QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
OBRIGAÇÃO DE MANTER A CONTABILIDADE ORGANIZADA
PRESUNÇÃO DE CULPA GRAVE
Sumário

I - Existe incumprimento em termos substanciais da obrigação das sociedades comerciais manterem contabilidade organizada – art. 186º nº 2 al. h) do CIRE – quando os termos em que tal obrigação foi cumprida, ou incumprida, inviabilizam ou são suscetíveis de afetar e comprometer, de modo sério e relevante, a concretização do resultado visado com aquela obrigação, ou seja, quando a contabilidade não fornece uma imagem compreensível, completa, fiável e real da situação financeira da empresa.
II - A verificação fáctica desta situação implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração de culpa ou da existência de nexo causal com a criação ou agravamento da situação de insolvência e independentemente das razões, motivações ou intenções que estiveram subjacentes ao comportamento que deu origem a essa situação.
III - Os deveres de apresentação e de colaboração a que se reporta a al. i) do nº 2 do referido art. 186º são apenas os que constam do art. 83º do mesmo Código e não quaisquer outros. A falta de apresentação à insolvência [ainda que prolongada no tempo] não integra o elenco das situações-tipo enquadráveis na previsão daquela alínea.
IV - Esta falta de apresentação à insolvência, quando violadora dos prazos indicados no art. 18º do CIRE, integra antes a previsão da al. a) do nº 3 do mesmo art. 186º, que constitui unicamente presunção «iuris tantum» de culpa grave, cabendo ao requerente, para que a insolvência seja qualificada como culposa, fazer prova do nexo causal de que tal falta de apresentação criou ou agravou a situação de insolvência do/a devedor/a.

Texto Integral

Proc. 1083/24.3T8VNG-B.P1 – 2ª Sec. (apelação)
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Maria da Luz Seabra
Ramos Lopes

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Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

Nestes autos de qualificação da insolvência que correm por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência de A... Lda., o Ministério Público requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa, com afetação do gerente da insolvente, AA, por tal qualificação, com fundamento em factos enquadráveis no art. 186º nºs 1, 2 al. h) e i) e 3 als. a) e b) do CIRE.

Declarado aberto o incidente, como incidente limitado, o Sr. Administrador da Insolvência [abreviadamente, AI] emitiu parecer pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com afetação do identificado gerente da insolvente, nos termos das disposições legais atrás indicadas.
O Ministério Público aderiu aos fundamentos invocados no parecer do AI.

Notificada a devedora e citado o requerido, a primeira deduziu oposição, na qual, em síntese, imputa a situação económica da sociedade insolvente a fatores externos decorrentes da pandemia Covid-19 e pugna pela não verificação dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, com afetação do seu gerente.

Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e foram fixados os temas de prova, sem reclamação das partes.

Realizou-se a audiência final e foi depois proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«DECISÃO:
Face ao exposto, decido:
a) Qualificar a insolvência da devedora A... Lda, com o NIPC ..., como culposa;
b) Declarar afetado por tal qualificação o requerido AA.
c) Decretar a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 6 (seis) anos;
d) Condenar o Requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até ao limite de 991.183,36€ (novecentos e noventa e um mil, cento e oitenta e três euros e trinta e seis cêntimos).
Custas do incidente a cargo do Requerido – cfr. art.º 527.º, n.s 1 e 2 do CPC e art.s 301.º e 303.º do CIRE.
O valor da causa já se mostra fixado no despacho saneador (€30.000,01)
Registe e notifique.
Após trânsito, dê-se cumprimento ao disposto no artigo 189.º, n.º 3, do CIRE.».

Inconformada com o sentenciado, interpôs a devedora o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões [não se transcrevem as cinco primeiras conclusões que se limitam a reproduzir os articulados e a factualidade dada como provada na sentença recorrida]:
«6. Do que resulta dos autos, não cabem dúvidas quanto ao facto de que, no presente processo, foi apreciada a situação de qualificação de insolvência de uma pessoa coletiva.
7. Os efeitos de qualificação de insolvência como culposa são os constantes do artigo 189.º, n.º 2, do CIRE.
8. As medidas ali previstas têm natureza punitiva, visando o sancionamento de quem contribuiu para a insolvência.
9. No n.º 1 e 2 do artigo 186.º, do CIRE “insolvência culposa” mencionam-se os comportamentos que levam à situação de incumprimento, geradora do pedido de declaração de insolvência.
10. Naturalmente que, como é estabelecido naquele preceito, o período temporal a considerar, tem como limite o início do processo de insolvência.
11. A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita - 185º CIRE.
12. A insolvência fortuita delimita-se pela negativa relativamente à culposa, esta é verificável sempre que a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do Processo de insolvência artigo 186º, 1 CIRE.
13. Assim, deve ser analisada, com base nos elementos que os autos fornecem, o comportamento do legal representante do devedor insolvente, isto é, o seu dever de colaboração, e conhecer o que levou este a não cumprir as suas obrigações.
14. O Tribunal decidiu estar verificada a situação de incumprimento das obrigações pelo devedor e declarou-a insolvente por sentença e ainda qualificou a conduta do representante legal como culposa.
15. É esta situação de insolvência que incumbe qualificar, como culposa ou como fortuita.
16. O art. 186º, nº1 CIRE, exige a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam.
17. Deste modo, são pressupostos da insolvência culposa, o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; a culpa qualificada como dolo ou culpa grave; e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
18. O artigo 186º, 2 e 4, do CIRE, procurando objetivamente os critérios definidores de insolvência culposa, estabelece presunções juris et jure, presunções inilidíveis que complementam essa noção, considerando-se sempre culposa a insolvência do devedor quando nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham: a) …a I)….
19. Segundo a alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE considera-se culposa a insolvência quando os administradores tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e colaboração até à data de elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.
20. A conduta referida tem sempre lugar após o início do processo de insolvência.
21. Ficou provado, nos presentes autos, que o sócio-gerente da insolvente, não foi contactado e por isso não prestou qualquer informação ao administrador para a elaboração do parecer, designadamente, não entregando os documentos contabilísticos a que se refere o artigo 24.º, n.º 1, do CIRE, nem à data informou os autos de qualquer dado relevante quanto às causas da insolvência, nem para eventual liquidação da massa insolvente.
22. O dever de colaboração consubstancia-se na obrigação do devedor insolvente ou seu representante de fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal, bem como prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções, estando o cumprimento dessas obrigações legais necessariamente submetidas aos princípios gerais de cooperação e de atuação como a boa-fé processual, enunciados nos arts. 7º e 8º do Cód. Proc. Civil, aplicáveis ex vi art. 17º do CIRE.
23. Atentos os princípios gerais previstos nas disposições legais supra referidos, na conclusão 22, viola o dever de colaboração, não só o insolvente ou quem o represente, que opte por não dar as informações que lhe são solicitadas e simplesmente não responda ao que lhe é questionado, como aquele que dando informações, as não preste de forma integral, ou seja, não responda a tudo o que lhe é perguntado, assim como aquele que respondendo ao que lhe é questionado, omite factos a propósito da informação que presta, que sabe serem relevantes.
24. A falta dos deveres de apresentação e de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões.
25. No caso em apreço, o que se qualifica é o comportamento do representante do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigue se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor ou de quem o represente, estabelecido a título de dolo ou culpa grave.
26. Nos autos, constata-se que o comportamento do aqui representante da recorrente não se enquadra em nenhuma das situações supra referidas, mas a pessoa está afetada, porquanto ao tempo e por coincidência encontrava-se ausente no estrangeiro e incontactável, razão que o levou a ter desconhecimento das pretensões do Sr. Administrador de Insolvência, sendo que, por ignorância, resultou a sua impossibilidade de facultar o quer que fosse.
27. Este facto (ausência) deu origem a um comportamento do representante da insolvente (pessoa coletiva), o que acarretou a impossibilidade por desconhecimento, para o qual não deu causa, do não contacto, da sua não colaboração e do não envio ao administrador da insolvência dos documentos referidos no n.º 1 do artigo 24.º do CIRE – o conhecimento de factos relevantes e essenciais para a qualificação da insolvência.
28. Ficou ainda provado no ponto 35, que aproximadamente dois anos, a sociedade insolvente não exerceu qualquer atividade.
29. Este período de tempo coincide com o período pandémico em que a insolvente encerrou portas e não faturou.
30. Contudo, a sua intenção foi o de retomar a atividade, o que ocorreu mais tarde, somente no início do ano de 2024, mas muito lentamente.
31. Não tendo sido exercido qualquer atividade naquele período de tempo, coincidente com o alargado período pandémico, e não só, não podiam ter sido apurados aqueles valores dados como recebidos e correspondentes a despesas, como constam nos documentos juntos com a contestação.
32. É que a falta de faturação, no ano de 2023, ainda se ficou a dever ao assalto ao estabelecimento da insolvente, ocorrido no dia 5 de Dezembro de 2022, do qual foi subtraído todo o recheio e equipamentos.
33. Este facto deu origem a que durante um período aproximado de um ano, por falta de dinheiro para a aquisição dos equipamentos, o restaurante estivesse encerrado até ao final do mês de Dezembro de 2023.
34. Este facto relatado na conclusão 32 deu origem a uma providência cautelar de restituição provisória de posse com o nº ..., que foi deferida, na qual foi requerente a aqui insolvente, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Central Cível - Juiz 2, cujo processo deve ser consultado.
35. Destrate, os valores dados como provados assentam em montantes que não correspondem à realidade, por resultarem de um erro grosseiro de quem elaborou a contabilidade.
36. Chegados aqui, afastada está a possibilidade de se estar perante uma insolvência culposa.
37. Na verdade, há culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar.
38. Na culpa inconsciente enquadram-se as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida.
39. A culpa deve ainda ser apreciada, nos termos consagrados no art. 487º, nº2 CC, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
40. No caso concreto da insolvente que falamos, a situação de insolvência ficou a dever-se ao supra descrito, sendo que, quanto à alegada falta de colaboração ela não pode ser imputada ao representante da insolvente, a pessoa afetada, assim como os valores dados como provados e alegadamente em divida, o que é de todo impossível existir por falta de faturação, a não ser por erro grosseiro da contabilidade.
41. Assim, cremos que não podem ser imputadas ao representante da insolvente essas situações a título de culpa, entendendo que não lhe era exigível prever que tais tentativas de contactos ocorressem, assim como na fase de encerramento do restaurante tivesse existido faturação, num período em que a atividade da insolvente era inexistente.
42. E assim sendo, não se deve concluir que a insolvente tenha agido com culpa, criando ou agravando a situação de insolvência ou que, no momento em que reabriu soubesse já que não iria ter no futuro capacidade para solver eventuais obrigações de pagamento ou até que se negasse a colaborar.
43. Dito isto, ao abrigo do disposto no artigo 189º do CIRE deve ser revogada a decisão proferida e qualificar a insolvência como fortuita.
44. Justifica-se, portanto a pretensão da requerente.
45. Violadas encontram-se as citadas normas jurídicas supra indicadas.
Termos em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida, por assim ser de inteira Justiça!».

O Ministério Público apresentou contra-alegações em que pugna pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
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II. Questões a decidir:

Face às conclusões das alegações da recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC [salvo o surgimento de questões de conhecimento oficioso] – a única questão a decidir consiste em saber se existe(m) fundamento(s) para a qualificação da insolvência como culposa ou se, pelo contrário, como defende a recorrente, a mesma deve ser considerada fortuita.

Importa esclarecer que o dever de apreciar/decidir todas as questões suscitadas pela recorrente, a que se refere o nº 2 do art. 608º, aqui aplicável ex vi do art. 663º nº2, ambos do CPC, não compreende, nem se confunde, com o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas por ele invocados, pois estes nenhum vínculo comportam para o tribunal, conforme decorre do estabelecido no nº 3 do art. 5º do CPC [neste sentido, i. a., António Abrantes Geraldes, in «Recursos em Processo Civil», 7ª ediç. atualiz., 2022, Almedina, pg. 136 e Antunes Varela e outros, in «Manual de Processo Civil», 2ª ed., pgs. 677-688 (neste caso, ao abrigo dos equivalentes arts. 660º nº 2 e 664º do CPC revogado pela Lei nº 41/2013), bem como a unanimidade da jurisprudência dos tribunais superiores, de que são exemplo os Acórdãos do STJ de 03.07.2024, proc. 3832/21.2T8VLG.P1.S2, de 23.11.2023, proc. 779/20.3T8VFR.P1.S1 e de 08.10.2020, proc. 361/14.4T8VLG.P1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e Acórdão do Tribunal Constitucional de 20.12.2022, proc. 645/2022-1ª S, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc].
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III. Matéria de facto:

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. A... Lda é uma sociedade por quotas, com o NIPC ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial, com sede na Rua ..., nº ..., 3º Traseiras, ... Porto, concelho do Porto, tendo sido constituída em 2019/03/21. (cfr. certidão de registo comercial)
2. A sociedade tem por objeto social a exploração de restaurantes, bares e cafés, comércio a retalho de todo o tipo de bebidas, alcoólicas e não alcoólicas em estabelecimentos especializados, exploração de hotéis com restaurante. (cfr. certidão de registo comercial)
3. A sociedade tem um capital social de 102.000,00€, dividido em três quotas, cada uma no valor nominal de 34.000,00€, tituladas por AA, BB e CC. (cfr. certidão de registo comercial)
4. Através das inscrições de 2020/01/13 e de 2022/12/02, mostra-se registada a transmissão da quota titulada por CC a favor do sócio AA. (cfr. certidão de registo comercial)
5. A gerência é exercida, desde a constituição da sociedade, por AA, NIF ..., com domicílio na morada da sede da insolvente. (cfr. certidão de registo comercial)
6. A insolvência foi requerida por DD, na qualidade de credor por crédito laborais vencidos, no montante de 41.370,67€, conforme decisão transitada em julgado no processo nº ... - Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo do Trabalho de Setúbal - Juiz 1. (cfr. petição inicial dos autos principais e sentença ali proferida)
7. A insolvência da devedora foi declarada por sentença proferida em 21/05/2024, já transitada em julgado (cfr. sentença e acórdão proferidos nos autos principais e apenso A, respetivamente).
8. Foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas da insolvente relativas aos exercícios de 2019 e 2020. (cfr. certidão de registo comercial)
9. O último registo de prestação de contas foi efetuado em 2021/07/16 e diz respeito ao exercício de 2020. (cfr. certidão de registo comercial)
10. Da documentação da IES - Informação Empresarial Simplificada - dos anos de 2020, 2021, e 2022, bem como o Balancete Sintético relativo ao ano de 2023, resulta que a sociedade apresenta vendas a zero no último ano informado (2023), o que denota ausência de atividade.
11. No que se refere a Gastos, em 2023, a sociedade apresenta na rubrica de “Fornecimentos e Serviços Externos” o gasto de 14.751,80€, e na rúbrica de “Pessoal” o gasto de 124.292,25€.
12. Em face do desequilíbrio entre os Rendimentos e Gastos, a sociedade apresentou em 2023 um Resultado Líquido negativo de -136.844,05€.
13. A rúbrica de “Caixa e Depósitos Bancários” apresenta, no final do ano de 2022, o saldo de 1.181.366,90€ e, no final do ano de 2023, o saldo de 1.127.938,74€.
14. O passivo apresenta, no final do ano de 2023, o valor de 942.139,18€.
15. O passivo, na rúbrica “Estado e outros entes público”, apresenta o valor de 681.191,49€.
16. Tal valor corresponde, essencialmente, ao valor conjunto de créditos reclamados pela Autoridade Tributária (520.060,56€) e Segurança Social (170.161,12€).
17. Tais dívidas reportam-se ao período desde 2019 (ano da constituição da sociedade) no que se refere à Autoridade Tributária, e ao período desde outubro de 2020 no que se refere à Segurança Social.
18. Nos anos de 2021 e 2022 a sociedade apresentou resultados líquidos positivos, de 275.738,94€ em 2021, e de 406.760,53€ em 2022.
19. O registo de disponibilidades de “Caixa e Depósitos Bancários” era de 528.022,79€ em 2021 e de 1.181.366,90€ em 2022.
20. O credor requerente da insolvência apresentou em 2023/05/15 requerimento executivo tendo como título a sentença proferida no processo ... – Juízo do Trabalho de Setúbal – Juiz 1, para cobrança coerciva da quantia de 40.449,19€, tendo apenas sido possível penhorar três saldos bancários, nos valores de 11,70€, 207,16€ e 13,69€, correspondentes aos saldos bancários existentes a 21 de Junho e a 20 de Julho de 2023.
21. O administrador da insolvência enviou correspondência em 2024/05/24, para o gerente da insolvente, na morada da sede, sendo essa a morada do gerente fixada nos autos, a solicitar diversos elementos com vista à elaboração do relatório a que se refere o art.º 155.º do CIRE (cfr. doc.5 junto com o Relatório elaborado nos autos principais).
22. A correspondência veio devolvida com a menção de “Objeto não reclamado”. (cfr. doc.6 junto com o Relatório elaborado nos autos principais)
23. Foi enviado e-mail em 2024/05/24, para o Ilustre Mandatário da insolvente, a solicitar os dados de contato do gerente, e em anexo, cópia da correspondência enviada para o gerente, que retornou a resposta do contacto do gerente. (cfr. docs. 7 e 8 juntos com o Relatório elaborado nos autos principais)
24. Não foi possível o contacto no telefone do gerente pela mensagem de “Número não disponível”, pelo que foi comunicado ao Ilustre Mandatário da insolvente, por e-mail de 2024/05/27, pedido de informação sobre vários valores constantes da IES-Informação Empresarial Simplificada do ano de 2022. (cfr. doc. 9 junto com o Relatório elaborado nos autos principais).
25. Em resposta, o Ilustre Mandatário da insolvente, informou desconhecer informação de natureza contabilística, remetendo a resposta para o sócio-gerente, tendo facultado endereço de e-mail do sócio-gerente. (cfr. doc.10 junto com o Relatório elaborado nos autos principais).
26. Os créditos reclamados nos autos representam um total de 991.183,36€, onde está incluído o valor de 117,15 relativo a juros subordinados.
27. A ACT-Autoridade para as Condições do Trabalho reclamou créditos relativos a oito processos de contraordenação, maioritariamente instaurados no decurso do ano 2020, que se referem a falta de comunicação de admissão de 17 trabalhadores à Segurança Social, falta de registos obrigatórios dos trabalhadores, falta de pagamento a trabalhadores e de entrega de documentação subsequente a cessação de contratos de trabalho, falta de seguro de acidentes de trabalho, e outros incumprimentos de disposições legais, que no seu conjunto representam um crédito de 26.243,12€.
28. O Banco 1..., S.A. reclamou créditos relativos a duas livranças vencidas em 2023/03/28 e 2023/04/17, num crédito total de 20.799,78€.
29. A Direção de Finanças do Porto reclamou créditos tributários de antiguidade superior a um ano da data da insolvência, no montante de 413.938,41€, e créditos tributários vencidos no último ano no montante de 106.122,15€.
30. Foram reclamados créditos relativos a Fornecimentos e Prestação de serviços com antiguidade de saldo superior a um ano, no montante total de 72.639,59€.
31. A Segurança Social reclamou créditos de contribuições com antiguidade superior a um ano da data da insolvência, no montante de 155.051,72€, e de contribuições relativas ao último ano no montante de 15.109,40€.
32. Foram reclamados créditos relativos a dividas a trabalhadores emergentes de contratos de trabalho, no montante total de 86.339,90€.
33. A B..., S.A. reclamou créditos relativos a pagamento de Garantia Bancária, no montante total de 94.822,14€.
34. O processo de insolvência foi encerrado por decisão de 14/01/2025 por insuficiência de bens para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, ao abrigo do disposto no art.º 232º, nº 2, do CIRE.
35. A insolvente esteve encerrada durante aproximadamente dois anos, devido à pandemia.

Não há factos não provados.
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IV. Apreciação jurídica:

i) A recorrente põe em causa a qualificação da insolvência como culposa, não aceitando que se encontram preenchidos os pressupostos da qualificação que foram considerados na sentença recorrida [embora se refira expressamente ao pressuposto da al. i) do nº 2 do art. 186º do CIRE [diploma a que nos reportaremos daqui em diante quando outra menção não for feita], a verdade é que ao longo das conclusões também se pronuncia, embora sem citar expressamente as respetivas alíneas, sobre os pressupostos das als. h) do nº 2 e a) do nº 2 do mesmo normativo], defendendo, outrossim, que a insolvência deve ser considerada fortuita.
A sentença recorrida considerou verificados os pressupostos das als. h) e i) do nº 2 e da al. a) do nº 3 do art. 186º, com referência, em qualquer caso, ao nº 1 do mesmo preceito.
Segundo o nº 1 deste art. 186º, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Definem-se neste nº 1 os pressupostos gerais da qualificação da insolvência como culposa, nos seguintes termos:
- Em primeiro lugar, o que se qualifica é a atuação do devedor ou dos seus administradores [de direito ou de facto] na criação ou agravamento do estado de insolvência [o art. 6º define quem é considerado administrador para efeitos do CIRE];
- Em segundo lugar, exige-se que essa atuação seja dolosa ou, pelo menos, integradora do conceito de culpa grave, devendo estes conceitos ser entendidos [como ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda, no citado Código Anotado, pg. 610, anotação 4] nos termos gerais do Direito Civil, consistindo o dolo no conhecimento e vontade de realização do facto por parte do agente, podendo revestir três modalidades – direto, necessário e eventual –, ao passo que a culpa [stricto sensu] ou negligência pode ser consciente ou inconsciente, ocorrendo a primeira quando o agente prevê como possível a produção do resultado, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria acredita na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar, enquanto na segunda, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não prevê sequer a possibilidade de verificação/realização do facto, embora pudesse prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse da diligência devida; numa outra perspetiva, a culpa/negligência pode ser grave, leve ou levíssima, sendo que a primeira se traduz no facto do agente não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em regra, observam, que a segunda se verifica quando é omitida a diligência normal e que na terceira são omitidos cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes observam [sobre estas figuras e modalidades, cfr. i. a. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., pgs. 590 a 594 e 598, nota 1 e Meneses Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 2010, pgs. 470 a 477];
- Em terceiro lugar, a verificação de um nexo de causalidade adequada entre as condutas do devedor ou do administrador e a criação ou o agravamento da situação de insolvência;
- Em quarto lugar, fixa-se uma limitação temporal às condutas que podem relevar para a qualificação da insolvência como culposa: só são tidas em conta as dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Além disso, as als. a) a i) do nº 2 do mesmo artigo descrevem, ainda, vários comportamentos/ atuações do devedor ou dos seus administradores que o legislador considera que são sempre culposos, por estabelecerem verdadeiras presunções juris et de jure [inilidíveis] dessa culpabilidade, que acarretam, necessariamente, a qualificação como culposa da própria insolvência, ao passo que as duas alíneas do nº 3 consagram apenas meras presunções juris tantum [ilidíveis] de culpa grave do devedor ou dos seus administradores [jurisprudência e doutrina vêm entendendo, maioritariamente, que o nº 2 do art. 186º estabelece uma presunção inilidível de que a verificação de algum dos comportamentos taxativamente indicados nas suas alíneas importa a existência de culpa e do nexo causal entre a atuação daqueles e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, enquanto no nº 3 se prevê apenas uma presunção ilidível de culpa grave dos administradores, mas não também da verificação do nexo causal entre as condutas nele apontadas e a criação ou o agravamento da insolvência, havendo, nos casos aí indicados, necessidade de prova deste pressuposto para que a insolvência seja declarada culposa – neste sentido pronunciaram-se, i. a., os Acórdãos desta Relação do Porto de 30.09.2025, proc. 2568/24.7T8GMR-B.P1 (relatado pelo aqui relator), de 20.02.2024, proc. 1872/22.3T8AMT-C.P1, de 29.09.2022, proc. 2367/16.0T8VNG-H.P1, de 12.10.2010, proc. 243/09.1TJPRT-G.P1, de 11.11.2010, proc. 1447/08.0TBVFR-A.P1 e de 25.11.2010, proc. 814/08.3TBVFR-F.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp, da Relação de Guimarães de 25.05.2023, proc. 4006/20.5T8GMR.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg e da Relação de Coimbra de 14.06.2022, proc. 4114/19.5T8LRA-C.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc; na doutrina, por ex., Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., 2022, Almedina, pgs. 157-162, fazendo comparação com a lei espanhola sobre insolvências, que foi fonte de inspiração direta do nosso CIRE, conclui que a presunção inilidível abrange a culpa grave e o nexo causal e que “a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”; idem, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, Quid Juris, pgs. 610-612 e in A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor, Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, 2009, Quid Juris, pgs. 261 a 263].
A propósito das alíneas do nº 2, há quem distinga as das als. a) a g) das duas restantes – als h) e i) –, considerando que as primeiras “correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa”, enquanto as als. h) e i) “mais parecem ser ficções legais – dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa (dolo ou culpa grave), o requisito fundamental da insolvência culposa, segundo a cláusula geral do nº 1 do art. 186º” [cfr., i. a., Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 3ª ed., 2025, Almedina, pg. 384, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 570/2008, de 26/11, disponível in www.tribunalconstitucional.pt e Acórdãos desta Relação do Porto (e Secção) de 28.01.2025, proc. 5891/21.9T8VNG-B.P1 e de 20.02.2024, atrás citado, disponíveis no sítio da dgsi já mencionado].
Finalmente, o nº 4 do mesmo preceito estende o disposto nos n.ºs 2 e 3 à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, com as necessárias adaptações.

ii) Feito este introito, comecemos por ver se o caso dos autos se reconduz à situação-tipo prevista na al. h) do nº 2 do aludido normativo, como considerou a sentença recorrida.
Estabelece esta alínea que se considera sempre culposa a insolvência do devedor quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham «[i]ncumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor».
A fundamentação da sentença recorrida, quanto ao preenchimento de tal alínea, foi a seguinte [transcreve-se o segmento relevante]:
«A propósito do preenchimento da presunção ‘iuris et de iure’ prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE (na parte que ao caso presente importa) - Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada … - o uso da expressão “em termos substanciais” significa que a obrigação de manter a contabilidade organizada foi violada em termos tais que não é possível indicar, com segurança, a causa da insolvência e dos seus responsáveis [em nota de rodapé (4), invoca em sustento desta afirmação o estudo de Rui Estrela de Oliveira, “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Revista Julgar, nº 11- 2010, pág. 242]. Não é, assim, qualquer incumprimento ou irregularidade contabilística que preenche esta presunção: terá que ser um incumprimento ou irregularidade com influência na perceção que uma tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do insolvente, e que deve ser aferida em face das obrigações que o Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente o seu artigo 65.º faz impender sobre os gerentes.
O artigo 65.º Código das Sociedades Comerciais sob epígrafe “Dever de relatar a gestão e apresentar contas” dispõe que:
“1 - Os membros da administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, incluindo a demonstração não financeira ou o relatório separado com essa informação, ambos referidos nos artigos 66.º-B e 508.º-G, quando aplicáveis, as contas do exercício, bem como os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada exercício anual.
(…)
5 - O relatório de gestão, o relatório separado com a informação não financeira, quando aplicável, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas devem ser apresentados ao órgão competente e por este apreciados, salvo casos particulares previstos na lei, no prazo de três meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual, ou no prazo de cinco meses a contar da mesma data quando se trate de sociedades que devam apresentar contas consolidadas ou que apliquem o método da equivalência patrimonial.”
Na alínea h), do nº2 do artigo 186º do CIRE, o que está em causa, mais do que o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, ou de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial - circunstancialismo que é relevante para o preenchimento da al. b), do nº 3 do mesmo artigo – é a própria obrigação de manter a contabilidade organizada [em nota de rodapé (5), chama à colação o entendimento de Maria Elisabete Ramos, “Insolvência da Sociedade e Efetivação da Responsabilidade Civil dos Administradores”, Boletim da FDUC, Vol. LXXXIII, 2007, pág. 481]. A contabilidade tem de transmitir uma imagem verdadeira e apropriada da realidade económica e financeira da sociedade e tem de ser compreensível para o conjunto de entidades com as quais se relaciona, nomeadamente, investidores, empregados, mutuantes, fornecedores, clientes, Estado e outros.
No caso dos autos, como resulta da factualidade provada, apenas foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas da sociedade insolvente relativas aos exercícios de 2019 e 2020. Por outro lado, da documentação facultada [IES - Informação Empresarial Simplificada - dos anos de 2020, 2021, e 2022, e Balancete Sintético relativo ao ano de 2023], resultam várias incongruências que fazem concluir que a contabilidade não retrata a realidade económica e financeira da sociedade.
Desde logo, a sociedade apresenta vendas a zero no último ano informado (2023), o que denota ausência de atividade. Porém, nesse mesmo ano, apresenta gastos de 14.751,80€ na rúbrica de “Fornecimentos e Serviços Externos”, e de 124.292,25€ na rúbrica de “Pessoal”.
Por outro lado, a rúbrica de “Caixa e Depósitos Bancários” apresenta o saldo de 1.127.938,74€ que, em face do passivo que apresenta, no valor de 942.139,18€, revela que aquele valor não pode ter adesão à realidade, como refere o Sr. administrador da insolvência no seu parecer, pois de outro modo o passivo estaria completamente saldado.
Também, apesar de a rúbrica de “Caixa e Depósitos Bancários” apresentar no final do ano de 2022 o saldo de 1.181.366,90€, e no final do ano de 2023 o saldo de 1.127.938,74€, na execução intentada pelo credor requerente da insolvência, apenas foi possível penhorar três saldos bancários, nos valores de 11,70€, 207,16€ e 13,69€.
Em face destes elementos, como concluiu o Sr. administrador da insolvência no seu parecer, a informação contabilística da sociedade insolvente revela que terá havido utilização da sociedade meramente com fins de utilidade contabilística, denotando nos anos de 2021 e 2022 uma subvalorização de custos, o que permitiu apresentar resultados líquidos positivos de 275.738,94€ em 2021 e de 406.760,53€ em 2022, e consequentemente o registo de disponibilidades de “Caixa e Depósitos Bancários” de 528.022,79€ em 2021 e de 1.181.366,90€ em 2022. A contabilidade regista custos baixos e saldos de Caixa altos, que não têm adesão à realidade.
Em face desta factualidade verifica-se a circunstância prevista na alínea h) do nº 2 do artigo186º do CIRE, tendo a sociedade insolvente incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, o que impede o conhecimento da realidade económica e financeira da sociedade, e estabelece uma presunção de culpa ‘iuris et de iure’ de insolvência culposa, que afeta os seus administradores, de direito ou de facto, no caso dos autos, o requerido.».
Está, portanto, em questão o segmento da referida al. h) relativo ao «incumprimento em termos substanciais da obrigação» da sociedade entretanto declarada insolvente «manter contabilidade organizada» nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou seja, no período que se situou entre 02.02.2021 e 02.02.2024 [data do início do processo de insolvência].
Quanto ao preenchimento dos elementos integradores de tal segmento daquela alínea seguimos o entendimento dominante na jurisprudência, que considera que a obrigação das sociedades comerciais manterem contabilidade organizada constitui um instrumento destinado a dar a conhecer, de forma completa, rigorosa e fiável, a situação patrimonial e financeira das mesmas e que existe incumprimento em termos substanciais dessa obrigação “quando os termos em que foi cumprida – ou incumprida – inviabilizam ou são susceptíveis de afetar e comprometer, de modo sério e relevante, a concretização do resultado que se pretende obter com essa obrigação, ou seja, quando a contabilidade – nos termos que foi organizada – não fornece uma imagem compreensível, completa, fiável e real da situação financeira da empresa, seja porque os termos em que foi organizada não permitem ou dificultam, de modo relevante, a exata interpretação e compreensão da situação financeira que ali se pretendeu retratar, seja porque induz à perceção de uma situação financeira e patrimonial que não coincide com a real situação da empresa”. Como tal, a verificação fáctica [factos provados] da situação descrita na alínea em referência “implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração de culpa ou da existência de nexo causal com a criação ou agravamento da situação de insolvência e independentemente das razões, motivações ou intenções que estiveram subjacentes ao comportamento que deu origem a essa situação” [assim, Acórdão da Relação de Coimbra de 14.03.2023, proc. 1937/21.9T8CBR-A.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc; no mesmo sentido, entre muitos outros, Acórdãos desta Relação do Porto (e Secção) de 28.01.2025, atrás citado, de 09.04.2024, proc. 663/22.9T8AMT-A.P1 e de 16.01.2024, proc. 7319/18.2T8VNG-D.P1, estes disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp].
A recorrente sustenta, nas conclusões 28 a 35, que não exerceu qualquer atividade nos três anos anteriores à propositura do processo de insolvência, quer por causa dos efeitos da pandemia Covid-19 [que implicou a paralisação da sua atividade], quer por o seu estabelecimento ter sido assaltado em 5 de dezembro de 2022 [tendo sido furtado todo o seu recheio e equipamento] e que, por via disso, não podiam ter sido apurados os valores indicados nos factos provados nºs 11 a 19, pelo que estes só podem resultar de erro grosseiro de quem elaborou a contabilidade, ou seja, do contabilista da sociedade.
Trata-se, porém, de factualidade que não consta do elenco dos factos provados [alguma, como é o caso do assalto ao estabelecimento, nem sequer foi alegada na oposição deduzida pela agora recorrente no âmbito deste incidente de qualificação]. Para que passasse a constar de tal elenco, a recorrente teria que impugnar a decisão da matéria de facto [constante da sentença], nos termos impostos pelo art. 640º do CPC, ou seja, especificar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – al. a) do nº 1 –, (ii) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – al. b) – e (iii) a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – al. c). Além disso, havendo factos que pudessem depender de prova que foi gravada [na audiência final foram ouvidos o administrador da insolvência e o contabilista da ora insolvente], teria, ainda, a recorrente que indicar com exatidão as passagens da gravação em que estriba o seu recurso – al. a) do nº 2. A falta de cumprimento destes ónus – principalmente dos ónus primários das três alíneas do nº 1 daquele artigo – determinam a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não havendo lugar a convite ao aperfeiçoamento.
Contudo, o recorrente não cumpriu nenhum destes ónus, nem na motivação [corpo das alegações], nem nas conclusões, sendo que algumas das referidas especificações bastava constarem da motivação [casos das als. b) do nº 1 e a) do nº 2], enquanto outras [as das als. a) e c) do nº 1] tinham que constar obrigatoriamente da motivação e das conclusões. Aliás, em parte alguma das alegações e das conclusões o recorrente anuncia sequer a intenção de impugnar a matéria de facto fixada na sentença recorrida, pelo que é inequívoco que não a impugna. Caso tivesse o propósito de a impugnar, para que lhe fossem aditados os factos mencionados, então a impugnação teria que ser rejeitada por inobservância dos referidos ónus [pelo menos dos primários].
Deste modo, não atentaremos no que consta das referidas conclusões, sendo certo que do facto provado nº 35 consta apenas que a insolvente esteve encerrada durante aproximadamente dois anos, devido à pandemia, daí decorrendo que tal encerramento se iniciou, certamente, antes de meados de 2020 [a pandemia surgiu no nosso País em março desse ano e paralisou diversos serviços e atividades, públicos e privados, incluindo, nestes últimos, os setores da hotelaria e restauração, sobretudo até julho desse ano (trata-se de facto notório)] e se prolongou até meados de 2022, pelo que a mesma não esteve encerrada [sem laborar] durante todo o período de três anos que antecedeu o início do processo de insolvência.
Não logrando a recorrente pôr, assim, em questão a factualidade constante dos referidos factos provados, não subsiste qualquer dúvida de que, em face dos mesmos e dos demais indicados no transcrito segmento da sentença recorrida, a sociedade ora insolvente e o seu identificado administrador incumpriram, em termos substanciais, a obrigação da primeira manter contabilidade organizada e que tal incumprimento impede o conhecimento da realidade económica e financeira daquela, mostrando-se, por isso, verificada a presunção iuris et de iure da al. h) do nº 2 do art. 186º, com referência ao art. 65º nºs 1 e 5 do CSC, uma vez que o preenchimento desta alínea não exige a demonstração de que o administrador da sociedade insolvente tivesse pretendido enganar terceiros, fazendo transparecer uma realidade distinta da real e/ou que tivesse pretendido ocultar, modificar ou omitir a realidade contabilística da sociedade, tendo em vista o prejuízo patrimonial e financeiro de terceiros [assim se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 14.03.2023, atrás citado, com que concordamos, que refere que “é totalmente irrelevante – para efeitos de verificação da situação descrita e da consequente qualificação da insolvência como culposa – que não existam factos provados que sustentem a conclusão de que as irregularidades da contabilidade tivessem tido por finalidade a ocultação da situação patrimonial da empresa ou que visasse impedir o apuramento das causas da insolvência ou seu agravamento (…). Com efeito, se é certo que, (…), a verificação da situação prevista na citada alínea h) não exige e não pressupõe que, com o incumprimento ou irregularidades aí referidas, se tenha pretendido ocultar a realidade financeira da empresa a terceiros ou impedir que as causas da insolvência ou do seu agravamento fossem do cabal conhecimento de quem analisa a contabilidade da empresa – o preenchimento da previsão normativa basta-se com a verificação objetiva do incumprimento ou das irregularidades aí mencionadas, nos termos acima referidos –, também é certo que a verificação dessa situação é suficiente para determinar a qualificação da insolvência como culposa sem necessidade de demonstrar a existência de culpa ou nexo de causalidade em relação à criação ou agravamento da situação de insolvência”; idem, Acórdãos do STJ de 28.01.2025, proc. 7920/19.7T8VNF-A.G1.S1 e de 19.10.2021, proc. 421/19.5T8GMR-A.G1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto (e Secção) de 28.01.2025 e de 09.04.2024, atrás citados].
Nesta parte, o recurso improcede.

iii - a) A recorrente, nas conclusões 19 a 27, discorda também do entendimento, constante da sentença recorrida, que considerou verificada a al. i) do nº 2 do mesmo art. 186º. Nesta alínea está em causa o incumprimento, de forma reiterada, pelo administrador de direito ou de facto, dos «deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do art. 188º».
No que concerne a esta alínea, a sentença começou por afirmar o seguinte:
«A propósito do “Dever de apresentação à insolvência”, dispõe o artigo 18º, CIRE que:
“1. O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º ou à data em que devesse conhecê-la.
(…)
3. Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º.”
Resulta destas normas que o prazo de apresentação à insolvência conta-se do conhecimento dessa situação ou, sendo anterior, do momento em que o devedor a devia conhecer. Para facilitar a prova de tal conhecimento, o nº 3 do artigo 18º prevê uma presunção inilidível do conhecimento da insolvência quando ocorra, há pelo menos três meses, o incumprimento generalizado de qualquer das obrigações referidas na al. g) do nº1 do artigo 20º.
As obrigações que se encontram previstas na al. g) do nº 1 do artigo 20º, são as seguintes: i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente ao local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.
O carater “inilidível” desta presunção (prevista no nº 3 do art.º 18.º) tem por consequência que, uma vez demonstrado o facto base – incumprimento generalizado deste tipo de obrigações que se prolongue por mais de três meses – não pode o devedor alegar factos demonstrativos do desconhecimento da situação de insolvência.
No caso dos autos, resulta provado que os créditos reclamados nos autos representam um total de 991.183,36€, entre os quais créditos tributários de antiguidade superior a um ano da data da insolvência, no montante de 413.938,41€, e créditos tributários vencidos no último ano no montante de 106.122,15€; créditos relativos a contribuições para a segurança social com antiguidade superior a um ano da data da insolvência, no montante de 155.051,72€, e de contribuições relativas ao último ano no montante de 15.109,40€; créditos laborais no valor de 86.339,90€.
Verifica-se, assim, uma densidade factual que preenche a circunstância prevista na al. i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, quanto ao incumprimento reiterado do dever de apresentação à insolvência, uma vez que a insolvência foi declarada a requerimento de um credor.».
Resulta deste excerto que a 1ª instância considerou verificada a previsão da dita al. i) do nº 2 do art. 186º, desde logo, por a recorrente e seu administrador terem incumprido o dever de apresentação daquela à insolvência previsto no art. 18º.
Neste segmento, a decisão recorrida padece de um equívoco: considerou erradamente que a falta [que reputou reiterada] de apresentação à insolvência se reconduz e integra a previsão da referida al. i) do nº 2 do art. 186º, o que não corresponde à verdade. Com efeito, segundo a al. i) do nº 2 do art. 186º, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham «incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188º». Ou seja, os deveres de apresentação e de colaboração a que a alínea em referência se reporta são apenas e só os que constam do art. 83º e não quaisquer outros, designadamente o dever de apresentação à insolvência previsto no art. 18º, sendo certo que aquele art. 83º se refere aos deveres [a cargo dos administradores de direito e de facto da insolvente] de fornecimento de todas as informações relevantes para o processo [de insolvência e seus apensos] que sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal – al. a) do nº 1; de apresentação pessoal no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência [salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário] – al. b); e de prestação da colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções – al. c). Tudo, pois, deveres [de apresentação e de colaboração] a cargo dos administradores de direito ou de facto da insolvente com o objetivo de facultar ao tribunal e aos órgãos da insolvência os necessários elementos para que o processo de insolvência e seus apensos sejam céleres e os órgãos da insolvência levem a cabo o adequado exercício das funções que lhe são conferidas no CIRE. Em parte alguma da al. i) do nº 2 do art. 186º ou do art. 83º se faz menção ou apelo à falta de apresentação à insolvência que está prevista no art. 18º.
Surge, assim, evidente que a falta de apresentação à insolvência [ainda que prolongada no tempo] não integra o elenco das situações-tipo enquadráveis na previsão da dita al. i) [neste sentido, Acórdão da Relação de Évora de 09.02.2023, proc. 1611/21.6T8STR-B.E1, disponível in www.dgsi.pt/jtre].
Neste segmento não acompanhamos a decisão recorrida.

iii – b) No preenchimento da referida alínea i), o tribunal a quo também considerou verificada, de forma reiterada, a falta de colaboração do administrador da agora insolvente ao abrigo do disposto no citado art. 83º. Fê-lo com a seguintes fundamentação:
«A propósito do dever de colaboração, dispõe o artigo 83º do CIRE que:
“1 - O devedor insolvente fica obrigado a:
a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;
(…)
c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
(…)
3 - A recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
4 - O disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor e membros do seu órgão de fiscalização, se for o caso, bem como às pessoas que tenham desempenhado esses cargos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
O que diferencia o campo de aplicação da norma do nº 3 do artigo 83º, em relação à norma da al. i) do nº 2 do artigo 186º, é a reiteração do incumprimento.
Enquanto uma violação esporádica e isolada daqueles deveres apenas pode ser objeto de livre apreciação por parte do juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa, já a violação reiterada dos mesmos deveres determina sempre a qualificação da insolvência como culposa, nos termos da alínea i) do nº 2 do artigo 186º, o qual, como referimos, consubstancia uma presunção inilidível da existência de insolvência culposa.
Em face da factualidade provada em 21 a 25, verifica-se que o requerido incumpriu os seus deveres de colaboração previstos no artigo 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188.º de forma reiterada, sem qualquer justificação para tal.».
A recorrente contrapõe que não houve violação das obrigações estabelecidas naquele art. 83º porque o seu administrador «não foi contactado» pelo AI, na medida em que se encontrava, «ao tempo e por coincidência (…) ausente no estrangeiro e incontactável», não tendo tido, por isso, conhecimento «das pretensões do Sr. Administrador de Insolvência» [principalmente, conclusões 21, 26 e 27].
Estamos, também aqui, perante factualidade que não encontra respaldo na matéria de facto que foi dada como provada na sentença recorrida [e descrita no ponto III deste acórdão], da qual só resulta que o AI solicitou a colaboração do administrador da insolvente [mais que uma vez e por meios diferentes] e que este não prestou as informações nem apresentou a documentação solicitadas. Para que a factologia ora invocada pela recorrente pudesse ser apreciada e, eventualmente, atendida por este tribunal de recurso, deveria a mesma ter impugnado a decisão da 1ª instância relativa à matéria de facto, nos termos e com observância dos ónus de impugnação estabelecidos no art. 640º do CPC. Como não o fez, vale, igualmente, quanto a tal factualidade o que atrás dissemos a propósito dos factos que alegou ao abrigo das conclusões 28 a 35. Consequentemente, não podemos ter em conta a factualidade que vem alegada nas conclusões 21, 26 e 27.
E, mostrando-se provado que o administrador da ora insolvente não atendeu aos pedidos de colaboração do AI porque não quis [não reclamou, nos correios, a correspondência que este lhe enviou, apesar do envio ter sido feito para a sua morada, na sede da insolvente (tal como fixado na parte final da sentença que declarou a insolvência da recorrente e da qual aquele foi pessoalmente notificado) e não atendeu nem devolveu a chamada telefónica que o AI lhe fez (depois da devolução da correspondência)] e que não prestou as informações nem entregou a documentação que o mesmo lhe solicitou com vista à elaboração do parecer a que se refere o nº 6 do art. 188º, não há dúvida de que o administrador da recorrente não cumpriu os deveres estipulados nas als. a) e c) do nº 1 do art. 83º, incumprimento que foi reiterado, quer porque a aludida colaboração lhe foi solicitada mais que uma vez e por diferentes meios, quer porque a sua própria inércia/indiferença se prolongou no tempo entre a data em que devia ter respondido à primeira solicitação [na sequência do que consta do facto provado nº 21] e a data do parecer referido no nº 6 do art. 188º [que ocorreu em 30.01.2025].
Por isso, neste segmento acompanhamos a decisão recorrida, mostrando-se verificados os pressupostos da al. i) do nº 2 do art. 186º - incumprimento reiterado, por parte do administrador da insolvente, dos deveres estabelecidos no art. 83º nºs 1 e 2 e no prazo ali indicado [entre a solicitação do AI e a data do parecer do nº 6 do art. 188º] –, o que faz presumir iuris et de iure não só a culpa deste [e da insolvente], como também o nexo causal entre a descrita atuação e o agravamento da situação de insolvência da ora insolvente [cfr. Acórdão desta Relação (e Secção) de 19.11.2024, proc. 6174/23.5T8VNG-B.P1, disponível no sítio da dgsi já mencionado].
Nesta parte, o recurso soçobra.

iv) Na sentença, a insolvência foi qualificada como culposa também por verificação do pressuposto da al. a) do nº 3 do art. 186º, segundo a qual se presume «unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham incumprido (…) [o] dever de requerer a declaração de insolvência». A respetiva fundamentação foi a seguinte:
«De igual modo, verifica-se a circunstância prevista na al. a) do nº 3 do artigo 186.º do CIRE, uma vez que se verifica o nexo de causalidade entre o incumprimento desta obrigação [de apresentação da devedora à insolvência] e a situação de insolvência ou o seu agravamento: note-se que a sociedade foi aumentando o seu passivo, desde logo com o aumento de dívida à autoridade tributária e à segurança social, sendo estas dívidas, referentes ao último ano, no montante de 106.122,15€ no que diz respeito à autoridade tributária; e no montante de 15.109,40€ no que diz respeito à segurança social, o que não teria ocorrido se tivesse sido cumprido o dever de apresentação à insolvência.».
A recorrente nada diz, expressamente, quanto a este segmento da decisão recorrida; só implicitamente o faz, na medida em que sustenta que «deve ser revogada a decisão proferida e qualificar a insolvência como fortuita» [conclusão 43].
O nº 1 do art. 18º prescreve que «[o] devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do art. 3º, ou à data em que devesse conhecê-la», acrescentando o nº 3 que «[q]uando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº 1 do art. 20º», ou seja, de acordo com estes artigo, número e alínea, de obrigações i) tributárias, ii) de contribuições e quotizações para a segurança social, iii) de dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato e iv) de rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência. Por sua vez, o nº 1 do art. 3º estabelece que «[é] considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas», acrescentando o nº 2 que, relativamente às pessoas coletivas [parte que aqui releva], a situação de insolvência também se verifica «quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis».
No caso dos autos, mostra-se provado, como se diz na sentença recorrida, «que os créditos reclamados nos autos representam um total de 991.183,36€, entre os quais créditos tributários de antiguidade superior a um ano da data da insolvência, no montante de 413.938,41€, e créditos tributários vencidos no último ano no montante de 106.122,15€; créditos relativos a contribuições para a segurança social com antiguidade superior a um ano da data da insolvência, no montante de 155.051,72€, e de contribuições relativas ao último ano no montante de 15.109,40€; [e] créditos laborais no valor de 86.339,90€». Atendendo, por um lado, à natureza e montantes destes créditos [tributários, de contribuições para a segurança social e laborais] e, por outro, ao desequilíbrio entre rendimentos e gastos apresentados em 2023, de 136.844,05€ negativos e aos valores dos saldos bancários da insolvente em junho e julho de 2023, indicados no facto provado nº 20, parece não haver dúvidas quanto à situação de insolvência daquela. Por isso, devia ter-se apresentado à insolvência.
Mesmo tendo em conta que o prazo para cumprimento da obrigação prevista no nº 1 do art. 18º esteve suspenso entre 09.03.2020 e 05.07.2023, ex vi do disposto, sucessivamente, no art. 7º nº 6 da Lei 1-A/2020, de 19.03, na redação dada pela Lei 4-A/2020, de 06.04, no art. 6º-A nº 6 al. a) da mesma Lei, na redação dada pela Lei 16/2020, de 29.05, no art. 6º-B nº 6 al. a) da mesma Lei, na redação dada pela Lei 4-B/2021, de 01.02 e no art. 6º-E nº 7 al. a) da mesma Lei, na redação dada pela Lei 13-B/2021, de 05.04 [cfr. Acórdãos desta Relação (e Secção) de 16.09.2025, proc. 1627/23.8T8AMT-C.P1, de 13.05.2025, proc. 8393/23.5T8VNG-B.P1 e de 28.01.2025, proc. 5891/21.9T8VNG-B.P1, disponíveis no sítio da dgsi já várias vezes citado], os factos provados permitem, ainda assim, concluir que a situação de insolvência era anterior a 05.07.2023, pelo que a devedora, ora insolvente, deveria ter-se apresentado à insolvência dentro dos 30 dias seguintes à cessação da suspensão acabada de referir, ou seja, até 05.08.2023, o que não fez até 02.02.2024, data em que um credor, titular de um crédito laboral, acabou por requerer a insolvência daquela [que a devedora contestou, opondo-se à declaração de insolvência].
Resulta, assim, demonstrada, igualmente, a situação prevista na al. a) do nº 3 do art. 186º, com a inerente presunção de culpa grave.
Presumindo-se unicamente a existência de culpa grave, cabia ao autor do incidente de qualificação da insolvência – no caso, ao MP [e também ao AI] – a prova de que o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência foi a causa da criação ou do agravamento da situação de insolvência, como é entendimento unânime da jurisprudência, ou, dito de outro modo, a existência daquela presunção juris tantum de culpa grave não prescinde de um juízo de causalidade entre o facto fundamentador da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência [assim, i. a., Acórdãos desta Relação do Porto (e Secção) de 17.06.2025, proc. 2353/22.0T8VNG-A.P1 e de 07.02.2023, proc. 49/22.2T8AMT-A.P1 e da Relação de Coimbra de 06.10.2020, proc. 3422/19.0T8VIS-B.C1 e de 12.07.2017, proc. 370/14.3TJCBR-A.C, disponíveis nos sítios da dgsi já referenciados]. E o nexo causal entre este incumprimento e o agravamento da situação de insolvência encontra-se, igualmente, provado, uma vez que a dívida à Autoridade Tributária aumentou 106.122,15€ no último ano e, no mesmo período, a dívida à Segurança Social teve um aumento de 15.109,40€ [factos provados nºs 29 e 31].
Deste modo, a qualificação da insolvência como culposa assenta também, como declarado na sentença, na previsão da al. a) do nº 3 do art. 186º.
Nesta parte, o recurso improcede.

v) A sentença recorrida decretou, ainda, ao abrigo dos arts. 191º nº 1 al. c) e 189º nº 2 als. b), c) e e), «a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 6 (seis) anos» e condenou «o Requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até ao limite de 991.183,36€ (novecentos e noventa e um mil, cento e oitenta e três euros e trinta e seis cêntimos).».
A recorrente, nas conclusões, nada diz a respeito destes dois segmentos decisórios.
Não integrando o objeto do recurso, nada há que dizer quanto a eles.

Pelo decaimento, as custas deste recurso ficam a cargo da massa insolvente – arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC e 303º do CIRE.
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Síntese conclusiva:
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V. Decisão:

Face ao exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar o recurso parcialmente procedente e alterar a sentença recorrida apenas na parte relativa à al. i) do nº 2 do art. 186º do CIRE que assentou no incumprimento do dever de apresentação à insolvência, mas confirmando-a quanto a tudo o mais.
2º) Condenar a massa insolvente nas custas deste recurso [a parcial procedência afirmada em 1º não teve efeitos substanciais relativamente ao que constituía o objeto do recurso, uma vez que se manteve a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo das als. h) e i) do nº 2 e da al. a) do nº 3 do art. 186º do CIRE].

Porto, 2025.11.11
Pinto dos Santos
Maria da Luz Seabra
João Ramos Lopes