PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
VALOR RELATIVO DOS MEIOS DE PROVA
Sumário

I - Os documentos sem força probatória plena vêem a sua eficácia probatória dependente da livre apreciação do juiz – ficam sujeitos, juntamente com os demais (mormente declarações de parte e depoimentos testemunhais) à análise crítica do tribunal, em vista de formar prudente convicção em obediência a critérios de lógica e racionalidade, sem o condicionamento de critérios legais pré-estabelecidos caros aos sistemas da prova legal ou tarifada.
II - Nenhuma hierarquia estabelece a lei entre a prova documental (sem força probatória) e a prova testemunhal (em rigor, entre os meios probatórios sujeitos ao princípio da livre apreciação), atribuindo àquela valor superior a esta - ambas têm o mesmo valor probatório, nenhuma se sobrepondo à outra, em abstrato (e enquanto critério limitador da livre apreciação do juiz), de modo a impor a sua consideração e valorização em detrimento da outra.
III - A prova documental sem força probatória plena não impede a admissibilidade da prova testemunhal a propósito da realidade nele tratada.

Texto Integral

Apelação nº 22722/22.5T8PRT.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Raquel Lima
                 Alberto Taveira


*

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

*

RELATÓRIO


Apelante: AA (autor).

Apelada: A... – Companhia de Seguros, S.A. (ré).

Juízo local cível de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 5) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto.


*

Observada a tramitação legal na acção interposta por AA para haver da ré, A... – Companhia de Seguros, S.A., indemnização com fundamento na responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, foi proferida sentença que (considerando não se terem provado os pressupostos para afirmar o surgimento da obrigação de indemnizar – desde logo a existência de qualquer facto ilícito causador de danos, ou seja, a existência do alegado acidente) absolveu a ré do pedido (pretendia o autor haver - sem prejuízo doutros valores que se venham a determinar como devidos - a indemnização global de 28.891€, acrescida de juros, correspondendo o montante de 16.491€ ao valor do seu veículo, a quantia de 9.900€ ao prejuízo decorrente da privação do uso e montante não inferior a 2.500€ a título de danos não patrimoniais).

Não se conformando com o decidido, pretendendo a revogação da sentença e substituição por outra que julgue totalmente procedente a acção, condenando a ré nos termos peticionados, apela o autor, formulando as seguintes conclusões:

1- AA melhor identificado nos autos, intentou ação declarativa de condenação em processo comum contra A... - Companhia de Seguros, alegando em resumo que: Em resultado de um embate, o A. tem direito ao pagamento da indemnização que reclama correspondente ao valor venal do veículo matrícula ..-..-CD (deduzido do valor do salvado), ao pagamento da indemnização por privação do uso e ao pagamento de danos patrimoniais

2- Realizado o julgamento, deu o Tribunal a quo como não provados os factos constantes no ponto 2 das motivações de recurso, que em súmula não deu como provada a existência do embate e as consequentes consequências jurídicas peticionadas no ponto 1 das conclusões de recurso.

3- Entende-se que todos os factos dados como não provados, devem ser dados como provados, fundamentalmente porque se valoram depoimentos de testemunhas quando existem documentos que contrariam frontalmente o declarado e no entendimento do recorrente os documentos tem um valor superior, estando o tribunal vinculado ao teor dos mesmos pela força probatória superior violando-se o disposto no artigo 394º do C.Civil.

4- O autor deu a sua versão que corrobora a petição inicial deduzida nos autos.

5- Merece entendimento diverso da decisão proferida o: Doc 1 junto com a contestação, Doc 2 junto com a contestação, documento junto com referência Citius 35054957, documento 8 junto com a contestação

6- O documento 1 junto com a contestação a participação do acidente, efetuada pelas testemunhas BB e CC contraria frontalmente o depoimento prestado em sede de audiência discussão e julgamento na medida em que do teor do mesmo em nada refere as suspeições levantadas (porque do seu teor nada consta),

7- Não se sindica o depoimento em si, porque efetivamente corresponde ao que foi prestado em sede de discussão e julgamento, sindica-se as ilações que se retiram dos mesmos por existir prova documental que os contraria, documento esse gerado em data mais próxima dos factos pelos próprios!

8- Deve ser desconsiderado o teor destes últimos dois depoimentos prestados, e darem-se os factos relativos ao embate dados como provados, pois é o depoimento dos agentes que permite ao tribunal fundamentar como não provado o embate (pela inexistência de marcas e perceções dos agentes),

9- Estranha-se que decorridos cerca de 3 anos desde o acontecimento em causa e nada constando do teor do auto lavrado pelo Agente em questão o mesmo se venha a recordar e a indicar situações que não indicou no auto

10- O documento 8 atesta a existência de danos compatíveis com os descritos pelo autos na P.I. e a inexistência dos danos declarados pela Testemunha DD, pelo que deve esse depoimento ser desconsiderado.

11- Decorre das regras da experiência comum e do normal acontecer que qualquer empresa que adquira o salvado veja o estado em que o mesmo está por forma a apurar o valor comercial do mesmo (o que foi balizado com o teor do documento 8 que indica a existência não só de danos compatíveis com os alegados pelo autor como contrários ou incompatíveis a esses presumíveis pela Testemunha DD)

12- O depoimento da testemunha não pode atestar a existência de danos, seja porque não foi comprovado documentalmente, seja pelo período em que foi constatado seja em data posterior ao sinistro (e o veículo passou pelo menos pela posse da empresa de salvados), seja porque o documento 8 não confirma os danos alegadamente visualizados pelos agentes da PSP que curiosamente não constavam do auto (doc 1).

13- Existindo prova documental que atesta a colisão nos termos indicados na P.I. deve o presente recurso ser procedente e retirarem-se as devidas ilações legais.

14- Normas jurídicas violadas, 640º do C.P.C, 394º Código Civil.

Contra-alegou a ré em defesa da impugnada sentença e pela improcedência da apelação (alegando ainda a intempestividade do recurso – por não poder o autor beneficiar do acréscimo do prazo previsto no nº 7 do art. 638º do CPC, pois não fundamenta a impugnação da decisão de facto na reapreciação da prova gravada – e, de todo o modo, o incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC ao recorrente que impugna a decisão de facto).


*

Colhidos os vistos, cumpre decidir – reafirmando a tempestividade do recurso, pois que interposto no prazo de trinta dias estabelecido no nº 1 do art. 638º do CPC. (sendo por isso irrelevante que o apelante, por não basear a impugnação da decisão de facto em provas gravadas, não pudesse beneficiar da extensão do prazo de dez dias previsto no nº 7 do art. 638º do CPC).

*

Delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a sentença recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), identificam-se as seguintes questões decidendas:

- a alteração da decisão sobre a matéria de facto,

- o mérito da causa (em atenção à matéria a considerar como provada) – designadamente a existência dos pressupostos para afirmar a existência da obrigação de indemnizar (e respectivo montante).


*

FUNDAMENTAÇÃO

*


Fundamentação de facto

Considerou a sentença recorrida:

Factos provados

A. A ré celebrou com EE, proprietário do veículo Renault ..., com a matrícula ..-..-PG, um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., abrangendo a responsabilidade civil.

B. A autoridade policial foi chamada ao local e recolheu os depoimentos dos que identificou no auto de “participação de acidente” como intervenientes em acidente, tendo a pessoa que alegou conduzir o veículo Renault ... se declarado culpado.

C. Foi chamada ao local a assistência em viagem que, assim que foi dada autorização pela autoridade policial, procedeu ao reboque da viatura do tomador do seguro.

D. A ré orçou a reparação em 17.213,21€.

E. A ré remeteu para o autor, a 15.12.2021, uma primeira carta a assumir a responsabilidade de indemnizar os prejuízos.

F. A 15.12.2021 a ré remeteu uma segunda carta declarando que, face à peritagem efetuada ao veículo ... pelos serviços técnicos FF, e tendo em conta os danos estimados, iriam proceder à sua regularização como Perda Total.

G. A ré colocou à disposição do autor o montante de 10.931,00€, correspondente ao valor venal, deduzido do valor do salvado do veículo, avaliado em 5.569,00€ pela B....

H. No seguimento destas duas cartas remetidas pela ré, o autor enviou uma carta em 16/12/2021, referindo a sua discordância relativamente ao cálculo indemnizatório indicado pela ré.

I. O autor já recebeu 5.569,00€ correspondente ao valor do salvado.

J. A ré remeteu uma terceira carta ao autor, indicando que, face ao que foi apurado, não lhes foi possível confirmar as circunstâncias do acidente que lhe foi participado.

Factos não provados

1. No dia 25 de Novembro de 2021, pelas 20h, o veículo ligeiro Renault ..., com a matrícula ..-..-PG conduzido por EE, embateu contra o veículo “Kia ...”, com a matrícula ..-..-CD, propriedade do autor e conduzido pelo mesmo, no cruzamento entre a Rua ... e a Travessa ..., ..., em Vila Nova de Gaia.

2. O proprietário do veículo Renault ..., ao sair do cruzamento supra indicado, ocupou a via de rodagem onde seguia o autor, entrando assim em contramão e violando grosseiramente o Código da Estrada, vindo a embater contra o mesmo, tal como consta do documento particular assinado pelo proprietário e condutor da referida viatura, que se junta como doc. n.º 2, bem como da participação do acidente já junta;

3. O valor comercial da viatura antes do sinistro era aproximadamente de 21.990,00€.

4. No seguimento do sinistro, o autor ficou privado do uso do veículo.

5. Sendo o autor feirante, ficou, muitas vezes, impedido de se deslocar ao seu local de trabalho para exercer a sua atividade, por não possuir meio de transporte, sendo que em momento anterior ao acidente, todos os dias se deslocava na referida viatura, quer fosse para trabalhar, ou então para realizar as atividades quotidianas.

6. Sendo que, ainda hoje o autor não tem carro próprio, precisamente devido ao não pagamento da quantia estabelecida a título de indemnização.

7. E o facto de ainda hoje o autor não ter um carro próprio é um aspeto da sua vida que lhe causa transtorno, pois que para as suas deslocações e as do seu agregado familiar são obrigados a utilizar transportes públicos.

8. A atitude contraditória da ré, ora assumindo a responsabilidade, ora declinando-a, e ainda o facto de não ver a situação resolvida no tempo expectável, provocou um grande desgaste emocional no autor, assim como momentos de profundo stress, para além do desânimo, perturbação e tensão provocados pelo acidente de viação.


*

Apreciação da apelação.

A. Da censura dirigida à decisão de facto.

A.1. Do (in)cumprimento dos ónus prescritos no art. 640º do CPC.

Insurge-se o apelante contra a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, pretendendo se julguem como provados todos os factos julgados não provados – donde resulta ter cumprido o ónus primário fundamental de delimitação do objecto do recurso (identifica o objecto da impugnação – enuncia os pontos de factos impugnados e indicada a decisão diversa para cada um deles propugnada, como exigido pelas alíneas a)e c) do nº 1 do art. 640º do CPC).

Cumprido também pelo apelante o ónus estabelecido na alínea b) do nº 1 do art. 640º do CPC – indica os elementos probatórios que, em seu entender, impunham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria impugnada (quer o documento por si junto em requerimento de 14/03/2023, sob a referência 35054957, quer os documentos juntos com a contestação sob os números 1 e 8).

A.2. Da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto

A inconcludência da impugnação da decisão de facto é de confrangedora evidência, ponderando que a argumentação do apelante assenta (e nisso se esgota) na prevalência da prova documental sobre a prova testemunhal e ou até na invocação da inadmissibilidade da prova testemunhal a propósito do que consta em documentos que indica (veja-se a alusão feita ao art. 394º do CC), quando do direito material probatório resulta, com meridiana e indiscutível clareza, que uma e outra (prova testemunhal e prova documental sem força probatória plena) são de ‘prova livre para o julgador’[1] e que não corre na situação qualquer entrave à (plena) admissibilidade da prova testemunhal.

A força probatória dos meios de prova (a par da matéria do ónus da prova e da admissibilidade dos meios de prova) integra o chamado direito probatório material, regulado pelo direito substantivo.

A propósito da força probatória dos documentos, a primeira e capital distinção é a que se faz colocando dum lado documentos autênticos e documentos particulares cuja autoria seja reconhecida (aos quais é reconhecida força probatória plena - arts. 371º e 376º do CC) e, do outro, os demais documentos, que vêem a sua eficácia probatória dependente da livre apreciação do juiz.

Depois, importa ponderar que não é sempre a mesma a força probatória material do documento autêntico ou do documento particular cuja autora seja reconhecida – no documento autêntico a força probatória plena está reservada aos factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora (e no âmbito da sua competência – art. 369º do CC) ou atestados com base na sua percepção, tendo as declarações de ciência ou de vontade cuja emissão é atestada pelo documentador valor probatório de acordo com a sua natureza (confessório, se traduzirem reconhecimento de facto desfavorável ao declarante, sem valor especial se representarem mera depoimento testemunhal, declaração de ciência ou afirmação de facto perante terceiro)[2]; no documento particular cuja assinatura seja reconhecida (arts. 374º e 375º do CC), a força probatória plena circunscreve-se à emissão da declaração e, tal como acontece com as declarações constantes de documento autêntico, a declaração documentada terá o valor correspondente à sua natureza[3] (só as declarações contrárias aos interesses do declarante são de considerar plenamente provadas[4]), sendo que o demais dele constante fica sujeito à regra da livre apreciação.

Sistema da prova livre que vale também quanto à prova testemunhal (art. 396º do CC).

Importante é referir que nenhuma hierarquia estabelece a lei entre a prova documental (sem força probatória) e a prova testemunhal (em rigor, entre os meios probatórios sujeitos ao princípio da livre apreciação), atribuindo àquela valor superior a esta - ambas têm o mesmo valor probatório, nenhuma se sobrepondo à outra, em abstrato (e enquanto critério limitador da livre apreciação do juiz), de modo a impor a sua consideração e valorização em detrimento da outra.

Na situação trazida em apelação, não foi apresentado qualquer documento autêntico ou documento particular cuja autoria haja sido reconhecido e que tenha valor probatório pleno quanto aos factos que constituem a causa de pedir e objecto da impugnação (quer no que se refere à concreta ocorrência do evento lesivo – sobre a existência do alegado acidente e sua concreta dinâmica –, quer sobre a matéria dos danos ligados ao evento por nexo de causalidade necessária).

A participação de acidente (elaborada pela PSP), que constitui o documento número 1 junto coma petição inicial (o apelante, por mero lapso, identifica-o como documento número 1 junto com a contestação, mas facilmente se alcança do teor das suas alegações e dos números 6 a 9 das conclusões que se refere à participação de acidente de viação e não à cópia da apólice de seguro – este o documento que constitui o documento número 1 junto com a contestação) não respeita a factualidade que haja sido praticada pela autoridade policial no âmbito das suas competências ou por ela presenciada (também no âmbito da sua competência material ou no círculo de actividades que lhe é atribuído), contendo tão só a narração do que lhes foi relatado por quem se lhes apresentou como interveniente em acidente. Assim, sempre terá de reconhecer-se (e sem conceder quanto ao valor probatório do declarado pelos agentes policiais quanto ao por si directamente percepcionado) que ficam sujeitas à regra da livre apreciação ou avaliação da prova as declarações que perante a autoridade policial foram produzidas pelas pessoas que se declararam como intervenientes em embate (declarando a sua ocorrência e descrevendo a sua concreta dinâmica) e levadas a tal participação, pois tais declarações não assumem natureza confessória (ponderando que o segurado não vincula a sua seguradora).

Por não poder reconhecer-se a tal documento valor probatório pleno quanto à existência do embate e sua concreta dinâmica, afastada fica a invocada inadmissibilidade da prova testemunhal a propósito da matéria (à luz dos arts. 393º, nº 2 e 394º, nº 1 do CPC) – não tem aplicação o nº 2 do art. 393º do CPC porque nem a existência do embate e nem a sua concreta dinâmica estão provados por documento com força probatória plena; não tem aplicação o nº 1 do art. 394º do CPC porque a existência do embate e uma qualquer outra versão da sua concreta dinâmica não pode ser considerada matéria contrária ou adicional ao conteúdo daquela participação (que não tem força probatória plena – sendo que a regra nunca valeria perante a ré, terceira relativamente aos intitulados intervenientes, declarantes perante a autoridade policial, como resulta do nº 3 do art. 394º do CC).

O documento número 2 junto com a contestação (declaração que o segurado dirigiu à ré informando-a de que, ao conduzir a viatura segura, fora interveniente em acidente – que após se despistar embateu com a viatura segura no veículo do autor) é um documento particular sem força probatória plena – não se trata de documento particular produzido pela ré (não contém qualquer declaração por si produzida relativa a facto contrário aos seus interesses), antes pelo seu segurado, que não a vincula (a adstrição que dele possa resultar tão só pode vincular o seu autor e não outrem).

O que se diz da valia de tais documentos a propósito da matéria relativa ao acidente tem também aplicação quanto à demais matéria (danos e sua ligação ao acidente por nexo de causalidade adequada) – nenhuma força probatória plena pode reconhecer-se aos mesmos, tratando-se assim de elementos probatórios a ser apreciados e avaliados livremente pelo tribunal.

No documento junto aos autos pelo autor em 14/03/2023 (com a ‘referência Citius 35054957) a ré, a pedido do autor, declara que o mesmo esteve presente nos seus ‘serviços de atendimento da Loja do Porto’ em datas que indica, todas ente 28/12/2021 e 16/05/2022 – a essa factualidade se circunscreve a força probatória plena de tal documento particular. Facto irrelevante e neutro às questões de facto que as partes discutem, seja as que respeitam à existência do embate e sua dinâmica, seja as que respeitam à matéria dos invocados danos (e seu nexo de causalidade com o invocado evento lesivo).

Por fim, a força probatória plena que fosse de reconhecer ao documento junto com a contestação sob o número 8 nunca se estenderia às questões de facto a que respeita a impugnação (existência do embate, sua dinâmica e danos resultantes do embate com nexo de causalidade adequada) – em tal documento a ré tão só declara ter verificado e observado danos/estragos no veículo ..-..-CD, que valorizou como importando perda total, sem que ligasse ou conexionasse os mesmos com a existência de embate em que tenha sido interveniente o veículo seguro (mormente o embate que integra a causa de pedir dos presentes autos).

Vale também, quanto a todos estes documentos particulares, o acima exposto a propósito da participação de acidente sobre a invocada inadmissibilidade da prova testemunhal quanto à existência do embate e sua concreta dinâmica – trata-se de documentos particulares sem força probatória plena, valendo por isso a regra geral da admissibilidade da prova testemunhal (seja a propósito da matéria do acidente, seja quanto à matéria dos danos).

Documentos sem força probatória plena, cuja eficácia probatória fica dependente da livre apreciação do juiz – elementos probatórios, que juntamente com os demais, no caso declarações de parte e depoimentos testemunhais, estão sujeitos à apreciação e análise crítica do tribunal, em vista de formar convicção em obedicência a critérios de lógica e racionalidade, pois a valoração das provas deve ser feita pelo juiz de forma livre e segundo a prudente convicção, sem o condicionamento de critérios legais pré-estabelecidos caros aos sistemas da prova legal ou tarifada, antes resultando da sua ponderação à luz da lógica, objectivdade, racionalidade, da experiência da vida e das regras da normalidade[5].

Valorização crítica da prova produzida (mormente da testemunhal) que o apelante não impugna nem censura (no que releva a propósito da ocorrência do embate e da ligação dos danos ao embate por nexo de causalidade) – o que, diga-se, estaria votado ao insucesso, pois que a decisão apelada avaliou a prova (toda a prova – por isso também a testemunhal, que conjugou a harmonizou com a documental) à luz de inatacáveis juízos de lógica, racionalidade e regras da experiência, que merecem inteira concordância; o apelante tão só esgrime com o valor ‘superior’ da prova documental, que impõe a desvalorização e desconsideração da prova testemunhal (veja-se a conclsuão 13ª), o que, como vimos, é argumento que não procede.

Improcedente, pois, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelo apelante.

B. Do mérito da apelação.

Considerando a improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto, é de linear clareza a improcedência da apelação.

Porque o autor não logrou provar sequer a existência do embate, fica arredada a possibilidade de responsabilizar a apelada (seguradora da responsabilidade civil automóvel) – a responsabilidade civil extracontratual, enquanto fonte da obrigação de indemnizar, tem como pressuposto básico o facto de terceiro (o lesante), violador de direito absoluto do lesado (mormente direito de propriedade), facto esse (e por isso a demais matéria que nele entroncaria) cuja ocorrência não logrou provar, tendo por isso de decidir-se contra si, parte a quem incumbe o ónus de prova (trata-se de facto constitutivo do invocado direito indemnizatório, nos termos do nº 1 do art. 342º do CC), uma vez que o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal de­cidir no caso de se não fazer prova do facto[6] (o non liquet sobre os factos é decidido contra a parte onerada[7]).

C. Síntese conclusiva

Do exposto resulta a improcedência da apelação e consequente confirmação da decisão apelada, podendo sintetizar-se a argumentação decisória nas seguintes proposições:

………………………………

………………………………

………………………………


*

DECISÃO

*


Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


*
Porto, 11/11/2025
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Raquel Correia de Lima
Alberto Taveira
______________
[1] A expressão é de João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, IIº vol, revisto e actualizado, 1987, edição AAFDL, p. 706.
[2] Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), nota I ao artigo 371º, pp. 852/853 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), p. 326 (se no ‘documento o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou disse aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação’).
[3] Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, in Comentário ao Código Civil (…), nota I ao artigo 376º, p. 858/893.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado (…), p. 330.
[5] Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito na Sentença Cível – I, p. in Balanço do Novo Processo Cível, Formação Contínua, Jurisdição Cível, CEJ, Março de 2016, disponível na página da internet https://cej.justica.gov.pt/E-Books/Direito-Civil-e-Processual-Civil-e-Comercial (consulta em Outubro de 2025).
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado (…), p. 304.
[7] Rita Lynce de Faria, in Comentário ao Código Civil (…), nota I ao art. 342., p. 811.