IMPUGNAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
LEGITIMIDADE
PARTICIPAÇÃO SOCIAL DE SÓCIO CASADO
PATRIMÓNIO COMUM
Sumário

I - Na hipótese de a participação social integrar o património comum dos cônjuges, é considerado sócio o cônjuge que celebrou o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal.
II - Nesta conformidade, carece de legitimidade o cônjuge do sócio para impugnar as deliberações sociais anuláveis.

Texto Integral

Processo n.º4779/24.6T8VNG.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunta: Maria Eiró

Adjunta: Alexandra Pelayo

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I — RELATÓRIO

AA, casado, residente na Travessa ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, intentou a presente Acção de Anulação de Deliberação Social contra “A..., Ldª.”, com sede na Avenida ..., ..., sala ...04, ... Porto, BB, viúva, residente na Rua ..., ..., ..., ... ..., CC, casada no regime de comunhão de bens adquiridos, residente na Travessa ..., ... Vila Nova de Gaia e DD, casada, residente na Rua ...., ..., ... ..., pedindo que sejam declaradas nulas e/ou anuladas as deliberações aprovadas na assembleia geral, realizada em 23 de Outubro de 2023, e também que sejam canceladas todas as inscrições registrais que confiram eficácia e publicidade à deliberação tomada.
As Rés invocaram a excepção de ilegitimidade das 2ª, 3ª e 4ª Rés, alegando que tanto a acção de declaração de nulidade como a de anulação são propostas apenas contra a sociedade.
A 1.ª Ré apresentou contestação alegando nomeadamente que mesmo que se considerasse que as deliberações em apreço seriam intencionalmente lesivas dos direitos do Autor e que este teria legitimidade activa para em tal âmbito interpor a presente, o que vivamente se refuta, sempre se teria que considerar e constatar, de forma insofismável, que tais deliberações poderiam ter sido tomadas mesmo sem o voto favorável da terceira Ré atinente à única quota que constitui o bem comum do casal, do valor nominal de € 1.250,00, num capital social no transe de € 5.000,00, pelas demais sócias, na medida em que a lei estabelece uma maioria qualificada de ¾ dos votos para a deliberação do aumento de capital e alteração dos estatutos nas sociedades por quotas, consagrado no artigo 265º do CSC, que estas detinham.
Em face da contestação, o A. veio requerer a condenação das RR. como litigantes de má fé, tendo estas respondido no sentido de se oporem a tal condenação.

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As 2ª, 3ª e 4ª Rés foram declaradas partes ilegítimas e absolvidas da instância.
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Proferiu-se sentença que julgou a acção procedente e declarou nulas as deliberações.
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A Ré sociedade, inconformada com a decisão que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade do Autor, interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1. Recorre-se do douto saneador sentença com a referência 469484496 na parte em que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade do Autor, que considerou parte legitima para a presente e bem assim da decisão de facto, no que tange à alínea E ) do elenco dos Factos Provados, bem assim de decisão de mérito, no que concerne à declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da Recorrente de 23 de Outubro de 2023, com o decorrente cancelamento das inscrições registrais que confiram eficácia e publicidade às mesmas e sempre da sua anulabilidade
2. Seguindo a ordem preconizada na decisão em crise, é convicção primeira da Recorrente que estarmos em face de um caso de ilegitimidade activa do Recorrido, para a propositura da presente, à luz do disposto no artigo 8º, nº 2 e 59º, nº 1 do CSC excepção dilatória que conduz à absolvição da Recorrente da instância, nos termos previstos nos artigos 278.º, n.º 1, al. d) e 577.º, al. e) do CPC
3. Posto que sendo um dos cônjuges titular de uma quota numa sociedade comercial constituída na constância do matrimónio, como ocorre, tal quota constitui um bem comum do casal, mas apenas quanto à sua dimensão patrimonial, sendo que o cônjuge não adquire, por tal facto, quaisquer direitos de participação na actividade societária, incluindo a legitimidade para intentar acção tendente à anulação de quaisquer deliberações sociais.
4. Sequer, em caso de divórcio, ou separação de pessoas e bens e decorrente indivisão destes até à partilha, e ainda no que respeita aos herdeiros, no caso da morte do cônjuge não sócio, que não determina o ingresso dessa quota numa situação de contitularidade, conforme vem sufragando de forma maioritária a doutrina e jurisprudência que a própria sentença cita e se reproduziu exaustivamente no contexto.
5. Tudo a impor a revogação da decisão recorrida, por erro de interpretação e aplicação dos preceitos invocados na decisão e nestas alegações, reproduzidos nas antecedentes conclusões.
6. Isto posto, no que tange à decisão de facto impetra-se a sua revogação parcial, no que concerne à alínea E) do elenco dos Factos Assentes, sugerindo-se nova redação, constante da subsequente que contempla o teor do documento nº 1 junto com a contestação e não mereceu impugnação, atentas as várias soluções plausíveis da questão de direito e a prova documental que integra os autos:
7. E. Em 18 de Outubro de 2017, BB dividiu a sua quota nominal de € 2.500,00 euros em três quotas, tendo ficado com uma quota de € 1,500,00 euros, a que correspondia uma percentagem do capital social de 30% e cedeu graciosamente às suas filhas, terceira e quarta Rés, uma quota de € 500,00 euros a cada uma, passando estas a deter duas quotas cada uma, respetivamente, de € 1.250,00 euros e outra de € 500,00 euros, o que totalizava uma percentagem individual de capital social de 35% para cada uma das terceira e quarta Rés.(destaque nosso).
8. Na consideração de que na nossa lei é excecional o sistema da nulidade das deliberações sociais, sendo maioritariamente aceite que as deliberações sociais nulas estão sujeitas ao princípio da tipicidade,
9. Diverge-se do decidido quanto à declaração de nulidade das deliberações de aumento do capital e alteração dos estatutos tomadas na assembleia geral universal da Recorrente de 23 de Outubro de 2023, louvada na alegada violação disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 56º do CSC, por considerar ocorrer violação de normas de interesse e ordem pública.
10. Ao considerar as normas que regulam aspectos patrimoniais dos cônjuges como sendo de interesse publico, que os cônjuges e os sócios da sociedade em que participam não podem afastar, com a atribuição de tal natureza ao disposto no artigo 1678º, nº 3 do Código Civil.
11. Neste particular é mister concluir que o Código das Sociedades Comerciais constitui lei especial em relação ao Código Civil, que tem aplicação subsidiária no omisso ou no não previsto especialmente naquele, conforme decorre o disposto no artigo 2º daquele, pelo que o artigo 8º, nº 2 do primeiro constitui norma especial em relação à norma do artigo 1678º, nº 3 do segundo.
12. Sendo que, no regime da comunhão de adquiridos como ocorre, decorre de tal norma especial que o cônjuge do sócio ou acionista, pelo simples facto de o regime de bens lhe reconhecer a comunhão em bens onerosamente adquiridos pelo seu cônjuge, em termos exclusivamente patrimoniais, não adquire a qualidade de sócio,
13. Que é indissociável da pessoa do titular da respectiva participação social, a terceira Ré, que tem o poder de administração da mesma, mesmo no caso de divórcio ou separação de pessoas e bens e decorrente indivisão da quota até à partilha, que não implica uma modificação no que tange à titularidade da mesma
14. Pelo que as deliberações que se declararam nulas, de aumento do capital social e alteração dos estatutos não careciam nem carecem do consentimento do Recorrido enquanto cônjuge da sócia
15. É insofismável que o artigo 1678º, nº 3 do Código Civil não constitui uma norma de interesse e ordem pública, ou seja, que importe uma valoração, da qual resulte a identificação do interesse fundamental da comunidade.
16. Sendo antes tal norma e as demais que regem as relações patrimoniais entre os cônjuges e a administração dos bens do casal, normas que regulam interesses patrimoniais exclusivamente privados dos cônjuges.
17. Por assim não entender e considerar a norma em apreço de interesse e ordem pública e estarmos em face da nulidade prevista na alínea d), do artigo 56º do CSC, a decisão recorrida, violou, por erro de interpretação e aplicação os preceitos nela vertidos e nestas alegações e conclusões 9 a 17 a impor revogação.
18. Sem prescindir, atenta a natureza especial da norma do artigo 8º, nº 2 do CSC, que derroga o regime consagrado no artigo 1678º, nº 3 o Código Civil, na consideração de que as deliberações em apreço não violam aquele preceito conclui-se não ocorrer a previsão subsidiariamente invocada na sentença em crise da anulabilidade prevista no artigo 58º, n1, al.a) do CSC, igualmente a impor revogação.
19. Sempre sem prescindir, mesmo que se considerasse ocorrer antes anulabilidade, o que se refuta, na consideração de que as deliberações impugnadas foram tomadas em assembleia geral universal encerrada em 23 de Outubro de 2023, sendo o prazo de natureza substantiva para propositura da acção de anulação de 30 dias e tendo a presente acção dado entrada em 4 de Setembro de 2024, sempre se teria que concluir pela verificação da execpção peremptória da caducidade de tal prazo, como decorre do disposto nos artigos 279.º, als. b) e e), 296.º e 298.º, n.º 2, do Código Civil, a impor a absolvição da Recorrente do pedido, nos termos do disposto no artigo 576º, nº 3 do CPC., também a impor a revogação da decisão recorrida.
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O Autor respondeu concluindo da seguinte forma:

1-O A./Recorrido é parte legítima para demandar a R./Recorrente, porquanto tem interesse direto em demandar, porquanto foi afetado na sua esfera patrimonial;
2- No existem fundamentos fácticos ou jurídicos que permitam a alteração da alínea e) dos factos provados com o aditamento da palavra “graciosamente” e mais importante não é minimamente relevante para o desfecho da ação, pelo que V. Exas. não devem atender a este fundamento para alteração da decisão recorrida.
2-A sentença recorrida não viola nenhum artigo quer do CC, do CSC, do CPC e da CRP, fazendo uma exemplar aplicação do Direito ao caso concreto;
3-A quota social em discussão é bem comum do casal;
4-As deliberações tomadas teriam, como consequência, diluir o valor das quotas detidas em comum pela Ré CC e o Recorrido, tendo como objetivo o prejuízo do património comum;
5-As deliberações declaradas nulas violaram, entre outras, diversas normas como os arts. 1678º, nº 3, 1682º, do CC e art. 56º, nº 1, alínea d) do CSC.
6-A nulidade, como decorre cristalinamente do artigo 286º do Código Civil, é invocável a todo o tempo e por qualquer pessoa, designadamente o cônjuge do sócio.
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II — Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se o Autor é parte legítima numa acção de anulação de deliberações sociais de aumento de capital e de alteração de estatutos contra a sociedade na qual é sócia o respectivo cônjuge.
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III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)

A.A 1ª Ré é uma sociedade comercial por quotas que se dedica às actividades de contabilidade, auditoria (excluindo as competências exclusivas dos revisores oficiais de contas), consultoria fiscal, gestão de recursos humanos, estudos económicos, consultoria para os negócios e a gestão.
B.CC é casada com o A. sem convenção antenupcial desde ../../2007.
C.Em 19 de Março de 2015 foi constituída a sociedade A..., Ldª., aqui 1ª Ré, a qual tinha um capital social de € 5.000,00 (Cinco mil euros), composto da seguinte forma:
a)BB detinha uma quota nominal de € 2.500,00 euros, a que correspondia a uma percentagem de capital social de 50%;
b)CC detinha uma quota nominal de € 1.250,00 euros, o que correspondia a uma percentagem de capital social de 25%;
c)DD detinha uma quota nominal de € 1.250,00 euros, a que correspondia uma percentagem de capital social de 25%.
D.A gerência foi sempre exercida exclusivamente por CC desde a constituição da sociedade A....
E.Em 18 de Outubro de 2017, BB dividiu a sua quota nominal de € 2.500,00 euros em três quotas, tendo ficado com uma quota de € 1,500,00 euros, a que correspondia uma percentagem do capital social de 30% e cedeu às suas filhas, terceira e quarta Rés, uma quota de € 500,00 euros a cada uma, passando estas a deter duas quotas cada uma, respetivamente, de € 1.250,00 euros e outra de € 500,00 euros, o que totalizava uma percentagem individual de capital social de 35% para cada uma das terceira e quarta Rés.
F.Em 23 de Outubro de 2023, a sociedade A..., aqui 1ª Ré, reuniu em Assembleia Geral, estando presentes as sócias BB, CC e DD, tendo sido deliberado por unanimidade aumentar o capital social, em dinheiro, para o montante de € 35.000,00 euros, e alterar, sob proposta de CC, a redação dos artigos 4º e 7º da sociedade Ré, constando o seguinte da respectiva acta:
“As sócias manifestaram vontade de que esta assembleia-geral se constituísse, sem precedência de formalidades prévias, como assembleia-geral universal, nos termos do artigo 54º do Código das Sociedades Comerciais e deliberasse sobre os pontos da Ordem de Trabalhos subsequente:
1— Deliberação sobre o aumento do capital social, em dinheiro, para o montante de € 35.000,00.
2— Deliberação sobre a alteração dos artigos 4º e 7º dos estatutos da sociedade.
Presidiu à assembleia a sócia e gerente CC.
Entrando no ponto primeiro da Ordem de Trabalhos, pela presidente da assembleia e gerente da sociedade foi dito que, com vista ao maior desenvolvimento dos negócios sociais, se torna necessário e adequado dotar a sociedade de novo capital, assim sendo deliberado elevar o capital actual, do montante de "cinco mil euros" para o valor de “(trinta e cinco mil euros", por entrada em dinheiro, no valor de "trinta mil euros", sendo que este valor será subscrito na totalidade pela sócia BB, que eleva a sua quota do montante de "mil e quinhentos euros" para o montante de "trinta e um mil e quinhentos euros",.
Mais foi declarado pela sócia e Gerente CC, sob sua responsabilidade, que o valor do aumento deu entrada na caixa social e ainda que não são exigíveis, por lei, pelo contrato, ou por outra deliberação a realização de outras entradas.
Em conformidade com o já deliberado no âmbito do ponto 2 da Ordem de Trabalhos foi deliberado por unanimidade proceder à alteração dos artigos 4º e 7º dos estatutos da sociedade, que passam a ter a seguinte nova redacção:
“Artigo 4º
Capital
O capital social, integralmente realizado em numerário é de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), representado pelas seguintes quotas:
a) Uma quota com o valor nominal de € 31. 500,00 (trinta e um mil e quinhentos euros), pertencente a BB;
b) Uma quota com o valor nominal de 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) e outra de € 500,00 (quinhentos euros), pertencentes a CC;
c) Uma quota com o valor nominal de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) e outra de € 500,00 (quinhentos euros), pertencentes a DD.
Artigo 7º
Amortização de quotas
É permitida a amortização de quotas nos seguintes casos:
a)Havendo acordo dos respectivos titulares;
b)Quando se trate de quotas oferecidas directamente à sociedade e por ela adquiridas;
c) Quando, por divórcio, separação de pessoas e bens ou só de bens, de qualquer sócio, a respectiva quota lhe não fique a pertencer inteiramente.
d) Quando se trate de quotas arrestadas, penhoradas, arroladas ou arrematadas por estranhos, ou de qualquer forma sujeitas a qualquer outro procedimento contencioso, designadamente de insolvência de qualquer dos seus titulares, excepto o de inventário, desde que o sócio não deduza qualquer oposição ao arresto, penhora, arrolamento, execução ou acção, pois, se tal suceder, a amortização só terá lugar no caso de improcedência dessa oposição ou ainda no caso da respectiva oposição não determinar a suspensão do procedimento em apreço.
e) No caso previsto no número um do artigo 242º do Código das Sociedades Comerciais, designadamente quando os respectivos titulares utilizarem abusivamente informações obtidas no exercício do seu direito de informação, para fins estranhos à sociedade, por forma a causar prejuízo a esta ou a qualquer sócio.
§ 1º- No caso das alíneas a) e b), a amortização será efectuada pelo valor acordado com os titulares, depois de aprovado em Assembleia Geral; e nos demais casos pelo valor da quota em face do último balanço efectuado, acrescido dos resultados correspondentes ao período de tempo que decorrer desde essa data até à da amortização, calculados na base do exercício a que o balanço respeita.
2º- Verificados os seus pressupostos legais e contratuais e uma vez tomada a respectiva deliberação, nos termos e prazo legais, a amortização torna-se eficaz mediante comunicação dirigida aos sócios por ela afectados, sendo o pagamento da contrapartida apurada fraccionado em duas prestações, a efectuar, mediante entrega directa ou depósito, nos casos em que este se mostrar próprio, necessário ou adequado, dentro do prazo de seis meses e um ano, respectivamente, contados da data da deliberação.
§ 3º- Em alternativa à amortização pode a sociedade deliberar adquirir a quota em apreço ou fazê-la adquirir por outros sócios ou terceiros."
G.Tal aumento do capital social foi objeto de registo em 27 de Outubro de 2023, passando a sociedade A... a ter um capital social de € 35.000, euros, composto da seguinte forma:
a)BB passou a deter uma quota nominal de € 31.500,00 euros, a que corresponde uma percentagem de capital social de 90%;
b)CC passou a deter duas quotas nominais de € 1.250,00 euros e de € 500,00 euros, a que corresponde a uma percentagem de capital social de 5%;
c)DD passou a deter duas quotas nominais de € 1.250,00 euros e de € 500,00 euros, a que corresponde uma percentagem de capital social de 5%.
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IV - DIREITO

O Autor pretende, com a presente acção, obter a declaração de invalidade das deliberações acima referidas, aprovadas na assembleia geral, realizada em 23 de Outubro de 2023.
A questão principal consiste em saber se o Autor, na qualidade de cônjuge da sócia, carece de legitimidade para propor uma acção de anulação de deliberações sociais de aumento de capital social e de alteração dos estatutos.
Quadro legal
No artigo 21.º, n.º 1 do CSC, sobre os direitos dos sócios, enunciam-se alguns dos direitos que a titularidade de uma participação lhe confere.
Os direitos sociais são sui generis[1] por resultarem da posição complexa de sócio, revestindo uns natureza patrimonial e outros, os chamados direitos de participação na vida da sociedade, não são na sua essência susceptíveis de imediata avaliação pecuniária.[2]
Nesta conformidade, Pinto Furtado[3] esclarece que a posição de sócio envolve um feixe de direitos e obrigações de naturezas diferentes que se devem distinguir, para este efeito, consoante a sua natureza, em patrimoniais, por um lado, e associativos (corporativos, políticos, administrativos…) por outro.
Sob a epígrafe Participação dos cônjuges em sociedades, o art. 8.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais (CSC) prescreve que “Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal.”
E o n.º 3 esclarece que “O disposto no número anterior não impede o exercício dos poderes de administração atribuídos pela lei civil ao cônjuge do sócio que se encontrar impossibilitado, por qualquer causa, de a exercer nem prejudica os direitos que, no caso de morte daquele que figurar como sócio, o cônjuge tenha à participação.”
O conteúdo normativo do citado n.º 2 do art. 8.º do CSC regula directamente a questão de saber, na hipótese de a participação social constituir um bem comum do casal, qual dos dois cônjuges é considerado sócio nas relações com a sociedade.
E a resposta é clara: o sócio é apenas o cônjuge que celebrou o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal.
Pinto Furtado[4] sobre esta questão da comunicabilidade e incomunicabilidade da posição de sócio, e perante a regra clara do n.º 2 do art. 8.º CSC declarou “Como se vê, este princípio parece muito claro: a vertente patrimonial da posição de sócio é comunicável ao cônjuge; a vertente associativa, política ou corporativa de sócio, não.
No mesmo sentido, Remédio Marques,[5] nas reflexões sobre o tema e consulta da doutrina concluiu que “Seja como for, a vertente patrimonial inerente à qualidade de sócio é que é, como vimos, comunicável, integrando a massa dos bens comuns nos regimes de comunhão; a vertente associativo-institucional, não. O cônjuge é o sócio ou acionista; o seu cônjuge não o é.”
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 26/01/2021,[6]esclareceu que “Este claro propósito legislativo é ainda reforçado pelo que se estabelece no n.3 do art.8º, nos termos do qual só a título excecional (por impossibilidade do titular da participação social) pode o seu cônjuge relacionar-se com a sociedade.
O n.º 2 do art. 8º do CSC não estabelece, assim, qualquer desvio às regras de contitularidade dos bens previstas no art. 1724º, alínea b) do CC. O seu propósito não é o de dispor sobre a titularidade das participações sociais, mas apenas o de regular (restringindo) a relação dos titulares das participações sociais com a sociedade. Esta norma não determina, para todo e qualquer efeito, quem é o titular da participação social, ou quem a pode administrar em geral. Diz apenas quem deve ser considerado como sócio para efeitos do exercício dos poderes que, pela sua própria natureza, envolvem a relação com a sociedade.”
Sendo um bem comum do casal, a vertente patrimonial da quota societária é administrada, segundo Maria Rita Lobo Xavier,[7] exclusivamente pelo cônjuge que outorgou o contrato de sociedade ou aquele a quem tenha advindo tal posição na constância do casamento (bem comum administrado em exclusivo pelo cônjuge que é considerado o sócio, para efeitos de exercício, perante a sociedade e os restantes sócios, se os houver, dos direitos e deveres societários ou associativos)…”
Tem legitimidade para propor uma acção de anulação, segundo o art. 59.º, n.º 1 do CSC, o órgão de fiscalização ou qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente.
A quota social em causa integra o património comum do casal à luz dos arts. 1717.º e 1724.º, al. b) do C.Civil.
Por conseguinte, o cônjuge do sócio, apesar da participação social integrar o património comum do casal, não é considerado sócio nas relações com a sociedade, e consequentemente, carece de legitimidade para arguir a anulabilidade das deliberações sociais que entenda serem inválidas.
No acórdão desta Relação (e secção), de 12/07/2017,[8] que apreciou um caso em que se suscitava esta questão também se entendeu que os autores careciam de legitimidade para a invalidação das deliberações de aumento de capital da ré D…, de autorização de subscrição desse aumento pelo sócio G… e de nomeação deste como gerente simplesmente porque, à luz do n.º 2 do art. 8.º do CSC, não detinham a posição de sócio.
No mesmo sentido, mas no âmbito de um inquérito judicial, o acórdão, de 22/10/2019,[9] também desta Relação e secção, sumariou que “O cônjuge do sócio de uma sociedade não tem o direito a obter informações societárias nem legitimidade para instaurar o correspondente inquérito social à sociedade com vista a obter tais informações, mesmo que a participação social do seu cônjuge seja um bem comum do casal, por força do regime matrimonial de comunhão de bens.”
E sobre a tese contrária,[10] na qual o tribunal de 1.ª instância (e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15/12/2022[11] em que se baseou a sentença) alicerçou a decisão, observou-se no mencionado aresto desta Relação, de 12/07/2017: “Todavia, afigura-se-nos que a assertividade de que se mostram impregnadas essas conclusões tende essencialmente a compensar a circunstância de o autor cometer ao nº 2 do art. 8º do Código das Sociedades Comerciais um sentido que é quase abrogante do respectivo texto, na medida em que lê o que lá não está, ignorando as limitações que ali são prescritas quanto à exclusividade da relação da sociedade com o cônjuge que é titular da correspondente participação social.
De resto, ponderem-se as repercussões negativas que teria para a dinâmica da actividade societária a hipótese, admitida por este autor, de o cônjuge titular da quota social votar sucessivas deliberações, como é seu direito, no âmbito do funcionamento da sociedade, ao mesmo tempo que ao cônjuge não titular da participação se permitia vir requerer a respectiva anulação. É precisamente isso que o art. 8º, nº 2 previne, acautelando os interesses da sociedade na sua relação com os sócios e seus cônjuges, mas já não ambicionando dispor sobre as relações entre estes, que são externas à própria sociedade.”
No mencionado acórdão do STJ, de 26/01/2021,[12]que tratou da mesma questão mas no âmbito de um inquérito judicial proposto pelo cônjuge meeiro, também foi declarado não haver dúvidas sobre a falta de legitimidade, citando, em apoio desse entendimento, o estudo de Ricardo Costa[13].
A causa de pedir invocada na presente acção (de anulação de deliberações sociais) assenta no alegado propósito do cônjuge do Autor, sócia da Ré, de diminuir o valor económico da quota social através do aumento do capital social da sociedade, por estar iminente o divórcio do casal.
Embora se compreenda a tese defendida por alguns autores sobre a legitimidade do cônjuge meeiro para impugnar deliberações sociais nas hipóteses em que o resultado prejudica a mencionada vertente patrimonial da quota social, a verdade é que essa solução não tem apoio na lei, como vimos, e só poderá ser equacionada de iure constituendo.
A tutela jurídica da sua pretensão não poderá ser exercida pela presente via de impugnação das deliberações societárias para a qual, de forma manifesta o Autor carece de legitimidade por não ser titular da posição de sócio mas através de outra acção adequada ao reconhecimento e reparação da sua violação (art. 2.º, n.º 2 do CPC).
Do regime legal das anulações/nulidade das deliberações sociais
Pese embora a falta de legitimidade para impugnar as deliberações aprovadas pelos sócios da Ré, a sua pretensão ainda podia ser objecto de apreciação, nesta sede, caso fossem nulas.
Com efeito, a nulidade obedece ao regime previsto nos artigos 286.º e 289.º do C.Civil, podendo ser invocável a todo o tempo por qualquer interessado, conhecida ex officio pelo tribunal e a sua declaração tem efeito retroactivo.
Os fundamentos que determinam a nulidade das deliberações da sociedade estão elencados no art. 56.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), nos termos seguintes:
“1 - São nulas as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;
b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto;
c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;
d) Cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.” (itálico nosso)
São duas formas distintas de “nulidade”, como esclarece Pinto Furtado,[14] “consoante a diferente localização ou origem do vício:
a) “nulidade resultante dos vícios de formação que enumera nas duas primeiras alíneas do seu n.º 1;
b) a nulidade consistente naqueles vícios de conteúdo da deliberação, de que se ocupam as duas últimas alíneas do mesmo número.”
O conteúdo é, nas palavras de Pinto Furtado,[15]”…nem mais nem menos do que o seu resultado, aquilo que a deliberação exprime, a própria declaração manifestada…”
A questão que se suscita é a de saber se a deliberação de aumento de capital, aprovada com o voto inválido de uma das sócias por falta de consentimento do cônjuge, derrogou o regime dos efeitos do casamento quanto aos bens dos cônjuges.
A resposta é negativa.
O aumento do capital foi justificado com a necessidade de obter um “maior desenvolvimento dos negócios sociais”.
O aumento de capital[16], por aplicação dos artigos 87.º a 89.º e 91.º a 93.º ex vi art. 270.º-G do CSC, pode ser realizado por novas entradas, como aconteceu neste caso, ou por incorporação de reservas.
No que concerne às novas entradas, situação que nos interessa analisar, podem ser satisfeitas através de prestação pecuniária ou por bens diferentes de dinheiro (arts. 89.º, n.º 1 e 20.º, al. a) do CSC).
A alteração do contrato de sociedade exige a tomada de deliberação pelos sócios- cfr. art. 85.º, n.ºs 1, 3 e 4 do CSC-cuja aprovação depende de uma maioria qualificada de ¾ de acordo com o disposto no art. 265.º, n.º 1 do CSC.
Paulo de Tarso Domingues[17]explica que o capital social se apresenta “…como uma forma de acudir às necessidades de financiamento da sociedade, uma vez que esta, como qualquer outro agente económico, precisa de meios ou recursos financeiros que lhe permitam desenvolver a sua actividade.”
No presente processo defendeu-se que as deliberações de alteração do contrato de sociedade são nulas por derrogarem normas imperativas que regem as relações patrimoniais entre os cônjuges.
Concretamente sustentou-se que a deliberação de aumento de capital na medida em que enfraquece a posição da sócia, cônjuge do Autor, exige o seu consentimento por constituir um bem comum do património do casal e, por esse motivo, foi desrespeitado esse regime imperativo.
Importa distinguir entre uma deliberação com um objecto indiscutivelmente válido e permitido por lei, como sucede com as frequentes e necessárias operações de aumento de capital com o vício que poderá afectar uma das declarações de vontade em que se traduz o voto do sócio.
Se não foi colhido o consentimento do cônjuge do sócio quando a lei o exigia, por estar em causa um acto susceptível de diminuir o valor económico da participação social que integra os bens comuns do casal, estamos perante uma inobservância da lei (art. 1678.º, n.º 3 do CC) na formação deliberativa[18], e nesse caso, o sócio poderá ser responsabilizado pelo respectivo cônjuge em consequência dos actos de administração extraordinária, prejudiciais ao património comum.
Neste sentido, parece aderir Pinto Furtado[19]quando conclui que “…a deliberação a que falte maioria imposta por lei, ou por erro quanto à maioria necessária (mais exigente) ou em consequência de uma ulterior inutilização dos votos determinantes da maioria requerida..." na qual é enquadrável a hipótese de falta de consentimento do cônjuge em acto que diminui o valor da quota social, corresponde-lhe a sanção da anulabilidade.[20]
Ao invés, a ilegalidade “que se resolve numa contradição do próprio conteúdo da deliberação directamente com a lei” imperativa conduz à nulidade,[21]hipótese que manifestamente não se verifica neste caso.
Numa palavra, o Autor não tem legitimidade para impugnar judicialmente as deliberações aprovadas pela Ré, merecendo o recurso, por isso, provimento.
A falta de legitimidade configura uma exceção dilatória nominada, de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, al. d), 577.º, alínea e), 576.º, n.º 2 e 578.º do CPC, determinando a absolvição da Ré da instância.

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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, declaram o Autor parte ilegítima, e em consequência, absolvem a Ré da instância.

Custas pelo Recorrido.

Notifique.











Porto, 11/11/2025.

Anabela Andrade Miranda

Maria Eiró

Alexandra Pelayo


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[1] Andrade, Manuel de, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, 1983, pág. 184, nota 1.
[2] Cfr. Cunha, Paulo Olavo, Os Direitos Especiais nas Sociedades Anónimas: As acções Privilegiadas, Almedina, 1993, pág. 3.
[3] Curso de Direito das Sociedades, 3.ª edição, Almedina, pág. 231.
[4] Ob. cit., pág. 231.
[5] Código das Sociedades Comerciais Em Comentário, vol. I, 2ª edição, pág.170.
[6] Rel. Maria Olinda Garcia, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Citada por Remédio Marques, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, 2.ª edição, pág. 167, nota 30.
[8] Rel. Rui Moreira, disponível em www.dgsi.pt
[9] Rel. Alexandra Pelayo, 2.ª Adjunta deste aresto, disponível em www.dgsi.pt.
[10] José Miguel Duarte, A Comunhão dos Cônjuges em Participação Social, publicado em www.oa.pt/Conteudos/Artigos/.
[11] Rel. Fernando Barroso Cabanelas, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Rel. Maria Olinda Garcia, disponível em www.dgsi.pt
[13]A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito Português. Contributo para o Estudo do seu Regime Jurídico”, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 432 e segs.
[14] Direito das Sociedades, 3.ª edição, Almedina, pág. 431.
[15] Deliberações dos Sócios, pág. 55.
[16]Noção de capital social sugerida por Coutinho de Abreu, citado por Paulo de Tarso Domingues, in Estudos de Direito das Sociedades, 8.ª edição, pág. 175/176: “cifra representativa da soma dos valores nominais das participações sociais fundadas em entradas em dinheiro e/ou espécie”; v. ainda, deste último autor, a sua Tese de dissertação de Doutoramento, Variações sobre o Capital Social, Almedina, 2013, págs. 48/49.
[17] Ob. cit., pág. 385.
[18] Pinto Furtado, Deliberação dos Sócios, Almedina, 1993, pág. 374.
[19] Deliberação dos Sócios, Almedina, 1993, pág. 373.
[20] Seguindo esse entendimento, v. Maria Rita Lobo Xavier, “Reflexões sobre a posição de cônjuge meeiro em sociedades por quotas”, pág. 112, nota 69.
[21] Pinto Furtado, ob. cit., pág. 374.