrida, qual seja o de que a autora não considerou a conduta da ré como susceptível de tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral. À luz do disposto no n.º 1 do art.º 236.º do C. C., não seria esse o sentido que um declaratário normal dela teria extraído. Na verdade, uma tal interpretação faria tábua rasa do restante teor da carta de resolução, onde a autora expressamente comunica à ré que “rescinde com justa causa o dito contrato”. (…)”


11 - Ou seja, a circunstância de o trabalhador diferir os efeitos da resolução do contrato de trabalho para momento posterior ao da sua comunicação não determina a “invalidade” da resolução como invocado pela Recorrente, apenas podendo relevar, e não necessária ou automaticamente, para o juízo a fazer quanto à impossibilidade/inexigibilidade, ou não, da manutenção da relação laboral e, por consequência, quanto ao juízo relativo à existência, ou não, de justa causa para a resolução do contrato de trabalho.


12 - Nestes termos e nos mais de Direito, deverá conceder-se provimento ao recurso, revogando-se a douta decisão, substituindo-se por outra, em que se reconheça ao autor a justa causa para a resolução do contrato de trabalho e a condenação da ré, a pagar-lhe, nos termos que especificou, o montante global de € 28.021,40 acrescido de juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, contados a partir da data da citação até integral pagamento e ainda as custas judiciais.


Mais se deve conceder provimento ao recurso julgando-se improcedente o pedido reconvencional. (…)”


Nas suas contra-alegações, concluiu a apelada:


1. O apelante não cumpriu os requisitos do art.º 639º nº 2 do CPC.


2. A douta sentença recorrida não enferma de qualquer erro, vício ou irregularidade, tendo aplicado a norma pertinente e com a interpretação legalmente adequada.


3. Improcedem as conclusões apresentadas pelo recorrente.


O Tribunal a quo admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.


Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, exarou a Exma. Procuradora-Geral Adjunta o seu parecer, pugnando pela procedência do recurso.


Em resposta, pronunciou-se o apelante, secundando a posição exarada naquele parecer.


A apelada não ofereceu resposta.


O recurso foi mantido, sendo que as conclusões do apelante, atenta a sua prolixidade e manifesta falta de síntese, apenas escaparam ao crivo do aperfeiçoamento a cargo do relator em razão de os autos evidenciarem que tais deficiências não prejudicaram a compreensão, pela apelada e pelo tribunal, do teor das razões pelas quais o apelante discorda da sentença apelada. Termos em que se lhe afigurou que o exercício do poder-dever de ordenar o aperfeiçoamento do articulado do apelante constituiria, no caso concreto, a prática de um ato inútil.


Depois de elaborado o projeto de acórdão, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre, agora, em conferência, apreciar e decidir.


O objeto do presente recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do dever de conhecimento das questões de conhecimento oficioso, imposto pelo n.º 2 do artigo 608.º do mesmo código, em razão da previsão constante do artigo 663.º, n.º 2 daquela codificação. As normas citadas são aplicáveis ao presente recurso por força da remissão operada pelo artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.


Assim sendo, as questões a decidir no presente recurso são:


Da existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho pelo autor/apelante.


Do direito de indemnização reclamado pelo autor/apelante.


Da bondade da condenação do autor/apelante no pedido reconvencional.


*


II - Fundamentos


Enunciam-se, em seguida, os factos julgados provados na sentença recorrida:


1. Em 01 de Outubro de 1988 BB admitiu o A. ao seu serviço para desempenhar as funções de aprendiz de mecânico, bem como outras de que aquele o pudesse incumbir, mediante o pagamento da contrapartida mensal de esc. 20 750$00.


2. Em 21 de Julho de 1992 BB e CC constituíram a empresa BB Lda., com o objeto social de prestação de serviços relacionados com a agricultura, reparação e assistência técnica a tratores, máquinas agrícolas e industriais, e sede em Patacão.


3. BB e CC foram, desde a constituição da R., seus gerentes.


4. Desde 01 de outubro de 1988 e até 31 de dezembro de 1992 o A. desenvolveu aquelas funções no estabelecimento de mecânica que BB explorava sito no Patacão.


5. Pelo menos desde 01 de janeiro de 1993 a R. passou a exercer a atividade de prestação de serviços relacionados com a agricultura, reparação e assistência técnica a tratores, máquinas agrícolas e industriais, na oficina até aí explorada por BB a título individual.


6. Continuando o A., sem interrupção, a desempenhar as funções de mecânico nas mesmas instalações e com o mesmo horário mas, desta feita, sob as ordens e por conta da R. a quem BB cedeu os direitos e obrigações que sobre o mesmo detinha, transmissão que aquela aceitou.


7. Em 31 de Março de 2023 o A. remeteu à R. o escrito de fls. 11 a 12 que se reproduz nos termos do qual a informou que “Venho comunicar a imediata resolução, com justa causa, nos termos do n.ºs 1 e 2, al. d) do artigo 394.º do Código do Trabalho, do contrato de trabalho celebrado no dia 01 de Outubro de 1988, com efeitos a partir de trinta de Abril de 2023.


Mais comunico que entro em gozo das férias a que tenho direito, no dia dezassete de abril de 2023, sendo o meu último dia de trabalho na empresa dias 14 de abril de 2023.


A motivação da presente resolução assenta na falta culposa das seguintes condições de segurança, higiene e saúde no trabalho, violando a entidade patronal o disposto no artº. 281º do Código do trabalho:


-Instalações sem higiene e segurança no trabalho;


-Casa de banho sem higiene e com infiltrações no teto e parede;


-Local de trabalho tem o telhado em telhas de zinco onde chove em vários locais;


-Quando chove o chão fica cheio de agua em vários locais onde se trabalha;


-Local de bancada de soldadora chove em cima;


-Climatização inadequada onde há humidades e correntes de ar, onde certos dias de humidade o telhado de zinco pinga água para cima dos funcionários pela manhã;


-Iluminação deficiente;


-Não fornece equipamento de proteção individual para a segurança no trabalho ao qual em trinta anos de empresa nunca forneceu no qual diz que não é obrigatório fornecer o equipamento.


A falta das condições acima indicadas verificam-se continuadamente, há pelos menos dez anos, sem qualquer interrupção, existindo ainda na presente data, sempre se apresentando duradouras, tornando impossível e insustentável a manutenção da relação laboral.


Solicito e fico a aguardar, no prazo de cinco dias úteis, a declaração Modelo RP5044 da Segurança Social e do Certificado de Trabalho, sem prejuízo do pagamento dos créditos emergentes da cessação do contrato, acrescida da indemnização de antiguidade, nos termos do n.º 1 do art. 396.º do Código do Trabalho.


Para efeitos de indemnização por resolução do contrato de trabalho com justa causa, importa ainda comunicar que o contrato de trabalho acima referido foi celebrado em 01 de outubro de 1988 entre a minha pessoa e o Sr. BB que era, naquela data, o gerente e dono da estabelecimento/oficina onde iniciei e continuo a exercer, ininterruptamente, as minhas funções.


Deste modo, o acordo de trabalho entre a minha pessoa e BB, apesar ter sido celebrado apenas em 01 de outubro de 1988, manteve-se ininterruptamente desde esta data (01 de outubro 1988) até ao momento presente, muito embora a entidade patronal tenha mudado de nome para BB, Lda.


De facto, o ora trabalhador desempenhou, enquanto ao serviço de BB, as mesmas funções e no mesmo local de trabalho, tudo conforme veio a exercer posteriormente ao serviço, sob a ordem e fiscalização, da BB, Lda. para quem se transmitiu a posição do empregador anterior nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores (art.º 285º, do Código do Trabalho).


8.A R. recebeu a comunicação que antecede em 03 de abril de 2023.


9. Nessa data o A. auferia a retribuição base mensal de € 800,00.


10. A R. não proporcionou formação profissional ao A..


11. Após a receção da carta pela R. o A. continuou ao seu serviço até ao termo do mês de Abril de 2023, tendo sido pago pelo trabalho prestado.


12. As instalações de trabalho da R. são constituídas por uma oficina de reparação de máquinas agrícolas (armazém em alvenaria com placa de betão, três janelas, um portão grande sempre aberto e dois pequenos que dão acesso ao telheiro) e por um telheiro anexo.


14. No anexo guardam-se as máquinas a reparar e realizam-se trabalhos de soldadura.


15. O A. alternava o local de trabalho entre o armazém principal e o telheiro anexo.


16. O anexo tem telhado de zinco, executado pelo A. e BB antes de 1993.


17. Em dias de chuva, em virtude de alguns furos que o telhado de zinco apresentava, pingava água na zona do telheiro, inclusive na zona da bancada da soldadura.


18. Em tais dias os trabalhadores não soldavam naquela bancada.


19. Por determinação da R., ao longo dos anos, os trabalhadores repararam algumas vezes as telhas de zinco.


20. Por determinação da R. o A. e os restantes trabalhadores tinham uma hora por dia para limpar, tratar e reparar os locais de trabalho, incluindo a casa de banho sita no armazém de alvenaria.


21. A casa de banho estava suja e tinha infiltrações de água.


22. Não chovia na casa de banho.


23. Não chovia no armazém de alvenaria.


24. Quando os portões do armazém estavam abertos existiam correntes de ar.


25. O clima do Algarve é ameno.


26. O A. desempenhava as funções em período diurno.


27. A oficina da Ré presta de serviços de reparação de máquinas usadas na pequena agricultura existente ao redor do Patacão.


28. Os clientes da Ré são micro e pequenas empresas agrícolas.


29. A Autoridade para as Condições de Trabalho visitou a Ré e não levantou qualquer auto de contraordenação.


30. A oficina tinha ao dispor dos trabalhadores máscaras de soldadura, avental de soldadura, óculos e auriculares para rebarbar, luvas de proteção das mãos, produtos de limpeza e higiene.


*


O Direito:


Da existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho pelo autor/apelante.


1. É inerente à dignidade da condição humana a rejeição do trabalho forçado, da escravatura.


2. Uma das projeções do respeito pela dignidade humana no campo das relações laborais é a faculdade de um cidadão que tenha contratado prestar a sua atividade laboral, sob subordinação jurídica de outrem ou da respetiva organização, poder romper unilateralmente esse vínculo.


3. Pode fazê-lo através da figura da denúncia do contrato, sem arguir qualquer fundamentação, bastando-lhe observar prazos de aviso prévio dirigido ao empregador, reputados legalmente como necessários e suficientes para que aquele empregador o possa, querendo, substituir. Esta figura tem atualmente o seu regime jurídico previsto nos artigos 400.º a 402.º do Código do Trabalho.


4. Mas é-lhe igualmente assegurada a faculdade de proceder à destruição unilateral do contrato de trabalho, sempre que a tal se sinta compelido por causa imputável ao empregador, designadamente por virtude de comportamentos contratualmente ilícitos e culposos deste, no tocante à conformação da prestação laboral e/ou das condições em que organiza o conjunto de meios humanos e materiais da organização na qual o trabalhador se insere (justa causa subjetiva). Ou, ainda, sempre que outras razões não imputáveis a comportamento ilícito e culposo do empregador tornem inexigível que mantenha a prestação laboral (justa causa objetiva).


Tal é o âmbito da faculdade de resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, cujo regime base se encontra previsto nos artigos 394.º a 399.º do Código do Trabalho.


5. Dispõe o n.º 1 do artigo 394.º daquela codificação que “1. Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato”.


6. Por seu turno, o número 2 do citado artigo 394.º elenca, de forma exemplificativa, comportamentos do empregador que podem constituir justa causa de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador.


7. Dizemos que podem porquanto a noção de justa causa não se basta com a identificação de um comportamento culposo do empregador. Como prevê o artigo 394.º, n.º 3 do C.T., apenas haverá justa causa para a destruição unilateral do contrato se tais comportamentos do empregador (apreciados à luz dos critérios legalmente tidos por relevantes - elencados pelo n.º 3 do artigo 351.º do C.T., e adaptados à troca de posições entre empregador e trabalhador), pela sua gravidade e consequências, tornarem imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo, isto é, tornarem inexigível ao trabalhador a manutenção da relação contratual.


8. Seguindo de perto a lição de Maria do Rosário Palma Ramalho3, a justa causa subjetiva de resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador pressupõe:


Um comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias do trabalhador;


A imputação desse comportamento ao empregador a título de culpa, assim se presumindo a conduta objetivamente violadora dos preceitos contratuais, nos termos do artigo 799.º do Código Civil;


Finalmente, a verificação de um nexo de causalidade entre aquele comportamento do empregador e a inexigibilidade de manutenção do vínculo pelo trabalhador.


9. Entendeu a sentença recorrida que (…) a cessação não foi imediata e, assim sendo, a comunicação em causa nos autos não é subsumível ao instituto da resolução com justa causa quer porque não existiu uma cessação imediata do contrato, quer porque o protelamento da cessação do contrato relativamente ao tempo da comunicação impede a verificação do requisito da inexigibilidade da manutenção do vínculo a partir daquela data pelo trabalhador pois se, por vontade do trabalhador, o vínculo se mantém por quase um mês é porque a sua subsistência não estava comprometida pela verificação da factualidade que comunicou. Exigindo a resolução por justa causa subjetiva um requisito causal (em decorrência do disposto no art.394º nº 4 e 351º nº1 e 3 do Código de Trabalho) i.e. que o comportamento da entidade empregadora, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral, a manutenção da relação laboral por vontade do A. durante quase um mês após a comunicação da vontade de a fazer cessar, impede, desde logo, a verificação de tal requisito e, por isso, mostra-se prejudicada a aferição da gravidade dos factos supra apurados.(…)”


10. Discordamos deste entendimento. A diferença principal entre a denúncia do contrato de trabalho e a resolução do contrato de trabalho, sempre que por iniciativa do trabalhador, assenta na obrigatoriedade de esta última ter de ser devidamente fundamentada e não no momento em que cada uma das declarações deve produzir os seus efeitos.


11. Com efeito, uma declaração de resolução, para valer como tal, deve ser fundada na lei ou em convenção, como estipula o artigo 432.º, n.º 1 do Código Civil, ou, no caso do contrato de trabalho, fazer apelo aos concretos factos que constituem justa causa de resolução do contrato por parte do trabalhador, como dimana do disposto no artigo 395.º do C.T.


12. Na denúncia do contrato de trabalho enquanto faculdade concedida ao trabalhador, o denunciante comunica à contraparte que, por sua vontade, e sem necessidade de qualquer outro fundamento, coloca fim a um contrato de execução duradoura.


13. Pela resolução, o contratante (alegadamente) adimplente (cumpridor), comunica ao (alegado) inadimplente (não cumpridor) que coloca termo ao contrato em virtude do(s) incumprimento(s) deste.4


13. Naturalmente que a possibilidade de fazer sindicar a bondade dos motivos invocados como fundadores do direito de resolução do contrato - por via judicial ou outro meio alternativo de julgamento dos dissídios emergentes do contrato resolvido - exige que a comunicação resolutória contenha uma indicação dos ilícitos contratuais assacados ao inadimplente.


14. Ao invés, a comunicação de denúncia, comunicação que anuncia o fim do contrato, por vontade unilateral, para uma data determinada, apenas carece da invocação dessa vontade, estando, em regra, apenas condicionada à observância de prazos de aviso prévio, isto é, ao diferimento dos seus efeitos para data futura, de molde a salvaguardar legítimos interesses dos contratantes. Todavia, provindo a denúncia de um trabalhador, atenta a liberdade de trabalho, a sua validade e eficácia não dependem do cumprimento de tais prazos de aviso prévio, gerando a sua inobservância um mero dever de reparação patrimonial, mas nunca o dever de continuação da prestação laboral.


15. Esta diferença essencial tem óbvios reflexos no regime de exercício de cada uma destas declarações negociais de vontade de extinção de um contrato.


16. Todavia, se se admite o sacrifício da segurança jurídica e da paz contratual nos casos em que um empregador, tendo justa causa para despedir o trabalhador, suporta a manutenção da relação contratual durante a pendência do procedimento disciplinar conducente àquele despedimento, não vislumbramos argumentos que nos persuadam de que é exigível ao trabalhador que julga existir justa causa para resolver o seu contrato que comunique tal resolução com efeitos imediatos.


17. Ao trabalhador adimplente não deve e não pode ser pedido que resolva o contrato “da noite para o dia”, para que se possa validar a inexigibilidade de manutenção do contrato.


18. Com efeito, a resolução do contrato não é uma denúncia sem aviso prévio. É uma declaração de cessação fundamentada no desequilíbrio contratual provocado, em regra, pelo incumprimento da contraparte5.


19. Ora, apenas ao trabalhador cabe avaliar se pretende acobertar-se de um possível malogro da prova em tribunal dos factos que invocou para resolver o contrato, como pertinentemente assinalado pela boa jurisprudência.6


20. Pois que, como prevê o artigo 399.º do C.T., caso na ação de declaração da ilicitude da resolução, o trabalhador não logre provar a justa causa de resolução do contrato, o empregador tem direito a ser indemnizado pelos prejuízos que a resolução lhe tiver causado, em montante nunca inferior ao montante das retribuições vincendas durante o prazo de aviso prévio exigível em função da duração da execução do contrato.


21. Ademais, acrescentamos nós, exigir ao trabalhador a quem assiste justa causa para a resolução do contrato que o faça com efeitos imediatos é absolutamente contrário ao princípio da boa fé na execução dos contratos.


22. Com efeito, equacionemos uma situação em que o trabalhador sabe que a sua ausência, motivada pela resolução com efeitos imediatos, pode gerar danos de elevado montante ao empregador. Por exemplo, o trabalhador que cumpre funções adentro de uma organização empresarial para as quais nenhum outro reúne a qualificação exigida para o seu desempenho, funções indispensáveis ao cumprimento tempestivo de contrato celebrado entre o empregador e um dos seus clientes.


23. O trabalhador consciencioso que, por facto imputável ao empregador, não está disposto a manter uma colaboração duradoura com este, mas que prolonga a vigência do contrato por um período curto, por entender que o seu sacrifício pessoal poderá evitar danos importantes ao empregador, deverá ser “punido” por isso?


24. As partes da relação contratual de trabalho estão obrigadas a respeitar as emanações da boa fé, tanto nas negociações pré-contratuais como na execução do contrato e, até, no devir pós-contratual.


25. E a liberdade de desvinculação não deve exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico, como preconizado pelo artigo 334.º do Código Civil.7


26. Note-se que, aferir da inexigibilidade da manutenção de uma relação de trabalho é aferir da inexigibilidade de manutenção de uma situação de sujeição duradoura. O que merece, a nosso ver, um crivo diferente do propugnado na sentença recorrida.


27. Ali se afirma que, manter o contrato em vigor por cerca de um mês, faz presumir, de forma não elidível, a inexistência de uma situação de justa causa para a resolução do contrato.


28. No caso concreto, o trabalhador resolveu o contrato, invocando justa causa, cuidando de alinhavar, de forma sintética, as razões fáticas em que a fundava, e informando que adentro desse mês gozaria férias nas últimas duas semanas. Na prática, conferindo ao empregador duas semanas para recrutar, querendo, o seu substituto, ou ponderar a ablação do respetivo posto de trabalho na estrutura da sua organização empresarial.


29. Extrair deste comportamento que, afinal, era comportável para o trabalhador a manutenção da relação contratual de trabalho sem termo, é, a nosso ver, errado.


30. Tanto mais que, no caso concreto, o trabalhador imputava ao empregador violações várias e continuadas dos seus direitos e garantias, perpetradas durante anos, e que ele suportara, quiçá porque a sua vida pessoal e a sua vida profissional, no seu juízo, assim o exigiam.


31. Cremos que, ao menos neste tipo de casos, em que a relação contratual se prolonga por décadas, exigir ao trabalhador que quebre o vínculo, “da noite para o dia”, sob pena de não ser sequer exarado julgamento sobre se os comportamentos imputados ao empregador, pela sua gravidade e consequências, tornavam inexigível que o trabalhador mantivesse a execução contratual – tal como ela estava configurada, isto é, uma colaboração sem termo - é particularmente desajustado.


32. Razões pelas quais discordamos dos fundamentos da sentença recorrida.


33. Não obstante os considerandos supra expressos, a questão a decidir, devidamente debatida nos autos, em primeira instância, é a de julgar se ao trabalhador assistia justa causa para a resolução do contrato.


34. Ora, neste tocante, o autor/apelante comunicou à apelada, na carta que corporizou a resolução, o seguinte:


“(…) A motivação da presente resolução assenta na falta culposa das seguintes condições de segurança, higiene e saúde no trabalho, violando a entidade patronal o disposto no artº. 281º do Código do trabalho:


-Instalações sem higiene e segurança no trabalho;


-Casa de banho sem higiene e com infiltrações no teto e parede;


-Local de trabalho tem o telhado em telhas de zinco onde chove em vários locais;


-Quando chove o chão fica cheio de agua em vários locais onde se trabalha; -Local de bancada de soldadora chove em cima;


-Climatização inadequada onde há humidades e correntes de ar, onde certos dias de humidade o telhado de zinco pinga água para cima dos funcionários pela manhã;


-Iluminação deficiente;


-Não fornece equipamento de proteção individual para a segurança no trabalho ao qual em trinta anos de empresa nunca forneceu no qual diz que não é obrigatório fornecer o equipamento.


A falta das condições acima indicadas verificam-se continuadamente, há pelos menos dez anos, sem qualquer interrupção, existindo ainda na presente data, sempre se apresentando duradouras, tornando impossível e insustentável a manutenção da relação laboral.(…)


35. Produzida a prova e discutida a causa, constatamos que se provou:


(…)13. As instalações de trabalho da R. são constituídas por uma oficina de reparação de máquinas agrícolas (armazém em alvenaria com placa de betão, três janelas, um portão grande sempre aberto e dois pequenos que dão acesso ao telheiro) e por um telheiro anexo.


14. No anexo guardam-se as máquinas a reparar e realizam-se trabalhos de soldadura.


15. O A. alternava o local de trabalho entre o armazém principal e o telheiro anexo.


16. O anexo tem telhado de zinco, executado pelo A. e BB antes de 1993.


17. Em dias de chuva, em virtude de alguns furos que o telhado de zinco apresentava, pingava água na zona do telheiro, inclusive na zona da bancada da soldadura.


18. Em tais dias os trabalhadores não soldavam naquela bancada.


19. Por determinação da R., ao longo dos anos, os trabalhadores repararam algumas vezes as telhas de zinco.


20. Por determinação da R. o A. e os restantes trabalhadores tinham uma hora por dia para limpar, tratar e reparar os locais de trabalho, incluindo a casa de banho sita no armazém de alvenaria.


21. A casa de banho estava suja e tinha infiltrações de água.


22. Não chovia na casa de banho.


23. Não chovia no armazém de alvenaria.


24. Quando os portões do armazém estavam abertos existiam correntes de ar.


25. O clima do Algarve é ameno.


26. O A. desempenhava as funções em período diurno.


27. A oficina da Ré presta de serviços de reparação de máquinas usadas na pequena agricultura existente ao redor do Patacão.


28. Os clientes da Ré são micro e pequenas empresas agrícolas.


29. A Autoridade para as Condições de Trabalho visitou a Ré e não levantou qualquer auto de contraordenação.


30. A oficina tinha ao dispor dos trabalhadores máscaras de soldadura, avental de soldadura, óculos e auriculares para rebarbar, luvas de proteção das mãos, produtos de limpeza e higiene.


36. Dispõe o artigo 281.º do Código do Trabalho, sob a epígrafe “Princípios gerais em matéria de segurança e saúde no trabalho”:


(…) 1 - O trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde.


2 - O empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção.(…)”.


37. É evidente que o autor/apelante não logrou provar o quadro fáctico mais impressivo, a saber, a falta de disponibilização de equipamento de proteção individual e o trabalho de soldadura realizado sob chuva.


38. Na prática, de relevante, apenas logrou provar que trabalhava num local cuja casa de banho se encontrava suja e que sofria de infiltrações, assim como num ambiente propício a correntes de ar.


39. Ora, quanto às deficientes condições de higiene da casa de banho, igualmente se provou que o empregador concedia aos seus trabalhadores uma hora por dia para proverem pela higiene e conservação das instalações, pelo que se nos afigura que a falta de higiene da casa de banho era, também, imputável ao conjunto dos trabalhadores.


40. Quanto às correntes de ar provocadas pela concomitante abertura dos vários portões das instalações, cumpria ao autor/apelante evidenciar que a mesma fazia perigar a saúde dos trabalhadores, sobretudo tendo em conta o necessário equilíbrio entre um ambiente resguardado de correntes de ar e um ambiente arejador dos gases emitidos pelas máquinas industriais que na oficina eram reparados.


41. Concluindo, o trabalhador não logrou provar qualquer situação objetiva de perigo para a segurança, higiene e saúde dos trabalhadores da apelada.


42. E nem sequer a Autoridade para as Condições do Trabalho detetou qualquer infração às obrigações gerais do empregador em matéria de segurança e saúde no trabalho, previstas pelo artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro.


43. Termos em que julgamos não reconhecer a justa causa de resolução do contrato invocada pelo autor/apelante, assim devendo ser confirmada a decisão recorrida, neste tocante, ainda que por diferentes fundamentos.


44. A supra decidida questão constituía-se como prejudicial relativamente às duas restantes questões a decidir, pois que o direito de indemnização reclamado pelo autor/apelante apenas lhe poderia ser reconhecido se acaso tivesse logrado provar que lhe assistia justa causa de resolução, assim como é inevitável a manutenção do julgado quanto à indemnização arbitrada em sede da lide reconvencional, a qual se encontra correta e devidamente fundamentada.


***


III - DECISÃO


Pelos fundamentos acima enunciados, nega-se provimento ao recurso interposto pelo autor/apelante, confirmando-se, conquanto por diversos fundamentos, a sentença sob apelação.


As custas do recurso serão suportadas pelo autor/apelante.


Évora, 13 de novembro de 2025


Luís Jardim (relator)


Paula do Paço


Maria Emília dos Ramos Costa

__________________________________

1. Da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.↩︎

2. Relator: Luís Jardim; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.ª Adjunta: Maria Emília dos Ramos Costa↩︎

3. Tratado de Direito do Trabalho Parte II – Situações Laborais Individuais, 5.ª Edição, Almedina, 2014, p. 1092.↩︎

4. Não cuidando aqui e agora dos casos impropriamente designados de justa causa objetiva, estatuídos pelo n.º 3 do artigo 394.º do C.T., relativamente aos quais, mesmo inexistindo incumprimento do empregador, se mantém igualmente o dever de fundamentação da resolução.↩︎

5. Não se cuida, neste acórdão, da figura da resolução do contrato de trabalho fundada em justa causa objetiva, a qual, como dimana do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 394.º do C.T., até pode ter como fundamento a necessidade de cumprimento de uma obrigação legal do trabalhador (portanto, subjetiva) incompatível com a continuação do contrato.↩︎

6. vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06.06.2007 (Proc. 07S919) e do Tribunal da Relação do Porto, de 16.12.2015 (Proc. 1091/12.7TTVFR.P1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎

7. Ricardo Nascimento, in Da Cessação do Contrato de Trabalho, Coimbra Editora., 2008, pág. 164.↩︎