Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
MAIOR ACOMPANHADO
PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DO JUIZ
AUDIÇÃO DO BENEFICIÁRIO
Sumário
I. A audição do beneficiário no processo de maior acompanhado, para além de obrigatória, não prescinde de contacto pessoal, direto e efetivo, por banda de um juiz com o beneficiário, pois que só dessa forma será viável que apreenda com maior latitude as características próprias do beneficiário e do contexto em que desenvolve a sua vida, somente assim se habilitando o julgador a desenhar medidas de acompanhamento ajustadas e convergentes com a necessidade efetiva da pessoa que delas beneficiará. II. A competência para a prolação da sentença a proferir deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a audição do beneficiário/requerido, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for transferido.
Texto Integral
Pº 1076/20.0T8LSB-A.L1
2.ª Secção
Conflito de Competência
*
I. A Sra. Juíza de Direito AA, colocada no Quadro Complementar de Juízes de Lisboa – cfr. Movimento Judicial Ordinário de 2024 (deliberação do CSM n.º 1153/2024, publicada no DR, II, n.º 168, de 30-08-2024) - suscita a resolução do conflito negativo de competência, no que concerne à prolação da sentença, entre si e o Sr. Juiz de Direito BB, titular do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 1.
Em ...-...-2025, a Sra. Juíza de Direito AA proferiu o seguinte despacho: “Apresente os autos ao Meritíssimo Senhor Juiz titular, atento o princípio do Juiz natural”.
O Sr. Juiz de Direito BB, por decisão de ...-...-2025, declarou-se incompetente para a prolação da sentença, considerando como competente para o efeito a Sra. Juíza de Direito AA, que presidiu à audição do beneficiário e do tutor.
A Sra. Juíza de Direito AA, por decisão de ...-...-2025, declarou-se incompetente para a prolação da sentença, considerando como competente o Sr. Juiz de Direito BB.
Os autos foram continuados ao Ministério Público – na 1.ª instância - que, em ...-...-2025 se pronunciou aderindo à posição expressa na decisão de ...-...-2025.
*
II. Mostra-se apurado, com pertinência para a resolução da questão, o seguinte:
1) Nos presentes autos, por sentença, datada de ...-...-2022, procedeu-se à revisão da medida aplicada, tendo o requerido sido declarado carecido de acompanhamento e aplicada a medida de acompanhamento de «representação geral (art. 145, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CC, e 1935 e ss do CC) incluindo a limitação de celebração de negócios da vida corrente», tendo-se fixado o prazo de 2 anos para a revisão das medidas de acompanhamento.
2) Por despacho de ...-...-2024, determinou-se a notificação do Ministério Público, acompanhante e acompanhado para, no prazo de 5 dias, informarem se se alteraram, ou não, os pressupostos da decisão proferida a ...-...-2022 e/ou requererem o que tiverem por conveniente.
3) Após terem sido prestadas informações nos autos pelo acompanhante, o Tribunal determinou, por despacho datado de ...-...-2024, a realização de relatório pericial, o qual foi junto aos autos a .../.../2024.
4) Mediante despacho, datado de ...-...-2024, designou-se data para audição do beneficiário.
5) No dia ...-...-2024, procedeu-se à audição do beneficiário, bem como do acompanhante, tendo tal diligência sido presidida pela Sra. Juíza de Direito AA.
6) No final da referida diligência, foi determinada a abertura de vista ao MP para se pronunciar quanto à matéria objeto de revisão, concedendo-se idêntico prazo ao defensor do acompanhado para o mesmo efeito.
7) Por requerimento de ...-...-2024, o MP pronunciou-se.
8) Notificado para se pronunciar, o defensor não se pronunciou.
9) Em ...-...-2025, a Sra. Juíza de Direito AA proferiu o seguinte despacho: “Apresente os autos ao Meritíssimo Senhor Juiz titular, atento o princípio do Juiz natural”.
10) Em ...-...-2025, o Sr. Juiz de Direito BB proferiu despacho onde se lê, nomeadamente, o seguinte: “(…), entende o signatário que a competência para proferir a sentença de revisão das medidas de acompanhamento no âmbito dos presentes autos incumbe à Mm.ª Juiz AA, com fundamento na circunstância de ter procedido não só à audição do beneficiário, mas também, na qualidade de testemunha, do acompanhante. Com efeito, in casu, não obstante não ser diretamente aplicável o disposto no art.º 605.º do CPC (que consagra o princípio da plenitude da assistência do juiz), em virtude de não haver lugar a uma audiência de discussão e julgamento, deve ser equiparada a situação dos autos a esta fase processual, porquanto, atendendo ao disposto nos art.ºs 897.º, n.º 2 e 898.º, ex vi 904.º, n.º 3, todos do CPC, a audição pessoal e direta do beneficiário assume uma importância tal que as razões que subjazem àquela norma podem e devem ser transpostas para o processo de acompanhamento de maior. Tal importância é desde logo demonstrada pela circunstância de ser o único ato instrutório cuja dispensa a lei não admite. Com efeito, «o legislador quer, exige, manda, sem excepções, que haja um contacto directo entre o juiz/a e o/a visado/a pela medida restritiva da sua capacidade civil que o processo de acompanhamento de menor visa aplicar-lhe. Sempre». Na verdade, e nas palavras de Maria Inês Costa «no actual regime cabe ao Juiz avaliar a forma como a pessoa olha, responde, interage com os presentes que só quem preside consegue apreender». Com efeito, «a audição do beneficiário presencial presidida pelo juiz suplanta em muito uma simples lista de perguntas e respostas plasmadas em auto. Caso contrário bastaria o exame pericial e voltaríamos ao regime revogado da dispensa do interrogatório judicial em caso de ausência de contestação». Ora, segundo o princípio da plenitude da assistência do juiz, «só podem intervir na decisão da matéria de facto os juízes que tenham assistido a todos os atos de instrução e discussão praticados na audiência final». Isto é, no caso do processo de acompanhamento de maior (incluindo nos incidentes de revisão), a sentença deve ser proferida pelo/a juiz que assistiu a todos os atos de instrução realizados oralmente (in casu, audição do beneficiário e do acompanhante, na qualidade de testemunha). Este entendimento, no que concerne à questão de saber se é o juiz que procede à audição que deve proferir a competente sentença, é sufragado por Maria Inês Costa, a qual refere o seguinte: «importa aferir é se o legislador ao determinar a audição (obrigatória) “pessoal” e “directa” do beneficiário quis implementar a imediação do juiz com o beneficiário ou se, ao invés, quis tão somente que um órgão de soberania “atestasse” a incapacidade do beneficiário independentemente do meio e do Juiz que o faça. Equivale a perguntar quando é que uma diligência instrutória produzida perante um juiz pode ser usada em decisão final a emitir por outro juiz e se nesta última hipótese não estará em causa para além da violação do princípio da imediação (princípio base da nova lei), o princípio da plenitude da assistência do juiz.». E conclui a mesma autora que «A ratio da nova lei que regula o regime jurídico do maior acompanhado é a de que seja respeitada o mais possível a vontade do maior que vai ser acompanhado no exercício da sua capacidade, pelo que para assegurar esse desiderato se impõe a audição pessoal e directa da pessoa por referência à qual serão desenhadas casuisticamente as medidas de acompanhamento, não se reputando como bastante que o resultado da audição fique reduzido a escrito de molde a que seja utilizado por outra pessoa na decisão que não aquela que presidiu ao acto. É que a obrigatoriedade da audição “pessoal” e “directa” permite diferenciar uma pessoa, não a embrulhando em pacotes tipo e redutores, permitindo – nas palavras do Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –, o tal “fato à medida”, pois uma pessoa, como já referia Ortega y Gasset, é ela própria e as suas circunstâncias, as suas singularidades, não só pessoais, mas que estendemos às sociais e às ambientais» (destacado nosso). Assim, continua a autora, «(…) a audição para além de obrigatória, não prescinde de contacto pessoal, directo e, assim, efectivo, por banda de um juiz com o beneficiário, pois que só dessa forma será viável que apreenda com maior latitude as características próprias do beneficiário e do contexto em que desenvolve a sua vida, somente assim se habilitando o julgador a desenhar medidas de acompanhamento ajustadas e convergentes com a necessidade efectiva da pessoa que delas beneficiará. De outra sorte, a audição tornar-se-ia uma diligência menor do regime processual quando claramente é uma das suas diligências de maior relevo, e, por outro lado, frustrar-se-ia a intenção de se tomar conhecimento efectivo da situação do beneficiário, o que derivaria, com grande probabilidade, na aplicação de medidas genéricas e pouco talhadas em relação à real capacidade do beneficiário, determinando o regresso ao regime pretérito ao invés de se acompanhar a mudança de paradigma desejada pela nova lei, não se descurando que esta resulta norteada pelo princípio da “primazia da autonomia da pessoa”, sempre tendo em vista assegurar a tutela dos direitos do beneficiário e a sua efectiva inclusão social e jurídica, através da “auscultação” das suas vontades e interesses mais profundos antes de qualquer tomada de decisão que lhe diga respeito (…)». Saliente-se, a este respeito, que mesmo que se entenda que, em sede de revisão das medidas de acompanhamento, a audição do beneficiário não é obrigatória, sempre se terá de entender que, a partir do momento em que o Tribunal entende proceder a tal audição (por entender que a mesma constitui um elemento essencial à prolação da decisão de revisão), verificam-se as mesmas razões que exigem, aquando da primeira decisão, que seja o juiz que ouviu o beneficiário a proferir decisão. Não podendo o Tribunal desconsiderar tal ato instrutório depois de produzido (o que nem se compreenderia), a imediação que é exigida pelo art.º 898.º, n.º 1 do CPC impõe que seja o mesmo juiz que procedeu à audição, em sede de revisão, a proferir a decisão. Tanto mais num caso como o dos presentes autos em que, para além da audição do beneficiário, se procedeu à audição, na qualidade de testemunha, do acompanhante. Sendo que, nos termos do que se vem expondo, não se crê que a gravação da diligência seja capaz de igualar a perceção que resulta da imediação, ou sequer a ata da mesma. Com pertinência, refere Lebre de Freitas9 que «ainda que o registo da prova (…) supra hoje, em alguma medida, a falta de presença física no ato da sua produção, a convicção judicial forma-se na dinâmica da audiência, com intervenção ativa do juiz, e é sempre defeituosa a perceção formada fora desse condicionalismo». Saliente-se, ainda, que se entende, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que o entendimento aqui sufragado em nada contende com o princípio do juiz natural. Aliás, se assim fosse, não se compreenderia o regime jurídico que resulta do art.º 605.º do CPC, segundo o qual, independentemente da movimentação inerente ao exercício da profissão, tem de ser o juiz que presidiu à produção de prova a elaborar a competente sentença. Face ao exposto, e porque, conforme assinala Alberto dos Reis10, tudo o que acontece oralmente na audiência de julgamento «só pode ser captado por quem assista, do princípio ao fim, a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência. Tal assistência é condição absolutamente imprescindível do poder de julgar; não pode decidir a matéria de facto quem não presenciou os actos sobre que há-de assentar a decisão», é entendimento do signatário não ser competente para proferir a sentença nestes autos, por não estar em causa qualquer das circunstâncias excecionais previstas no art.º 605.º, n.º 1, in fine e a contrario, 3 e 4 do CPC. Assim, à luz da interpretação que se deixou exposta, entende-se que é a Mm.ª Juiz que presidiu à audição do beneficiário e do indigitado acompanhante a competente para proferir a sentença no âmbito destes autos e não este signatário. Por tudo o exposto, declaro-me incompetente para a prolação da sentença nestes autos, devendo, consequentemente, ser aberta conclusão à Mm.ª Juiz que presidiu à audição do beneficiário e do acompanhante (…)”.
11) Em ...-...-2025, a Sra. Juíza de Direito AA proferiu despacho onde se lê, nomeadamente, o seguinte: “A signatária, no âmbito do QCJL, vem assegurando diversos juízos. Presentemente, um juízo e meio, do Trabalho; números de Família e Menores, entre outros. Por outro lado, signatária lavrou diversas decisões de maior acompanhado relativas a processos em que a beneficiária fora ouvida pelo magistrado que a precedeu. Essa é, aliás, a prática que encontrou em vários tribunais. O princípio da plenitude da assistência do juiz consagrado no art. 605º do CPC vale apenas para audiências de julgamento, salvo melhor entendimento, desconhecendo-se jurisprudência em contrário. Veja-se o caso dos inventários em que importa decidir reclamações após inquirição de algumas testemunhas. Destarte, em função do princípio do juiz natural, considero que é competente o Meritíssimo Juiz que exerce agora funções nesta unidade. (…) Pelo exposto, declaro-me incompetente para a presente ação, por reputar competente o Meritíssimo juiz que exerce atualmente funções nesta unidade (…)”.
*
III. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC).
A questão que se coloca é a de saber quem vai elaborar a sentença destes autos, a Sra. Juíza que procedeu à audição da requerida ou a Sra. Juíza que aí foi colocada no Movimento Judicial de 2024.
Em bom rigor não estamos perante um conflito de competência, uma vez que o conflito gerado não é entre tribunais, mas entre juízes.
De acordo com o disposto no artigo 114.º do CPC e para além dos casos contemplados nas respetivas alíneas desses preceito, “o disposto nos artigos 111.º a 113.º é aplicável a quaisquer outros conflitos que devam ser resolvidos pelas Relações (…)”, pelo que, na falta de específico regime legal há que resolver a divergência, por forma a ultrapassar o impasse gerado, com apelo às regras que disciplinam os conflitos de competência.
*
IV. Os presentes autos constituem autos de processo especial de maior acompanhado, regulado nos artigos 891.º e ss. do CPC, na sequência do regime substantivo estabelecido nos artigos 138.º e ss. do CC, na redação conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto (cujo regime tem aplicação imediata, mesmo relativamente a precedentes processos de interdição/inabilitação).
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 140.º do CC, este processo, relativo a um beneficiário, “visa assegurar o seu bem-estar, a sua representação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”.
Assim, nos termos do disposto no artigo 138.º do CC, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no CC.
De acordo com o disposto no artigo 139.º do CC, o acompanhamento é decidido pelo tribunal, depois de ter lugar a audição do beneficiário e ponderadas as provas, sendo que, em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento, provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.
O processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se regulado nos artigos 891.º a 904.º do CPC.
Nos termos do artigo 891.º, n.º 1, do CPC, este processo “tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”.
Após a apresentação da petição (art. 892º do CPC) e o ato da citação (arts. 219.º e 895.º do CPC) e ultrapassada a fase dos articulados, segue-se a fase de instrução do processo propriamente dita (arts. 897.º a 899.º do CPC) em que o juiz analisa fundamentalmente os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos, sendo que, em qualquer caso, deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário (cfr. Miguel Teixeira de Sousa; “O regime do acompanhamento de maiores: Alguns aspectos processuais”, in Colóquio O Novo Regime do Maior Acompanhado; Coord. António Pinto Monteiro; FDUC, ..., em linha no endereço: https://www.uc.pt/site/assets/files/1050392/ebook_doi_livro_ma.pdf, p. 57 e ss).
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de ...-...-2019 (Pº 7779/18.1T8CBR.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA): “A Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação. Essa Lei veio introduzir uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada. Este novo paradigma trouxe enormes modificações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer em termos processuais (…)”.
Entre os atos fundamentais a praticar no processo conta-se o de audição do beneficiário.
Ou seja: “A audição do beneficiário é obrigatória (…) e não obedece a qualquer forma pré-estabelecida, cabendo ao juiz adotar aquela que melhor se adeque às circunstâncias, sem exclusão sequer de um confronto singular com o mesmo, no que se divisa um intuito de criar um ambiente de confiança e isento de pressões. Se acaso tiver sido produzida prova pericial, a audição do beneficiário, ou parte dela, correrá perante o perito ou peritos designados, que, tal como os representantes do beneficiário, poderão sugerir a formulação de perguntas destinadas a avaliar a situação em que se encontra (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pieres de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, ..., p. 338).
Efetivamente, “(…) o n.º 2 do artigo 897.º do CPC determina que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre, de acordo com a regra fixada no artigo 143.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. O artigo 898.º do CPC, com a epígrafe “audição pessoal”, estabelece, no n.º 1, que a audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas. O n.º 2 do artigo 898.º, por sua vez, regula a própria audição, devendo as questões ser colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas. Por fim, nos termos do n.º 3 do artigo 898.º, o juiz pode determinar que parte (e não a totalidade) da audição decorra apenas na presença do beneficiário. A audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)]. Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal” (assim, Margarida Paz, “O Ministério Público e o novo regime do maior acompanhado”, in O novo regime jurídico do maior acompanhado [e-book, consultado em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf], CEJ, Lisboa, ..., p. 131).
Reunidos todos os elementos necessários, o juiz proferirá a decisão, designando o acompanhante (cf. art. 143.º do CC), definindo as medidas de acompanhamento (cf. art. 145.º do CC), e, quando possível, “fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes” (cf. art. 900.º, n.º1, do CPC). A sentença de acompanhamento importa referir, está sujeita a registo obrigatório, não podendo ser invocada contra terceiro de boa-fé enquanto aquele não se mostre efetuado (cf. arts. 1920.º-B e 1920.º-C, ex vi do art. 153.º, n.º2, do CC).
*
V. No caso em apreço, conforme decorre do supra exposto, a Sra. Juíza AA procedeu à realização da audição do beneficiário, no âmbito da análise de reapreciação da medida antes aplicada, entendendo que não deverá proceder à elaboração da respetiva sentença, em suma, pela seguinte ordem de razões:
1ª) Lavrou diversas decisões de maior acompanhado relativas a processos em que a beneficiária fora ouvida pelo magistrado que a precedeu, prática que encontrou em vários tribunais;
2ª) O princípio da plenitude da assistência do juiz consagrado no art. 605º do CPC vale apenas para audiências de julgamento.
Afigura-se-nos que a “pedra de toque” para a resolução do “conflito” assenta na consideração dos termos da intervenção do juiz no processo de acompanhamento de maior, resultando do sistema processual em vigor uma maior enfâse na relação entre a aplicação das medidas de acompanhamento e a intervenção do juiz conducente a tal aplicação.
Como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-03-2023 (Pº 359/22.9T8MFR.L1-7, rel. EDGAR TABORDA LOPES), “a audição de beneficiário/a não pode nunca ser dispensada, servindo – como mínimo – para fazer a constatação directa pelo Tribunal (ou, se se preferir, a comprovação judicial) da situação de impossibilidade de comunicar/entender em que se encontra o/a beneficiário/a e, nesse caso, tal far-se-á constar em acta, seguindo-se a perícia e o Relatório e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada. A história que subjaz ao artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (conjugado com o artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil) e os termos que são utilizados, não deixam margem a dúvidas razoáveis, quanto ao objectivo do legislador, perfeitamente expresso (“audição pessoal e directa”, “Em qualquer caso” e “sempre”, colocadas na mesma frase e no mesmo artigo estão lá para dizer que o objectivo é de essa diligência nunca possa ser dispensada, ficando vedada ao Tribunal essa possibilidade): o legislador quer, exige, manda, sem excepções, que haja um contacto directo entre o juiz/a e o/a visado/a pela medida restritiva da sua capacidade civil que o processo de acompanhamento de menor visa aplicar-lhe. Sempre”.
A aplicação das medidas de acompanhamento é, pois, resultado de um criterioso processo de análise dos elementos de prova carreados para o processo, a que são aplicáveis as regras dos processos de jurisdição voluntária (em particular, como decorre do disposto no artigo 986.º, n.º 1, do CPC, a consideração do regime prescrito nos artigos 292.º a 295.º do mesmo Código) que culmina – e tem como diligência absolutamente obrigatória – com a audição do beneficiário, a qual se pretende “pessoal” e “direta” e que tem por objetivo “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”.
Dessa aplicação normativa – em particular da consideração do disposto nos artigos 292.º a 295.º do CPC – não decorre a obrigatoriedade de gravação (cfr., neste sentido, Maria Inês Costa; “A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, ..., p. 27), nem de redução a escrito de depoimentos, não se podendo afirmar que a audição possa, caso tal gravação ou redução a escrito ocorram, viabilizar que a prolação da decisão sobre o acompanhamento possa ser tomada por outro juiz que não aquele que ouviu o beneficiário.
Nesta linha, os desvios que possam ser considerados admissíveis relativamente à forma como decorre a inquirição do beneficiário, designadamente, a admissibilidade de a mesma ter lugar deprecadamente, não poderão ser considerados, senão, como medidas excecionais no sentido de viabilizar a tramitação do processo, designadamente, nos casos em que ocorra mudança de residência do beneficiário para outra circunscrição judicial, que inviabilize a realização da audição pelo juiz do tribunal onde pende o processo.
Contudo, tais medidas, de cariz excecional, não colidem com a “competência” do juiz para a prolação da decisão sobre o acompanhamento, que se mantém por referência ao ato primordial de audição do requerido ou beneficiário.
E, se é certo que a situação em causa não está directamente prevista no art. 605.º, do CPC, sob a epígrafe “Princípio da plenitude da assistência do juiz”, dado que não estamos na fase de audiência de julgamento aquando da audição do beneficiário, certo é que, conforme se referiu na decisão individual deste Tribunal da Relação de Lisboa de ...-...-2019 (no âmbito do processo n.º 2127/18.3T8PDL.L1, 2.ª Secção, rel. GUILHERMINA FREITAS), “tendo em atenção o disposto nos arts. 897.º, n.º 2 e 898.º, do CPC, cremos ser de equiparar a situação dos autos a essa fase processual, sendo, pois, o juiz que procedeu à audição da requerida o competente para proferir a sentença, face à importância que o regime jurídico do maior acompanhado atribui ao contacto directo e pessoal entre o juiz e o beneficiário, aquando dessa audição, a quem caberá ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”.
Esta solução acaba por ser a acolhida pela doutrina.
Como refere Maria Inês Costa (“A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, ..., p. 27) “no actual regime cabe ao Juiz avaliar a forma como a pessoa olha, responde, interage com os presentes que só quem preside consegue apreender. (…) a audição do beneficiário presencial presidida pelo juiz suplanta em muito uma simples lista de perguntas e respostas plasmadas em auto. Caso contrário bastaria o exame pericial e voltaríamos ao regime revogado da dispensa do interrogatório judicial em caso de ausência de contestação”.
A mesma Autora (loc. cit., p. 26) reporta que, o que “importa aferir é se o legislador ao determinar a audição (obrigatória) “pessoal” e “directa” do beneficiário quis implementar a imediação do juiz com o beneficiário ou se, ao invés, quis tão somente que um órgão de soberania “atestasse” a incapacidade do beneficiário independentemente do meio e do Juiz que o faça. Equivale a perguntar quando é que uma diligência instrutória produzida perante um juiz pode ser usada em decisão final a emitir por outro juiz e se nesta última hipótese não estará em causa para além da violação do princípio da imediação (princípio base da nova lei), o princípio da plenitude da assistência do juiz”.
Conclui Maria Inês Costa (ob. cit., p. 27) que, “[a] ratio da nova lei que regula o regime jurídico do maior acompanhado é a de que seja respeitada o mais possível a vontade do maior que vai ser acompanhado no exercício da sua capacidade, pelo que para assegurar esse desiderato se impõe a audição pessoal e directa da pessoa por referência à qual serão desenhadas casuisticamente as medidas de acompanhamento, não se reputando como bastante que o resultado da audição fique reduzido a escrito de molde a que seja utilizado por outra pessoa na decisão que não aquela que presidiu ao acto. É que a obrigatoriedade da audição “pessoal” e “directa” permite diferenciar uma pessoa, não a embrulhando em pacotes tipo e redutores, permitindo – nas palavras do Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –, o tal “fato à medida”, pois uma pessoa, como já referia Ortega y Gasset, é ela própria e as suas circunstâncias, as suas singularidades, não só pessoais, mas que estendemos às sociais e às ambientais”.
Neste sentido, a audição do beneficiário, para além de obrigatória, não prescinde de contacto pessoal, direto e, assim, efetivo, por banda de um juiz com o beneficiário, pois que só dessa forma será viável que apreenda com maior latitude as características próprias do beneficiário e do contexto em que desenvolve a sua vida, somente assim se habilitando o julgador a desenhar medidas de acompanhamento ajustadas e convergentes com a necessidade efetiva da pessoa que delas beneficiará.
De outro modo, a audição traduzir-se-ia numa diligência menor do regime processual quando claramente é uma das suas diligências de maior relevo, frustrando-se a intenção de se tomar conhecimento efetivo da situação do beneficiário, o que derivaria, com grande probabilidade, na aplicação de medidas genéricas e pouco talhadas em relação à real capacidade do beneficiário, “determinando o regresso ao regime pretérito ao invés de se acompanhar a mudança de paradigma desejada pela nova lei, não se descurando que esta resulta norteada pelo princípio da “primazia da autonomia da pessoa”, sempre tendo em vista assegurar a tutela dos direitos do beneficiário e a sua efectiva inclusão social e jurídica, através da “auscultação” das suas vontades e interesses mais profundos antes de qualquer tomada de decisão que lhe diga respeito (…)” (cfr. Maria Inês Costa; ob. cit., p. 29).
Na realidade, “a sentença que decreta ou não o acompanhamento do maior é algo mais do que um mero ato decisório, é uma cuidada e individualizada resposta jurídica que o sistema se propõe a aplicar àquela pessoa, sujeito de direitos e deveres. Na sentença, o juiz encarna o seu papel de representação do Estado de Direito, um Estado social que tem por missão a efetiva realização dos direitos de todos os cidadãos, um Estado que se esforça por promover políticas de prevenção, tratamento e integração dos cidadãos mais vulneráveis, um Estado que oferece um modelo de proteção inspirado na preservação da autonomia pessoal e autodeterminação” (assim, Ana Carolina da Silva Framegas Pereira; Um contributo na compreensão do regime processual do maior acompanhado; FDUC, julho 2019, pp. 108-109, consultado em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/90232/1/Um%20contributo%20na%20compreensão%20do%20regime%20processual%20do%20maior%20acompanhado.pdf ).
Assim, a competência para a prolação da sentença a proferir deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a audição do beneficiário/requerido, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for transferido.
Conclui-se, pois, que a competência para a prolação da sentença nos presentes autos deverá radicar na Sra. Juíza que presidiu à audição do beneficiário, assim se devendo decidir o conflito suscitado.
*
VI. Pelo exposto, decido este conflito, declarando competente para a prolação da sentença nos presentes autos, a Sra. Juíza de Direito AA, que procedeu à audição do requerido/beneficiário.
Sem custas.
Notifique-se (cfr. artigo 113.º, n.º 3, do CPC).
Baixem os autos.