ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Sumário

I. Uma alteração não substancial de factos é toda aquela alteração dos factos descritos (na acusação ou na pronúncia), que não implique a imputação ao arguido de um crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, e que tenha relevo para a decisão da causa.
II. Não será relevante a alteração que consista na exclusão, pura e simples, de factos que configuram uma circunstância qualificativa ou agravativa; e também não é alteração de factos a descrição dos mesmos factos da acusação ou da pronúncia, mas com uma formulação distinta, ou a explicitação ou concretização de factos já narrados sinteticamente na acusação ou na pronúncia, desde que não sejam relevantes para a tipificação ou para a verificação de qualquer agravante qualificativa.
III. O vício de erro notório na apreciação da prova é aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
IV. O princípio in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
V. Para se verificar um estado de necessidade (desculpante) é necessário que a actuação do agente se destine a afastar um perigo.
VI. A suspensão da execução da pena não pode prescindir de um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do processo comum (Singular) com o nº 501/21.7PAMTJ que corre termos no Juiz 2 do Juízo Local Criminal do Montijo, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi a arguida,
AA, solteira, lavadora de automóveis, nascida a ........1979 na freguesia de ..., filha de BB e de CC, residente na ...,
condenada, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p., no art. 152º, nº 1, alíneas d) e e) e nº 2, alínea a), do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Mais foi julgado improcedente, por não provado, o pedido de reembolso das despesas hospitalares deduzido pela DD e, em consequência, foi a arguida/demandada absolvida do pedido.
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Sem se conformar com a condenação crime, a arguida interpôs o presente recurso onde requer que:
- seja declarado nulo o auto de notícia de ........2021 com exclusão da sua força probatória e, em consequência, se declare a nulidade de todo o Processo, ficando absolvida;
- seja revogada a sentença recorrida e ela fique absolvida;
- caso assim não se entenda, que seja a pena de prisão reduzida para um patamar mais adequado e proporcional à culpa e às exigências de prevenção, sendo a sua execução suspensa, com ou sem regime de prova e/ou imposição de deveres, conforme se entenda por mais justo e adequado à reintegração social.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
A) As normas jurídicas violadas são as vertidas nos artigos:
O Tribunal violou assim os critérios contidos nas disposições conjugadas dos artigos 31º, 40º, 50º, 70º, 71º, 72º, 73º e 152º, nº 1 todos do Código Penal, e os artigos 1º, nº 1 alínea f), 99º, nº 4, 118º, 120º, 127º, 243º, nº 1, 340º, 358º, 359º, 370º e 379º todos do CPP, e bem como artigo 18º, n° 1 e 2 e 32º ambos da Constituição da República Portuguesa.
B) O sentido em que, o Tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada:
- artigos 31º, 152º, nº 1, todos do Código Penal, artigos 118º e 120º ambos do CPP, e princípio in dubio pro reo absolvendo a Arguida do crime de que é acusada;
C) As normas jurídicas que devem ser aplicadas:
Artigos 31º, 40º, 50º, 70º a 73º e 152º, nº 1 todos do Código Penal, os artigos 118º e 120º e 370º todos do CPP, o princípio in dubio pro reo e bem como artigo 18º, nº 1 e 2 e 32º ambos da Constituição da República Portuguesa.
D) Requer-se expressamente a produção de prova sobre o vício do auto de notícia, em audiência de recurso ou mediante nova diligência instrutória, com a inquirição dos agentes policiais intervenientes (nomeadamente dos agentes identificados no auto e seus signatários, EE, Matricula n.º ...e FF, ..."), de modo a demonstrar, de forma cabal, a divergência entre o autor material do auto e o signatário, tudo para melhor esclarecimento da verdade e nos termos do artigo 340.º do CPP
1. Nulidade do Auto de Notícia:
O auto de notícia que serviu de base à instauração do processo padece de uma irregularidade formal insanável, na medida em que o "autuante" e o "signatário" são agentes distintos da PSP. Esta discrepância compromete a presunção de veracidade e a cadeia de perceção direta dos factos, afetando a autenticidade do documento e, consequentemente, as garantias de defesa da Arguida.
2. Seja declarado nulo o auto de notícia de .../.../2021 com exclusão da sua força probatória e, por consequência, a nulidade de todo o processo, absolvendo-se a arguida.
3. Inadmissibilidade da Alteração Não Substancial dos Factos:
A alteração dos factos operada em audiência, que reduziu o período da conduta imputada de "desde 2016" para "desde 2018" e incluiu a co-responsabilidade das irmãs menores, configura uma alteração substancial ou, no mínimo, uma alteração não substancial que, pela sua relevância, violou o princípio do contraditório e as garantias de defesa da Arguida. A defesa foi surpreendida por uma reconfiguração do quadro factual que prejudicou a sua preparação.
4. Seja declarada a nulidade da sentença por violação do direito de defesa da arguida em virtude da alteração substancial dos factos, violando o disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal;
5. Não Verificação do Crime de Violência Doméstica (Dolo/Culpa):
A conduta da Arguida, embora tenha resultado em condições deploráveis para o ofendido, deve ser reavaliada à luz da sua extrema precariedade financeira e da alegada falta de apoio social e institucional. Os factos provados, quando contextualizados, sugerem uma situação de grave negligência decorrente de desespero e sobrecarga, e não de dolo de maltratar. A sua incapacidade de lidar com a situação, exacerbada pela ausência de recursos e apoio, deve ser ponderada na avaliação do elemento subjetivo do crime.
6. A Sentença seja revogada, e, em sua substituição, seja proferido acórdão que absolva a arguida do crime de violência doméstica, por inexistência do dolo, por não se ter provado que agiu com dolo de maltratar e por ter atuado num contexto de carência e desamparo, ou que a condene por crime de menor gravidade.
7. Ao não valorizar devidamente o estado de necessidade, exaustão materna, carência de apoio institucional e dificuldades socioeconómicas comprovadas, a sentença desconsiderou fatores de inexigibilidade de outro comportamento, violando artigos 31.º, 72.º e 73.º do Código Penal;
8. Medida da Pena Excessiva:
A pena de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva é desproporcional. A sentença desconsiderou a primariedade da Arguida e o seu historial de vida marcado por disfunção familiar, violência e dificuldades económicas.
9. A medida da pena de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva, face a ser primária, ausência de antecedentes, contexto pessoal e social e jurisprudência reiterada, é desproporcional e manifestamente excessiva;
10. Subsidiariamente, se for mantida a condenação por violência doméstica, seja a pena de prisão reduzida e fixada pena não superior a 2 anos e suspensa na sua execução, com a fixação de um regime de prova ou deveres a cumprir, conforme a conclusão favorável do relatório social.
11. Desconsideração do Relatório Social:
O Tribunal não valorizou adequadamente o relatório social, que fornecia um quadro completo da personalidade da Arguida e das circunstâncias que a levaram à prática dos factos. Ao focar-se apenas na alegada "ausência de sentido crítico", o Tribunal ignorou o impacto do seu historial de vida, da sua precariedade e do desgaste emocional, que são cruciais para a individualização da pena e para a formulação de um prognóstico de reintegração.
12. Insuficiência da Prova Testemunhal Indireta para a Condenação:
A prova testemunhal que levou à condenação é predominantemente indireta, baseada em observações de consequências ou circunstâncias, e não em atos diretos de violência ou negligência. O Tribunal não cumpriu o seu próprio critério de que a prova indireta deve ser "inequívoca" e "afastar, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso". A ausência de prova direta dos atos essenciais do crime, aliada à possibilidade de outras interpretações dos indícios, viola o princípio do in dubio pro reo e não permite uma condenação segura.
13. Caso assim não se entenda, requer-se ainda que seja ordenada a produção de prova concreta sobre o vício de assinatura, com a audição dos agentes policiais envolvidos, para esclarecimento inequívoco do vício alegado e aferição da invalidade do acto instrutório, com plena aplicação da jurisprudência mencionada;
14. Verifica-se erro notório na apreciação da prova, bem como violação do princípio in dúbio pro reo, inexistindo prova inequívoca da autoria dolosa dos factos e do elemento subjetivo do tipo legal de crime, pelo que se impõe a absolvição da recorrente;
15. Devem ser eliminados dos factos provados os pontos 8, 9, 13, 14, ou delimitados no tempo, por falta de prova bastante.
16. Fixação da pena concreta em 2 anos, em linha com as exigências de proporcionalidade e ressocialização, suspensa na sua execução pelo mesmo período, sujeita a regime de prova, acompanhamento psicossocial e formação parental, tal como propõe expressamente o relatório social.
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O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e formulando as seguintes conclusões:
a) Não se conformando com a sentença condenatória a arguida interpôs o presente recurso, subordinado essencialmente à apreciação das seguintes questões:
Do principio “in dúbio pro reo”;
Da nulidade do auto de notícia;
Da alteração não substancial dos factos;
Do crime de violência doméstica;
Da medida concreta da pena.
b) Não tendo da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultado qualquer dúvida, não terá ocorrido uma preterição do princípio do in dubio pro reo.
c) De facto, o referido princípio não pode de forma alguma ser interpretado no sentido de implicar que o Tribunal a quo valore a todo o custo a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento a favor dos arguidos, credibilizando apenas os depoimentos prestados a seu favor em detrimento de todos os demais, pois, em última instância nunca ocorreriam condenações.
d) O auto de notícia foi elaborado por autoridade competente, contém os elementos essenciais exigidos pelo artigo 243.º do Cód. Proc. Penal, e não foi posta em causa a veracidade do seu conteúdo nem a autenticidade da assinatura.
e) Quer o Sr. Agente da PSP EE, como o Sr. Subcomissário FF, se deslocaram ao local dos factos e atestaram o que viram tanto no auto de notícia, como posteriormente quando foram ouvidos como testemunhas.
f) Desempenhando o Sr. Agente da PSP FF as funções de Subcomissário, grande parte do expediente que é remetido para os Serviços do Ministério Público passa por ele e/ou é revisto por ele.
g) Assim, forçoso é concluir que o auto de notícia elaborado pelo Sr. Agente da PSP EE e por ele assinado, posteriormente revisto, determinada e assinada a sua remessa ao DIAP, pelo Sr. Subcomissário FF, não padece de qualquer nulidade.
h) As alterações espácio-temporais, como seja a redução do período de tempo descrito na acusação, não descaracterizam o quadro factual da acusação, nem comprometem o exercício do direito de defesa, não sendo, por isso, geradoras de nulidade.
i) O período de tempo que acabou por ser dado como provado na sentença já estava incluído no período de tempo descrito na acusação.
j) Do artigo 358.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal decorre que apenas há o dever de comunicar uma alteração dos factos se os mesmos tiverem relevo para a decisão da causa, o que in casu não se verificava.
k) Os factos provados nos autos enquadram-se no crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, por se tratar de maus tratos físicos e psíquicos infligidos pela mãe ao seu filho, pessoa particularmente indefesa devido a uma incapacidade de 97%.
l) A arguida agiu com dolo, aproveitando-se da vulnerabilidade da vítima e do seu ascendente familiar, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
m) Com efeito, ainda que a arguida vivesse numa situação de extrema precariedade económica e de ausência de apoio social e institucional e, que tenha agido motivada por desespero e sobrecarga, não poderia a mesma olvidar que com a sua atitude atentava contra a dignidade do filho, agredindo, omitindo cuidados básicos, humilhando e, criando situações de confinamento desumano.
n) Para surtirem algum efeito e satisfazerem os seus fins de prevenção geral e especial, as penas têm de ser sentidas pelos arguidos e representar um sacrifício.
o) In casu, a falta de arrependimento, a ausência de assunção de responsabilidade e o discurso de vitimização indicam que a simples censura do facto não seria suficiente para prevenir uma nova conduta delituosa.
p) Assim, uma pena de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva mostra-se justa e totalmente adequada aos factos dados como provados.
q) Por todo o exposto, somos em crer que bem andou o Tribunal a quo, não merecendo a sentença proferida qualquer reparo, nem se podendo de forma alguma aceitar a medida da pena “proposta” pela arguida.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer onde afirma “acompanhamos a resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, quando pugna pela improcedência do recurso, conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na referida peça processual, para a qual, e por uma questão de economia processual, se remete”.
Efectuado o exame preliminar, foi indeferida, por falta de fundamento legal, a requerida “produção de prova sobre o vício do auto de notícia, em audiência de recurso ou mediante nova diligência instrutória, com a inquirição dos agentes policiais intervenientes”.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1. A arguida AA é mãe do ofendido GG.
2. O ofendido nasceu no dia ........2000 e faleceu no dia ........2024.
3. Arguida e ofendido residiam na ..., conjuntamente com HH e II, respectivamente filhas e irmãs.
4. O ofendido sofria, desde o seu nascimento, de síndrome de Moebius e atraso global do desenvolvimento grave, congénito, secundário a alteração genética, sem qualquer tipo de discurso ou linguagem, apresentando debilidade profunda, sofrendo de uma incapacidade fixada em 97%.
5. Em consequência de tal doença, o ofendido estava impossibilitado, sem auxílio de terceiros, de se alimentar e de se cuidar.
6. Desde 2018 e até ........2021, a arguida manteve o ofendido dentro da residência, num quarto com casa de banho, onde dormia num colchão colocado no chão.
7. A arguida colocou o ofendido dentro do quarto referido em 6), o qual não possuía qualquer luz artificial nem qualquer luz natural, uma vez que aquela fechava os estores.
8. A arguida colocava o ofendido dentro da casa de banho, onde o prendia pelo tornozelo e pelo pulso com uma trela própria para cães e com atacadores de ténis que agarrava à base da sanita, impedindo-o de sair do local.
9. Em consequência de tais actos, o ofendido ficava com marcas vermelhas no pulso esquerdo e no tornozelo direito.
10. A arguida não cuidava nem ajudava o ofendido para fazer as suas necessidades, o qual defecava no chão do quarto onde dormia e permanecia, bem como na casa de banho e nos objectos que lá se encontrassem, nomeadamente cobertores, e que aquela não limpava.
11. A arguida obrigava o ofendido a tomar as suas refeições no quarto e/ou no lavatório daquela divisão.
12. Desde data não concretamente apurada do ano de 2018 e até ........2021, a arguida manteve o ofendido dentro de casa, sem qualquer saída para o exterior.
13. Em datas não concretamente apuradas, a arguida deixou o ofendido sozinho em casa ou na companhia das irmãs II e HH, por vezes de dia e de noite, o que o fazia gritar e chorar de forma incessante, causando-lhe sofrimento.
14. Em data não concretamente apurada, mas situada entre 2018 e ........2021, a arguida saiu de casa deixando o ofendido ao cuidado das irmãs mais novas, ambas menores, durante mais de dois meses.
15. O ofendido gritava e chorava como forma manifestar sentimentos.
16. No dia ........2021, pelas 10h00, no quarto da residência referida em 3), a arguida mantinha o ofendido, totalmente despido, a dormir em cima de um colchão colocado no chão, onde se encontravam dois cobertores, nos quais existiam dejectos humanos.
17. No chão da casa de banho, a arguida colocou um cobertor de cor vermelha o qual continha restos de dejectos.
18. Dentro do lavatório, a arguida tinha deixado recipientes com restos de comida que já apresentavam bolor.
19. Nesse dia, a arguida dirigiu-se ao ofendido dizendo-lhe “já me estas a mostrar a picha outra vez, senta te! Foda-se! Se não o prender no quarto como é que posso fazer a minha vida?”
20. No dia ........2021, o ofendido foi retirado da residência da arguida e acolhido no ..., onde permaneceu até ao seu falecimento.
21. Por via das agressões corporais e psicológicas da arguida, as quais foram sendo praticados desde, pelo menos, 2018 até aos seus 21 anos de idade, da sua dependência física, emocional e económica e da sua doença que o tornava totalmente incapacitado e dependente, e por isso, vulnerável e indefeso, o ofendido não tinha qualquer capacidade de oferecer oposição à actuação daquela, circunstância de que se aproveitou no sentido descrito.
22. Bem sabia, ainda, a arguida que, agindo como descrito, atingia a integridade física e psicológica, magoava e causava lesões e dores ao ofendido, desde 2018 e até aos seus 21 anos de idade, o que quis e conseguiu.
23. Ao actuar do modo acima descrito, a arguida quis maltratar psicológica e corporalmente o ofendido, ofendendo-o na sua dignidade pessoal, humilhando-o, amedrontando-o e perturbando-o no seu sentimento de segurança, o que decidiu fazer no interior do domicílio comum e conseguiu, muito embora soubesse que, na qualidade de mãe do ofendido, sobre ela impendia um dever acrescido desrespeito para com este, bem como de cuidar do seu bem-estar físico e psíquico, até porque estava ciente da sua incapacidade de se cuidar a si próprio.
24. A arguida, ao actuar da forma descrita, agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se provou:
25. À data dos factos, AA residia no …com o filho e ofendido no presente processo, GG, e as filhas, II (21 anos) e HH (17 anos). A arguida tem um filho mais velho, JJ (24 anos), que não residia, nessa altura, junto da família.
26. De acordo com a arguida existia tensão familiar associada à condição de saúde do ofendido, a síndrome de Moebius.
27. Segundo nos foi relatado pela arguida, fazia ainda parte do agregado um casal que acolhera alegadamente por não disporem de recursos financeiros para assegurar enquadramento habitacional.
28. No presente, o enquadramento habitacional e familiar ter-se-á alterado em virtude de se encontrar a residir com o filho JJ. Também a dinâmica familiar atual foi descrita como negativa, associando constrangimentos relacionados com o quadro depressivo do filho.
29. Em termos de relacionamentos afectivos/de intimidade, AA fez referência a quatro relações maritais no seio das quais nasceram os quatro filhos. No contexto das duas últimas a arguida terá sido vítima de violência doméstica, situações que determinaram o término.
30. Ainda em termos familiares, a arguida cresceu em agregado familiar numeroso e disfuncional e negativamente condicionado pelas fragilidades económicas. A arguida e a mãe caraterizaram a dinâmica familiar como marcada pelo uso recorrente de comportamentos violentos e de maus-tratos por parte do pai aos elementos da família, que persistiram até a idade adulta. A separação dos progenitores ocorreu quando a arguida tinha sete anos, momento em que a mãe abandonou o lar. Aos 18 anos de idade, a arguida deixou definitivamente a casa do progenitor e passou a residir junto da mãe, onde permaneceu até se autonomizar. O progenitor já faleceu.
31. À data dos factos, a arguida, o ofendido e os restantes elementos que compunham o agregado familiar residiam em apartamento de renda social, de tipologia três. Segundo o que foi referido, a habitação apresentava condições de acomodação adequadas, embora apresentasse sinais de alguma degradação. No que concerne ao enquadramento sociocomunitário, a arguida relatou que os vizinhos tinham conhecimento da condição de saúde do ofendido e que estes frequentemente se queixavam do barulho provocado pelo mesmo, o que contribuía para uma relação de animosidade com os vizinhos.
32. Segundo refere, partilha com o filho, JJ, apartamento de tipologia 1 que dispõe de condições de habitabilidade adequadas. A habitação está inserida em meio residencial descrito como tranquilo, não tendo identificado problemáticas de exclusão social ou associadas à criminalidade.
33. Aquando dos factos a arguida estaria formalmente desempregada, tendo referido que realizava trabalhos sazonais, no ramo da agricultura, e limpezas em casa de particulares, sem vínculo contratual. Desde o passado mês de ... que trabalha em estabelecimento de lavagem de automóveis, com contrato de trabalho. Na presente data está de baixa médica após um acidente rodoviário.
34. Relativamente ao seu percurso laboral, AA afirmou que durante a sua vida adulta, manteve, maioritariamente, trabalhos de curta duração, intercalado por períodos de desocupação, atribuindo o percurso de precariedade laboral ao quadro de instabilidade familiar que vivenciava. Referiu ter trabalhado sem contrato de trabalho no ramo da ..., tendo-se despedido, na empresa ..., como ... com vínculo contratual durante cinco meses, da qual veio a ser dispensada por faltar ao trabalho. Terá ainda trabalhado numa ... durante quatro meses, tendo-se despedido. Integrou a ..., cuja atividade era o ..., durante nove anos, com contrato de trabalho, vindo a ser despedida em ....
35. A situação económica à data dos factos foi considerada pela arguida como instável uma vez que a subsistência da família provinha apenas do seu salário. A arguida referiu que dos trabalhos de agricultura e de empregada de limpeza que realizava, obtinha o valor aproximado ao salário mínimo nacional, e o filho, GG, recebia a pensão social de inclusão no valor mensal 273 euros.
36. A arguida não soube precisar o valor mensal das despesas fixas relativas à manutenção da habitação ou do agregado (água, eletividade, gás e alimentação), referindo apenas os valores mensais de 76 euros de renda de casa e 80 euros de telecomunicações. O casal que vivia junto desta não contribuía para o orçamento da família.
37. No presente, de baixa médica, recebe a quantia aproximada de 500 euros mensais. Como despesas fixas, referiu cerca de 250 euros para despesas de manutenção da habitação (água, eletricidade, gás, comunicações e alimentação). A arguida afirmou pagar uma renda mensal de 300 euros e 150 euros de empréstimo bancário relativo a crédito pessoal para pagamento da caução inerente ao arrendamento da actual habitação. A situação financeira é precária, referindo a arguida recorrer à sua progenitora no sentido de subsistirem.
38. A arguida relatou que na altura dos factos grande parte do seu tempo era despendido na prestação de cuidados ao filho GG, o que descreveu como extremamente desgastante, tanto do ponto de vista físico quanto emocional, devido à exigência constante de atenção e vigilância. A arguida afirmou ter sentido dificuldades em lidar com a agressividade do ofendido, reconhecendo que esse comportamento era uma consequência da doença que o mesmo apresentava.
39. GG integrou a ... aos sete anos de idade, em horário diurno, sendo o pagamento da mensalidade à instituição suportado pela segurança social. Quando o ofendido atingiu os 18 anos, terá passado a receber uma prestação social no valor mensal de 273 euros, tendo a segurança social cessado o pagamento da mensalidade, ficando o mesmo a cargo da arguida.
40. Em ...-...-2021 o ofendido foi retirado do agregado familiar na sequência da instauração dos presentes autos, e acolhido no ..., onde permaneceu até ao seu falecimento.
41. Do certificado do registo criminal da arguida não constam antecedentes criminais.
Mais se provou quanto ao pedido de reembolso das despesas hospitalares:
42. Em ........2024 foi emitida pela ... a factura n.º ..., referente ao episódio n.º ..., de ........2021 a ........2021, com a designação “...”, no valor global de € 7.148,90 (sete mil cento e quarenta e oito euros e noventa cêntimos).
E considerou-se serem os seguintes os factos não provados:
Da acusação pública:
I. O ofendido gritava e chorava como forma de comunicar.
II. Os factos provados em 8) ocorriam quando o ofendido se portava mal.
III. O ofendido tomava as suas refeições na casa de banho do quarto.
IV. Em datas não concretamente apuradas, e por motivos não apurados, a arguida agrediu o ofendido de forma não determinada, o que fazia com que, sempre que esta se aproximasse, aquele levantava os braços em forma de protecção.
V. A arguida manteve o ofendido dentro de casa desde 2016.
VI. No ... de 2020, a arguida saiu de casa para ir ter com um namorado.
Do pedido de reembolso das despesas hospitalares:
VII. Como consequência direta e necessária da conduta da arguida, o ofendido veio a receber tratamento na ....
VIII. O ofendido recebeu assistência hospitalar prestada pela ora demandante, nas suas instalações e no exercício das suas funções.
O Tribunal recorrido motivou a decisão sobre a matéria de facto como segue:
De acordo com o artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o Código de Processo Penal explicita, nos seus artigos 97.º, n.º 4 e 374.º, n.º 2, que a sentença deve especificar os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: deve o Tribunal lançar-se à procura do "realmente acontecido" conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca, derivados da(s) finalidade (s) do processo.
Conforme decorre do Código de Processo Penal, um dos princípios que rege a audiência de discussão e julgamento, é o princípio da imediação que, como se afere do artigo 355.º, se traduz no facto de a convicção do Tribunal, em audiência, resultar da prova examinada ou que nela se produza. Por seu turno, tal prova está sujeita ao princípio da livre apreciação, segundo o qual aquela é apreciada de acordo com as regras da experiência e da livre convicção da entidade julgadora (cfr. art. 127.º do CPP). Quer isto significar que a prova deve ser apreciada na sua globalidade, não através do livre arbítrio, mas de acordo com as regras comuns da lógica, da experiência e dos conhecimentos científicos e vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Todavia, não podemos esquecer que, pese embora este princípio seja a regra geral, existem algumas excepções, nomeadamente: o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169.° do CPP), a confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344.° do CPP) e a prova pericial (art. 163.° do CPP).
Em suma, a convicção do Tribunal forma-se, não só com base em dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, "linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
Relativamente às declarações do arguido haverá que ter em conta, porém, o princípio da presunção da inocência, o qual se traduz em que até prova em contrário, o arguido deverá ser considerado inocente – cfr. art. 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
Importa, pois, desta forma, proceder a uma fundamentação de facto que permita alcançar o raciocínio seguido pelo Tribunal na sua decisão. Nesta conformidade, o Tribunal formou a sua convicção, sobre a factualidade provada e não provada, no conjunto da prova realizada em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
A arguida exerceu o direito ao silêncio no início da audiência de discussão e julgamento. Produzida a prova, a arguida prestou declarações apenas para explicar a marca no pulso esquerdo do ofendido (resulta de bater com o braço no nariz e na testa), a normalidade das fezes no quarto, os seus horários de trabalho, a ausência da habitação apenas quando esteve internada devido a intervenção cirúrgica, os pedidos de ajuda feitos na ... e na Raríssimas e a decisão de GG abandonar a ... por falta de condições económicas para o pagamento (i.e. o ofendido recebia pensão de invalidez no valor mensal de € 267,00 e a ... cobrava € 150,00 mensais).
Não se olvida que à arguida assiste o direito de prestar declarações em qualquer momento da audiência de discussão e julgamento. Todavia, o facto de o legislador ter consagrado as declarações do arguido como primeiro acto a praticar na audiência não é inocente. Efectivamente, a arguida teve acesso à acusação pública e aos meios de prova que a sustentam, já constituídos nos autos. Perante tais elementos, é dado à arguida o direito de se pronunciar em primeiro lugar (art. 341.º do Código de Processo Penal), sem interferência de qualquer outro interveniente processual. A arguida que presta declarações no início da audiência de discussão e julgamento fá-lo sem qualquer condicionante da prova testemunhal a produzir. A arguida que presta declarações no fim da produção da prova testemunhal pode orientar as suas declarações em função daquilo que foi dito pelas testemunhas. Logo, o tribunal não pode valorar de igual modo as declarações prestadas pela arguida no início e aquelas que somente presta no fim da produção de prova.
KK, LL e MM, vizinhas da arguida e do respectivo agregado familiar (cfr. certidões dos assentos de nascimento de fls. 64 a 66 e 165 a 166), há cerca de vinte anos, respectivamente na fracção C, fracção A do 3.º andar e fracção B do 2.º andar , confirmaram a morada da residência do agregado familiar – ... – a composição do agregado familiar da arguida – a própria e os quatro filhos (i.e. GG, JJ, II e HH) -, a incapacidade visível e notória do ofendido (i.e. não falava, a ausência de autonomia), os gritos incessantes do ofendido, independentemente da hora do dia, o barulho do ofendido a bater nas paredes da habitação, o mau cheiro proveniente da habitação e sentido no prédio (i.e. a urina e a podre).
KK referiu que o ofendido frequentou a ... e saía todos os dias de manhã asseado e sem gritar. Cerca de dois a três anos antes da data dos factos – ........2021 – o ofendido deixou de frequentar a ... e, desde então, permaneceu na habitação da arguida, não sendo observado no exterior. Desde então, as discussões em casa da arguida eram frequentes e “ouviam-se coisas a partir” (sic). Todavia, durante tais discussões, o ofendido não gritava. A testemunha referiu que a filha II pediu ajuda ao condomínio do prédio porque a arguida ter-se-ia ausentado da residência e deixado a jovem sozinha com o ofendido e a irmã mais nova HH.
LL também confirmou que se cruzava com a arguida e o ofendido nas escadas do prédio e GG mostrava-se asseado, calmo e auxiliado pela arguida. A testemunha referiu que, numa ocasião, encontrou a arguida e o GG nas instalações da ... e o ofendido estava calmo e quieto. Todavia, à semelhança da testemunha KK, também LL referiu que os encontros com o ofendido diminuíram nos últimos anos. A testemunha referiu que, há cerca de dois a três anos, entrou na casa de banho da residência da arguida e “estava tudo normal” (sic).
MM confirmou que o ofendido frequentava a ... e era auxiliado diariamente nas escadas do prédio por NN, companheiro da arguida e pai da sua filha HH. A testemunha referiu que o ofendido apresentava sempre asseado. Todavia, quando GG perfez os dezoito anos, deixou de frequentar a ... e, desde então “as coisas pioraram” (sic). A testemunha, vizinha contigua da arguida, ouvia os gritos do ofendido e o ofendido a bater na porta da casa de banho do quarto que ocupava, barulhos que não ocorriam enquanto o ofendido frequentou a .... A testemunha bateu várias vezes na porta da residência da arguida para queixar-se do ruído e “só surgiam as miúdas” (sic) – referindo-se a II e a HH – e, numa ocasião, o filho JJ disse à testemunha “as minhas irmãs fecharam o GG lá ao fundo e vou abrir” (sic). Durante a noite, as irmãs do ofendido gritavam “cala-te GG” (sic).
Tal como a testemunha KK, MM confirmou que o ofendido ficou entregue às duas irmãs – II e HH – após abandonar a .... A testemunha observou a tristeza de II e abordou a jovem sobre o motivo e se precisavam de alimentos, pois a arguida não era vista, nem ouvida na residência há várias semanas. II terá respondido à testemunha que não sabia onde estava a mãe e que esta apenas vinha a casa deixar comida, ausentando-se logo de seguida. II confirmou à testemunha que o ofendido estava aos seus cuidados e que “estava a dar em louca” (sic). Noutra ocasião, II terá dito à testemunha que a arguida tinha desaparecido há mais de um mês e que “ia pegar no irmão e ir embora” (sic). A testemunha referiu que a polícia se deslocou inúmeras vezes à habitação e aconselhou a arguida a solicitar ajuda.
II, inicialmente arrolada pela arguida como testemunha, foi prescindida pela defesa e determinado o seu depoimento pelo tribunal. Todavia, a testemunha optou por exercer a prerrogativa legal de prestar depoimento. De idêntica faculdade gozou o seu companheiro OO.
PP, Presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) do ... à data dos factos, referiu que as filhas da arguida – II e HH – estavam sinalizadas na CPCJ (i.e. por negligência e absentismo escolar), mas que, no âmbito desse processo de promoção e protecção, o nome do ofendido nunca foi mencionado. Por conseguinte, a testemunha desconhecia a existência do ofendido, irmão das jovens abrangidas pelo processo de promoção e protecção. A testemunha referiu que, no âmbito do mencionado processo de promoção e protecção, a arguida nunca consentiu na realização de visitas domiciliárias. A intervenção da testemunha no âmbito destes autos ocorre com um pedido da Polícia de Segurança Pública do ... nesse sentido. A testemunha acompanhou vários agentes da Polícia de Segurança Pública, inclusivamente o Comandante da ... à data dos factos, na deslocação à residência da arguida. A testemunha descreveu aquilo que observou quando acedeu ao interior da habitação (cfr. fotografias de fls. 49 a 53): GG encontrava-se nu, deitado num colchão sem lençóis, com nódoas, num quarto sem luz (natural - estores fechados – e/ou artificial), com um cheiro nauseabundo proveniente da urina e fezes no chão; na casa de banho existia uma trela presa na sanita e vestígios de fezes e sangue no lavatório; no lavatório encontravam-se recipientes com restos de comida ressequida. A testemunha referiu que a arguida justificou a presença da trela presa na sanita da casa de banho utilizada pelo ofendido com a necessidade de prender GG quando este defecava, caso contrário, sujava tudo, e de ter que sair de casa para ir trabalhar. Referiu que a arguida chorou e pediu ajuda. Questionada da razão pela qual não tinha solicitado ajuda previamente, a arguida respondeu que o ofendido tinha frequentado uma instituição, “mas ninguém ajuda” (sic). A testemunha confrontou a arguida com as marcas visíveis no corpo do ofendido, mas não recorda a justificação apresentada pela arguida. A testemunha referiu que solicitou à arguida que vestisse GG, o qual se abanava e mexia insistentemente no órgão genital, e lhe desse o pequeno almoço. Referiu que o jovem fazia ruídos, mas não era agressivo. À aproximação da arguida, o ofendido levantava os braços e colocava os membros superiores em frente do rosto. Posteriormente, o ofendido foi transportado para o ..., para observação clínica (cfr. Informação clínica de fls. 99 a 104).
QQ, agente da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções, à data dos factos, na ..., confirmou a sua deslocação à residência da arguida, dias antes dos factos objecto destes autos. A sua deslocação ficou a dever-se a uma agressão à arguida perpetrada num café da sua área de residência. A testemunha descreveu o estado alterado da arguida, o seu odor a álcool, o auxilio prestado pelo filho JJ na sua identificação, o estado conspurcado do corredor da habitação (visível pela porta de entrada), o forte odor a tabaco proveniente do interior e as queixas dos vizinhos (i.e. os habitantes do prédio mencionaram que “é sempre assim”, “todos os dias a mesma coisa”, “chega a casa neste estado”; “ela sai à noite e deixa o filho deficiente amarrado na casa de banho”, “o filho não sai de casa há cinco anos”. Na sequência dos relatos feitos pelos vizinhos da arguida, a testemunha elaborou a informação constante de fls. 56-57, a qual deu origem à intervenção policial do dia ........2024.
EE, RR, FF e SS, agentes da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções, à data dos factos, na ..., o primeiro autuante, o terceiro Comandante da Esquadra e o último autor do croqui e reportagem fotográfica de fls. 47 a 54, confirmaram as circunstâncias de tempo e lugar da sua intervenção e deslocação à residência da arguida e do ofendido e descreveram as pessoas presentes, o estado da habitação e o comportamento da arguida e do ofendido GG. As testemunhas, confrontadas com o auto de notícia de fls. 41 a 44, confirmaram o seu teor. Dos depoimentos dos agentes da Polícia de Segurança Pública, conjugados com o auto de notícia de fls. 41 a 44, o auto de apreensão de fls. 45 (i.e. trela e atacador de ténis), o croqui da residência de fls. 48 e a reportagem fotográfica de fls. 49 a 53, resulta que:
- As testemunhas entraram na habitação da arguida e seu agregado familiar, no dia ........2021, pelas 10 horas, com o consentimento da arguida;
- A habitação estava desarrumada;
- Num dos quartos, encontrava-se GG, nu, a dormir num colchão colocado no chão;
- No centro do quarto ocupado pelo ofendido encontrava-se um colchão com restos de dejetos humanos e dois cobertores;
- No chão do referido quarto haviam dejetos humanos espalhados pelo soalho;
- O quarto não tinha luz artificial;
- No fundo do quarto encontrava-se um colchão dobrado, em muito mau estado de conservação;
- Os estores estavam fechados não permitindo a entrada de luz natural;
- O cheiro do quarto era nauseabundo e intolerável;
- Na base da sanita da casa de banho acessível pelo quarto (i.e. suite) encontrava-se enrolada uma trela (própria para cães);
- O autoclismo estava danificado;
- Na casa de banho havia dejetos humanos espalhados pela sanita e pelo chão;
- Em cima do lavatório encontravam-se recipientes de plástico com restos de comida já com bolor;
- No chão da casa de banho encontrava-se um cobertor, de cor vermelha, com restos de dejetos;
- GG masturbava-se esporadicamente durante a presença dos órgãos de polícia criminal; GG apresentava sinais involuntários de autodefesa (i.e. colocava as mãos sobre a cabeça aquando da aproximação de alguém);
- GG apresentava vermelhidão no pulso da mão esquerda e no tornozelo direito;
- A arguida referiu que mantém os estores e as janelas fechadas durante o dia com receio que GG se atirasse da janela;
- II e HH, à data com 17 e 14 anos de idade, não mostraram qualquer sinal de nervosismo ou inquietude na presença dos elementos policiais. Adoptaram um comportamento de alheamento completo à acção que se estava a desenrolar à sua frente, nem mesmo quando o irmão, todo nu, se masturbava na cozinha à frente de toda a família e demais presentes, as jovens se mostraram incomodadas;
- A arguida demonstrou maior preocupação com as consequências criminais do que com a saúde de GG;
- A arguida dizia para GG “Já me estás a mostrar a picha outra vez”, “sentate! Foda-se!”, “Se não o prender no quarto como posso fazer a minha vida?”.
As testemunhas prestaram depoimentos circunstanciados no tempo e no espaço, descreveram os factos que tinham conhecimento de forma calma, objectiva e sem denotar qualquer intuito de efabular os acontecimentos. As testemunhas mostraram-se afectadas na descrição dos factos, muitas vezes com olhos lacrimejantes, tendo referido que, em vários anos de profissão, nunca tinham observado cenário semelhante. Por conseguinte, mereceram credibilidade.
TT, amigo da arguida e respectivo agregado familiar há cerca de quatro anos, afirmou ter residido na habitação durante um a dois meses e há cerca de quatro ou cinco anos. Não obstante a testemunha afirmar que a arguida confecionava as refeições e que todos comiam na cozinha e que dormia no quarto do JJ, filho da arguida, revelou não saber quem era GG (talvez o irmão? – como referiu) e nunca ter entrado no quarto deste.
UU, amiga das filhas da arguida desde os seis anos de idade, afirmou que frequentava a casa da arguida diariamente e ali pernoitava com frequência. Referiu que GG era o irmão das suas amigas, o qual era deficiente – i.e. gritava muito, rasgava as roupas e as fraldas, tinha muita força e na cozinha partia tudo. A testemunha afirmou que a arguida saía para trabalhar e que II – e a testemunha – cuidavam de GG. Afirmou que “não fazia sentido fechar a porta do quarto dele porque era pessoa com deficiência” (sic). A testemunha referiu que a habitação era limpa de manhã, com a música “aos gritos” (sic) Por fim, a testemunha referiu que, não obstante trabalhar, a arguida todos os dias ia a casa e limpava a casa de manhã. Confrontada com as imagens de fls. 47 a 53, a testemunha afirmou que “não reconhece a casa assim” (sic) e ficou com os olhos lacrimejantes.
VV, conheceu a arguida porque é amigo dos seus filhos. A testemunha referiu que frequentava a habitação, onde tomava refeições na cozinha na companhia de todos os elementos da família, e que a casa era “limpinha” (sic) e o quarto do GG “sempre limpinho, por acaso” (sic), “ela tinha as coisas dele arrumadinhas” (sic).
As testemunhas arroladas pela defesa apresentaram um discurso tendente a demonstrar que o estado da habitação no dia ........2021 foi um acto isolado.
Os depoimentos denotam incongruências. Não só revelaram pouco ou nada conhecer GG, como são contrários às regras da experiência e demais prova produzida nos autos. UU assume que GG era deixado aos cuidados da irmã II, à data com 17 anos de idade (cfr. assento de nascimento de fls. 65). Não obstante a testemunha referir que GG “tinha muita força e partia tudo na cozinha” (sic), afirma que “não fazia sentido fechar a porta do quarto a uma pessoa deficiente” (sic). Ora, as regras da experiência e da lógica demandam solução diversa. Duas jovens a tomar conta de um jovem deficiente, com muita força e com tendência a comportamentos destrutivos optariam por contê-lo, não só para segurança dele, mas também para sua própria segurança. Portanto, a testemunha quis fazer passar uma imagem de cuidado e normalidade nos cuidados a prestar a GG que não tem correspondência com a realidade. Acresce que, o depoimento da testemunha mostra-se marcado pela lealdade e gratidão á arguida por tê-la “acolhido” como se sua filha fosse, vivendo a testemunha com uma avó e denotando falta de investimento da figura materna biológica. “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente : a tortura “ (J.M Asencio Melado, Presunción de inocência y prueba indiciária “ , 1992 - autores citados por Euclides Dâmaso Simões , in Prova Indiciária , Revista Julgar , n.º 2 , 2007 , pág. 205).
Para além das provas directas, existem as denominadas provas indirectas ou indiciárias (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II Volume, pág. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. A prova indirecta (ou indiciária) não é um "minus" relativamente à prova directa. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto “probando” do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis. A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação. A utilização deste tipo de provas (indirectas) exige: a) em primeiro lugar e em regra, uma pluralidade de elementos indiciários; b) em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; c) em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios, isto é, importa que tais indícios sejam inequívocos. “E sobre a prova indiciária entende-se, ainda, que aquela é suficiente para determinar a participação no facto punível se (requisito de ordem formal) da sentença constarem os factos–base e se mostrarem provados , os quais vão servir de base à dedução ou inferência, se se explicitar o raciocínio através do qual se chegou à verificação do facto punível e da sua participação no facto de que se é acusado, essa explicitação é imperativa para se controlar a racionalidade da inferência em sede de recurso. Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova directa, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência” (vg. Acórdão do STJ, de 12.09.2007, proc. 07P4588, in www.dgsi.pt).
Em suma, para que a prova indirecta, circunstancial ou indiciária possa ser valorada autonomamente deve exigir-se: uma pluralidade e factos-base ou indícios; que tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com o mesmo; a racionalidade da inferência e expressão, na motivação da decisão, de como se chegou à inferência (neste sentido, Acórdão do TRC, de 18-08-2004, proc. 1937/04, in www.dgsi.pt).
As testemunhas podem e, em regra, devem, depor sobre os factos criminosos que presenciaram e, nomeadamente, sobre o que então ouviram dizer ao arguido, mesmo que ele não queira falar na audiência de discussão e julgamento. Este não é verdadeiramente um depoimento indirecto, antes se trata de prova directa do facto criminoso (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit. Pág. 345). Termos em que, nada obsta à valoração, quer em sede de inquérito, quer em audiência de julgamento, do depoimento da referida testemunha para sustentação da decisão a proferir. Porém, situação diversa é fundamentar uma qualquer decisão unicamente nesse depoimento, sem o mesmo estar alicerçado por outros elementos indiciários.
São vários os indícios que convergem para a prova dos factos narrados na acusação pública. O estado em que se encontrava GG no dia ........2021, pelas 10 horas, foi atestado pelas testemunhas nos termos referidos supra e pela prova documental supra referida. No âmbito da intervenção da Polícia de Segurança Pública, a arguida disse “Se não o prender no quarto como posso fazer a minha vida?” e justificou a presença da trela na casa de banho utilizada pelo ofendido para o prender enquanto defecava e para a arguida poder sair de casa. As palavras ditas pela arguida aos agentes da Polícia de Segurança Pública não podem deixar de ser valoradas. “Não existem conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir os preceitos legais, quer pela necessidade de “documentar” a prática do ilícito e suas sequelas, designadamente providenciar os actos cautelares que se imponham (v. g. artigos 243º, 248 a 250º do C.P.P.), quer quando actuam por imposição legal ao detectarem a prática de um ilícito e o suspeito decide, por sua iniciativa, de forma voluntária e sem actuação criticável das forças policiais, fazer afirmações não sugeridas, provocadas ou imaginadas por aqueles OPC, estando estes a cumprir preceitos legais que lhes impõem uma actuação; As forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser constituídos arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, desde que não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição. E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova. Face ao ordenamento português, o simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido. Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.
Por isso a proibição de “conversas informais” só deve abranger afirmações posteriores à constituição de arguido e nunca antes da sua constituição pois aí nem existem propriamente “conversas informais”, mas sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso. E este é, no ordenamento processual penal português, uma testemunha. Assim, a questão centra-se, no caso de situações de fronteira, na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e “arguido”. Este goza de direitos, aquele é testemunha. O arguido goza do direito ao silêncio, o suspeito não. Logo a constituição formal de arguido constitui a “linha de fronteira” da admissibilidade da reprodução em audiência de julgamento das ditas “conversas informais”, sendo que a partir daquele momento as declarações só têm valor de prova quando prestadas em actos mencionados na lei, considerando-se sem carácter probatório todas as demais provas que foram recolhidas informalmente, em conversas ou em actos sem previsão ou legitimação legal. As afirmações produzidas nesta fase preliminar por qualquer pessoa abordada no decurso de operação policial, seja ela, suspeito ou potencial testemunha do crime, não traduzem “declarações” strictu sensu para efeitos processuais, já que não existe, ainda, verdadeiramente um processo penal a correr os seus termos. São diligências de aquisição e conservação de prova, lícitas, dada a sua conformidade com o comando legal prescrito no art. 249º do CPP, não sendo, por isso, proibido o seu relato em audiência” (Ac. Do TRL, de 22.06.2017, proc. 320/14.7GCMTJ.L1-9, relator: Desembargadora Filipa Costa Lourenço; no mesmo sentido, Ac. Do TRL, de 19.11.2024, proc, 81/20.0GDMTJ.L2-5, relator: João Grilo Amaral, disponíveis em www.dgsi.pt).
A admissão de tais factos pela arguida converge com os depoimentos das suas vizinhas KK e MM, as quais afirmaram que GG ficava trancado na casa de banho do seu quarto. As marcas visíveis no pulso e tornozelo do ofendido e o cobertor encontrado na casa de banho também são compatíveis com o encarceramento na casa de banho e aposição da trela que estava enrolada na sanita. Os recipientes com comida ressequida e com bolor na casa de banho demonstram igualmente que o ofendido vivia preso no quarto e casa de banho, não sendo o estado de tais divisões inusitado e apenas reportado ao dia ........2021. A própria arguida declarou, em sede de audiência de discussão e julgamento, que “para mim era normal o quarto com cócó. Criei-o vinte e dois anos” (sic). E não se diga que a arguida actuou como provado porque não recebeu a ajuda social solicitada e/ou precisava de trabalhar e ausentar-se da residência.
Não se olvida a dificuldade de assegurar os cuidados de uma pessoa com 97% de incapacidade. Todavia, a testemunha WW que acompanhava II e HH no âmbito de processo de promoção e protecção nunca tinha ouvido falar da existência de GG! Portanto, numa situação em que a arguida já estava a receber ajuda/ acompanhamento do Estado pelas filhas menores, a arguida não solicitou ajuda e/ou aconselhamento para GG, escondendo a sua existência. Acresce que, no âmbito de tal processo a arguida nunca autorizou as visitas domiciliárias da CPCJ. Porquê? De acordo com o adagio popular “Quem não deve não teme”. A recusa da arguida na entrada da CPCJ só leva o tribunal a concluir que a arguida tinha algo a ocultar e, atento o estado em que GG e o seu quarto foram encontrados, o motivo da recusa seria a vítima e o estado em que esta vivia. Portanto, não obstante a arguida declarar em audiência de discussão e julgamento que solicitou ajuda à ... e à Raríssimas, facto que não conseguiu concretizar junto da DGRSP (conforme relatório social junto aos autos), a verdade é que não provou essa solicitação.
Mais, a arguida declarou que a ... solicitou o pagamento de € 150,00 para continuar a integrar o GG na instituição após este completar os dezoito anos de idade. Integração que a arguida recusou porque a pensão do GG (no valor de € 263,00, conforme referiu) não era suficiente para fazer o pagamento e pagar as fraldas e alimentação do GG. Ora, a arguida afinal não queria ajuda para a permanência diária do GG e prestação de cuidados inerentes. A arguida queria somente garantir que o GG fosse sustentado. Ora, se a arguida precisava de trabalhar, a opção lógica seria pagar à ... a quantia de € 150,00 e garantir a permanência diurna do jovem naquela instituição. Da pensão auferida pelo GG sobrariam cerca de € 113,00 para as despesas com higiene e alimentação. A arguida, como sua mãe, deveria assegurar o remanescente. Por outro lado, o facto de a arguida trabalhar não justifica o estado em que se encontrava o quarto e a casa de banho ocupados pelo ofendido, bem como o colchão e cobertores por este usados. O estado de falta de higiene prolongada (com os dejectos ressequidos, as manchas incrustadas no colchão e cobertores e o bolor nos recipientes da comida) são compatíveis com o abandono dos cuidados básicos de saúde e de higiene do ofendido por tempo prolongado. Portanto, a falta de cuidados detectada não se circunscreve a uma ausência da arguida devido a um dia ou alguns dias de trabalho, mas sim a um período mais prolongado.
Estamos em crer que, à semelhança do que foi afirmado pelas testemunhas vizinhas da arguida e do ofendido, GG teve os cuidados de higiene e saúde física e mental adequados enquanto frequentou a ... e que, após sair da instituição, permaneceu trancado no quarto e casa de banho, não mais vindo à rua, começaram os gritos incessantes e os murros nas paredes e portas. O ofendido abandonou a ... quando fez dezoito anos. À data dos factos, GG tinha vinte e um anos de idade. Portanto, há cerca de três anos que o ofendido não saia de casa, vivia trancado no quarto que ocupava, sem luz artificial e sem luz natural, já que era opção da arguida não abrir os estores e a janela por alegadas razões de segurança do ofendido.
Resulta da prova testemunhal produzida que, quando observado no exterior e, bem assim, na presença da Polícia de Segurança Pública, GG mostrava-se calmo e não gritava. Mesmo quando ocorriam discussões na residência da arguida, com quebra de objectos, não se ouviam gritos do ofendido, o que seria expectável. Portanto, ainda que GG produzisse ruídos como forma de comunicação, o ofendido não gritava sem motivo aparente.
Da informação clínica do ofendido, constante de fls. 99 a 104, consta, além do mais, que GG apresentava-se “pálido (compatível com não exposição solar prolongada), “sem massa muscular pronunciada”, “calmo na maioria do tempo, mas admitem-se explosões comportamentais flutuantes e imprevisíveis”, “Vit D 26 (nível insuficiente) – compatível com falta de exposição solar”, “passa o dia a deambular pelo serviço”. Resulta de tais elementos clínicos que o ofendido demonstra falta de exposição solar e, em regra, tem temperamento calmo e não grita. A incapacidade do ofendido GG resulta do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso de fls. 54 e o óbito do respectivo assento de fls. 271.
XX, professora de ensino especial na ..., confirmou que a vítima foi seu aluno durante três anos. Sofria de Síndrome Moebius com paralisia facial, défice cognitivo acentuado e problemas motores. Todavia, “com o estímulo certo, a vítima começou a aceitar a presença dos colegas da ... e as dinâmicas da instituição, ainda que fosse um jovem alheado” (sic). A testemunha confirmou a saída da vítima da ... quando perfez dezoito anos (ano lectivo ...1.../2018). Encaminhado para a valência da ... adequada (...), a qual implica custos, a arguida recusou essa integração. A testemunha referiu que o “GG era uma criança que sabiam se estava bem ou não” (sic) e, quanto ao comportamento do GG, a testemunha referiu que a vítima “se auto agredia, vomitava quando não queria fazer as coisas, espalhava fezes e/ou ingeria-as”. Pela testemunha não foi mencionado gritos como forma de comunicação e/ou expressão.
Portanto, o depoimento da testemunha arrolada pela arguida na sequência do despacho de alteração não substancial de factos, não infirmou a prova já produzida nos autos.
YY, sobrinho da arguida, afirmou residir com esta e seus filhos na habitação do … e depois, durante cerca de três meses, no .... A testemunha referiu que, não obstante a habitação sita no ... ser uma vivenda com espaço exterior, o GG “ficava só em casa e não vinha ao exterior” (sic). A testemunha referiu que nunca saiu com a arguida e o GG e desconhece se a arguida e o ofendido saiam juntos. Portanto, também o depoimento desta testemunha arrolada pela arguida na sequência do despacho de alteração não substancial de factos, não infirmou a prova já produzida nos autos. Aliás, corroborou que a arguida fechava o ofendido em casa e não trazia o GG ao exterior.
Posto isto, conjugada a prova testemunhal produzida, com as declarações da arguida e a prova documental junta aos autos, resultam provados os factos tal como consignados.
Os factos subjectivos provados, porque insusceptíveis de prova direta, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objectivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade.
A factualidade provada respeitante à situação pessoal e sócio-económica da arguida alicerçou-se na valorização do relatório social com a ref.ª 42975775 do PE.
A ausência de antecedentes criminais da arguida resulta da análise do teor do certificado de registo criminal, junto na ref.ª 42846789 do PE.
O facto provado em 42) resulta do teor da factura junta aos autos na ref.ª 26064020 do PE.
Os factos não provados resultam de não ter sido produzida prova concludente quanto aos mesmos. No que concerne ao pedido de reembolso das despesas hospitalares, a Demandante não arrolou testemunhas que provem os cuidados/assistência médica prestada, nem que descrevam os serviços de saúde prestados.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, a recorrente invoca:
- a nulidade de todo o processado em consequência da nulidade do auto de notícia;
- a nulidade da sentença (art. 379º, nº 1, alínea b), do Cód. Proc. Penal)
- o vício de erro notório na apreciação da prova, com valoração de prova indirecta e violação do princípio in dubio pro reo;
- errada integração jurídica;
- errada escolha e medida da pena.
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Da nulidade subsequente à nulidade do auto de notícia
Alega a arguida/recorrente que o auto de notícia que serviu de base à instauração do processo padece de uma irregularidade formal insanável, que compromete a sua força probatória e acarreta a respectiva nulidade. E diz que a referida irregularidade/nulidade resulta da circunstância de o "autuante" e o "signatário" serem agentes distintos da PSP.
Sem sequer nos debruçarmos sobre o que será uma irregularidade formal insanável, que compromete a força probatória e acarreta a respectiva nulidade, diremos que o auto de notícia em questão foi elaborado por autoridade competente, contém os elementos essenciais exigidos pelo art. 243º do Cód. Proc. Penal, e não foi posta em causa a veracidade do seu conteúdo, aliás confirmado em audiência de julgamento pelas testemunhas EE, RR, FF e SS, agentes da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções, à data dos factos, na ..., o primeiro autuante, o terceiro Comandante da Esquadra e o último autor do croqui e reportagem fotográfica de fls. 47 a 54.
E compulsado o auto de notícia verifica-se que o agente que nele figura como autuante (EE) é efectivamente quem assina o auto (cfr. fls. 4 do auto), sendo que a assinatura que consta a fls. 1 do auto (de FF, subcomissário) identifica o autor do despacho que ordena a remessa do auto de notícia ao DIAP competente.
Ou seja, o auto de notícia foi elaborado pelo Sr. agente da PSP EE e por ele assinado. Posteriormente foi revisto e ordenada a sua remessa ao DIAP pelo Sr. subcomissário FF.
Pelo que a alegação da recorrente não faz qualquer sentido e tem que improceder.
Da nulidade da sentença (art. 379º, nº 1, alínea b), do Cód. Proc. Penal)
Afirma a recorrente que no decurso da audiência o Tribunal recorrido comunicou uma “alteração não substancial de factos”, que é uma verdadeira “alteração substancial de factos” porque dificulta o exercício da defesa.
Alega a recorrente que a alteração, que encurta o período imputado em dois anos, apesar de lhe parecer favorável, implica uma reconfiguração do quadro factual que a defesa preparou para contestar, já que a preparação da defesa para um período de conduta de cinco anos é substancialmente diferente da preparação para um período de três anos. Mais alega que a adição do facto, que introduz um novo elemento factual de delegação de cuidados às filhas menores, assume grande relevância na medida em que altera o modus operandi imputado.
Conclui que foi violado o princípio do contraditório e as garantias de defesa, com violação do disposto no art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio do acusatório.
A recorrente invoca, assim, a nulidade da sentença recorrida nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 379º do Cód. Proc. Penal, que preceitua que é nula a sentença “que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º”.
Compulsados os autos verifica-se que a alteração comunicada se consubstanciou em:
- alterar o que constava da acusação, que imputava à arguida a conduta de manter o ofendido dentro da residência “desde data não concretamente apurada do ano de 2016” para “desde data não concretamente apurada do ano de 2018 e até ... de ... de 2021”;
- aditar ao que constava da acusação, que imputava à arguida o facto de deixar o ofendido sozinho em casa, “ou na companhia das irmãs II e HH”;
- a arguida requereu, então, prazo para apresentação de defesa, ao abrigo do estatuído no art. 358º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, que lhe foi concedido, tendo sido oficiado como requerido e ainda ouvidas duas testemunhas arroladas pela arguida.
Como já dissemos, nos termos do art. 379º, nº 1, alínea b), do Cód. Proc. Penal, é nula a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação (ou na pronúncia se a houver) fora dos casos e das condições previstos nos arts. 358º e 359º.
Dispõe o nº 1 do art. 358º do Cód. Proc. Penal que “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”; acrescenta o nº 2 que “ressalva-se do disposto no número anterior o caso da alteração ter derivado de factos alegados pela defesa”.
O art. 359º do Cód. Proc. Penal preceitua que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, excepto se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
Ora a alteração substancial dos factos está definida como sendo “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” (art. 1º f) do Cód. Proc. Penal), pelo que alteração não substancial, para efeitos do citado art. 358º será toda aquela alteração dos factos descritos (na acusação ou na pronúncia), que não implique a imputação ao arguido de um crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, e que tenha relevo para a decisão da causa.
Claramente, ao contrário do que alega a recorrente, não ocorreu qualquer alteração substancial de factos, já que não lhe foi imputado crime diverso, nem houve agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
E houve uma alteração não substancial, que carecesse de ser comunicada?
Obviamente, se é pacífico que uma alteração substancial de factos (que é aquela, de acordo com o disposto na alínea f) do art. 1º do Cód. Proc. Penal, que tem como efeito uma agravação da posição do arguido no processo, quer pela integração num crime diverso daquele ou daqueles que lhe foram imputados, quer pela elevação dos limites máximos das sanções abstractamente aplicáveis) tem que seguir a tramitação imposta pelo art. 359º do Código citado, já no que concerne à alteração não substancial temos que considerar que não é qualquer alteração que exige que se siga a tramitação prevista no art. 358º do mesmo Código.
Com efeito, ainda que aos factos da acusação (ou da pronúncia) se aditem outros, ou se excluam ou substituam alguns deles, para haver uma alteração não substancial terá que se considerar que essa alteração é jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa.
Por exemplo, não será relevante a alteração que consista na exclusão, pura e simples, de factos que configuram uma circunstância qualificativa ou agravativa; e também não é alteração de factos a descrição dos mesmos factos da acusação ou da pronúncia, mas com uma formulação distinta, ou a explicitação ou concretização de factos já narrados sinteticamente na acusação ou na pronúncia, desde que não sejam relevantes para a tipificação ou para a verificação de qualquer agravante qualificativa.
Pelo contrário, a alteração será jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa quando a alteração dos factos puder influir na determinação da medida da pena (ainda que o crime se mantenha o mesmo).
No caso concreto, a alteração ao período temporal referente à conduta da arguida, restringindo esse período face ao que constava da acusação (que imputava à arguida a conduta de manter o ofendido dentro da residência “desde data não concretamente apurada do ano de 2016” para “desde data não concretamente apurada do ano de 2018 e até ... de ... de 2021”), beneficia nitidamente a recorrente (não obstante o que ela afirma), pelo que não configura uma alteração jurídico penalmente relevante que tivesse que ser comunicada.
Também no que se refere ao aditamento, que acrescenta à imputada conduta da arguida (de deixar o ofendido sozinho em casa), que o deixava sozinho em casa “ou na companhia das irmãs II e HH”, se pode afirmar que esse aditamento igualmente beneficia a recorrente (também não obstante o que ela afirma), mitigando um pouco a gravidade da conduta (e só não mitigando mais porque as irmãs eram menores à data), pelo que também esta não configura uma alteração jurídico penalmente relevante que tivesse que ser comunicada.
Apesar do que se disse, entendeu o Tribunal recorrido comunicar regularmente as alterações, no cumprimento do disposto no art. 358º do Cód. Proc. Penal, tendo sido concedido prazo à arguida para o contraditório, não existindo a nulidade invocada, nem tendo sido violado o disposto no nº 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
Do vício de erro notório na apreciação da prova, com valoração de prova indirecta e violação do princípio in dubio pro reo
Alega a recorrente a existência do vício de erro notório na apreciação da prova, bem como violação do princípio in dubio pro reo, já que inexiste prova inequívoca da autoria dolosa dos factos e do elemento subjetivo do tipo legal de crime.
Refere que a prova testemunhal que levou à condenação é predominantemente indirecta, baseada em observações de consequências ou circunstâncias, e não em observação de actos diretos de violência ou negligência. E diz que a ausência de prova directa dos actos essenciais do crime, aliada à possibilidade de outras interpretações dos indícios, viola o princípio in dubio pro reo e não permite uma condenação segura.
Conclui que “devem ser eliminados dos factos provados os pontos 8, 9, 13, 14, ou delimitados no tempo, por falta de prova bastante”.
O vício de erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.
A recorrente afirma que as testemunhas não a presenciaram a prender o ofendido, a impedi-lo de sair, ou a negligenciar a sua higiene de forma contínua ao longo dos anos. Diz que a prova é indiciária e que a jurisprudência exige que a prova indireta seja "inequívoca" e que "afaste, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso".
Contesta que tenha sido dado como provado, com base apenas em indícios, que:
8. A arguida colocava o ofendido dentro da casa de banho, onde o prendia pelo tornozelo e pelo pulso com uma trela própria para cães e com atacadores de ténis que agarrava à base da sanita, impedindo-o de sair do local.
9. Em consequência de tais actos, o ofendido ficava com marcas vermelhas no pulso esquerdo e no tornozelo direito.
13. Em datas não concretamente apuradas, a arguida deixou o ofendido sozinho em casa ou na companhia das irmãs II e HH, por vezes de dia e de noite, o que o fazia gritar e chorar de forma incessante, causando-lhe sofrimento.
14. Em data não concretamente apurada, mas situada entre 2018 e ........2021, a arguida saiu de casa deixando o ofendido ao cuidado das irmãs mais novas, ambas menores, durante mais de dois meses.
É sabido que a prova pode ser directa ou indiciária. Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos – arts. 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331). Pelo que a prova indirecta é legal e legítima.
No caso concreto, como resulta da motivação “São vários os indícios que convergem para a prova dos factos narrados na acusação pública. O estado em que se encontrava GG no dia ........2021, pelas 10 horas, foi atestado pelas testemunhas nos termos referidos supra e pela prova documental supra referida”. Refere-se aos depoimentos dos agentes da PSP e da testemunha WW, bem como às fotografias anexas ao auto de notícia – o que é demonstrativo dos factos dados como provados em 8. e 9.
E que a situação em que se encontrava o ofendido naquele dia era recorrente – isto é, não era uma situação isolada – resulta dos depoimentos das vizinhas identificadas na motivação, que não viam o ofendido ir à rua mas ouviam os seus gritos e sentiam o mau cheiro que vinha da habitação.
Consta ainda da motivação do Tribunal recorrido que “Não se olvida a dificuldade de assegurar os cuidados de uma pessoa com 97% de incapacidade. Todavia, a testemunha WW que acompanhava II e HH no âmbito de processo de promoção e protecção nunca tinha ouvido falar da existência de GG! Portanto, numa situação em que a arguida já estava a receber ajuda/ acompanhamento do Estado pelas filhas menores, a arguida não solicitou ajuda e/ou aconselhamento para GG, escondendo a sua existência. Acresce que, no âmbito de tal processo a arguida nunca autorizou as visitas domiciliárias da CPCJ. (…) A recusa da arguida na entrada da CPCJ só leva o tribunal a concluir que a arguida tinha algo a ocultar e, atento o estado em que GG e o seu quarto foram encontrados, o motivo da recusa seria a vítima e o estado em que esta vivia. (…) Por outro lado, o facto de a arguida trabalhar não justifica o estado em que se encontrava o quarto e a casa de banho ocupados pelo ofendido, bem como o colchão e cobertores por este usados. O estado de falta de higiene prolongada (com os dejectos ressequidos, as manchas incrustadas no colchão e cobertores e o bolor nos recipientes da comida) são compatíveis com o abandono dos cuidados básicos de saúde e de higiene do ofendido por tempo prolongado. Portanto, a falta de cuidados detectada não se circunscreve a uma ausência da arguida devido a um dia ou alguns dias de trabalho, mas sim a um período mais prolongado. (…) Estamos em crer que, à semelhança do que foi afirmado pelas testemunhas vizinhas da arguida e do ofendido, GG teve os cuidados de higiene e saúde física e mental adequados enquanto frequentou a ... e que, após sair da instituição, permaneceu trancado no quarto e casa de banho, não mais vindo à rua, começaram os gritos incessantes e os murros nas paredes e portas. O ofendido abandonou a ... quando fez dezoito anos. À data dos factos, GG tinha vinte e um anos de idade. Portanto, há cerca de três anos que o ofendido não saia de casa, vivia trancado no quarto que ocupava, sem luz artificial e sem luz natural, já que era opção da arguida não abrir os estores e a janela por alegadas razões de segurança do ofendido.”
Diga-se, também, que resulta da motivação que testemunhas confirmaram que o ofendido ficava entregue às irmãs por largos períodos, como resulta, nomeadamente, do seguinte excerto da motivação “Tal como a testemunha KK, MM confirmou que o ofendido ficou entregue às duas irmãs – II e HH – após abandonar a ...”.
A prova existente nos autos é uma prova directa, e indirecta apenas no que se refere ao período anterior ao dia ........2021, mas está perfeitamente motivada na conjugação dos vários indícios entre si e na sua análise de acordo com as regras da experiência (cfr. o disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal).
Pelo que não se verifica o vício de erro notório na apreciação da prova.
Acrescenta-se que a análise feita pelo Tribunal não viola o princípio in dubio pro reo.
O nº 2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da presunção de inocência, de que o princípio in dubio pro reo constitui uma dimensão.
Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, p. 519) que “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Com efeito, este princípio (do in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Assim, o princípio em questão só se aplica perante uma situação de non liquet, uma dúvida insanável.
No caso, o Tribunal não ficou com qualquer dúvida (como se infere da motivação da decisão de facto) e também neste Tribunal de recurso não se vê que, de acordo com a normalidade da vida, devesse ter surgido alguma dúvida.
E, não se evidenciando a dúvida, é impossível concluir pela violação daquele princípio com protecção constitucional.
Da integração jurídica
Alega a recorrente que importa contextualizar os factos provados à luz de grave negligência decorrente de desespero, sobrecarga, ausência de recursos e apoio, não existindo dolo de maltratar. Afirma ainda que devido a tais factores actuou em estado de necessidade, sendo inexigível outro comportamento.
Relativamente ao elemento objectivo, discorreu a sentença recorrida que:
«Ora, no caso dos autos, não existem dúvidas de que os factos provados materializam a prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152°, n.ºs 1, alíneas d) e e) 2 alínea a), do Código Penal, pois a arguida através das agressões físicas e maus tratos, por acção e omissão, provadas em 6) a 19) infligiu de forma activa e omissiva no ofendido, seu filho com uma incapacidade de 97%, maus tratos físicos e psíquicos, claramente ofensivos da dignidade do ofendido, atenta a sua natureza objectiva, no interior da habitação do mesmo. O estado em que GG foi encontrado, quer a nível físico, quer habitacional, traduz uma omissão de cuidados atentatória da sua dignidade como pessoa humana. Ninguém pode viver sem luz, trancado num quatro e/ou casa de banho, despido, sem roupa para se vestir e/ou cobrir, rodeado urina e fezes, no chão, nas paredes e no colchão e cobertores que utiliza. Ninguém pode ser acorrentado (ainda que para defecar) e permanecer nesse estado horas indefinidas. Tanto mais grave se essa pessoa é incapaz de se defender e de se exprimir, como era o caso do ofendido que, devido à sua incapacidade de 97%, ficou à mercê da arguida e do seu tratamento cruel.
Ora, no caso dos autos, não existem dúvidas de que os factos que se deram como provados materializam a prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e) e 2 alínea a) do Código Penal, pois a arguida descurava o filho incapaz, causando-lhe dor e marcas físicas e psíquicas, ao não providenciar pela sua higiene, conforto e estabilidade psico-emocional.
Ora, a conduta da arguida é, claramente, diminuidora da própria dignidade, auto-estima, tranquilidade e saúde física e psíquica do ofendido. A arguida, aproveitando a circunstância de ser mãe do ofendido, beneficiando do ascendente psíquico e físico que sobre o mesmo tinha e a da sua vulnerabilidade, decorrente da sua incapacidade de 97%, perpetrou os actos imputados, actos de agressão física e psíquica, colocando o jovem numa posição de insegurança e humilhação inaceitáveis.»
A recorrente não colocou em causa que os factos provados integram o elemento objectivo do crime de violência doméstica, limitando-se a afirmar que não agiu com dolo e que agiu a coberto de estado de necessidade.
Porém, ficou provado que:
22. Bem sabia, ainda, a arguida que, agindo como descrito, atingia a integridade física e psicológica, magoava e causava lesões e dores ao ofendido, desde 2018 e até aos seus 21 anos de idade, o que quis e conseguiu.
23. Ao actuar do modo acima descrito, a arguida quis maltratar psicológica e corporalmente o ofendido, ofendendo-o na sua dignidade pessoal, humilhando-o, amedrontando-o e perturbando-o no seu sentimento de segurança, o que decidiu fazer no interior do domicílio comum e conseguiu, muito embora soubesse que, na qualidade de mãe do ofendido, sobre ela impendia um dever acrescido desrespeito para com este, bem como de cuidar do seu bem-estar físico e psíquico, até porque estava ciente da sua incapacidade de se cuidar a si próprio.
24. A arguida, ao actuar da forma descrita, agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Destes factos provados resulta claramente que a arguida/recorrente em tudo agiu com dolo e com dolo directo (cfr. o disposto no nº 1 do art. 14º do Cód. Penal). Não age com negligência quem tranca o filho na casa de banho, quem o amarra, quem o deixa sem roupa e quem o priva de luz.
Quanto à verificação de um estado de necessidade é o mesmo inexistente.
Nos termos do art. 35º do Cód. Penal:
“1 - Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2 - Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.”
Não se verificam os pressupostos do normativo, mesmo aceitando o que consta do Relatório Social – e que foi dado como provado (ainda que só com base nas suas declarações) – “Aquando dos factos a arguida estaria formalmente desempregada, tendo referido que realizava trabalhos sazonais, no ramo da agricultura, e limpezas em casa de particulares, sem vínculo contratual. (…) A situação económica à data dos factos foi considerada pela arguida como instável uma vez que a subsistência da família provinha apenas do seu salário. A arguida referiu que dos trabalhos de agricultura e de empregada de limpeza que realizava, obtinha o valor aproximado ao salário mínimo nacional, e o filho, GG, recebia a pensão social de inclusão no valor mensal 273 euros. (…) A arguida relatou que na altura dos factos grande parte do seu tempo era despendido na prestação de cuidados ao filho GG, o que descreveu como extremamente desgastante, tanto do ponto de vista físico quanto emocional, devido à exigência constante de atenção e vigilância. A arguida afirmou ter sentido dificuldades em lidar com a agressividade do ofendido, reconhecendo que esse comportamento era uma consequência da doença que o mesmo apresentava.”
Para se verificar um estado de necessidade (desculpante) é necessário que a actuação do agente se destine a afastar um perigo.
Tal perigo não existe.
Pelo que nada há a apontar à integração jurídica enquanto dolosa, ainda que exista um lapso quanto à referência à alínea e) do nº 1 do art. 152º do Cód. Penal, considerando que tal alínea foi introduzida pela alteração da Lei 57/2021 de 16.08 e não estava em vigor à data dos factos (de 2018 a ........2021).
Da pena
Alega a recorrente que a pena em que foi condenada (de 3 anos e 6 meses de prisão efectiva) é desproporcional e desconsiderou a sua primariedade e o seu historial de vida marcado por disfunção familiar, violência e dificuldades económicas.
Requer a aplicação de pena não superior a 2 anos e a suspensão da sua execução, com a fixação de um regime de prova (que contemple acompanhamento psicossocial e formação parental, tal como propõe expressamente o relatório social) ou deveres a cumprir.
A sentença recorrida decidiu como segue a determinação da espécie e medida da pena:
«O crime de violência doméstica sub judice é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos (…)
À luz do disposto no artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de qualquer pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo certo em caso algum a pena poderá ultrapassar a medida da culpa. Na senda de Figueiredo Dias, In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 227 a 231, refira-se que as finalidades preventivas têm o papel preponderante na determinação da medida concreta da pena, constituindo a prevenção geral de integração o ponto óptimo (limite máximo) de defesa dos bens jurídicos e também o limite mínimo de pena concretamente comunitariamente suportável, mostrando-se as exigências de reintegração do delinquente na sociedade decisivas na determinação da medida concreta da pena a aplicar e constituindo a culpa o máximo inultrapassável de pena concreta, sob pena de se postergar o fundamento último de toda e qualquer punição criminal – a dignidade humana.
Na determinação da medida concreta da pena, há que sopesar, igualmente, o artigo 40.º n.º 2 do Código Penal, onde o legislador de 1995 veio consagrar a Teoria da Moldura de Prevenção. A culpa assume, assim, “não o papel factor de co-determinação da medida da pena, mas simplesmente a função de impedir que a medida da pena possa, por conjunturais necessidades preventivas, ultrapassar a medida da culpa, o que, a acontecer, se traduziria numa instrumentalização da pessoa (…)” (AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, in “As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, Vol. II, pág. 16, CEJ). Nesta conformidade, a “culpa posiciona-se como pressuposto e limite (não fim) da pena, cuja medida (e forma de execução e cumprimento) há-de ser fixada em função das exigências de prevenção concebidas como finalidades da punição; (…)” (Cfr. ADELINO ROBALO CORDEIRO, in “A determinação da Pena”, pág. 45).
Desta forma, para uma primeira limitação da moldura concreta da pena há que ter em conta a prevenção geral positiva, ou seja, a medida da protecção dos bens jurídicos. Dentro dessa moldura, e a limitá-la (limite máximo inultrapassável), surge a culpa (art. 70.º, n.º 1 do Código Penal). Neste segundo momento, vão ser levados em conta os factores que influem no doseamento da pena, as circunstâncias concorrentes no caso concreto que, em relação com aqueles fins, têm importância para a determinação do tipo e gravidade da pena, indicados, exemplificativamente, no citado artigo 71.º n.º 2 do Código Penal, seguindo-se as necessidades de prevenção especial positiva (reintegração do agente na sociedade).
No que concerne às exigências de prevenção geral, ou seja, a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma e o desanimar da perpetração de crimes desta natureza, haverá que ter em consideração o elevado número de ocorrências de maus tratos/violência doméstica, a nível nacional e, particularmente, ao nível da comunidade em que arguido e ofendido se mostram inseridos, sem que, na grande maioria das vezes. De facto, vive-se, ainda hoje, a cultura de que, em conflitos entre familiares, ninguém deve interferir, sendo que muitas vezes os ofendidos e os membros da família vêem os seus direitos reiteradamente violados, sem que alguém lhes ofereça uma ajuda ou um apoio. Destarte, o sentimento de impunidade, por um lado, e de insegurança, por outro, são relevantes, o que nos leva a considerar que as exigências de prevenção geral se situam num nível alto.
Já quanto às exigências de prevenção especial, ou seja, à necessidade de evitar que a arguida volte a delinquir, importa criar condições para que a mesma não torne a ceder ao impulso de maltratar pessoa com quem viva. A arguida é mãe de quatro filhos: GG, JJ, II e HH. GG, ofendido nos autos, sofreu os maus tratos provados. O ofendido já faleceu. II e HH foram alvo de processo de promoção e protecção. A primeira autonomizou-se. A segunda foi institucionalizada. Não obstante a arguida não ter antecedentes criminais, a “arguida centrou a avaliação do impacto da presente situação jurídica em si, nomeadamente, no desgaste físico e emocional resultante da vigilância contínua e os cuidados permanentes ao filho GG. O discurso é de vitimização face a um quotidiano condicionado pela condição do filho e à falta de respostas/apoios sociais que diz ter solicitado” (cfr. relatório social referido supra). Portanto, a arguida não reconhece o desvalor do seu comportamento e manifesta ausência de sentido crítico quanto ao mesmo, não revelando qualquer acto exterior de arrependimento.
Por conseguinte, as exigências de prevenção especial são elevadas, a par das exigências de prevenção geral.
Ponderadas todas as circunstâncias supra explanadas, entende-se ser adequada a pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
§ Das penas substitutivas
(…) Assim, cumpre averiguar se, no caso, estão verificados os pressupostos de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º do Código Penal). Segundo o artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Ao prever os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, a norma não atribui uma faculdade ao julgador, mas antes «um poder estritamente vinculado e portanto, nesta acepção, (…) um poder-dever» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – Parte Geral II (As consequências jurídicas do crime), Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 341) Assim, caso se verifiquem os pressupostos legais para a suspensão da execução da pena de prisão, a mesma deve ser suspensa. Esses pressupostos são dois: um formal; outro material. Relativamente ao pressuposto formal da aplicação da suspensão da execução da pena de prisão consiste o mesmo em a medida desta não poder ser superior a 5 anos (artigo 50.º/1 do Código Penal).
Ora, no presente caso, o pressuposto formal está verificado, pois a pena de prisão aplicada foi de 3 anos e 6 meses.
Cumpre, portanto, analisar o pressuposto material e averiguar se o mesmo se verifica no presente caso. Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS, «pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena (…) bastarão para afastar o delinquente da criminalidade (…). Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto» (Idem, ibidem, pp. 342 e 343). O conceito-chave para a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão é, portanto, o de prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente, analisado no momento da decisão. Assim, o prognóstico será favorável sempre que seja de prever que o arguido sentirá na condenação uma advertência bastante e que, portanto, não voltará a cometer crimes, pautando a sua vida futura por uma conduta conforme ao direito.
Em conclusão: para aplicar a pena de substituição impõe-se, portanto, necessário que se possa crer que o arguido não voltará a delinquir. Ora, no presente caso, o tribunal não pode fazer esse juízo de prognose favorável. O comportamento de alheamento da arguida face aos factos, a ausência de assunção de qualquer responsabilidade, o facto de considerar normal “o quarto ter cócó” (sic) e justificar o seu comportamento com a falta de apoio social, demonstram que o tribunal não pode confiar no seu comportamento futuro e na adequação do mesmo ao Direito. Assim, entende o tribunal que a pena de prisão aplicada é para cumprir em regime de efectividade.»
Dá-se aqui por reproduzida a fundamentação do Tribunal recorrido no que se refere aos fins das penas e, bem assim, dá-se também por reproduzida a cuidada análise no que se reporta às exigências de prevenção geral que se fazem sentir.
Sublinharemos, tão só, que a ilicitude do facto é muito elevada. A actuação da arguida perdurou por 3 anos, mantendo o filho (com uma incapacidade de 97%) trancado em casa, privado de luz natural ou artificial, sem as mínimas condições de higiene ou de conforto, rodeado de dejectos, despido e por vezes amarrado.
O dolo é directo – pois que a arguida previu e quis as consequências da conduta – a forma mais intensa de dolo.
“A situação económica à data dos factos foi considerada pela arguida como instável uma vez que a subsistência da família provinha apenas do seu salário. A arguida referiu que dos trabalhos de agricultura e de empregada de limpeza que realizava, obtinha o valor aproximado ao salário mínimo nacional, e o filho, GG, recebia a pensão social de inclusão no valor mensal 273 euros.”
Actualmente a arguida vive com o filho mais velho; está de baixa médica e recebe a quantia aproximada de 500 euros mensais. “A situação financeira é precária, referindo a arguida recorrer à sua progenitora no sentido de subsistirem”.
A arguida não tem antecedentes criminais.
Resulta ainda do Relatório Social que a “arguida centrou a avaliação do impacto da presente situação jurídica em si, nomeadamente, no desgaste físico e emocional resultante da vigilância contínua e os cuidados permanentes ao filho GG. O discurso é de vitimização face a um quotidiano condicionado pela condição do filho e à falta de respostas/apoios sociais que diz ter solicitado”.
Em face do descrito, a pena aplicada afigura-se justa e adequada.
Quanto à requerida suspensão da execução da pena…
Como refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, p. 331), sendo a suspensão da execução da pena “a mais importante das penas de substituição” – não apenas pela frequência com que é aplicada, mas também pelo âmbito lato de aplicação que comporta – a lei, nos termos do art. 50º do Cód. Penal, exige não só a verificação de um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) como também requisitos subjectivos, determinados por finalidades de política criminal, que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
O Tribunal só pode suspender a pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 50º do Cód. Penal).
Em causa já não está a medida da culpa do agente, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção, sendo necessário determinar se existe esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada. Não esquecendo ainda que, como refere o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit., p. 344) pode haver casos em que “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização – a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pois estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise”.
Pressuposto básico da aplicação da suspensão da execução da pena, é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente, em termos de que o Tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da pena aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais para o futuro. Mas tal juízo tem de se fundamentar em factos concretos que apontem para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida.
A circunstância de ser possível subordinar a suspensão da execução da pena a regras de conduta ou a regime de prova – sempre com vista a uma efectiva integração do agente na sociedade – não pode prescindir desse juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente.
No caso em análise não podemos deixar de concordar com o Tribunal recorrido, cuja ponderada análise aqui damos por reproduzida: O comportamento de alheamento da arguida face aos factos, a ausência de assunção de qualquer responsabilidade, o facto de considerar normal “o quarto ter cócó” (sic) e justificar o seu comportamento com a falta de apoio social, demonstram que o tribunal não pode confiar no seu comportamento futuro e na adequação do mesmo ao Direito. Nunca em algum momento a recorrente manifestou qualquer tipo de arrependimento ou empatia perante o sofrimento do filho, limitando-se a assumir postura de vítima, bem revelador que a personalidade da recorrente não aponta para um juízo de prognose favorável a uma suspensão da execução da pena, não permitindo a afirmação de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Termos em que não deve ser suspensa a execução da pena (art. 50º do Cód. Penal, a contrario).
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmam a sentença recorrida.
Mas corrigem o lapso quanto à condenação também com referência à alínea e) do nº 1 do art. 152º do Cód. Penal, considerando que tal alínea foi introduzida pela alteração da Lei 57/2021 de 16.08 e não estava em vigor à data dos factos (de 2018 a ........2021). Assim, consideram tal referência como inexistente.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UCs.

Lisboa, 18.11.2025
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Pedro Esteves de Brito
Ana Cristina Cardoso