DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
CONDUÇÃO COM ÁLCOOL
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário

I - Os pressupostos cumulativos do direito de regresso da seguradora previsto no art. 27º nº1-c) do Dec. Lei nº 291/2007, são a responsabilidade civil subjetiva do condutor responsável e a condução com TAS superior à legalmente permitida.
II - Porém, o segurado, quando demandado em ação de regresso pela seguradora, não está impedido de proceder à ilisão da presunção “juris tantum”, decorrente desta norma, do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o ato de condução determinante do acidente.
III – Se o que dá causa ao acidente é o rebentamento de um pneu, tal configura evento inerente ao funcionamento do veículo, compreendido no seu risco de circulação, donde, mesmo acusando o seu condutor TAS superior à legalmente permitida, não está preenchido o primeiro pressuposto do direito de regresso da seguradora previsto no art. 27º nº1-c) do Dec. Lei nº 291/2007, que impõe que o condutor tenha dado causa ao acidente.

Texto Integral

Proc. nº 2505/23.6T8AVR.P2

Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro – Juiz 3

Apelação

Recorrente: “A... – Companhia de Seguros, SA”

Recorrido: AA

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores João Diogo Rodrigues e Rui Moreira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

A autora “A..., Companhia de Seguros SA” intentou ação de processo comum contra o réu AA alegando, em resumo, que:

- No âmbito do exercício da sua atividade, a autora celebrou com o réu um contrato de seguro automóvel que teve como objeto o veículo de matrícula ..-..-IC;

- No dia 1.1.2011, pelas 01h20m, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo de matrícula ..-..-IC conduzido pelo réu e que consistiu num despiste;

- O acidente ficou a dever-se a culpa do réu e dele resultaram ferimentos para os diversos ocupantes do veículo;

- O réu conduzia com uma taxa de alcoolemia de 1,95 g/l;

- A autora indemnizou cada uma das passageiras com os seguintes montantes:

a) BB – 346.290,43€

b) CC – 2.000,00€

c) DD – 1.750,00€

d) EE – 3.000,00€

e) FF – 5.000,00€;

- Pagou ainda as despesas hospitalares relativamente a todas as lesadas e suportou as taxas de justiça do processo ... onde se discutiu o acidente e a indemnização a arbitrar à lesada BB;

- A autora tem sobre o réu direito de regresso.

Em conformidade pediu a condenação do réu no pagamento da quantia de 359.835,70€, acrescidos de juros de mora à taxa legal.

Mais pediu a condenação do réu no pagamento de todas as quantias que vierem a ser pagas a título de regularização do sinistro pela autora.

O réu contestou alegando que a causa do acidente foi o rebentamento de um pneu, não se aplicando assim o disposto no art. 27º, n.º 1, c) do Dec. Lei nº 291/2007 de 21.8.

Mais invocou estar prescrito o eventual direito de regresso da autora.

Concluiu pedindo a improcedência da ação e a sua consequente absolvição.

Foi dispensada a realização de audiência prévia, procedendo-se à elaboração de despacho saneador que conheceu da prescrição invocada, declarando prescritos todos os créditos, com exceção do crédito relativo aos pagamentos efetuados a BB, o crédito relativo às taxas de justiça pagas no âmbito da ação nº ... e o crédito relativo ao pagamento efetuado, em 14.8.2018, ao Centro Hospitalar ..., no valor de 103,00€.

Fixou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.

Por fim, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada, e absolveu o réu do pedido contra ele formulado.

A autora, inconformada com o decidido, interpôs recurso de apelação, na sequência do qual foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto em 14.1.2025, onde se deliberou a anulação da sentença recorrida, ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Civil, e se determinou a reabertura da audiência de julgamento, presidida pela Mmª Juíza “a quo”, a fim de nesta:

i) Se proceder à audição da gravação integral do depoimento prestado pela testemunha GG no âmbito do processo com o nº ...;

ii) Se conceder às partes a possibilidade de, em termos de contraditório, se pronunciarem quanto a tal depoimento.

Mais se determinou que depois de produzidas novas alegações e encerrada a audiência se elaborasse nova sentença.

Regressados os autos à 1ª Instância, foi cumprido o determinado pelo Tribunal da Relação do Porto e proferida nova sentença que voltou a julgar a ação improcedente, por não provada, e absolveu o réu do pedido contra ele formulado.

Novamente inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso visa submeter à apreciação do Tribunal Superior a decisão proferida pela Mmª Juiz do Tribunal a quo relativamente à absolvição do Réu.

2. Com efeito, insurge-se a Recorrente com o facto de o Réu ter sido absolvido do pedido formulado pela Autora, porquanto, à luz da prova produzida nos presentes autos, não resultou demonstrado que o acidente em discussão nos autos ocorreu devido a um rebentamento de um pneu, conforme consta da douta Sentença recorrida.

3. Relativamente ao facto provado 12., a Mmª Juiz do Tribunal a quo valorou os depoimentos das testemunhas DD, CC e EE, em conjugação com o depoimento prestado por GG no âmbito do processo nº ....

4. A Mmª Juiz do Tribunal a quo ignorou por completo a prova documental carreada para os autos e olvidou interpretar a prova testemunhal produzida com o normal acontecimento dos factos, aceitando a versão trazida pelo Réu no seu articulado e o depoimento das testemunhas DD, CC, BB, EE e FF, sem qualquer espírito crítico.

5. Da prova produzida não resultou demonstrada a ocorrência de qualquer rebentamento de pneu.

6. As testemunhas que prestaram depoimento na Audiência de Julgamento no dia 28 de Junho de 2024, apesar de atestarem que antes do despiste ouviram um grande barulho, também afirmaram que foi o Réu quem, mais tarde, lhes referiu que o barulho se deveu ao rebentamento do pneu da frente direito.

7. A testemunha DD, mulher do Réu, declarou que terá sido o rebocador do veículo IC quem relatou ao Réu que o pneu da frente direito estava rebentado e, por sua vez, o Réu relatou tal factualidade à testemunha, conforme depoimento gravado entre os minutos 12:20 a 12:56 e 14:06 a 14:30 (o depoimento foi prestado na Audiência de Julgamento no dia 28 de Junho de 2024 entre os minutos 09:48:50 a 10:03:56)

8. A testemunha CC, filha do Réu, declarou em sede de Audiência de Julgamento que o seu pai é que lhe havia relatado que o pneu estava rebentado após o acidente, cfr. depoimento gravado entre os minutos 04:50 a 05:46 e 12:36 a 13:23. (o depoimento foi prestado na Audiência de Julgamento no dia 28 de Junho de 2024 entre os minutos 10:04:04 a 10:17:36).

9. A testemunha EE, filha do Réu, declarou igualmente que o Réu é que lhe relatou a ocorrência do rebentamento do pneu, cfr. depoimento prestado em sede de Audiência de Julgamento no dia 28 de Junho de 2024 e se encontra gravado entre os minutos 10:33:39 a 10:43:23, em concreto, entre os minutos 04:17 a 04:45.

10. Reaberta a Audiência de Julgamento no passado dia 21.05.2025, as partes tiveram oportunidade de ouvir o depoimento prestado pelo Sr. GG no âmbito do processo que correu termos sob o nº ..., no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 3, conforme gravação reproduzida em sede de Audiência de Julgamento a 21.05.2025 entre os minutos 16:00:44 a 16:06:40.

11. A testemunha GG sublinhou, repetidamente, que não podia afirmar se o rebentamento do pneu se verificou antes ou depois do despiste (cfr. depoimento gravado entre os minutos 02:56 a 03:09 e 05:25 a 05:37).

12. Mais referiu a testemunha que o triângulo de suspensão do pneu também se partiu.

13. Dizem-nos as regras de experiência comum que o triângulo de suspensão, regra geral, apenas se parte devido a um forte impacto, que pode ser traduzido num embate num objeto ou na transposição de um buraco.

14. Nas palavras da testemunha GG, o veículo tripulado pelo Recorrido caiu num talude onde existiam várias pedras, admitindo a possibilidade de o pneu ter embatido numa dessas pedras após o despiste, o que poderá ter provocado o rebentamento do pneu.

15. Em sede de Audiência de Julgamento, a testemunha BB declarou não se lembrar de qualquer circunstância relacionada com o acidente, declarando saber apenas aquilo que fora relatado pelos seus pais e pelas suas irmãs posteriormente (o depoimento foi prestado na Audiência de Julgamento no dia 28 de Junho de 2024 entre os minutos 10:17:40 a 10:29:42).

16. A aludida testemunha pareceu olvidar que intentou uma ação declarativa comum contra a ora Recorrente, cuja ação correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 3, sob o nº de processo ..., e cuja Petição Inicial se encontra junta aos autos sob o nº 4 da Petição Inicial da Recorrente.

17. No âmbito do processo ..., BB declarou que o Réu circulava a velocidade superior a 110 km/h (artigo 17º) e referiu que este conduzia de forma negligente e desapropriada (artigo 27º e 28º), cfr. documento nº 4 junto com a Petição Inicial.

18. Na referida Petição Inicial, BB afirmou que as irmãs e mãe pediram ao Réu para reduzir a velocidade (artigo 31º), cfr. documento nº 4.

19. Os depoimentos prestados na Audiência de Julgamento não apresentam qualquer semelhança aos factos alegados por BB na ação que correu termos nº ....

20. Em sede de Audiência de Julgamento, DD (cfr. depoimento gravado entre os minutos 04:42 a 04:50 e 11:50 a 11:55), CC (cfr. depoimento gravado entre os minutos 07:46 a 08:04), EE (cfr. depoimento gravado entre os minutos 03:17 a 03:30), BB (cfr. depoimento gravado entre os minutos 03:46 a 05:04), declararam que se sentiam seguras no veículo IC antes do acidente e que o Réu tripulava de forma “normal” e “tranquila”.

21. O depoimento de BB, totalmente contrário ao por si declarado na sua Petição Inicial junta sob o nº 4 apenas, pode ser demonstrativo de que ou construiu uma história na sua Petição Inicial, forjando os factos ou BB e as demais testemunhas DD, EE, FF e CC relataram uma versão dos factos diferente da realidade, apenas numa tentativa de desresponsabilizar o Réu.

22. A Mmª Juiz do Tribunal a quo desconsiderou por completo as declarações do Réu prestadas à GNR após o acidente, que se encontram juntas sob o nº 2 da Petição Inicial, as quais não evidenciam a existência de qualquer rebentamento de pneu ou existência de um grande barulho momentos antes do despiste.

23. Estranha-se que a GNR também não faça constar na Participação de Acidente que o pneu frontal direito estava rebentado, como é usual acontecer nesses casos.

24. Dizem-nos as regras da experiência comum que quando o veículo circula a uma velocidade moderada, o rebentamento de um pneu da frente do lado direito, em princípio, provoca um desvio do veículo para o lado direito e, consequentemente, o veículo perde velocidade gradualmente.

25. Existindo um rebentamento do pneu a jante passa a estar imediatamente em contacto com o pavimento.

26. Compulsado o croqui, para além de não existirem rastos de travagem no pavimento, inexistem igualmente quaisquer rastos que atestem que a jante do lado direito do veículo IC em algum momento esteve em contacto com o pavimento.

27. Muito se estranha que alguém que tripule um veículo com uma TAS de 1,95 g/l, i.e., com uma taxa correspondente a mais do triplo da permitida, consiga tripular o veículo de forma cautelosa e em cumprimento das mais elementares regras estradais, conforme a Mmª Juiz do Tribunal a quo entende.

28. Entende a Recorrente que o segmento “na sequência do rebentamento do pneu da frente do lado direito” do facto provado 12. deverá ser eliminado e substituído pela expressão “sem que ocorresse qualquer circunstância para tal”, pelo que o facto provado 12. deverá passar a ter a seguinte redação:

“12 - Junto ao Km 21,970 da EN ..., sem que ocorresse qualquer circunstância para tal, o Réu perdeu o controlo do veículo IC, passando a circular de forma desgovernada, ocupando tanto a via afeta ao sentido ... – ..., quer a via afeta ao sentido contrário, em ziguezague.”

29. Apenas se poderá concluir que o acidente ocorreu por culpa única e exclusiva do Réu.

30. Com efeito, o Réu, ao tripular o veículo IC com uma TAS de 1,95 g/l, não logrou manter o veículo na via de circulação em seguia, entrando em despiste e perdendo o controlo do veículo.

31. Atribuir como causa do acidente o rebentamento de um pneu, quando inexistem quaisquer elementos que possam atestar essa circunstância, sempre seria um subterfugio fácil para que os condutores saíssem desresponsabilizados dos acidentes.

32. Demonstrando-se a culpa do Réu pela produção do acidente, encontra-se demonstrado igualmente que este tripulava o veículo IC com uma taxa de álcool superior ao legalmente permitida, pelo que estão verificados os pressupostos do disposto no artigo 27º, alínea c) do DL nº 291/2007, de 21 de agosto.

33. Assim, a Recorrente tem direito de regresso contra o Réu das quantias que despendeu com a regularização do presente sinistro.

34. Resulta do exposto que a Autora despendeu o montante de €347.731,43 com a regularização do sinistro, cfr. factos provados 18., 19., 20., pelo que deve o Réu ser condenado no pagamento deste montante.

O réu apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.

Formulou as seguintes conclusões:

I - O poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume, nunca, uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.

II – Poder de cognição do Tribunal a quo, baseado na sua livre apreciação, diga-se, formulada no decurso de dois julgamentos (no processo nº ... e no processo do qual a Apelante recorre).

III - Livre apreciação, diga-se, formulada no decurso de dois julgamentos (no processo nº ... e no processo do qual a Apelante recorre).

IV - Livre apreciação, diga-se formulada, no decurso de várias sentenças (…)

V - Já no processo nº ... ficou provado que foi o rebentamento do pneu a causa do despiste.

VI - Acontece que tal matéria foi relegada para outro processo por Decisão do Tribunal da Relação do Porto, e não foi possível ter sido logo fixada tal matéria, por razões meramente processuais.

VII - Aliás, diga-se, em abono da verdade, que, com essa decisão se conformou a apelante.

VIII - No caso presente, duas sentenças foram proferidas e nada abalou a livre convicção do Tribunal a quo.

IX - E, a importância do testemunho GG, entretanto falecido, de não conseguir “precisar se o pneu rebentou antes do acidente ou consequência do acidente, por ter batido em alguma coisa” é perfeitamente possível, tendo em conta que foi o rebocador do carro, mas, meramente, circunstancial, no contexto de toda a prova testemunhal produzida por testemunhas comuns à Autora e ao Demandado.

X - Se, os testemunhos são familiares do Demandado, tal circunstância foi livremente apreciada pela Exª Sra. Juíza do Tribunal a quo, não foram testemunhas inventadas, sentiram, presenciaram e estiveram, pessoalmente, no despiste

e) foi apreciada por várias vezes,

f) em processos diferentes e

g) em julgamentos distintos.

h) Face a depoimentos de testemunhas (comuns) indicadas por ambas as partes processuais.

XI– A expressão – “ponto da matéria de facto” - procura acentuar o carácter atomístico, setorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir e, lendo-se as Alegações de Recurso, só se consegue entender a intenção do Apelante: que o Tribunal da Relação, proceda a novo julgamento e julgue a causa, em conformidade com depoimentos de testemunhas comuns.

XII - “O controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal de Primeira Instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respetiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões expostas, está em melhor posição “ (cfr Acórdão da Relação de Coimbra de 25 de maio de 2004; Ac da Relação do Porto de 19 de setembro de 2000; Ac do STJ de 21 de janeiro de 2003 e de 20 de maio de 2010, disponíveis em www.dgsi.pt).

XIII - Na verdade, “só perante tal situação (de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão) é que haverá erro de julgamento; situação essa que ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e liberdade de julgamento, que não compete ao Tribunal da Relação sindicar” (Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 25 de novembro de 2003, Acórdão de 18 de agosto de 2004, Acórdão do STJ de 06 de junho de 2006 disponíveis em www.dgsi.pt).

XIV - Pela prova produzida na sua globalidade, foi, inequivocamente, demonstrado e dado como provado o facto 12 da matéria de facto:

“Junto ao Km 21,970 da EN ..., na sequência do rebentamento do pneu da frente lado direito, o Réu perdeu o controlo do veículo IC, passando a circular de forma desgovernada, ocupando tanto a via afeta ao sentido ... – ..., quer a via afeta ao sentido contrário, em ziguezague”

XV - O álcool no sangue superior ao legalmente permitido, não foi a causa do acidente, pelo que não estão verificados os pressupostos legais do dever de indemnizar (artigo 27º alínea c) do DL nº 291/2007 de 21 de agosto.

XVI - Impõe-se a verificação da existência de nexo de causalidade entre o alegado estado de alcoolemia e o acidente, o que não ocorre no caso.

XVII – Não existiu conduta ilícita do Apelado.

XVIII - Nem o despiste do veículo que conduzia foi diretamente induzido pelo álcool que ingeriu.

XIX – à luz da prova produzida nos presentes autos resultou demonstrado que o acidente (despiste) ocorreu devido a rebentamento do pneu.

XX – Valorando os depoimentos das testemunhas

XXI – A apelante descreve conclusões descontextualizadas da prova produzida (conclusões 6. 7. 8. 9. 10.)

XXII – Obviamente que a Testemunhas GG não estava no local do acidente para testemunhar o que quer que fosse. A testemunha foi o rebocador do veículo e foi nessa qualidade que viu um pneu rebentado, e, quando conjugado com os depoimentos de todas as testemunhas, levou o Tribunal a quo, a proferir várias decisões no mesmo sentido: a causa do despiste foi o rebentamento de um pneu.

XXIII – Não existe qualquer contradição nos depoimentos nas duas ações judiciais.

XIV - A taxa de álcool no sangue que apresentava não foi causa direta e necessária do acidente, como ficou plenamente demonstrado pelos depoimentos das testemunhas comuns a Autor é Demandada.

XXV – Consequentemente, o acidente não é imputável a título de culpa efetiva ou presumida ao Demandado, condutor da viatura que se despistou por causa do rebentamento do pneu da frente do lado direito.

XXVI - A Apelada conforma-se, com o teor integral da Douta Sentença de fls ..,

O recurso foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Cumpre, então, apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

IReapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto [alteração do facto provado nº 12];

II – Direito de regresso da autora/seguradora ao abrigo do art. 27º do Dec. Lei nº 291/2007, de 21.8.


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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

1 - No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com o Réu um contrato de seguro do Ramo Automóvel, titulado pela apólice nº ..., através do qual a Autora assumiu a responsabilidade civil pelos danos emergentes de acidente de viação decorrentes da circulação do veículo de matrícula ..-..-IC.

2 - No dia 01 de Janeiro de 2011, pelas 01:20 horas, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional ... junto ao Km 21,970, na Freguesia ..., no Concelho de Anadia, no Distrito de Aveiro, no qual foi interveniente o veículo IC, conduzido pelo Réu.

3 - No interior do veículo IC circulavam as passageiras DD, FF, CC, BB e EE,

4 - A EN ..., junto ao local onde ocorreu o acidente, configura uma reta, sendo possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros,

5 - A faixa de rodagem é constituída por duas vias de circulação, estando afeta uma via para cada sentido, sendo os sentidos de circulação delimitados por linha longitudinal mista na via afeta ao sentido ....

6 - Os limites direito e esquerdo da faixa de rodagem são constituídos por uma berma com 2,20 metros de largura, sendo ambas as bermas ladeadas por vegetação,

7 - O acidente ocorreu durante a noite.

8 - No local onde ocorreu o acidente inexista iluminação artificial proveniente de candeeiros.

9 - No momento em que ocorreu o acidente não chovia, fazendo um nevoeiro ligeiro.

10 - A velocidade máxima permitida no local era 90 km/h.

11 - Nas circunstâncias de tempo e de lugar supra descritas, o veículo de matrícula IC circulava na EN ..., na via afeta ao sentido ... – ...,

12 - Junto ao Km 21,970 da EN ..., na sequência do rebentamento do pneu da frente do lado direito, o Réu perdeu o controlo do veículo IC, passando a circular de forma desgovernada, ocupando tanto a via afeta ao sentido ... – ..., quer a via afeta ao sentido contrário, em ziguezague.

13 - O veículo IC capotou sobre si mesmo, acabando por ficar imobilizado, capotado sobre si, na zona de vegetação existente na berma esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido ... – ....

14 - O Réu foi submetido a teste de alcoolemia, tendo acusado uma TAS de 1,95 g/l.

15 - Na sequência do acidente BB, sofreu lesões e intentou uma ação declarativa sob a forma de processo comum contra a ora Autora, peticionando a condenação da ora Autora no pagamento de indemnização decorrente das lesões sofridas no acidente.

16 – Essa ação correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 3, sob o nº de processo ....

17 – A final foi a agora Autora condenada a pagar à lesada BB a quantia de 180.000, € por danos patrimoniais e 100.000,00 € por danos morais, bem como do montante que se vier a liquidar em execução de sentença e relativo a tratamentos médicos, de enfermagem, intervenções cirúrgicas, internamentos, ajudas técnicas e medicamentosas e de terceiras pessoas que tenham como causa as lesões decorrentes do acidente de viação supra descrito.

18 - A Autora procedeu ao pagamento à lesada BB do montante total de 346.290,43€.

19 - A título de consultas e tratamentos médicos à lesada BB, a Autora pagou ao Centro Hospitalar ..., E.P.E. o montante total de €103,00.

20 - Devido à ação intentada contra a ora Autora, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 3, sob o nº de processo ..., a Autora teve de suportar o montante total de € 1.338,00 a título de taxas de justiça.

Não se provou que:

a) O veículo IC circulasse a uma velocidade superior a 110 km/hora.

b) O referido em 12 ocorresse sem que qualquer circunstância tivesse ocorrido para tal.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

IReapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto [alteração do facto provado nº 12]

1. A autora/recorrente centrou as suas alegações de recurso na impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pretendendo que o seu nº 12 [Junto ao Km 21,970 da EN ..., na sequência do rebentamento do pneu da frente do lado direito, o réu perdeu o controlo do veículo IC, passando a circular de forma desgovernada, ocupando tanto a via afeta ao sentido ... – ..., quer a via afeta ao sentido contrário, em ziguezague] passe a ter a seguinte redação:

- Junto ao Km 21,970 da EN ..., sem que ocorresse qualquer circunstância para tal, o Réu perdeu o controlo do veículo IC, passando a circular de forma desgovernada, ocupando tanto a via afeta ao sentido ... – ..., quer a via afeta ao sentido contrário, em ziguezague.

No sentido desta alteração indica excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, CC, EE e BB e também do depoimento produzido na audiência de julgamento realizada no âmbito do processo com o nº ... pela testemunha GG.

Aludiu ainda a diversos trechos da petição inicial apresentada por BB no referido processo nº ... e às declarações prestadas pelo réu perante a GNR logo após o acidente, bem como à respetiva participação.

Uma vez que se mostram cumpridos os ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, iremos proceder à reapreciação da decisão fáctica da 1ª Instância no que concerne ao seu nº 12, ouvindo na íntegra os depoimentos acima indicados.

2. DD é esposa do réu AA. Disse que de repente ouviram um barulho estranho, tipo explosão, e a seguir a carrinha começou a desviar-se e despistou-se. Mais referiu que o seu marido com os amigos tinha bebido alguma coisa, mas não se sentia insegura no carro. Não estavam preocupadas com a sua condução. Foi o rebocador que disse ao seu marido que o pneu estava rebentado.

CC é filha do réu. Disse que vinham tranquilos e a certa altura ouviram um barulho forte, tipo estoiro, e a seguir a carrinha começou a perder o controlo. Foi o seu pai que falou no rebentamento do pneu. Referiu ainda que o pai vinha a conduzir de forma normal, numa velocidade tranquila. Não vinha com medo.

EE é filha do réu. Disse que ouviu um estrondo, descontrolou-se tudo e despistaram-se. O seu pai vinha a velocidade normal, tranquilo. Mais tarde, o pai falou no rebentamento de um pneu.

BB é filha do réu. Não se lembra de nada, só se lembra de acordar no hospital.

Por fim, procedeu-se também à audição do depoimento prestado pela testemunha GG prestado na audiência de julgamento realizada no processo nº ....

Este disse que ao carregar a carrinha para o reboque a roda do lado direito saltou fora com o triângulo e verificou então que o pneu estava rebentado, embora não saiba precisar se o pneu rebentou antes do acidente ou em consequência do acidente, por ter batido em alguma coisa.

3. Em sede de convicção quanto à decisão da matéria de facto a Mmª Juíza “a quo” escreveu o seguinte, com referência ao ponto 12:

“No que se refere aos pontos 12 e 13 dos factos provados e a) e b) dos factos não provados nos depoimentos das testemunhas DD, esposa do Réu e CC, EE, filhas do Réu. As restantes testemunhas têm pouca memória do acidente.

Relataram que estavam a regressar a casa, depois da passagem do ano. Vinham a conversar, o marido/pai, embora tivesse bebido, fazia uma condução normal. Ouviram um grande barulho, tipo explosão, sendo que, nesse momento, a carrinha se começa a desviar da linha em que seguia, se despistou acabando por tombar. O marido/pai disse-lhes, depois, que teria sido um pneu que rebentou.

Embora as testemunhas ouvidas sejam familiares muito próximas do Réu, o seu depoimento foi isento, claro e convincente, até porque corroborado por outros elementos de prova.

Assim, conforme resulta da sentença proferida em 1ª instância, no âmbito do processo ... foi ouvida a testemunha GG, entretanto falecido, como consta de devolução da carta para sua inquirição, constante de fls. 224 dos autos.

Ora, esta testemunha, que procedeu ao reboque da viatura, afirmou, no julgamento desse processo ... que, na altura do reboque, a roda dianteira saiu, sendo que o pneu estava rebentado, embora não consiga precisar se o pneu rebentou antes do acidente ou em consequência do acidente, por ter batido em alguma coisa.

Este depoimento, aliado aos depoimentos atrás referidos, que falam de um grande barulho, tipo explosão, aliado ainda ao facto de o despiste ter ocorrido numa recta, permitem concluir com segurança que, de facto, esse despiste ocorreu por causa do rebentamento do pneu.”

4. O art. 662º, nº 1 do Cód. Proc. Civil estatui que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa

Por seu lado, há também que ter em atenção que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – cfr. art. 607º, nº 4 do Cód. Proc. Civil.

A Relação, na reapreciação que faz, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.

Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[1]

De qualquer modo, é jurisprudência consolidada que o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura quanto à ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.[2]

5. A versão factual do acidente apresentada pelo réu na sua contestação assenta em que este ocorreu devido ao rebentamento do pneu da frente direita, o que foi levado à factualidade provada sob o nº 12.

Para tal, a Mmª Juíza “a quo” socorreu-se dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, esposa do réu, e CC e EE, suas filhas, que seguiam na viatura sinistrada.

Estas afirmaram que ouviram um grande barulho, tipo explosão ou estoiro, e que a seguir a carrinha se despistou, sendo o seu marido/pai, aqui réu, que depois lhes disse que o barulho ouvido fora resultado do rebentamento de um pneu.

Apesar das relações familiares próximas com o réu, entendemos que os seus depoimentos se mostraram credíveis e convincentes, tendo sido complementados pelo depoimento prestado pela testemunha GG, entretanto falecido, que procedeu ao reboque do veículo após o acidente, e cujo depoimento prestado no âmbito do proc. nº ... viria a ser ouvido nos presentes autos, após a reabertura da audiência de julgamento.

Disse que na altura do reboque, a roda dianteira saiu, tendo verificado que o pneu estava rebentado, embora não consiga precisar se este rebentou antes do acidente ou em consequência do acidente, por ter batido em alguma coisa.

Ora, a conjugação deste depoimento com os que foram prestados por DD, CC e EE, que referiram a ocorrência de um grande barulho, tipo explosão ou estoiro, precedendo o despiste, aliado ao facto de o acidente ter ocorrido numa reta, levam-nos a concluir que este se verificou em virtude do rebentamento do pneu da frente do lado direito do veículo IC.

Por conseguinte, não vemos razão para dissentir da convicção formada pela 1ª Instância, devidamente alicerçada nos meios probatórios produzidos nos autos, sendo que, como já atrás se referiu, a alteração da factualidade dada como provada só deverá ocorrer se se adquirir a convicção segura de que se verificou erro na apreciação de tais meios probatórios.

Quanto à circunstância de na participação do acidente nada se referir no que respeita ao rebentamento do pneu, tal significará que esse pormenor não foi observado pelo Guarda participante e no tocante às declarações prestadas pelo réu logo após o acidente sempre haverá que ter em conta o estado de grande nervosismo em que este então se encontrava.

Nestes termos, entendemos ser de julgar improcedente a impugnação factual efetuada pela autora/recorrente, permanecendo na matéria de facto assente o seu nº 12, sem qualquer alteração de redação.[3]


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II - Direito de regresso da autora/seguradora ao abrigo do art. 27º do Dec. Lei nº 291/2007, de 21.8.

1. No art. 27º, nº 1, al. c) do Dec. Lei nº 291/2007, de 21.8. [Regime do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel – RSORCA], preceitua-se o seguinte:

«Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:

(...)

c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.»

Por seu turno, no art. 81º, nºs 1 e 2 do Cód. da Estrada estabelece-se que:

«1. É proibido conduzir sob a influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.

2. Considera-se sob influência do álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.

(…)».

A lei presume, assim, “juris et de jure” que um condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l está sob a influência do álcool.

Deste modo, tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.10.2014 (proc. 582/11.1 TBSTB.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.), “os pressupostos cumulativos do direito de regresso previsto no art. 27º nº1-c) do DL nº 291/2007, são a responsabilidade civil subjectiva do condutor responsável e a condução com TAS superior à legalmente permitida, deste facto se inferindo (presumindo) ex vi legis que o condutor está sob a influência do álcool…”
A atuação do condutor tem de ser passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjetivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida.
Esta dupla ilicitude fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica (a que se concretiza na culpa pela eclosão do acidente e a que decorre da condução com taxa de álcool no sangue proibida).
Continuando a seguir o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.10.2014, há a frisar que “independentemente dessa influência – que o art. 81º nº 2 do Cód. Estrada presume absolutamente quando igual ou superior a 0,5g/l – o direito de regresso basta-se agora – para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjectiva e do cumprimento da respectiva obrigação de indemnizar - com uma TAS superior à legalmente permitida.”
“Deixou de relevar para o direito de regresso a questão de saber se in concreto a impregnação de álcool no sangue do condutor medida pela TAS influenciou ou não a condução em termos de constituir a causa remota da actuação culposa do condutor que fez eclodir o acidente: basta que o condutor acuse, no momento do acidente, uma TAS superior à legalmente admitida, para que, se tiver actuado com culpa – e obviamente se se verificarem os demais requisitos da responsabilidade civil subjectiva – possa ser demandado em acção de regresso pela seguradora que satisfez a indemnização ao lesado.”
Ainda sobre esta mesma questão escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.11.2013 (proc. nº 995/10.6TVPRT.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) o seguinte:
“O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 - apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) - cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
Na mesma linha, no Ac. STJ de 10.12.2020 (proc. nº 3044/18.2T8PNF.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) consignou-se o seguinte no respetivo sumário:
“Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ nº 6/02 que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente.”[4]

Ou seja, com a alteração legislativa decorrente do Dec. Lei nº 291/07, pretendeu o legislador desonerar as seguradoras da prova diabólica do nexo de causalidade entre a verificação de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e a produção do acidente, exigindo-lhes tão-só a prova dos factos referidos no seu art. 27º, nº 1, al. c).

Porém, o segurado, quando demandado em ação de regresso pela seguradora, não está impedido de proceder à ilisão da presunção “juris tantum”, decorrente desta norma, do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o ato de condução determinante do acidente – cfr. Acs. STJ de 25.3.2021, p. 313/17.2T8AVR.P1.S1 e de 6.4.2017, p. 1658/14.9TBVLG.P1.S1, da Rel. Coimbra de 21.5.2024, p. 545/23.4T8PMS.C1 e da Rel. Porto de 3.6.2024, p. 2753/22.6T8PNF.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

2. Regressando ao caso dos autos, mostra-se assente o seguinte:

- Nas circunstâncias de tempo e de lugar supra descritas, o veículo de matrícula IC circulava na EN ..., na via afeta ao sentido ... – ... [nº 11];

- Junto ao Km 21,970 da EN ..., na sequência do rebentamento do pneu da frente do lado direito, o réu perdeu o controlo do veículo IC, passando a circular de forma desgovernada, ocupando tanto a via afeta ao sentido ... – ..., quer a via afeta ao sentido contrário, em ziguezague [nº 12];

- O veículo IC capotou sobre si mesmo, acabando por ficar imobilizado, capotado sobre si, na zona de vegetação existente na berma esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido ... – ... [nº 13];

- O réu foi submetido a teste de alcoolemia, tendo acusado uma TAS de 1,95 g/l [nº 14];

- O local onde ocorreu o acidente configura-se como uma reta, sendo possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros [nº 4].

3. Sucede que desta factualidade flui que o réu/segurado conduzia o veículo automóvel IC com uma taxa de alcoolemia superior à que era legalmente admitida – 1,95 g/l.

No entanto, para além deste pressuposto, para que se efetive o direito de regresso previsto no art. 27º, nº 1, al. c) do Dec. Lei nº 291/2007, é ainda necessário que se prove que o condutor praticou ato de condução que deu causa ao acidente.

Ora, face ao que consta do nº 12 da factualidade assente, o que deu causa ao acidente foi o rebentamento do pneu da frente do lado direito do veículo, o que configura evento inerente ao funcionamento do veículo e que, por isso, se mostra compreendido no seu risco de circulação – cfr. Acs. Relação Porto de 14.3.2016, p. 424/13.3T2AVR.P1 e de 24.1.2018, p. 1173/14.0T2AVR.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Deste modo, terá que se concluir, à semelhança do que se entendeu na sentença recorrida, que o acidente dos autos não foi causado por ato de condução do réu, tendo tido a sua origem exclusivamente no rebentamento de um pneu, pelo que não está preenchido um dos pressupostos onde assenta o direito de regresso previsto no art. 27º, nº 1, al. c) do Dec. Lei nº 291/2007.

Há assim que confirmar a sentença que julgou a ação improcedente.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora “A... – Companhia de Seguros, SA” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo da autora/recorrente.


Porto, 11.11.2025
Rodrigues Pires
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira
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[1] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., págs. 823 e 825.
[2] Cfr., por ex., Ac. STJ de 23.9.2025, p. 26696/21.1.T8LSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Anota-se ainda que o teor do que foi alegado na petição inicial do processo com o nº ... por BB não se trata de meio probatório a ter em atenção nos presentes autos.
[4] Cfr. também o Ac. STJ de 3.11.2020, p. 2490/18.6T8PNF.P2.S1, disponível in www.dgsi.pt.