I – O bem jurídico protegido pelo crime de difamação é a honra, que é visto na doutrina dominante como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicando na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
II – Para se concluir que uma expressão é ofensiva da honra e consideração, é necessário inseri-la no contexto em que foi proferida, o meio/país a que pertencem assistente/arguido, as relações entre eles, a existência de conflitos e sua profundidade, entre outros aspetos que podem ser avaliados.
III – Além da imputação de factos ou juízos ofensivos da honra é ainda elemento do tipo de difamação que a imputação seja feita não diretamente ao ofendido, mas dirigindo-se a terceiro, numa relação tipicamente triangular de que falam alguns doutrinadores.
IV – Além disso, e como é consabido, o direito ao bom nome não é um valor absoluto, havendo que lidar com a liberdade de expressão e a dimensão ou abrangência desta, enquanto constituindo um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa, conforme múltiplas decisões do TEDH nesse sentido.
V – Contudo, importa sublinhar que a liberdade de expressão contém excepções, que devem ser interpretadas de modo restrito, com maior tolerância para os políticos e outras figuras públicas, mormente tratando-se de afirmações proferidas no decurso da guerra da Ucrânia/Rússia.
Comarca do Porto
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório.
Nos autos de instrução com o NUIPC 2798/23.9T9GDM da unidade central de Instrução criminal da Comarca do Porto, foi proferido o seguinte Despacho de pronúncia, após acusação particular:
«I – Relatório:
A assistente AA deduziu acusação particular contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de difamação p.p. arts. 180º do CP
O MP não acompanhou a acusação particular
Discordando veio o arguido requerer a abertura de Instrução nos termos do RAI junto aos autos alegando, em síntese:
- não se encontra suficientemente caracterizado na acusação o elemento volitivo do ilícito;
- as expressões em causa não têm qualquer caráter difamatório.
II – Saneamento:
O tribunal é competente.
Compulsada a acusação particular em causa resulta que da mesma consta (arts.3º e 4º) o seguinte:
«3. Com estas expressões, o arguido quis com elas ofender o bom nome, honra, consideração e dignidade pessoal da Assistente, como pretendeu e conseguiu.
4. O arguido mesmo sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se coibiu de publicar as declarações supra referidas, com a evidente intenção de ofender o bom nome, honra, consideração e dignidade pessoal da Assistente, como pretendeu e conseguiu.»
É assim manifesto que a acusação contém a descrição de factos atinentes à imputação ao arguido do elemento volitivo do crime.
Não há outras questões previas.
III – Fundamentação:
1. Considerações gerais sobre a Instrução:
Nos termos do artigo 286º do CPP a instrução visa, designadamente, a comprovação judicial da decisão final do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, mediante a verificação (ou não verificação) de indícios suficientes.
Por «indícios suficientes» para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a possibilidade razoável de que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal III, 2000, p.179), pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende, assim, da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e/ou da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art.º. 308º, n.º. 1 do Cód. Proc. Penal).
Como conclui ainda Germano Marques da Silva, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento”.
Assim, de acordo com o art. 308º do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respectivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.
Factos suficientemente indiciados:
Todos os descritos na acusação particular nomeadamente:
- No dia 24/04/2023 o arguido publicou na sua página de Facebook https://www.facebook.com/..., e que ainda se mantém, acompanhado de uma foto da ofendida, o seguinte texto:
“Caros ucranianos!
Devemos avisá-los novamente:
A Presidente da associação "A..." (A...) - AA (...) é membro do conselho de coordenação dos Russos e esta organização é membro da Fundação Mundial Russa. O seu marido (ele tem um sobrenome diferente) era (já faleceu) fã dos terroristas russos Givi e Motorola.
Não coopere com eles!
Eles são agentes de Moscovo!
Nada ficou indiciado quanto à alegada verdade das imputações feitas pelo arguido à assistente.
Motivação:
Quanto aos factos indiciados: prova documental junta aos autos quanto ao escrito em causa;
Quanto ao elemento intencional:
O arguido negou a intenção de ofender a assistente dizendo que pretendia informar os refugiados ucranianos residentes em Portugal que a assistente colaborava com a embaixada russa, sendo que ele era à data dos factos Presidente da Associação de Ucranianos em Portugal.
É certo que as expressões em causa, no que se refere à assistente, não tem em si mesmas (objetivamente consideradas) carácter em geral ofensivo:
- a participação no conselho de coordenação dos Russos organização membro da Fundação Mundial Russa, não encerra, por si só – ao menos de modo abstrato no tempo e no espaço – carácter ofensivo. Aliás, a expressão é até equívoca podendo referir-se a uma ONG ou mais latamente a interesses do Estado Russo, em qualquer dos casos, sem carácter em si mesmo depreciativo.
- dizer-se que certa pessoa é agente de Moscovo também não tem, em sentido estrito, carácter ofensivo podendo utilizar-se a expressão simplesmente para se aludir a um representante da Federação Russa.
Não obstante como referiu o arguido, ao utilizar as expressões em causa ele pretendia informar os refugiados ucranianos residentes em Portugal que a assistente colaborava com a embaixada russa. Esta imputação – de colaboração com a embaixada russa – sendo dirigida a cidadãos ucranianos residentes em Portugal refugiados da guerra que ocorre no seu País na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia – denota que o arguido agiu com dolo se não com dolo direto ao menos com dolo necessário, pois que não podia deixar de saber que perante aqueles cidadãos a quem se dirigia, essa (pretensa) colaboração da assistente seria tida como muito desfavorável na avaliação da sua pessoa.
Quanto aos factos não indiciados: por falta de qualquer prova sobre os mesmos.
Analisaremos de seguida as questões jurídicas suscitadas quanto aos elementos objetivos e subjetivos do crime em causa:
Quanto à verificação dos crimes de difamação e exercício de liberdade de expressão:
O crime de difamação tem como elementos objetivos do tipo:
- a imputação perante terceiro de um facto (ainda que sob a forma de suspeita) ou a formulação de um juízo referente a outra pessoa;
- o carácter ofensivo desse facto ou juízo.
Como elemento subjetivo o dolo em qualquer das suas modalidades.
Como se refere no Ac. cfr. Ac STJ de 13.07.2017 «a imputação de factos pode preencher o tipo, mesmo que tenha lugar sob a forma de suspeita. Com efeito, “a imputação de factos (…) desonrosos podem ser inequívocas, não apresentarem a mínima dúvida, ou podem estar recobertas pelo manto perverso e acutilante da suspeita. (…) o cerne da determinação dos elementos objectivos tem sempre de fazer[-se] pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo.” [Faria Costa, op. cit., p.612]. Estamos na presença de um crime de perigo, ou seja, o tipo basta-se com a verificação da susceptibilidade das expressões para ofender, não exigindo o dano.
No que concerne ao tipo subjectivo, trata-se de um tipo doloso, em qualquer das suas modalidades – dolo directo, necessário ou eventual (arts. 13º e 14º CP) -, “bastando, portanto, que o agente, ao realizar voluntariamente a acção, se tenha dado conta da capacidade ofensiva da integridade moral da pessoa visada, não se exigindo qualquer finalidade ou motivação especial”- por todos, o Ac. TRP, de 25.01.1995, CJ, Ano XX, tomo I, pág. 245. Ou seja, no que ao tipo subjectivo respeita é pacífico que o mesmo também não exige uma actuação do agente com “animus injuriandi vel diffamandi” ou dolo específico. Basta, por isso, para preenchimento do tipo subjectivo de ilícito que o agente aja com dolo genérico, ou seja, que actue na consciência de que as expressões utilizadas são aptas a produzirem ofensa da honra e consideração da pessoa visada. “É, pois, suficiente para a sua realização que o autor saiba que está a atribuir um facto, ou a formular um juízo de valor, cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheia ele conhece, e o queira fazer, e isto em qualquer das modalidades do dolo previstas no art.º14.º, do CP, bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da acção previstos nas normas incriminadoras respectivas.”. – cfr. Ac STJ de 13.07.2017,»
Quanto ao Direito à Liberdade de Expressão tem assento Constitucional como Direito Fundamental – art. 37º da CRP - e consubstancia um dos vetores nucleares da sociedade democrática. Para além da sua consagração Constitucional como Direito Fundamental, a liberdade de expressão está também expressamente assegurada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem – art. 10º. Tal direito não é, no entanto, absoluto conhecendo as limitações decorrentes da lei como expressamente admitido verificados certos circunstancialismos, nomeadamente (quanto às restrições previstas na Convenção art. 10º nº2)):
- «O exercício desta liberdades, implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.» (sublinhado nosso)
Como se sintetiza no Ac. STJ de 22-6-2023 (dgsi.pt) «relativamente à liberdade de expressão, são os seguintes os critérios interpretativos que têm vindo a ser adoptados pelo TEDH:
i) a liberdade de expressão é um fundamento essencial de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e do direito de manifestação de cada um;
ii) a liberdade de expressão vale não somente para as informações ou ideias favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam;
iii) os limites da crítica aceitável são mais largos no caso de um político, ou de uma personalidade pública, em relação a um cidadão comum (pelo que, no âmbito do discurso político ou de questões de interesse geral» há pouco espaço para as restrições à liberdade de expressão, sobretudo quando não há apelo à violência, ao ódio e à intolerância).
Atendendo a que o direito ao bom nome e à reputação não gozam de garantia autónoma por parte da CEDH, o processo decisório, em caso de conflito de tais direitos com o direito à liberdade de expressão, deverá centrar-se em controlar se a ingerência, enquanto restrição à liberdade de expressão, encontra razão justificativa pelos critérios fixados no n.º 2 do art. 10.º. Sendo que de acordo com esta perspectiva, tão-só são admitidas restrições ao exercício da liberdade de expressão que constituam providências necessárias numa sociedade democrática, à realização da proteção da honra ou dos direitos de outrem.»
Por outro lado, como se refere no Ac. RPorto de 22-2-2023 (dgsi.pt) na tarefa de «conciliar a tutela do direito à honra atingido pelo crime de difamação e a liberdade de expressão e crítica, há que distinguir entre a crítica da atuação de uma pessoa e a crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade, entre um juízo sobre essa atuação (que poderá até ser injusto, exagerado, formulado em termos agressivos, ou indelicados e descorteses) e um juízo sobre a pessoa.»
Como se sublinha no Ac.RLisboa de 12-9-2019 (dgsi.pt) também citado no Acórdão proferido nos autos em que o aqui arguida era queixoso «o Direito Penal não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidade do visado; só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial das qualidades morais que deve existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros, sendo ainda de frisar que na avaliação do preenchimento do tipo não basta a consideração das palavras e expressões proferidas; é necessário situá-las no enquadramento preciso em que foram ditas»
O que está em causa é, como se disse, que o arguido (Presidente da Associação de Ucranianos residentes em Portugal) num momento em que a Ucrânia está em guerra e sob invasão da Rússia, acusou a assistente de colaborar com o regime russo responsável pela decisão de invasão; de ser um agente desse Governo; e fê-lo como aviso «“Caros ucranianos! Devemos avisá-los novamente», isto é, imputando à referida colaboração da assistente possíveis efeitos prejudiciais para eles (cidadãos ucranianos) caso contactassem (cooperassem) com a assistente, sendo o seu objetivo, precisamente, evitá-lo.
Ora não está assim em causa uma opinião ou um juízo de valor, sobre da assistente, nomeadamente criticando as suas alegadas posições ou opções intelectuais ou ideológicas pró-russsas. O arguido sabia que o seu aviso comportava, como possível e até provável interpretação, um juízo sobre a pessoa da assistente, - haveria o perigo da assistente ser afinal uma «colaboracionista» do Governo Russo - trata-se de um ataque sobre o núcleo essencial da sua honra ou dignidade – seria uma pessoa cujo contacto com os seus concidadãos lhes poderia ser prejudicial num contexto de guerra no seu País.
Questão diversa é saber se as expressões em causa são ou não verídicas (ou se o arguido tinha razões válidas para as reputar de verdadeiras) – a «verdade da imputação» e (nesse caso) se a ilicitude da conduta estaria excluída pela prossecução de um interesse legítimo – precisamente evitar atos prejudiciais para os ucranianos residentes em Portugal que contactassem com a assistente.
Só que o arguido apesar de ter protestado (por mais do que uma vez) juntar prova quanto a estes factos … nada veio juntar aos autos, não havendo assim qualquer prova que suporte qualquer uma das suas aludidas alegações.
Em consequência deve o arguido ser pronunciado.
Face ao exposto, profere-se DESPACHO DE PRONÚNCIA, nos termos seguintes:
Nos termos do disposto no artigo 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal, para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular, nos termos do disposto no artigo 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pela prática dos factos e disposições legais descritos na acusação particular deduzida, para a qual na íntegra remetemos, atento o disposto no artigo 307º, n.º 1 parte final do Código de Processo, pronuncio o arguido
- BB (melhor identificado nos autos) Imputando-lhe, em autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de difamação p.p. arts. 180º do CPenal.
(...)
Custas pelo arguido»
1ª Está em causa no presente recurso a decisão instrutória que pronunciou o recorrente, pelo crime de difamação, nos termos da acusação particular deduzida pela assistente e que o Ministério Público não acompanhou.
2ªDesde logo, verifica-se que a acusação, nos items 2 e 3, relativos ao elemento subjetivo do ilícito, não discrimina nem identifica qual a parte do texto, a que alude no artgº 1º da mesma acusação particular, que caracteriza a prática do ilícito de difamação por parte do recorrente.
3ª pelo que deveria a mesma acusação ser rejeitada, por falta de requisitos legais, artgsº 283 nº 3 b) e 285 nº 1 e 3 do CPP.
4ª Por outro lado, o recorrente para contra prova dos factos descritos na acusação particular arrolou prova testemunhal que o Tribunal entendeu indeferir, por considerar, no despacho que declara aberta a instrução que tal prova deve ser feita em julgamento,
5º o que constituiu uma violação do preceituado no artgº 291 nº 1 e 3 e 292 nº 1 do CPP.
6ª Também, no despacho que determinou a abertura de instrução deliberou o Tribunal a inquirição do recorrente no debate instrutório sem que tal tenha sucedido e sem qualquer justificação.
7º Sendo que na decisão instrutória exarou o Tribunal que não feita prova quanto à veracidade das imputações feita pelo recorrente, o que é também, contraditório com a não admissão de prova.
8º E, sem prejuízo do supra-exposto, as expressões de que a assistente é membro do conselho de coordenação dos Russos ou que é agente de Moscovo, é relativa a factos relacionados com a atividade política de assistente, num âmbito de enorme tensão bélica resultante do conflito entre a Ucrânia e a Federação Russa, nada tendo a ver com factos pessoais, concretamente, honra, dignidade, bom nome e consideração da mesma.
9º Pelo que tal situação não tem relevância penal, tendo o arguido proferido a mesma no âmbito da liberdade de expressão, violando a decisão recorrida também o disposto no artgº 10 da CEDH.
(...)
NESTES TERMOS e nos melhores de Direito doutamente supridos deverá ser dado provimento ao presente recurso e revogar-se a decisão instrutória por outra que não pronuncie o recorrente e determine o arquivamento do processo ou, subsidiariamente, por outra que admita a prova arrolada pelo recorrente e a sua inquirição como previamente determinado.
O MP junto da 1ª instância ofereceu a sua resposta, da qual essencialmente se respiga:
«... analisando o teor da publicação, somos levados a crer que as expressões em causa não contêm qualquer carácter ou juízos ofensivos da honra ou consideração da assistente.
Não será, de todo o modo, despiciendo aceder que tais palavras, atento o clima actual entre a Rússia e Ucrânia, possam, efectivamente, ter perturbado a assistente. Contudo, em nosso entendimento, tais palavras não podem ser apresentadas como ultrajantes, nem que reclamem tutela penal.
Por outro lado, e mesmo que assim não seja considerado, entendemos que não se encontra suficientemente indiciado o elemento volitivo do crime de difamação, porquanto não existem indícios suficientes de que a intenção do arguido, ora recorrente, tenha sido a de enxovalhar e ultrajar a assistente, mas apenas a de informar os cidadãos ucranianos residentes em Portugal da sua colaboração com a embaixada Russa.
(...)
Note-se que a liberdade de expressão e de informação vem consagrada na Constituição da República Portuguesa que prevê, no seu artigo 37º, n.º 1, que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
Em anotação à citada norma constitucional, Gomes Canotilho e Vital Moreira referem “O âmbito normativo desta liberdade deve ser o mais extenso possível de modo a englobar opiniões, ideias, pontos de vista, convicções, críticas, tomadas de posição, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto (questões políticas, económicas, gastronómicas, astrológicas), e quaisquer que sejam as finalidades (influência da opinião pública, fins comerciais) e os critérios de valoração (verdade, justiça, beleza, racionais, emocionais, cognitivos, etc).”
Por conseguinte, entendemos que as palavras sob análise, e no contexto em que foram proferidas, não tiveram o propósito de rebaixar e humilhar a assistente, nem têm relevância penal para que possa integrar a prática, pelo arguido, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal.»
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.- Questões a resolver
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões decidir:
- Avaliar se as expressões propaladas pela acusação e constantes do despacho de pronúncia são factos/opiniões ofensivos da honra e consideração da assistente ou são antes propaladas dentro da liberdade de expressão do arguido, inseridas no direito de critica da atividade política da assistente, num contexto de guerra entre os países do arguido e da assistente.
2. Reprodução da acusação particular.
«AA, NIF ...41, per si e na qualidade de legal representante da A..., NIF ...77, com residência e sede na Rua ..., ... ..., Assistente, nos autos à margem referenciados vem mui respeitosamente, nos termos do disposto no artº. 285, nº 1 e 77º, ambos do C.P.P.
DEDUZIR ACUSAÇÃO PARTICULAR e ...
contra:
BB, Presidente da Associação de ucranianos em Portugal, melhor identificado nos autos,
Nos termos e com os fundamentos seguintes:
I.- Acusação Particular:
Porquanto:
1.No dia 24/04/2023 o arguido publicou na sua página de Facebook https://www.facebook.com/..., e que ainda se mantém, acompanhado de uma foto da ofendida, o seguinte texto:
“Caros ucranianos!
Devemos avisá-los novamente:
A Presidente da associação "A..." (A...) - AA (...) é membro do conselho de coordenação dos Russos e esta organização é membro da Fundação Mundial Russa. O seu marido (ele tem um sobrenome diferente) era (já faleceu) fã dos terroristas russos Givi e Motorola.
Não coopere com eles!
Eles são agentes de Moscovo!
2.O denunciado bem sabe que estas afirmações são falsas.
3.Com estas expressões, o arguido quis com elas ofender o bom nome, honra, consideração e dignidade pessoal da Assistente, como pretendeu e conseguiu.
4.O arguido mesmo sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se coibiu de publicar as declarações supra referidas, com a evidente intenção de ofender o bom nome, honra, consideração e dignidade pessoal da Assistente, como pretendeu e conseguiu.
5.O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
6.Pelo exposto, cometeu um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal.»
3.1. Avaliar se as expressões propaladas pela acusação e constantes do despacho de pronúncia são factos/opiniões ofensivos da honra e consideração da assistente ou são antes propaladas dentro da liberdade de expressão do arguido, inseridas no direito de critica da atividade política da assistente, num contexto de guerra entre os países do arguido e da assistente.
O arguido vem pronunciado pela prática de um crime de difamação p. e p. pelos art. 180.º, do C. Penal.
Dispõe o art. 180.º do C. Penal:
«1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
O bem jurídico protegido pelo crime de difamação é a honra, que é visto na doutrina dominante como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicando na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
O artigo 26º da CRP é expressão do postulado da dignidade humana e no feixe de direitos que envolve encontra-se o direito ao bom nome e à reputação. O direito ao bom nome e à reputação, referindo-se primordialmente à honra exterior ou objetiva, à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, salvaguarda também o crédito pessoal.
Para se concluir que uma expressão é ofensiva da honra e consideração, é necessário inseri-la no contexto em que foi proferida, o meio/país a que pertencem assistente/arguido, as relações entre eles, a existência de conflitos e sua profundidade, entre outros aspetos que podem ser avaliados.
Nesta linha de raciocínio, o Prof. Beleza dos Santos, na ob. cit., pág.167, citando Jannitti Piromallo, escreve «os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objetivamente merecedores de tutela».
Além da imputação de factos ou juízos ofensivos da honra é ainda elemento do tipo de difamação que a imputação seja feita não diretamente ao ofendido mas dirigindo-se a terceiro, na tal “relação tipicamente triangular” de que falam alguns doutrinadores.
Por outro lado, e como é consabido o direito ao bom nome não é um valor absoluto.
Com efeito dispõe o artigo 10º da CEDH (Liberdade de expressão)
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
E apelando ao Ac. do STJ de 30.6.2011, onde é relator o Conselheiro João Bernardo:
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem não tutela, no plano geral, o direito à honra.
Não o ignora no artigo 10.º, n.º 2, mas a propósito das restrições à liberdade de expressão.
Esta construção levou aquele Tribunal a seguir um caminho inverso ao que vinham seguindo, habitualmente, os Tribunais Portugueses. Não partia já da tutela da honra, situando-se, depois, nas suas ressalvas, mas partia antes da liberdade de expressão, situando-se, depois, na apreciação das suas restrições, constantes daquele artigo 10.º, n.º 2.
E o TEDH vem proferindo múltiplas decisões cujo entendimento, mantido de forma constante, vem assentando, essencialmente, no seguinte:
- A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa;
- As excepções constantes deste n.º 2 devem ser interpretadas de modo restrito;
- Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.
- Os políticos e outras figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum – quanto à comunicação social, o Tribunal vem reiterando mesmo a expressão “cão de guarda” - devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas;
Na aferição dos limites da liberdade de expressão, os Estados dispõem de alguma margem de apreciação, que pode, no entanto, ser sindicada pelo próprio TEDH.
Tal entendimento tem levado a que este Tribunal Europeu, considerando expressões insertas em peças jornalísticas ou outras ainda dentro dos limites da liberdade de expressão, venha condenando os Estados por os respectivos tribunais internos terem condenado os autores ou, em geral, os responsáveis por elas.
Portanto, na ordem interna portuguesa, trata-se da questão do conflito do direito à honra ao bom-nome e reputação, com consagração constitucional [art.26.º da CRP] com o princípio constitucional da liberdade de expressão [art.37.º da CRP], o qual se traduz no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, bem como o direito de informar, sem impedimentos ou discriminações.
Este direito tem uma grande amplitude, permitindo que se emitam juízos desfavoráveis, contundentes, críticas, embora sujeito a limites, designadamente, o respeito devido à honra e dignidade da pessoa visada que ultrapassem de forma gratuita o direito de crítica.
Os direitos ao bom-nome e reputação e à livre expressão, têm no plano interno aparentemente igual valor, já não assim no âmbito da CEDH.
Há, no entanto, sempre em caso de conflito, como é o caso, de tratar harmonizá-los com apelo às circunstâncias concretas.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido, em vários arestos, como já vimos que «a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de todas as sociedades democráticas, sendo uma das condições primordiais para o seu progresso e para o desenvolvimento de cada um.» Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais não existe uma «sociedade democrática». «“os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a um homem político, agindo na sua qualidade de personalidade pública” do que em relação a um simples cidadão (§ 30, ii). Assim o é porque “o homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos». – v.entre outros, TEDH de 28/9/2000, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal, de 30/3/2004, no caso Radio France e outros c. França.
Ora, uma das manifestações da liberdade de expressão é o direito que cada pessoa tem de exercer o direito de crítica, nomeadamente, a nível político.
Revertendo ao caso presente, o arguido, no decurso da guerra da Ucrânia, publicou - No dia 24/04/2023 na sua página de Facebook https://www.facebook.com/..., e que ainda se mantém, acompanhado de uma foto da ofendida, o seguinte texto:
“Caros ucranianos!
Devemos avisá-los novamente:
A Presidente da associação "A..." (A...) - AA (...) é membro do conselho de coordenação dos Russos e esta organização é membro da Fundação Mundial Russa. O seu marido (ele tem um sobrenome diferente) era (já faleceu) fã dos terroristas russos Givi e Motorola.
Não coopere com eles!
Eles são agentes de Moscovo!»
Visto o contexto em que são proferidas as expressões, no âmbito do que é considerado o maior conflito entre humanos que ocorre quando os países não conseguindo resolver as duas diferenças, reivindicações territoriais ou políticas, partem para a guerra, temos por seguro que as associações que promovem a amizade e a convivência entre imigrantes, no caso e aparentemente entre ucranianos e russos, são frequentemente alvos de críticas e desconfiança mútuas dado o conflito pátrio exacerbado e a alta tensão que daí decorre. Efetivamente e como é consabido atualmente, e desde 9 de Dezembro de 2021, a Rússia e a Ucrânia encontram-se em guerra.
A acusação de serem agentes de Moscovo quer dirigida à assistente, quer mesmo á associação “A...” mais não é do que uma manifestação da profunda desconfiança política mútua.
Por sua vez, a expressão “A Presidente da associação "A..." (A...) - AA (...) é membro do conselho de coordenação dos Russos e esta organização é membro da Fundação Mundial Russa.», não encerra objetivamente considerada qualquer ofensa ou lesão da sua honra, bom nome ou consideração.
O “facto” mais ofensivo que consta do texto publicado não se dirige à assistente, nem á associação, mas ao falecido marido da assistente, elemento que não se encontra de algum modo enfatizado nem na acusação particular nem na decisão de pronúncia, inexistindo qualquer referência ao crime de ofensa à memória de pessoa falecida, previsto no artigo 185.º do Código Penal.
Assim, não podemos deixar de entender que as expressões usadas podem ter sido do desagrado da Assistente, e até incómodas para a mesma, mas integram-se num contexto de desconfiança política resultante da Guerra entre os dois países e tinha como objetivo claro avisar os demais concidadãos do arguido dessa desconfiança política reinante entre os cidadãos dos dois países neste período.
A Presidente da associação A... exercendo um “cargo” político associativo, tem uma maior exposição e tem de se sujeitar à crítica, comunitariamente aceite, ainda que se recorra a expressões desagradáveis, como é o caso de “são agentes de Moscovo”.
Assim, as expressões proferidas pelo arguido, embora desagradáveis, proferidas no contexto da Guerra entre os dois países e após a veiculação - desde 2022[1] - da informação de queixas de infiltração de russos Pró-Kremlin em associações da Comunidade ucraniana em Portugal, estão cobertas pela liberdade de expressão constitucionalmente garantida e pelo direito a informar e ser informado.
Concluindo, as expressões em causa não contêm qualquer juízo ofensivo da honra ou consideração da assistente e também não existem indícios suficientes de que a intenção do arguido tenha sido a de ultrajar a assistente ou de ferir o bom nome e reputação desta, mas apenas a de informar os cidadãos ucranianos residentes em Portugal da colaboração da assistente com a embaixada Russa, seja ou não tal asserção verdadeira, o que não se encontra indiciado porque a prova arrolada pelo arguido não foi ouvida, diferentemente do que consta da decisão e atento todo o processado, que compulsamos.
Pelo exposto, nas circunstâncias e contexto em que as expressões em causa foram proferidas pelo arguido, não se mostra preenchido o crime de difamação pelo qual vem pronunciado, o que implica a procedência do recurso.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido com a consequente revogação da decisão de pronúncia.
Porto, 22 de outubro de 2025
Maria Dolores Silva e Sousa [Relatora]
José António Rodrigues da Cunha[1º Adjunto]
José Castro [2ª Adjunto]
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[1]Cf. https://cnnportugal.iol.pt/russos/servico-de-informacoes-de-republica-portuguesa/ucranianos-alertam-secretas-portuguesas-ha-agentes-de-influencia-russa-infiltrados-em-ong-que-apoiam-refugiados/20220406/624c6d1a0cf2cc58e7ec3eb6; https://www.rtp.pt/noticias/pais/carta-ao-sirp-associacao-dos-ucranianos-em-portugal-denuncia-infiltrados-russos_n1396676; https://www.publico.pt/2022/04/29/sociedade/noticia/refugiados-ucranianos-sao-recebidos-russos-prokremlin-pais-denuncia-associacao-ucranianos-2004285