ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
VALOR DA ACÇÃO
DIVISIBILIDADE DA COISA COMUM
PROIBIÇÃO DE FRACCIONAMENTO
Sumário

I - Na ação de divisão de coisa comum, a fixação definitiva do valor da ação pode ter lugar em momento posterior ao da decisão sobre a divisibilidade ou indivisibilidade do prédio em questão nos autos.
II - O juízo acerca da divisibilidade ou indivisibilidade da coisa comum deve reportar-se ao momento e estado em que a coisa se encontrava à data em que foi requerida a sua divisão.
III - O nº 1 do art. 1376º do CCiv. consagra restrição relativa ao fracionamento de terrenos aptos para cultura - terrenos próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários – em função da área dos mesmos.
IV - Para preenchimento da exceção prevista na parte final da al. a) do art. 1377º do CCiv. [que admite o fracionamento de terrenos aptos para cultura] não basta o propósito das partes [ou de alguma delas] de quererem destinar o terreno a um fim diferente da cultura agrícola para que, sem mais, seja admissível o fracionamento; é, ainda, necessário que se demonstre a verificação das exigências legais atinentes ao fim pretendido.
V - Estando o terreno, com área inferior à legalmente fixada, integrado na RAN e querendo os requeridos destiná-lo [melhor, destinar a parte que pretendem lhes seja adjudicada após reconhecimento da divisibilidade do mesmo] à criação de uma serração de madeira para preparação de lenhas para aquecimento das casas e de tábuas, barrotes e zimbre para a construção civil, a sua divisão só seria possível, ao abrigo da parte final da al. a) do referido art. 1377º, se tivessem demonstrado a verificação das condições exigidas pelo corpo do nº 1 do art. 22º e que lhes foi concedida aprovação, licença ou autorização administrativa para edificação da serração e que requereram e obtiveram da competente entidade regional da RAN o parecer prévio prescrito pelo dito art. 23º nº 1, ambos do DL 73/2009, de 31.03.

Texto Integral

Proc. 204/24.0T8VCD.P1 – 2ª Secção (apelação)




Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Anabela Andrade Miranda
Alberto Taveira


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Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

A..., SA, com sede em ..., Vila do Conde, instaurou a presente ação especial de divisão de coisa comum contra AA e esposa, BB, também residentes em ..., pedindo que se proceda à divisão do prédio rústico, com a área registada de 20.000 m2, sito no lugar ..., da freguesia ..., inscrito respetiva na matriz rústica sob o artigo ...46 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...58/20070802/....
Alegou para tal, em síntese, que adquiriu a quota ideal de metade do imóvel; que, tendo notificado os requeridos, comproprietários da outra metade, para exercerem o direito de preferência na venda, os mesmos não o fizeram; que pretende utilizar a totalidade do imóvel, não querendo a permanência da compropriedade; e que o imóvel é juridicamente indivisível.

Os requeridos, citados, apresentaram contestação, admitindo a compropriedade do imóvel, mas sustentam que o mesmo é fisicamente divisível e que pretendem instalar na sua metade física uma serralharia para armazenamento e tratamento das madeiras oriundas desse mesmo terreno e de terrenos contíguos. Pugnaram, por isso, pela divisão do prédio nos termos que ali indicam.

A pedido do tribunal a quo, o Município de Vila do Conde informou que o prédio em apreço está abrangido no PDM municipal por área de RAN.

Foi depois proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“V – Decisão
Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) Declarar que prédio rústico, com a área registada de vinte mil metros quadrados (20.000 m2), sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz rústica da freguesia ... sob o artigo ...46 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...58/20070802/..., se encontra em compropriedade, na proporção de ½ para a Requerente A..., S.A. e de ½ para os Requeridos AA e esposa, BB;
b) Declarar que o aludido imóvel, acima descrito, é indivisível;
c) Determinar o prosseguimento dos autos para realização da conferência de interessados, tendo em vista a adjudicação do imóvel ou, na falta de acordo, a sua venda.
Valor da ação: €200.000,00, por corresponder ao valor de €10,00/m2 multiplicado pela área do imóvel – sem prejuízo de tal valor ser atualizado, consoante o valor que porventura venha a ser atribuído a tal imóvel.
Custas na proporção de metade para Requerente e Requeridos, em virtude de ambos tirarem proveito da ação – cfr. art.º 527.º, n.º 1, parte final, do Cód. Proc. Civil.
Notifique e registe.
Após trânsito, abra conclusão para ser designada data para realização da conferência de interessados.”.

Irresignados com o decidido, interpuseram os requeridos o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo], cujas alegações culminaram com as seguintes conclusões:
“1. A matéria de facto, constante do art.º 9 da contestação deve ser considerada provada, pela mesma razão do ponto de facto provado do n.º 8 – por advir “das declarações das partes nos seus articulados…”;
2. A pretensão dos requeridos referida nos pontos 8 da matéria de facto e do art.º 9 da contestação – a infraestrutura, tipo armazém para colher as madeiras e tratar as madeiras, sem qualquer transformação que as modifique, não altera a natureza agrícola do prédio, pontos 2, 3, 4 e 5 das alegações;
3. A pretensão referida, ainda que não realizada pelas razões referidas no art.º 11 da contestação que aqui se dar por reproduzido, subsumisse à al. c) do art.º 1377 do C.C.;
4. Por assim ser, a divisibilidade do prédio é valida, desde que após a divisão seja levada a efeito no prazo de três anos, a referida pretensão.
5. A requerente pretende fazer armazéns no prédio a que se referem os autos, destinando assim o prédio a outros fins que não a cultura;
6. Não se encontra devidamente fundamentado o momento da sentença em que é fixado o valor da causa, sendo o mesmo nulo, por não justificar o valor de € 10,00/m2 sendo o valor de € 200.000,00 achado por simples operação aritmética;
7. É demasiado sensível a situação sub judice, de acordo com o que se diz no ponto 8 das presentes alegações.
8. Foram violados, entre outros, os artigos 209.º do C. C. (ponto 5 das alegações, que aqui se dão por reproduzidas), o art.º 1377 al. c) e por errada aplicação o art.º 1376 do C.C., e os demais aplicáveis, nomeadamente o n.º 2 do art.º 1379 do C. C., na redação da Lei 111/2015 (art.º 59.º).
Pelo exposto, e pelo que doutamente será suprido, dando-se provimento ao recurso, deve ser revogada a sentença que julgou indivisível o prédio em causa, substituindo-se por acórdão que julgue ser o prédio suscetível de ser dividido e, quanto ao valor da ação, que o mesmo seja anulado e se cumpra o art.º 309 do C.P.C., em ordem à determinação do valor da ação,
Assim se fazendo JUSTIÇA.”.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos dos Exmos. Adjuntos.
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II. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção às conclusões das alegações dos recorrentes, que, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do CPC, fixam o thema decidendum deste recurso [sem prejuízo de eventual apreciação de questões de conhecimento oficioso], as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- Valor da causa e nulidade por falta de fundamentação;
- Alteração da matéria de facto;
- Divisibilidade/indivisibilidade do prédio.
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III. Factos provados e não provados:

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. A Requerente e os Requeridos são proprietários, em comum e em partes iguais, do prédio rústico, com a área registada de vinte mil metros quadrados (20.000 m2), sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz rústica da freguesia ... sob o artigo ...46 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...58/20070802 / ....
2. O imóvel encontra-se registado a favor da Requerente pela apresentação n.º ...59 de 23/08/2023 e a favor dos Requeridos pela apresentação n.º ...6 de 21/09/2007.
3. A atual afetação do imóvel é pinhal e mato.
4. O imóvel encontra-se integralmente classificado no Plano Diretor Municipal de Vila do Conde, no que ao uso do seu solo diz respeito, como Reserva Agrícola Nacional (RAN).
5. A proveniência do prédio é o prazo n.º ...26, fls. 64 do B9, que se transcreve: “as glebas 19 e 20 são juntas e unidas formando um só prédio, denominado Bouça ..., de mato, no lugar ..., confrontando do Norte com CC, do Sul e Nascente, com caminho, do Poente com DD, tem o valor venal de 9080,00 e os artigos matriciais ...61 e ...62”.
6. Existe um valo a individualiza-las, que presentemente ainda se vê, no sentido Nascente-Poente.
7. Após a aquisição da sua metade indivisa pelos Requeridos, estes de comum acordo com o outro comproprietário, fixaram que a gleba mais a norte seria utilizada pelos Requeridos.
8. Os Requeridos pretendem utilizar tal parte do prédio à criação de uma serração de madeira, simples, quer para preparar lenhas para aquecimento das casas e outras finalidades quer os toros dos pinheiros, eucaliptos e demais arvores em tábuas, barrotes e zimbre para a construção civil.
9. O prédio em causa nos autos é junto à área comercial da B... – Empreendimentos Comercial e Industrial e que há necessidades de disposição de terrenos para esses fins (industriais e comerciais) na freguesia ....
10. A Requerente pretende por termo à comunhão.
Não há factos dados como não provados.
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IV. Apreciação das questões indicadas em II:

1. Valor da causa e nulidade por falta de fundamentação.
Embora seja a última questão suscitada nas conclusões das alegações dos recorrentes [conclusões 6 e 7], há que começar por aferir se tem razão na discordância quanto ao valor da ação fixado na decisão recorrida e se esta, neste segmento, padece da nulidade por falta de fundamentação invocada.
A decisão recorrida contém na sua parte final o seguinte trecho:
“Valor da ação: € 200.000,00, por corresponder ao valor de €10,00/m2 multiplicado pela área do imóvel – sem prejuízo de tal valor ser atualizado, consoante o valor que porventura venha a ser atribuído a tal imóvel.”.
Os recorrentes alegam que o valor de 10,00€/m2 não está fundamentado. E têm razão. Lendo a decisão, incluindo a factualidade dada como provada, não se vislumbra de onde surge aquele valor. E a decisão também nada diz a tal respeito.
Neste segmento, a decisão padece de falta de fundamentação, o que significa que está viciada pela nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC - trata-se de falta absoluta de fundamentação daquele valor do m2 e, por via disso, também do valor da ação.
Estamos perante ação de divisão de coisa comum, prevista nos arts. 925º e segs. do CPC, que visa a cessação da indivisão do prédio dos autos, seja no sentido da divisão em substância da coisa comum, seja no da adjudicação ou venda desta, consoante a mesma seja, respetivamente, divisível ou indivisível.
Segundo o nº 2 do art. 302º do mesmo diploma legal, na fixação do valor destas ações «atende-se ao valor da coisa que se pretende dividir», ou seja, ao valor da totalidade do prédio indiviso. Este valor não pode assentar no valor venal ou patrimonial indicado na caderneta predial, por estar desatualizado [consta da caderneta predial junta com a p. i. que o valor aí indicado foi determinado no ano de 1990]. Nem os autos contêm elementos para que tal valor possa ser fundadamente fixado. Resta, por isso, à falta de outro critério legal, o recurso ao que consta do art. 309º do CPC – é necessário proceder a arbitramento, por um único perito, para que se encontre o valor a fixar à ação.
Como esta tarefa não pode ser levada a cabo por esta Relação, não há lugar à substituição da 1ª instância por este tribunal de 2ª instância. Haveria, assim, lugar à anulação da decisão recorrida e à remessa dos autos ao tribunal a quo para a fixação, devidamente fundamentada, do valor da ação.
Mas, face à especificidade destes autos, que terão, necessariamente, de retomar a tramitação subsequente para que se proceda à divisão do imóvel em questão [caso esta seja possível, o que veremos adiante] ou à sua adjudicação a uma das partes ou a terceiro [caso se conclua pela indivisibilidade do mesmo], nos termos dos arts. 927º e segs., parece-nos não fazer sentido anular a decisão e devolver os autos à 1ª instância para aquele efeito, uma vez que a fixação do valor da ação poderá vir a ter lugar em momento posterior, como, aliás, o Julgador a quo anuncia no segmento atrás transcrito – aí refere “(…) sem prejuízo de tal valor ser atualizado, consoante o valor que porventura venha a ser atribuído a tal imóvel”.
Assim e por ora, até que seja efetivamente fixado o correto valor da ação, a anulação do referido segmento da decisão recorrida implica que, até lá, fique a valer, como tal, o valor que a requerente indicou no final da petição inicial - 100.000,00€ (cem mil euros) –, que os réus aceitaram no final da contestação.
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2. Alteração da matéria de facto.

Os recorrentes pugnam, na conclusão 1 das alegações, pelo aditamento ao elenco dos factos provados do que alegaram no art. 9º da contestação, por advir das declarações das partes nos seus articulados, como aconteceu quanto ao facto provado nº 8.
Mostram-se suficientemente observados os ónus das als. a), b) e c) do nº 1 do art. 640º do CPC. Não estando em causa prova pessoal [depoimentos ou declarações de parte ou depoimentos de testemunhas, não se coloca qualquer questão relacionada com o ónus secundário da al. b) do nº 2 do mesmo artigo.
No art. 9º da contestação, aqueles alegaram o seguinte: “Por outro lado, os requeridos pretendem levar a efeito uma infraestrutura tipo armazém que recolha e trabalhe a madeira proveniente quer da metade indivisa que(r) do prédio confinante pelo poente (com área de 17.000 metros quadrados pertence dos requeridos quer dos prédios vizinhos).”. E do art. 10º consta o seguinte: “Ou seja, os requeridos pretendem destinar a parte do prédio (1/2) à criação de uma serração de madeira, simples, quer para preparar lenhas para aquecimento das casas e outras finalidades quer os toros dos pinheiros, eucaliptos e demais arvores em tábuas, barrotes e zimbre para a construção civil.”.
Lendo, por sua vez, o facto provado nº 8, facilmente se conclui que a factualidade que o integra corresponde ao que os requeridos, ora recorrentes, alegaram no art. 10º da contestação, que constitui a conclusão do que também alegaram no art. 9º.
Por isso, nada acrescentando de relevante ao que está descrito no facto provado nº 8, não faz qualquer sentido acrescentar-se ao elenco dos factos provados um outro facto que mais não é que a repetição daquele.
Mantém-se, pois, inalterada a matéria de facto que vem dada como provada, desatendendo-se este segmento do recurso.
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3. Divisibilidade/indivisibilidade do prédio.

Nas conclusões 2 a 5 e 8, os recorrentes expõem a sua discordância quanto ao que decidiu, de mérito, a decisão recorrida. Pretendem a revogação desta e que se declare a divisibilidade do prédio em referência.
A decisão recorrida concluiu pela indivisibilidade do prédio, com a seguinte fundamentação [que se transcreve]:
“O direito à divisão de um bem que esteja em compropriedade encontra-se previsto no art.º 1413.º do Cód. Civil, que remete para a lei processual a realização não amigável de tal divisão.
Para que haja lugar à divisão de coisa comum é, em primeiro lugar, que o bem em causa esteja em compropriedade, nos termos do art.º 1403.º e seguintes do Cód. Civil.
No caso, ficou demonstrado que o imóvel adveio ao património da Requerente e dos Requeridos, nos termos, respetivamente, da apresentação n.º ...59 de 23/08/2023 e a favor dos Requeridos pela apresentação n.º ...6 de 21/09/2007.
Deste modo, é manifesto que o bem em causa se encontra em compropriedade, na proporção de ½ para o Requerente e de ½ para os Requeridos.
Por via disso, assiste ao Requerente o direito de requerer a cessação da situação de compropriedade em que se encontra.
Importa, por conseguinte, apreciar se o bem em causa é, ou não, divisível.
Dispõe o art.º 209.º do Cód. Civil que “São divisíveis as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”.
No caso, a Requerente pugna pela indivisibilidade em substância, enquanto os Requeridos referem que o imóvel pode ser fisicamente dividido.
Com relevo para a decisão, cumpre salientar que o imóvel tem uma área de 20.000m2, que se encontra inserido em área de Reserva Agrícola Nacional e que, caso o prédio seja dividido, pretendem os Requeridos construir uma serração na sua metade e que a Requerente igualmente não pretende dar ao terreno uma finalidade agrícola.
O art.º 1376.º, n.º 1, do Cód. Civil, estabelece que: “Os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fracionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno.”
Nos termos da Portaria n.º 219/2016, de 09/08, fixa como unidade mínima de cultura para a zona geográfica de Vila do Conde a área de 25.000m2.
No mais, o art.º 27.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31/03, determina que: “Para efeitos de fracionamento, nas áreas RAN, a unidade de cultura corresponde ao triplo da área fixada pela lei geral para os respetivos terrenos e região.”
Assim, para que fosse fracionável, a área do terreno a dividir tinha teria que ser igual ou superior a 75.000m2.
Não obstante, conforme se aludiu, os Requeridos referiram que pretendem dar à sua parte do terreno uma finalidade não agrícola. Por conseguinte, consideram que, no caso, não é aplicável a proibição do fracionamento, nos termos do art.º 1377.º, alínea a), do Cód. Civil.
Vejamos.
Os terrenos enquadrados em zona de RAN sofrem restrições elevadas quanto à sua possível utilização.
O regime jurídico da RAN encontra-se estabelecido no Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31/03, sendo que o art.º 22.º descreve quais os fins não agrícolas a que pode ser adstrito um terreno sujeito a RAN.
Do elenco de tal normativo não se vislumbra que a criação de uma serração de madeira conste do tipo de fins que possa fazer parte um terreno em área de RAN.
No mais, embora o art.º 25.º, n.º 1, do diploma em causa estabeleça que: “Podem ser autorizadas, a título excecional, utilizações não agrícolas de áreas integradas na RAN para a realização de ações de relevante interesse público que sejam reconhecidas como tal por despacho dos membros do Governo responsáveis pela área do desenvolvimento rural e demais áreas envolvidas em razão da matéria, desde que não se possam realizar de forma adequada em áreas não integradas na RAN.”, no caso em apreço, não foi alegado, e muito menos demonstrado, que a criação da serração tenha relevante interesse público e que o mesmo tenha sido reconhecido por despacho.
Por outro lado, ainda que os Requeridos tenham referido que o PDM se encontra em processo de alteração, no sentido de a área onde o prédio se encontra ser convertida para área de atividade industrial, a verdade é que tal circunstância é inócua para a apreciação da divisibilidade neste momento do terreno em causa.
Conforme se refere no sumário, elaborado pelo Relator, do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 13 de Outubro de 2022, proc. n.º 17/18.9T8VLC.P1, disponível em www.dgsi.pt: “I - A divisibilidade ou indivisibilidade da coisa afere-se em termos jurídicos, e não físicos ou naturalísticos. II - O juízo acerca da (in)divisibilidade da coisa comum deve reportar-se ao momento e estado em que se encontra a coisa, quando a divisão é requerida, isto é, ter-se-á que atender ao que o prédio é e não ao que poderá vir a ser.”
Por tal motivo, o Tribunal tem que cingir-se à realidade jurídica atual do prédio, e não a uma possível realidade futura.
Ora, conforme acima se aludiu, atualmente o prédio em causa encontra-se afeto a pinhal e mato e encontra-se integrado em área pertencente à RAN.
Por tal motivo, o fracionamento do imóvel não é admissível, motivo pelo qual se declara pela indivisibilidade jurídica do mesmo.”.
Que dizer?
É inequívoco que o prédio identificado no facto provado nº 1 pertence, em regime de compropriedade e em partes iguais, à requerente e aos requeridos, compropriedade que, aliás, se presume, nos termos do art. 7º do CRegPred, na medida em que o mesmo está registado a favor de ambas as partes na competente Conservatória do Registo Predial [factos provados nºs 1 e 2]. Como tal, qualquer dos comproprietários podia intentar a presente esta ação de divisão de coisa comum para pôr termo à comunhão, já que, de acordo com o nº 1 do art. 1412º do CCiv., «nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão» e não se verifica in casu a exceção prevista na parte final deste preceito [não consta que tivesse sido «convencionado que a coisa se conserve indivisa»].
Quanto à eventual divisibilidade do prédio, importa começar por ter em conta que, segundo o art. 209º do CCiv., «[s]ão divisíveis as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam». Daqui decorre que a questão da divisibilidade ou indivisibilidade da coisa é aferida em termos predominantemente jurídicos e não em termos físicos ou naturalísticos, pois na natureza todas as coisas são divisíveis… até os átomos [cfr. Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português – I, Parte Geral, tomo II, Coisas, 2ª ed., 2002, Almedina, pg. 157 e Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., rev. e atualiz., 1987, Coimbra Editora, pg.202]. Por isso, “a divisibilidade natural – isto é, a possibilidade de fracionamento sem prejuízo para a substancia da coisa – pode coexistir com uma indivisibilidade legal, resultante de normas imperativas que obstam à divisão, seja das que regulam o fracionamento de prédios rústicos, seja das que regem as operações de loteamento ou das normas imperativas sobre a constituição da propriedade horizontal” [Acórdão da Relação de Coimbra de 13.11.2018, proc. 5336/16.6T8VIS.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc; e ainda, Acórdãos do STJ de 23.09.2008, proc. 08B2121, disponível in www.dgsi.pt/jstj e da Relação de Évora de 09.03.2017, proc. 37/16.8T8RMZ.E1, disponível in www.dgsi.pt/jtre]. E o juízo acerca da divisibilidade ou indivisibilidade da coisa comum deve reportar-se ao momento e estado em que a coisa se encontrava à data em que a sua divisão foi requerida [Acórdãos do STJ de 07.04.2011, proc. 30031-A/1979.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, da Relação do Porto de 10.11.2015, proc. 90/13.6T2VGS.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp e da Relação de Coimbra de 13.11.2018, já citado; idem, Menezes Cordeiro, obr., tomo e pg. citados].
In casu, tendo em conta a data da instauração desta ação, pretendem as partes pôr termo à indivisão de um prédio rústico afeto a pinhal e mato [cfr. factos provados nºs 1 e 3]. Tal prédio tem a área total de 20.000m2.
De acordo com o nº 1 do art. 1376º do CCiv., «[o]s terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País». Consagra-se aqui uma restrição relativa apenas ao fracionamento de prédios rústicos [«terrenos aptos para cultura», segundo este normativo] ou, dito de outro modo, de terrenos próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários. A área da unidade de cultura a ter em conta nas diversas zonas do País encontra-se definida no anexo II da Portaria nº 19/2019, de 15.01. Esta fixa para a Área Metropolitana do Porto – a que pertence o Município de Vila do Conde [concelho onde se situa o prédio dos autos] – as áreas de 2,5 hectares para os terrenos de regadio e de 4 hectares para os de sequeiro e floresta.
Estando em causa terreno rústico que possui 20.000m2 de área, logo se vê que esta é inferior à da unidade de cultura estabelecida para a zona que é de 2,5 hectares [25.000m2] para os terrenos de regadio e de 4 hectares [40.000m2] de sequeiro e de floresta. Estando o terreno afeto a pinhal e mato, parece que se está perante um terreno de floresta, o que significa que a divisibilidade do mesmo só seria, em princípio, admissível se tivesse, pelo menos, 4 hectares.
Mas esta não é a única restrição ao fracionamento relativa à área do prédio. Este está também integrado na Reserva Agrícola Nacional [RAN], de acordo com a classificação constante do Plano Diretor Municipal [PDM] de Vila do Conde [facto provado nº 4]. E por tal motivo, a restrição ao fracionamento do mesmo é, ainda, mais robusta, pois, de acordo com o art. 27º do DL 73/2009, de 31.03 [que define o Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional], «[p]ara efeitos de fracionamento, nas áreas RAN, a unidade de cultura corresponde ao triplo da área fixada pela lei geral para os respetivos terrenos e região». Ou seja, por este motivo, em vez dos 4 hectares atrás referidos [ou dos 2,5 hectares, caso se tratasse de terreno de regadio], a restrição ao fracionamento/divisão aumenta para 12 hectares [que seriam 7,5 hectares em caso de terreno de regadio].
Assim, em atenção à utilização que lhe era dada à data da instauração desta ação, o prédio dos autos é indivisível por imposição legal [duplamente, como se viu].
Contudo, o art. 1377º do CCiv. prevê exceções ao regime estabelecido no art. 1376º, admitindo, nos casos nele enunciados, a possibilidade do fracionamento de prédios com área inferior à da unidade de cultura. Interessa-nos aqui a hipótese prevista na parte final da al. a) daquele artigo: terrenos que «se destinem a algum fim que não seja a cultura». Isto porque, pelo menos, os requeridos pretendem destinar «a sua metade indivisa» [melhor, a parte do prédio que pretendem que lhes seja atribuída em função da divisão que defendem] «à criação de uma serração de madeira, simples, quer para preparar lenhas para aquecimento das casas e outras finalidades quer os toros dos pinheiros, eucaliptos e demais arvores em tábuas, barrotes e zimbre para a construção civil» [factos provados nºs 7 e 8]. Mas não basta o propósito dos requeridos [ou o de ambas as partes] em quererem destinar o prédio a um fim diferente da cultura agrícola para que, sem mais, seja admissível o fracionamento ao abrigo da parte final da al. a) do citado art. 1377º. É, ainda, necessário que esteja demonstrada a verificação das exigências legais atinentes ao fim pretendido; por ex., pretendendo-se levar a cabo o loteamento do terreno para construção ou construir no mesmo alguma habitação, armazém ou outra edificação, será necessária a demonstração da existência de autorização/licença/alvará ou, pelo menos, de informação prévia favorável da competente edilidade [Câmara Municipal] para esse efeito, pois sem elas [sem, pelo menos, uma delas] o fracionamento não é possível/admissível [cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 2ª ed., reimpr. 2025, Almedina, pg. 381, ponto 6, onde referem que [s]e o pretendido fracionamento tiver por fim a construção, deve o autor [ou o réu, caso seja este a sustentar a divisão do prédio] alegar e demonstrar, em alternativa, a existência de: a) alvará de loteamento; b) certidão camarária comprovativa de que os requisitos do destaque estão presentes ou que as normas aplicáveis estão cumpridas; c) informação prévia favorável ao loteamento (cfr. arts. 2º, al. i), 4º, nºs 1 e 2, al. a), 6º, 14º, 17º, nº 1, 49º, nº 1 e 74º, nº 1 do RJUE)”; no mesmo sentido, Acórdão da Relação do Porto de 10.11.2015, atrás citado, no qual se exarou o seguinte: “quer esteja em causa um loteamento, quer se trate de um mero destaque, como aventam os recorrentes, estarão sempre dependentes da verificação dos requisitos previstos nas leis aplicáveis a este tipo de intervenções urbanísticas», acrescentando depois que [n]o caso, seria condição da divisão do prédio das partes a demonstração de que as entidades administrativas competentes para o efeito operaram a intervenção exigida por lei, quanto mais não fosse no procedimento correspondente ao pedido de informação prévia previsto nos artigos 14º e segs. do citado Decreto-Lei nº 555/99, o qual estatui que «qualquer interessado pode pedir à câmara municipal, a título prévio, informação sobre a viabilidade de realizar determinada operação urbanística ou conjunto de operações urbanísticas diretamente relacionadas, bem como sobre os respetivos condicionamentos legais ou regulamentares, nomeadamente relativos a infraestruturas, servidões administrativas e restrições de utilidade pública, índices urbanísticos, cérceas, afastamentos e demais condicionantes aplicáveis à pretensão»; sucede que nada disto foi feito nem sequer um pedido prévio de viabilidade relativo ao pretendido destaque” e Acórdão da Relação de Coimbra de 13.11.2018, também já indicado].
Face ao que consta do facto provado nº 8, o destino que os requeridos pretendem dar ao prédio [à parte desta que querem que lhes seja atribuída] implicará a construção de edificação(ões), pois pretendem a criação de uma «serração de madeira», para preparar lenhas para aquecimento das casas e para outras finalidades, como a transformação da madeira em tábuas, barrotes e zimbre para a construção civil. Porque integrado na RAN, como já se viu, importa aferir se o DL 73/2009, de 31.03, admite que o prédio [a metade que poderia caber aos requeridos por força da divisão que querem ver declarada] possa vir a ter tal destino. De acordo com o art. 22º nº 1 deste diploma legal, «[a]s utilizações não agrícolas de áreas integradas na RAN só podem verificar-se quando, cumulativamente, não causem graves prejuízos para os objetivos a que se refere o artigo 4.º e não exista alternativa viável fora das terras ou solos da RAN, no que respeita às componentes técnica, económica, ambiental e cultural, devendo localizar-se, preferencialmente, nas terras e solos classificados como de menor aptidão». E depois, verificadas estas condições, só são permitidos os destinos previstos nas diversas alíneas do mesmo nº 1, contando-se entre eles a realização de «[o]bras com finalidade agrícola, quando integradas na gestão das explorações ligadas à atividade agrícola, nomeadamente, obras de edificação, obras hidráulicas, vias de acesso, aterros e escavações, e edificações para armazenamento ou comercialização» [al. a)] e a construção de «anexos de apoio à exploração, respeitada a legislação específica, nomeadamente no tocante aos planos de recuperação exigíveis» [al. e)] ou de «[e]stabelecimentos industriais, comerciais ou de serviços complementares à atividade agrícola, tal como identificados no regime de licenciamento de estabelecimentos industriais, comerciais ou de serviços aplicável» [al. f)]. Em qualquer caso, em conformidade com o estabelecido no art. 23º nºs 1 e 2 do referido DL, a realização destas obras – que necessitam de concessão, aprovação, licença, autorização administrativa ou comunicação prévia –, estão sempre sujeitas «a parecer prévio vinculativo das respetivas entidades regionais da RAN, a emitir no prazo de 20 dias» após ter sido «requerido junto das entidades regionais da RAN, nos termos do artigo 1.º do anexo I da Portaria n.º 162/2011, de 18 de abril, sem prejuízo do disposto no artigo 13.º-A do regime jurídico da urbanização e edificação».
Ora, in casu os requeridos não só não fizeram prova de que se encontrem reunidas as condições exigidas pelo nº 1 [corpo] do citado art. 22º, para que possa ser dada ao prédio uma utilização não agrícola, como também não demonstraram que lhes foi concedida aprovação, licença ou autorização administrativa para construção da «serração de madeira», nem que tivessem requerido e obtido da competente entidade regional da RAN o parecer prévio prescrito pelo dito art. 23º nº 1, o qual tem natureza vinculativa. Como tal, não estão reunidos os pressupostos para que se reconheça a viabilidade do destino pretendido pelos requeridos.
Não se verifica, por isso, a exceção prevista na parte final da al. a) do art. 1377º do CCiv., o que significa que, por ter área inferior à unidade de cultura legalmente fixada, o prédio em apreço é indivisível.
Resta dizer que a existência de eventual processo de alteração do PDM de Vila do Conde que preveja a conversão da área do terreno para atividade industrial – tal como alegaram os requeridos, mas que se desconhece se corresponde à realidade – se apresenta irrelevante para a solução deste litígio, pois, como ficou dito atrás, o que conta é a realidade que existia à data da propositura desta ação e, nesse momento, o prédio tinha apenas aptidão agrícola.
Em conclusão, o recurso improcede nesta parte [que era a principal].

Pelo parcial [embora quase total] decaimento, as custas do recurso ficam a cargo dos recorrentes e da recorrida, na proporção de 4/5 para os primeiros e de 1/5 para a última - arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC..
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Síntese conclusiva:
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V. Decisão:

Em conformidade com o exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
a) altera-se o valor da ação, fixando-o, provisoriamente [até à sua fixação definitiva], em 100.000,00€ (cem mil euros);
b) mas confirma-se, no mais, a decisão recorrida.
2º) Condenar recorrentes e recorrida nas custas do recurso, na proporção de 4/5 para os primeiros e de 1/5 para a última.







Porto, 11.11.2025

Pinto dos Santos

Anabela Miranda

Alberto Taveira