CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
MEDIDA DA PENA
Sumário

I. A contradição que consubstancia o vício de contradição insanável, para além de resultar apenas do texto da decisão, tem que ser notória, isto é evidente para qualquer pessoa de são e médio discernimento.
II. A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
III. Na fixação da medida da pena há que ter em atenção que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, mas sem que possa ultrapassar-se a medida da culpa.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, nº 230/24.0SGLSB, que corre termos no Juiz 23 do Juízo Central Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi o arguido,
AA, solteiro, empresário, nascido a ........1975 em ..., com nacionalidade ..., portador do D.I. emitido pelo ... nº ..., filho de AA e de BB, residente na ..., actualmente detido preventivamente à ordem destes autos no ...,
condenado, pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo de:
- um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea b), ambos do Cód. Penal, na pena de 25 (vinte e cinco) anos de prisão; e
- um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º nº 1, alíneas a) e b) do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão.
Operado o cúmulo jurídico, ficou o arguido condenado na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
E na parcial procedência do pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes CC e DD foi o arguido/demandado condenado no pagamento das quantias de: (i) 13.154,75 € (treze mil cento e cinquenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), a ambos os demandantes e em partes iguais, a título de danos patrimoniais; (ii) 100.000 € (cem mil euros), a ambos os demandantes e em partes iguais, a título de dano morte; (iii) 30.000 € (trinta mil euros), a ambos os demandantes e em partes iguais, a título de dano intercalar; (iv) 15.00 € (quinze mil euros) a cada um dos demandantes pelos danos não patrimoniais próprios relativos à ofensa aos restos mortais da vítima, seu filho; (v) 30.000 € (trinta mil euros) a cada um dos demandantes pelos danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte da vítima, seu filho.
*
Sem se conformar com a condenação, o arguido interpôs o presente recurso onde pede que se declare a “nulidade e reenvio para a 1.ª Instância” ou, quando assim não se entender, que se revogue o acórdão recorrido, sendo condenado na pena de 19 anos de prisão para o crime de homicídio qualificado e na pena de 1 ano e 6 meses de prisão para o crime de profanação de cadáver e na pena única de 20 anos de prisão, absolvendo-o da condenação da parte civil, por falta de legitimidade dos demandantes e falta de prova.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
1.ª A pena tem, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, como finalidade primeira a proteção de bens jurídicos, bem como as expetativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada e no restabelecimento da paz jurídica, devendo fixar-se de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal,
2.ª Sopesado a moldura penal, as exigências de prevenção geral e as exigências de ressocialização, entendemos como adequada, necessária e proporcional a aplicação das penas parcelares de 19 (dezanove) anos de pena prisão para o crime de homicídio qualificado e de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão para o crime de profanação de cadáver e na aplicação da pena única de 20 (vinte) anos.
Após ponderação do arrependimento sincero, da confissão integral e sem reservas e em face da ausência da premeditação, aspetos que não foram sopesados na decisão em crise.
3.ª O Tribunal Coletivo ao condenar o arguido nas penas parcelares de 25 (vinte e cinco) anos e de 1 (um) ano e 9 (nove) meses para, respetivamente, o crime de homicídio qualificado e para o crime de profanação de cadáver e na aplicação da pena única de 25 (vinte e cinco) anos e, não observou os critérios de determinação da pena que resultam da conjugação dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.
4.ª A sentença recorrida viola os artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal e 13º da Constituição da República Portuguesa.
5ª Foram julgados provados os factos de 68. a 71., sem qualquer sustentação probatória. Tais factos não lograram ser provados por apelo aos depoimentos de testemunhas, por declarações do arguido, sem razão de ciência, nem mesmo com socorro aos documentos juntos aos autos, como seja, relatório de autopsia ou outro junto pelos assistentes/demandantes.
Esses factos serviram, entre outros, para apreciar da bondade do pedido dos demandantes (sem prejuízo do alegado supra quanto à sua ilegitimidade) para a condenação do recorrente ao pagamento pelos danos intercalares.
O Acórdão é nulo por contradição com as respostas dadas à matéria de facto 68. a 71. e a base probatória dos autos.
6.ª Cabe, a quem alega um facto, fazer a sua prova.
Os demandantes alegam pertencerem-lhes o direito de reclamarem indemnização por falecimento da vítima. Os demandantes civis não provaram ter a vítima falecido no estado de solteiro e/ou sem descendentes. Devendo improceder na totalidade, por falta de prova, o alegado prejuízo moral que invocam no segmento da decisão de 5. b), c), d) e e), num global de € 220.000,00 (duzentos e vinte mil euros), por não ter meio do Tribunal a quo prova (sendo a testemunhal insuficiente) do que alegam os demandantes quanto à invocada qualidade (únicos e universais herdeiros da vítima e preferentes perante qualquer outra pessoa, nos termos da lei civil).
7.ª Na esteira do que é assumido no Acórdão, só as despesas que os demandantes demonstram ter realizado, por causa da morte da vítima, e que não teriam realizado se não fosse o mesmo ilícito, pode ser considerado o recorrente/demandado condenado a pagar.
Os valores pagos pela preparação e deslocação, por via aérea, dos canídeos, da vitima, de ...-..., no montante € 437,36, a documentação junta com o pedido de indemnização permite concluir haver sido pago por EE e por FF. Razão pela qual, deve o recorrente/demandado ser absolvido do pedido que foi feito e, por via disso, não está obrigado ao pagamento desse valor.
*
A Digna Magistrada do Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões:
1. O arguido foi condenado (…)
2. Valoradas as circunstâncias apontadas no acórdão recorrido para determinação da medida da pena aqui em causa, cremos que soçobra a pretensão do arguido em ver reduzida tal pena, pois que a pena fixada, está longe de ultrapassar a medida da sua culpa, corresponderá sensivelmente ao imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e só na medida fixada poderá ser adequada a satisfazer a sua função de socialização.
3. Nesse sentido as declarações confessórias do arguido surgem após a produção de toda a prova e não num primeiro momento e permitiram ao tribunal aferir da personalidade do arguido e da sua posição perante os factos, decorridos cerca de 14 meses e concluindo que a sua primeira preocupação reside na sua própria vitimização!
4. A ausência de premeditação não constitui qualquer causa de atenuação, mas sim a não verificação dessa circunstância de especial censurabilidade e perversidade que qualifica o crime, que de resto o mesmo não foi acusado!
5. Não será de valorar um alegado arrependimento quando o arguido manifesta preocupação focado nas consequências da sua conduta para si mesmo e não para com a vítima.
6. Do ponto de vista probatório a confissão do arguido posterior a toda a produção de prova revela-se inócua
7. Demonstraram as palavras do arguido a necessidade das elevadas exigências de prevenção especial como brilhantemente espelha o tribunal no seu douto acórdão!
8. As exigências de prevenção geral ressaltam da evidência diária dos meios de comunicação social, quanto ao crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado em tal contexto!
9. A factualidade provada não foi minimamente impugnada pelo recorrente, nem nos termos previstos no art 410º do Código de Processo Penal, nem nos termos do art. 412º do Código de Processo Penal.
10. A não indicação dos concretos pontos que acha “mal julgados”, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa, constitui violação do preceituado no nº 1 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, não estando assim colocados em causa os factos provados 68 a 71 que de resto resultam das regras de experiência comum.
11. Decorre dos autos que os pais da vítima são os lesados decorrentes dos crimes perpetrados pelo arguido, não só porque dos mesmos decorreu que a vítima faleceu solteira e sem filhos, não logrando o arguido demonstrar o contrário e não incumbido aos demandantes demonstrarem ser únicos e universais herdeiros mas titulares de um legítimo direito, de verem ressarcidos os danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela conduta do arguido, que certamente não olvidará a actuação que teve junto dos mesmos durante cerca de cinco dias após praticar os factos, colocando-os no engodo de que também ele procurava o filho de ambos (sabendo que colocou termo a sua vida de forma cruel e ainda se desfez do seu corpo, desmembrando-o e colocando no lixo!).
12. As despesas tidas pelos demandantes com os canídeos resulta da prova testemunhal e documental, quanto ao concreto valor, sendo irrelevante que as mesmas sejam representadas por documento comprovativo em nome de terceiros, pois que os demandantes declararam ter assumido as mesmas!
13. Por todo o exposto, improcedem todas as alegações da aqui recorrente, não padecendo assim o acórdão sob recurso qualquer reparo.
*
Os assistentes e demandantes CC e DD também contra-alegaram, ainda que sem apresentar conclusões.
*
Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer onde defendeu que:
- o arguido, se é que queria impugnar a decisão sobre a matéria de facto quanto aos factos provados 68 a 71, cuja prova entende não se ter feito, não a impugnou validamente, o que impede o convite ao aperfeiçoamento e implica a rejeição do recurso nesta parte;
- rejeitado o recurso quanto à matéria de facto, o recurso versa tão só matéria de direito [a nulidade, as medidas das penas parcelares e única, a legitimidade dos demandantes e a condenação no pagamento das despesas com a deslocação dos cães da vítima] e a verificação oficiosa da existência dos vícios da decisão do art. 410º, nº 2, do CPP, pelo que, sendo a pena única aplicada superior a 5 anos de prisão, o recurso deverá ser conhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo o Tribunal da Relação materialmente incompetente para o efeito;
- caso assim se não entenda, “desde já manifestamos que concordamos integralmente com o teor da resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, à qual, pela sua proficiência, assertividade e completude, nada temos a aditar”.
O Parecer não obteve resposta.
A questão levantada pela Digna Procuradora-Geral Adjunta sobre a competência material deste Tribunal da Relação para conhecer do recurso, foi apreciada em sede de despacho liminar, onde se concluiu pela competência.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
* * *
Fundamentação
No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:
1. O arguido AA, natural de ..., com nacionalidade ..., tem residência em Portugal desde data não concretamente apurada, mas posterior a 2017, onde se estabeleceu como empresário.
2. A vítima GG, por seu turno, tinha nacionalidade brasileira e fixara residência em território nacional há pelo menos 4 anos, tendo vindo para Portugal com o objectivo de exercer a profissão de dentista.
3. Em data não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre o final do ano de 2022 e o início do ano de 2023, o arguido e a vítima iniciaram uma relação de namoro.
4. Nessa sequência, mais concretamente em ... de 2023, e depois de durante algum tempo terem residido na casa de GG, este último passou a residir com o arguido AA na habitação deste, na ...., em ....
5. Desde que passaram a residir juntos, o arguido e a vítima, além de partilharem casa, dormirem juntos e fazerem juntos as suas refeições, passaram a relacionar-se em tudo como se fossem casados.
6. No decurso da relação existiram confrontos, por vezes com violência verbal e física, entre os membros do casal, confrontos esses cuja dinâmica e contornos não foi possível apurar com segurança, mas relacionados com questões de ciúme e consumo de drogas.
7. No início do mês de ... de 2024 o arguido AA e a vítima GG regressaram de .... Em ..., haviam-se deslocado a um cartório notarial com o propósito, concretizado, de formalizarem um testamento relativo ao património do arguido em Portugal em favor da vítima, por morte do primeiro.
8. No dia ... de ... de 2024, pela hora do almoço, no imóvel que habitavam, na já referida ..., em ..., ocorreu uma discussão verbal, seguida de alguns confrontos físicos, entre a vítima e o arguido, factos ocorridos na sala/kitchenette do imóvel.
9. Nestas circunstâncias de tempo, modo e lugar o arguido AA decidiu fazer uso de uma faca de cozinha e, com este objecto, realizou consecutivamente três golpes no lado esquerdo do pescoço da vítima, no sentido descendente, perfurando-o.
10. Tendo ambos caído ao solo.
11. Em consequência da descrita acção do arguido, com causa necessária e directa nessa mesma acção, ocorreu a morte da vítima.
12. Durante as agressões praticadas com a faca na zona do pescoço da vítima, o arguido provocou em si próprio, acidentalmente, um golpe no dedo anelar da mão direita e também na região palmar da mão esquerda.
13. Nessa sequência, confrontado com o cadáver de GG no interior da residência, o arguido AA formulou o plano de se desfazer do corpo como forma de se eximir à sua responsabilidade penal.
14. Dando execução a esse seu desígnio, num primeiro momento o arguido arrastou o corpo da vítima GG pelas pernas até ao poliban da casa de banho e tapou-o, em seguida, com várias mantas que estavam espalhadas pela casa.
15. Uma vez que a habitação tinha ficado com várias manchas de sangue, não só no chão da sala-cozinha e do corredor, como também nas paredes, o arguido começou a limpar a habitação com recurso a uma esfregona e vários produtos de limpeza.
16. Enquanto procedia à remoção dos referidos vestígios, pensou o arguido em como havia de retirar o cadáver de GG da habitação, concluindo que o mais eficaz seria cortá-lo em duas partes, acondicioná-las em sacos e colocá-las em seguida junto aos caixotes do lixo existentes na via pública.
17. Dando execução a esse seu plano, fazendo-o próximo das 16h00m desse mesmo dia ... de ... de 2024, deslocou-se a um estabelecimento comercial vulgarmente conhecido como “...", situado no ..., em ..., onde adquiriu dois sacos de ráfia, de grandes dimensões, com o objectivo de neles acondicionar e fazer transportar no seu interior o cadáver de GG.
18. Neste estabelecimento comprou ainda um rolo para pinturas, com o objectivo de pintar as paredes que haviam ficado com manchas, pingos, salpicos de sangue resultantes das agressões com faca que havia executado no corpo da vítima.
19. Ao chegar à residência onde tinha deixado o cadáver, fazendo uso de uma faca de grandes dimensões que tinha na cozinha, normalmente utilizada para cortar peixe, seccionou completamente o cadáver de GG pela zona da cintura.
20. Fê-lo, o arguido, com grande esforço físico e após ter ingerido uma quantidade considerável de vinho.
21. Relativamente aos membros inferiores do cadáver de GG, envolveu-os o arguido numa cortina de casa de banho, assim os ocultando, e colocou-os posteriormente no interior dos dois sacos que tinha comprado na "loja chinesa" - estes sobrepostos entre si, criando uma dupla protecção - tendo na base dos sacos uma manta colorida.
22. Prosseguindo o seu plano de fazer desaparecer o corpo da vítima GG, no período temporal compreendido entre as 23h00m e as 24h00m, ainda do dia ..., o arguido muniu-se dos sacos contendo os membros inferiores do cadáver e, com eles, deslocou-se de modo apeado até à ..., em ..., onde, em frente ao ...daquela artéria da cidade, os depositou junto a um caixote de lixo ali existente.
23. Em seguida o arguido regressou a casa e após ter colocado a parte do tronco, membros superiores e cabeça no interior de um saco dos estabelecimentos "..." que possuía em casa, deslocou-se novamente e de modo apeado à rua, mais concretamente à ..., em ..., onde, no interior de um caixote do lixo, deixou o saco contendo as descritas partes do cadáver.
24. Para evitar deixar quaisquer vestígios que conduzissem as autoridades à sua pessoa, o arguido AA desfez-se das facas utlizadas, lançando uma às águas do ... - concretamente a que usara para agredir mortalmente o GG - tendo colocado a segunda no interior do saco que continha a cabeça e o tronco da vítima.
25. Com o mesmo propósito lançou para as águas do ... a carteira com os documentos pessoais do GG, bem como o telemóvel que o mesmo utilizava habitualmente.
26. Perante amigos e familiares do GG, que nas horas e dias seguintes indagavam acerca do seu paradeiro, o arguido disse que o mesmo havia saído para uma festa e não mais voltara.
27. No interior da residência, antecipando a possibilidade de poder ser visitado por outras pessoas ou mesmo até pelas autoridades policiais devido ao desaparecimento do GG, o arguido procedeu à limpeza do sangue no chão e nas paredes, tendo ainda adquirido tinta e um rolo com os quais pintou as zonas das paredes que apresentavam maiores evidências de vestígios de sangue da vítima.
28. Através da acção atrás descrita, concretamente através das perfurações que realizou no corpo da vítima com a faca que empunhou, o arguido causou a morte de GG.
29. Ao agir da forma descrita, isto é, ao desferir os referidos golpes com a faca no corpo da vítima, mais concretamente na zona do pescoço, o arguido, sendo plenamente conhecedor das características cortantes do objecto que usava, da zona do corpo que atingia e do facto de tal zona – pescoço - alojar órgãos vitais, quis tirar a vida à vítima, como logrou fazer.
30. Fê-lo, o arguido, com total indiferença pela vida da vítima e sabendo que utilizava um objecto que praticamente a impossibilitava de se defender, bem ciente do que estava a fazer.
31. Quis desferir, como desferiu, os referidos golpes com a faca e provocar, com isso, a morte da vítima.
32. Sabia o arguido que a relação afectiva estabelecida com GG, fruto da cumplicidade, intimidade e partilha que devem caracterizar uma relação dessa natureza, gerava para si a obrigação de assegurar ao companheiro uma protecção acrescida face a igual obrigação que pudesse impender sobre agente estranho à vítima e, bem assim, a respeitar a sua pessoa e, nessa medida, como corolário ultimo, a sua vida.
33. Ao invés o arguido quis tirar a vida de GG.
34. Com as acções acima descritas sequenciais à morte da vítima, o arguido pretendeu fazer desaparecer de modo irreversível o corpo do seu companheiro, GG, de modo a ocultar o cadáver e, com isso, eximir-se à responsabilização penal por ter causado a sua morte.
35. Ao proceder da forma descrita de cortar o corpo de GG, colocá-lo dentro de sacos e depositá-los junto ao caixote do lixo, o arguido AA actuou com intenção de ocultar o cadáver da vítima e impedir que o mesmo fosse encontrado - o que logrou fazer no respeitante ao tronco, membros superiores e cabeça.
36. Sabia, e assim o queria e conseguiu, que não seriam prestadas a GG as normais e devidas cerimónias fúnebres, praticando desta forma actos que sabia ofensivos do respeito devido aos mortos.
37. Em todas as actuações descritas o arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente.
*
Quanto à matéria alegada no pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes CC e DD, para além da constante da acusação e com relevo para a presente causa, entendemos ter resultado provado que:
38. Na madrugada do dia .../.../2024 o arguido AA e a vítima GG, filho dos demandantes, regressaram de ....
39. Foi no âmbito dessa deslocação que aproveitaram para fazer o testamento referido no ponto 7 que o arguido entendia como a maior prova de amor que tinha para com a vítima.
40. Arguido e vítima planeavam casar num futuro próximo.
41. Após a morte de GG o arguido optou por deslocar-se a estabelecimentos comerciais tendo optado, para a aquisição de produtos diversos, por utilizar o cartão de crédito da vítima que se encontrava associado à conta cuja titularidade pertence ao demandante CC tendo gasto, no total, um valor aproximado de 100 €.
42. Os demandantes, pais da vítima GG e residentes no ..., tinham por hábito comunicar diariamente com o filho.
43. Como não conseguiam falar com a vítima os demandantes contactaram por diversas vezes com o arguido/demandado relativamente ao paradeiro da mesma.
44. O demandado disse-lhe que a vítima tinha saído para uma festa sem nunca ter regressado.
45. Durante os quatro dias que mediaram entre a morte da vítima e a sua detenção o demandado referiu, por diversas vezes, à demandante que estava preocupado relativamente ao paradeiro do seu filho (algo que dizia desconhecer por completo) e que os seus dias eram passados à procura do noivo (junto de hospitais, bares e cafés), tendo inclusivamente referido que se havia deslocado à Polícia Judiciária para reportar o seu desaparecimento.
46. Os demandantes só tiveram conhecimento da verdade quando lhes foi enviada, por um amigo, uma das notícias do episódio amplamente divulgado pela comunicação social.
47. Apenas conseguiram identificar a vítima quando o seu outro filho viu que as tatuagens que a mesma tinha nos membros inferiores do seu corpo, e que se encontravam a ser divulgadas na internet, correspondiam às tatuagens que GG tinha.
48. A actuação do demandado foi causa única da morte do filho dos demandantes.
49. Durante 5 dias pensaram que o filho estava desaparecido em sítio indeterminado.
50. A actuação do demandando foi a única causa da impossibilidade de se despedirem condignamente do filho falecido que apenas puderam honrar numa cerimónia fúnebre e no âmbito da qual apenas puderam velar a parte inferior do seu corpo.
51. A actuação do demandado foi a causa de todo o sofrimento de que são alvo desde o dia ... de ... de 2024 e que jamais os abandonará.
52. A actuação do demandado foi a causa da realização da cerimónia fúnebre da vítima com a qual os demandantes despenderam a quantia de 2.441,86 €.
53. A actuação do demandado foi causa da deslocação dos demandantes a Portugal tendo os mesmos com a realização das viagens suportado gastos que ascenderam a 6.596,23 €.
54. Com a referida deslocação os demandantes suportaram em alojamento despesas que ascenderam a 2.315,10 €.
55. Com a referida deslocação os demandantes tiveram necessidade de alugar uma viatura automóvel que importou uma despesa de 133,84 €.
56. Os demandantes tiveram que incorrer em despesas relativas à deslocação dos dois cães que pertenciam à vítima para o ....
57. Em face da elevada estima que a vítima sentia pelos referidos cães, aos quais deu o nome de ... e de ..., os demandantes viram-se na obrigação de os levar para o local onde residem para que os mesmos ficassem ao cuidado da família e não num canil em Portugal.
58. As despesas de deslocação dos referidos cães, de avião, para o ... encontram-se contempladas no valor referido no ponto 53.
59. Para além do referido valor e relacionado com a deslocação dos referidos cães para ... os demandantes tiveram ainda que despender 437,36 €.
60. A deslocação dos cães da vítima para o ... só se tornou necessária devido à morte da mesma causada pelo demandado.
61. A situação de luto dos demandantes e do seu núcleo familiar pela morte da vítima e pelas demais circunstâncias que conduziram ao seu desmembramento e distribuição do seu cadáver por duas ruas de Lisboa fez com que se viessem obrigados a contratar médicos especializados (médicos psiquiatras e psicólogos) que os pudessem acompanhar psicologicamente no brutal sofrimento vivido.
62. A demandante tem incorrido, desde o dia em que tiveram notícia da morte da vítima em despesas relativas a consulta com psicólogos.
63. A demandante DD incorreu entre ... e ... de 2024 numa despesa de 307,59 € (102,53 € por mês).
64. O filho dos demandantes, irmão da vítima, incorreu numa despesa de 1.498,25 €.
65. Atenta a gravidade dos factos a demandante DD continua a ter necessidade de manter acompanhamento psicológico.
66. A família dos demandantes é uma família próxima e coesa, como resulta do facto de diariamente se telefonarem e verem remotamente, muitas vezes, mais do que uma vez por dia.
67. A demandante continua a frequentar o psicólogo uma vez por semana, tendo para o efeito tido despesas que ascenderam, a pelo menos, 922,77 €.
68. A morte da vítima não foi imediata após o primeiro golpe do demandado.
69. Desde o primeiro golpe até à sua morte, a vítima sofreu outros dois golpes enquanto ainda se encontrava de pé vindo a falecer quando já se encontrava caído no solo.
70. A vítima teve dores na sequência dos golpes de que foi alvo.
71. A vítima sentiu angústia quando teve consciência que a sua vida ia terminar na sequência dos golpes que lhe foram dados pela pessoa por quem estava apaixonada e com quem tinha feito planos para casar.
72. O cadáver da vítima foi arrastado para o poliban de casa do demandando; foi cortado pela zona da cintura; foi colocado em sacos e depositado uma parte no passeio e outra no lixo.
73. A vítima tinha uma relação muito próxima com os seus pais, ora demandantes.
74. Desde que a vítima veio para Portugal, apesar da distância, os demandantes faziam esforço de, apesar da diferença horária, comunicar todos os dias, inclusive por videochamada, para que nunca perdessem o contacto.
75. A perda do filho foi um abalo tremendo para os demandantes e restante família.
76. A vítima veio para Portugal para exercer a profissão de ... na Europa, tendo-se inscrito no ....
Quanto à factualidade alegada pelo demandado AA em sede de contestação ao pedido de indemnização civil com relevo para a presente causa, entendemos ter resultado provado que:
77. Os demandantes são pais da vítima GG, solteiro, natural do ..., nascido a .../.../1987, natural do ....
Quanto à situação económico-social do arguido provou-se que:
78. O seu processo de socialização decorreu em ..., junto da progenitora, figura parental de referência, que assegurou os seus cuidados após o abandono paterno na infância.
79. Não tendo a sua mãe voltado a estabelecer novos relacionamentos, terá mantido, uma relação de grande cumplicidade e sentido de protecção face ao seu único filho.
80. O seu processo escolar terá sido normal e investido até sair de casa para residir e estudar na cidade de ... para cursar ....
81. Referiu, no entanto, não se ter adaptado a esta mudança por ter sido alvo de perseguição política e de descriminação de género, por não se enquadrar nos padrões sociais vigentes, sendo que, era feminino e homossexual.
82. Neste contexto e quando tinha cerca de 20 anos de idade optou por desistir dos estudos e por emigrar para ..., tendo pedido asilo político ao governo ... no ano de ..., condição que lhe seria concedida, vindo mais tarde a obter a nacionalidade ….
83. Iniciou a sua actividade laboral em ..., trabalhando inicialmente como colaborador em ... (...) e mais tarde em contexto de ...
84. Refere ter investido em formação em ..., tendo concluído um curso de ...e mais tarde o curso de ..., que lhe permitiu iniciar uma carreira neste ramo de actividade, como ....
85. Constituiu uma empresa: "...", vindo a trabalhar por conta própria, neste ramo de actividade cerca de 12 anos.
86. Posteriormente, investiu no ramo do ..., tendo para o efeito, aberto duas lojas de ..., dedicando-se também ao comércio de ..., trajecto de alegado sucesso que lhe terá permitido juntar dinheiro e manter uma situação económica estável, em ....
87. No decurso de 2017, mudar-se-ia em definitivo para Portugal, tendo em vista investir no ramo ... com um amigo/sócio, vindo para o efeito, a constituir a empresa "..., sucursal em Portugal", dedicada à .... Entre 2017 e 2020, terá ...recorrendo à ....
88. No decurso do ano de 2019, investiu no negócio no ramo da ..., estabelecimento que viria ter de encerrar no decurso da pandemia, tendo tido prejuízos financeiros significativos.
89. Adquiriu a casa de que era proprietário no ano 2020, último imóvel adquirido em Portugal, tendo a intenção de a remodelar e vender com lucro, aspiração que não viria a conseguir realizar devido a dificuldades financeiras, uma vez que nesse período se manteve maioritariamente inactivo.
90. À data dos factos residia com a vítima GG, com quem mantinha uma relação amorosa, em habitação do qual era proprietário.
91. Trata-se de um imóvel de tipologia T2, na morada indicada.
92. Refere ter conhecido a vítima GG, 13 anos mais novo, no ... do ano de 2022 vindo, em 2023, a aprofundar a relação amorosa com o mesmo, tendo o casal vivido, inicialmente, em casa da vítima na zona de ..., mudando-se, no início de 2024, para a morada constante dos autos.
93. Tinha como aspiração regularizar a sua situação financeira e mudar-se com a vítima para uma nova habitação, em ..., e celebrarem casamento no Verão desse ano, projecto partilhado com a vítima, salientando terem à data, entregue a documentação solicitada ao notariado para esse efeito.
94. No que respeita ao trajecto relacional/afectivo do arguido, no passado, salienta-se o relato de uma vivência de relacionamento em contexto de coabitação, pelo período de 10 anos, relacionamento que viria a terminar, após a sua mudança para Portugal.
95. Entre os anos 2017 e 2022, já em Portugal, viria a viver novo relacionamento amoroso com companheiro, com quem residiu em diversas habitações e com quem veio a ter negócios em comum.
96. No contexto desta relação, viria a iniciar e aprofundar hábitos de saídas nocturnas, de consumos de álcool e de estupefacientes em Portugal.
97. Refere que atravessaria, à data dos factos, acrescidas dificuldades financeiras, sendo que não dispunha de trabalho ou de rendimentos desde o ano de 2021 e que teria esgotado os proventos provenientes de anteriores poupanças, do recurso a duas hipotecas e créditos pessoais, com os quais financiaria o estilo de vida e despesas comuns do casal, mantidos no decurso dos anos subsequentes.
98. No decurso dos anos 2023 a 2024, alega ter recorrido maioritariamente à venda de objectos pessoais de maior valor (nomeadamente colecções de relógios e jóias) e do apoio da amiga HH, residente em ..., que lhe terá emprestado, a seu pedido, neste período, cerca de 20.000€.
99. Refere ter posto o seu imóvel/habitação à venda, duas semanas antes da prisão, venda que terá sido concluída já em contexto de reclusão, pelo valor de 300.000€, com o apoio de uma amiga, II, ..., a quem passou uma procuração para o representar.
100. Refere ter canalizado o valor desta venda, para pagar as suas dívidas, despesas iminentes e assegurar a sua defesa judicial, tendo ficado no banco com 17.000€ de liquidez, que, de acordo se encontram apreendidos à ordem do presente processo.
101. Enquadra a sua situação económica actual como precária por não dispor de fontes de rendimentos ou de património, vindo a recorrer ao apoio de uma amiga, para fazer face a eventuais gastos pessoais, em contexto de reclusão.
102. No que respeita à saúde, segundo dado a conhecer, manteve no período de 2023 a 2024, um estilo de vida condicionado por recorrentes hábitos de consumos de álcool e de drogas psicoactivas tais como cocaína, 3MC, MDMA, LSD, GHB (vulgo Gisele), para fins recreativos e sexuais, recorrendo ainda a serviços sexuais prestados por terceiros.
103. Referiu ter tido, no passado, problemas de depressão/ansiedade, após perda da mãe, no ano de 2010, tendo mantido acompanhamento psiquiátrico e medicação.
104. Deu nota, igualmente, de um historial de consumos abusivos de cocaína e álcool, desde o ano 2017, entre outras drogas.
105. Deu entrada no Estabelecimento Prisional anexo à ... a 16/03/2024, em situação de fragilidade psicológica, associado a quadro de instabilidade emocional, humor deprimido e ideação suicida, que motivaria medidas de segurança e cuidados de saúde acrescidos.
106. Neste contexto, foi transferido a 20/09/2024, para o ..., viria a permanecer afecto à enfermaria, onde permanece, mantendo toma de medicação psiquiátrica e acompanhamento médico regular.
107. Não obstante alguma estabilização decorrente da medicação, aparenta manter uma situação de instabilidade pessoal, salientando vivenciar habitualmente ansiedade, falta de ar, medo, angústia e ideação suicida.
108. Mantém um comportamento descrito como ajustado às regras e normas prisionais.
109. Aparenta estar algo isolado no meio exterior, não tendo filhos ou familiares próximos, identificando como principais referências uma amiga - HH - residente em ... e os seus antigos colaboradores em contexto laborai - II e JJ -, elementos que o têm apoiado e visitado em meio prisional.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido provou-se que;
110. Não tem antecedentes criminais.
E considerou-se como factos não provados:
Da factualidade descrita em sede de acusação, e com relevo, entendemos não ter resultado provado que:
» Foi na madrugada do dia ... de ... de 2024, cerca da 01h00m, que o arguido AA e a vítima GG regressaram de ....
» Nas circunstâncias dadas por provadas no ponto 10 o arguido tenha realizado um quarto golpe no corpo da vítima.
Quanto à matéria alegada no pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes CC e DD, com relevo para a presente causa, entendemos não ter resultado provado que:
» A demandante continuará a necessitar de acompanhamento psicológico ao longo de toda a vida.
» A frequência semanal das consultas da demandante manter-se-á durante os 18 meses posteriores à morte da vítima.
» Após essa data a demandante manterá um acompanhamento, pelo menos, mensal para o resto da sua vida.
Quanto à factualidade alegada pelo demandado AA em sede de contestação ao pedido de indemnização civil com relevo para a presente causa, entendemos não ter resultado provado que:
» A vítima teria referido ao demandado que não queria estudar nem dedicar-se à sua formação académica.
» A vítima apercebeu-se que o demandado poderia proporcionar-lhe uma vida confortável sem ter de se preocupar com ganhos decorrentes do seu trabalho.
» Era o demandado quem liquidava todas as despesas da vítima, nomeadamente com alimentação, deslocações de e para o estrangeiro, férias.
» Era o demandado quem liquidava todos os valores que despendiam em consumos de estupefacientes.
» Era o demandando quem liquidava os valores das contas de consumo de água, electricidade e de outros consumíveis da casa onde ambos viviam.
» Recaíam sobre o demandado todas as despesas respeitantes aos cães que pertenciam à vítima, onde se incluía a alimentação e veterinário.
O Tribunal recorrido motivou a decisão sobre a matéria de facto como segue:
O Tribunal formou a sua convicção a partir da análise crítica de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigo 127º do CPP). (…)
A audiência de julgamento decorreu com o registo dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados, no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal.
Tal circunstância, permitindo uma ulterior reprodução desses meios de prova e um efectivo controlo do modo como o tribunal formou a sua convicção, deve, também, nesta fase do processo, revestir-se de utilidade e dispensar o relato detalhado dos depoimentos e esclarecimentos prestados.
No caso em apreço, e relativamente à factualidade dada por provada formou o Tribunal a sua convicção no teor dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento pelas inúmeras testemunhas inquiridas ao longo das várias sessões, depoimentos esses, cujo conteúdo foi conjugado com o teor da vasta prova documental junta aos autos, analisada de acordo as regras da lógica e da experiência, e com o teor das declarações confessórias do arguido AA.
Com efeito, e começando pelas declarações do arguido - prestadas finda a produção de prova - diremos que as mesmas foram relevantes uma vez que o arguido acabou por confessar, no essencial, os factos constantes da acusação pública, excepção feita ao ponto 10 respeitante a um quarto golpe que teria desferido na vítima GG num momento em que aquele já se encontraria caído no solo.
Começando as suas declarações por dizer que queria pedir perdão aos pais da vítima, que estava muito arrependido e que a sua vida se havia transformado num desastre, o arguido assumiu a prática dos factos, nomeadamente a forma como matou GG e como, posteriormente, desmembrou o seu corpo e o deitou no lixo.
Tentou, desde logo, justificar a sua actuação dizendo que havia praticado aquilo que denominou de "um acidente fatal", o qual teria sido o culminar de uma relação terrível, pautada pela violência e pela percepção, da sua parte obviamente, que um dos dois teria que acabar por morrer.
Referiu que estava cegamente apaixonado, que não era capaz de colocar um ponto final na relação nem de se afastar da vítima, tendo aguentado um ano de humilhações e violência que suportou por amor.
Admitiu a factualidade dada por provada nos pontos 3 a 7, colocando sempre a enfâse nos problemas aditivos que a vítima teria; a violência que tinha suportado, mas enaltecendo-lhe as qualidades pessoais e reiterando, amiúde, o muito que o amava e o carinho que nutria pelo próprio pai de GG.
No que tange ao dia dos factos (... de ... de 2024) disse que haviam consumido produtos estupefacientes e que a discussão entre ambos terá começado por questões de dinheiro, tendo a vítima começado a arrancar as portas e as janelas da casa. Referiu que disse à vítima para parar, uma vez que queriam vender a casa e ir residir para ..., tendo a vítima começado a bater-lhe, tendo-lhe arremessado com o suporte do rolo de papel da cozinha, facto que o levou a pegar na faca de cozinha.
Confirmou a factualidade descrita nos pontos 9 a 12 referindo não se recordar do quarto golpe, uma vez que estaria "fora dele" embora confirmasse que, a determinada altura da discussão e da luta, caíram ambos ao chão.
Recorda-se que cerca de 5 minutos depois de ter esfaqueado o seu companheiro, por volta das 12h00, apercebeu-se que o mesmo estaria morto.
Nessa altura disse ter enlouquecido e consumido o resto do produto estupefaciente que tinha em casa. Havia muita droga em casa porquanto a vítima tinha chamado um dealer de ... a quem tinha comprado, acrescentando que o produto tinha sido pago com dinheiro seu - cerca de 600 € resultante de dois levantamentos.
Questionado sobre o porquê de ter dado a GG este dinheiro para a compra de produto estupefaciente referiu que se não o fizesse ele lhe teria batido, embora reconhecesse que também ele costumava agredir a vítima.
Disse que GG morreu entre a cozinha e sala e que decidiu levar o seu corpo para a casa de banho. Não lhe ocorreu chamar a ambulância ou pedir por socorro quando o viu caído no chão porque estava em pânico.
Admitiu que, na casa de banho, desmembrou o corpo da vítima, tendo para o efeito tido necessidade de ingerir whisky, por forma a ganhar força.
Confirmando a factualidade descrita na acusação referiu que a parte do corpo que nunca foi encontrada - cabeça e tronco de GG - foi por si levada para a ..., para a rua referida no ponto ..., e deitada num caixote do lixo.
Foi reiterando que amava muito a vítima e que apenas se apercebeu do que tinha feito 2 ou 3 dias depois, não conseguindo explicar a sua reacção de pânico após o sucedido.
Instado sobre o motivo pelo qual tinha necessidade de se desfazer do sofá da sala e deitado fora todas as almofadas, disse que tal se deveu ao muito sangue com que o mesmo ficou, referindo ao sucedido como “saiu sangue em jorro".
Perguntado o porquê de ter mantido as conversas que se encontram juntas a fIs. 667 a 692 e 912 a 978, para além do mais, com a mãe da vítima referiu que não foi por crueldade insensibilidade ou falta de empatia, mas antes por estar à espera de ver os pais do GG para lhes pedir perdão.
Sem necessidade de aqui percorrermos o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido AA diremos que as mesmas foram relevantes, não tanto para prova do essencial dos factos por si cometidos (assassinato do seu companheiro com uma faca e o desmembramento do seu corpo), uma vez que a prova dos mesmos encontra suporte bastante na vasta prova documental carreada para o processo a que aludiremos infra, mas sobretudo para o tribunal aferir da personalidade, das motivações do arguido e da sua análise relativamente aos crimes cometidos, volvidos estes cerca de 14 meses desde a sua prática.
Obviamente que reconhecemos não ter sido despicienda a sua confissão relativamente a determinados aspectos que dificilmente se poderiam dar como provados não fora a sua confissão, nomeadamente alguns pormenores tais como: o tipo de faca que utilizou para matar a vítima, a localização dos golpes que lhe desferiu, o tipo de faca que utilizou para desmembrar o corpo, a localização do caixote do lixo que escolheu para depositar a cabeça e o tronco da vítima ou mesmo os concretos objectos que lançou ao ....
Recorde-se que a circunstância de parte do corpo da vítima GG não ter sido encontrada inviabilizou a conclusão da autópsia quanto à causa da morte. Tal como referido nas conclusões do Relatório junto a fIs. 634 a 636 “(...) 1. O cadáver foi identificado como sendo GG, nascido a .../.../1987, com o passaporte FS875581 por comparação com estudo genético. 2. Não foi possível determinar a causa da morte de GG. 3. Na autópsia médico-legal foram observadas lesões traumáticas compatíveis com a produção por arma branca sem sinais de vitalidade, admitindo-se que tenham sido produzidas post-mortem. 4. O exame toxicológico foi positivo para a presença de etanol (0,93+-0,12g/l), drogas de abuso (canabinoides e cocaína) e dois analgésicos em concentrações consideradas não tóxicas.”
Não obstante, a verdade é que para além da confissão do arguido, no que tange à factualidade dada por provada nos pontos 9 a 27 afigurou-se, essencial para a formação da convicção do tribunal o teor do depoimento prestado pela testemunha KK, Inspector da Polícia Judiciária, que integrou a equipa de investigação deste homicídio, e que se caracterizou por a mais absoluta isenção, clareza, objectividade e coerência sendo totalmente consentâneo com as provas documentais e periciais carreadas para os autos.
Explicou, desde logo, que no dia em causa o seu piquete foi chamado à ... onde funcionários da ... encarregues de recorrer resíduos urbanos tinham encontrado o resto de um cadáver (pernas e genitália), dentro de um saco que analisaram e fotografaram (cfr. fIs. 7 a 16). Disse que começaram por tentar recolher imagens CCTV da zona, mas uma vez que nada de relevante foi possível obter, tentaram perceber quais as lojas que, na zona, tinham à venda sacos iguais aquele onde o resto do cadáver tinha sido encontrado.
Chegaram até uma “loja de chinês" onde visualizadas as imagens dos dias anteriores detectaram um indivíduo a comprar sacos, iguais ao que tinham visto na rua com os restos do cadáver, e um rolo de tinta (vide fIs. 40 a 46).
Continuaram com as chamadas diligências investigatórias quando recebem um telefone da parte da mãe da vítima a dar conta do desaparecimento do filho (vide informação de fls. 56). Nesse seguimento receberam umas imagens enviadas por um familiar de GG, momento em que pelas tatuagens que o mesmo tinha na perna foi possível identificar a vítima. Falaram com os familiares que identificaram o companheiro do filho e lhes enviaram fotografias do mesmo (cfr. fls. 59 a 65); ao verem as referidas fotografias, em que aparecia o arguido AA, perceberam que se tratava da mesma pessoa que aparecia nas imagens da loja do chinês a comprar os sacos e o rolo de tinta.
Nesta sequência, deslocaram-se a casa do arguido AA onde se aperceberam, logo à entrada, que a mesma exalava um cheiro intenso a tinta e a produtos de limpeza. Descreveu todas as recolhas de prova que foram feitas, tanto em casa do arguido AA como, posteriormente, na casa arrendada pela vítima, e que permitam perceber que os vestígios hemáticos recolhidos pertenciam à vítima e ao arguido (vide fls. 119 a 128).
Salientou, ainda, que se aperceberam logo que havia um sofá que estava desestruturado (fls. 318 a 320, 355 e 356), sem almofadas e dissimulado debaixo de uma bancada na cozinha, onde também foram recolhidos vestígios hemáticos.
Deu nota do esforço do arguido para "limpar" a casa, sendo que os vestígios hemáticos apenas foram detectados com luminol.
Na sequência dos resultados obtidos através dos vestígios recolhidos foi possível concluir, por exemplo, que nos sacos que continham o resto do cadáver existiam tanto vestígios hemáticos da vítima como do próprio arguido, o que lhes permitia concluir que o mesmo tinha estado em contacto/manuseado o referido saco.
Questionado, disse que o arguido AA inicialmente não colaborou apenas o tendo feito já depois de recolhidos os vestígios no interior da sua residência.
Não foi possível nem chegar às armas dos crimes, nem encontrar o resto do corpo da vítima.
No que respeita às armas chegaram à conclusão que o arguido se livrou delas e que, pelo menos uma, foi deitada ao .... Tal facto, para além de ter sido admitido pelo arguido AA, encontra suporte nas imagens que conseguiram recolher na zona da ..., junto a um dos pilares da ... (autos de visionamento junto a fIs. 543 a 573).
Mais acrescentou que se afigurou relevante a análise efectuada ao telemóvel do arguido, através do qual foi possível constatar, por exemplo, através de uma fotografia tirada no dia ... que a parede da entrada estava pintada e a disposição de móveis havia mudado entre a data próxima aos factos e o dia em que estiveram em casa do arguido AA a proceder à recolha dos vestígios (cfr. resulta do confronto de fIs. 717 e 316).
Explicou, também que, mais tarde, tiveram acesso ao conteúdo do telemóvel da mãe de GG - DD - e que através da análise de algumas mensagens foi possível perceberem que a relação entre o arguido e a vítima era complicada e pautada por alguma conflitualidade. Nesta sequência, apuraram depois junto da Polícia ... que, cerca de um ano antes da data dos factos aqui em causa, o arguido AA havia sido detido e identificado no âmbito de um processo de violência doméstica em que a vítima era queixoso (vide fIs. 758 e 759).
Deslocaram-se, ainda, ao apartamento que a vítima tinha arrendado na ... onde foram encontrados uns pedaços de pano com vestígios hemáticos quer do arguido, quer da vítima, ou seja, recolheram todo um conjunto de evidências que permitem concluir que o arguido teve a preocupação de levar estes restos de panos para outra casa (cfr. fIs. 371 a 384).
Foi também feito um exame ao corpo do próprio arguido que apresentava ferimentos, para além do mais, na mão e na região dos ombros; o ferimento da mão, que já era visível nas imagens recolhidas na loja do chinês, era compatível com um corte de faca ao passo que os demais eram compatíveis com a defesa no âmbito de uma luta recente (vide fIs. 360 a 366).
Relativamente à parte patrimonial referiu que não foi feita grande investigação, tendo sido somente detectado que o arguido AA, já depois de ter morto o seu companheiro, efectuou alguns pagamentos de compras com o cartão de crédito da vítima (vide fls. 507, 508, 509 e docs. de fIs. 744 e 745).
Para prova da factualidade dada por provada no ponto 22 - circunstâncias em que a parte do cadáver foi encontrada na madrugada do dia ... de ... de 2024 - sopesou o tribunal para além do descrito pelo Inspector KK, o depoimento das testemunhas LL, MM, NN e OO, todos funcionários da ..., a desempenhar funções na área dos resíduos urbanos, que, de uma forma perfeitamente clara, descreveram ao tribunal as concretas circunstâncias em que tiveram interacção com o saco que foi encontrado na ..., em ....
Decorre dos referidos depoimentos que o referido saco levantou suspeitas por causa do peso excessivo e conteúdo mole. A testemunha LL, assistente operacional, que no dia em causa fazia o "giro da ..." salientou até que, inicialmente, pensou que pudesse ser um cão morto que estivesse dentro do saco, circunstância que o fez reportar a situação à sua superiora hierárquica.
A testemunha NN, responsável por distribuir serviço aos operacionais que procedem à recolha dos resíduos, explicou que na madrugada em causa foi chamada ao local pelos operacionais que se encontravam a efectuar a recolha dos resíduos na zona da ... e que, após observar o saco, também pensou que no seu interior poderia estar um animal morto, termos em que decidiu calçar umas luvas, abrir o saco e cortar uma parte daquilo que lhe pareceu ser um lençol ou um pano que estava a envolver algo mole, tendo sido nesse momento que percebeu que se tratavam das pernas de um ser humano.
Relatou depois todos os contactos que efectuou instantes depois para as autoridades policiais e que culminaram com a deslocação ao local de agentes da PSP e, posteriormente, de Inspectores da Polícia Judiciária.
Recorda-se de uns dias mais tarde ter sido questionada pela Polícia Judiciária sobre a eventual recolha pelos seus funcionários no mesmo dia, nas imediações, de almofadas de sofá. Ainda entrou em contacto com o responsável do Núcleo de Organização da Recolha de Resíduos que, por sua vez contactou o motorista que no dia em causa tinha procedido à recolha desse tipo de resíduos naquela zona, mas não conseguiram apurar nada.
Mais referiu que, por haver a suspeita por parte da polícia que a parte restante do cadáver (cabeça e tronco) pudesse ter sido deitada no lixo ainda contactou, juntamente com o seu coordenador, a Fábrica da Reciclagem para onde são levados os resíduos urbanos que são recolhidos, mas que as diligências que aí foram feitas já estiveram a cargo das entidades policiais.
Para a formação da sua convicção no que respeita aos factos dados por provados nos pontos 1 a 5 e que se prendem com a identificação de arguido e vítima, com a forma como iniciaram o seu relacionamento e como faziam uma vida em comum diremos que, para além das declarações do próprio arguido, valorou o tribunal o depoimento das testemunhas PP, QQ, RR, dos assistentes DD, CC, SS e TT, amigos e familiares da vítima que demonstraram ter um conhecimento directo dos aludidos factos.
Todas as referidas testemunhas relataram ao tribunal as circunstâncias em que tiveram conhecimento de que a vítima havia começado uma relação amorosa com o arguido, o maior ou menor contacto que tiveram com ambos e os comportamentos que puderam observar.
No que respeita à conflitualidade existente entre arguido e vítima, facto dado por provado no ponto 6 diremos que para além do depoimento das já identificadas testemunhas atendeu- se, também, ao que foi descrito em julgamento pelos vizinhos - UU, VV e WW.
UU explicou que conhecia a vítima e o arguido porquanto os mesmos haviam morado no 4º andar do seu prédio, residindo a testemunha no 3º; acrescentando que, para além disso, chegou também a frequentar o restaurante que o arguido teve.
Contextualizou que o edifício onde mora data de ... e que, como tal, não tem grande isolamento ouvindo-se bastante bem o que se passa na casa dos vizinhos. Nesse contexto, referiu ter passado muitas noites sem dormir por conta das discussões que havia na casa da vítima; ouvia barulho no pavimento compatível com quedas ao chão e embora, muitas vezes, não conseguisse perceber em concreto o conteúdo da discussão, percebia que se tratava de uma discussão em que “…" falava rápido e em que o rapaz brasileiro tentava falar em ….
Tem memória de uma vez, por causa da intensidade do barulho, ter inclusivamente ido bater a casa da vítima e ter-lhes perguntado se não trabalhavam no dia seguinte.
Soube da notícia da morte de GG através da sua namorada à data e ficou chocado. Pese embora a vítima fosse barulhenta, mesmo quando ainda vivia sozinho (fazia festas e punha música alto), a verdade é que quando começou a namorar com o arguido o barulho era diferente. Não teve dúvida em afirmar que a relação entre ambos era conflituosa até porque chegou a sentir necessidade de chamar a polícia. Recorrentemente, havia uma discussão mais forte entre os dois e depois 1 ou 2 dias de acalmia.
Questionado, referiu que antes da morte se lhe dissessem que isto poderia acontecer não saberia dizer qualquer deles poderia ser a vítima ou o agressor.
Acrescentou que algumas vezes teve a percepção que para além das discussões existiriam agressões, uma vez que ouviu barulhos compatíveis com estalos; lembrando-se dum concreto episódio em que teve a percepção que o AA teria explodido e que logo a seguir ouviu um barulho no chão como se alguém tivesse caído e uma pessoa a sair de casa.
A testemunha VV referiu ser vizinho do lado do arguido AA e tê-lo conhecido nesse contexto. Chegou a tomar um copo com ele, a fazer conversa de circunstância, tendo ficado com a impressão que o comportamento daquele para consigo mudou quando começou a namorar com a vítima.
Admitiu que, uma vez ou outra, chegou a ouvir discussões entre os dois, ouvia vozes altas.
WW, de 82 anos de idade e vizinha da vítima, referiu conhecer tanto o arguido como a vítima referindo-se a GG como um “pequeno" muito simpático, educado e frágil. Questionada sobre eventuais discussões que tivesse ouvido ou presenciado referiu que directamente nunca ouviu nada do que se passava em casa da vítima, uma vez que aquela residia no 4º andar e a testemunha no 1º. Contudo, teve conhecimento dos problemas que o seu vizinho do 3º andar, o arquitecto UU teve, as queixas que o mesmo efectuou e as que eram dadas, quase diariamente, por outros vizinhos, nomeadamente sabe que, também, chegou a haver queixas por parte da senhora que vive no 2º andar.
Para além dos depoimentos isentos e totalmente coerentes destas testemunhas, vizinhas de ambos e que não demonstraram qualquer sentimento de animosidade para com arguido e/ou vítima, a verdade é que a relação conflituosa motivada por ciúmes e por outras questões relacionadas com o consumo de estupefacientes foi, também, aflorada pelos familiares de GG, nomeadamente e com maior conhecimento de causa pelos seus pais e sobrinha.
DD, CC e SS relataram ao tribunal episódios concretos, atitudes e comportamentos por si presenciados elucidativos e demonstrativos do que era a relação entre ambos.
Os pais da vítima referiram-se, para além do mais, e concretamente aquilo que puderam presenciar aquando da deslocação do casal ao ... e da convivência mais estreita que tiveram com o arguido AA; já SS referiu-se, de forma particular, aos dias que passou com o tio e o namorado na ..., quando os dois a foram visitar.
As descrições feitas de determinados episódios e comportamentos por parte do arguido AA que, no caso da ..., foram corroborados por XX amiga de SS que também os presenciou, porquanto estava com a sobrinha da vítima e passou com eles uns dias, permitiram ao tribunal perceber não só a conflitualidade latente da relação do arguido com a vítima, como as respectivas personalidades.
Ficou, aliás, por demais evidente que os conflitos existentes entre o casal, a toxicidade da relação amorosa de ambos, era uma preocupação para os pais de GG. A família e amigos próximos da vítima achavam que o arguido era uma pessoa mentirosa, manipuladora, com tendência para a vitimização que não fazia bem à vítima, tendo contextualizado e fundamentado, com o relato de concretas situações, a razão de ser das respectivas opiniões.
Para além dos depoimentos totalmente credíveis destas testemunhas valorou, ainda, o tribunal as mensagens juntas aos autos, destacando-se, a título meramente exemplificativo, as que constam de fIs. 1153 a 1156, em que no dia ... de ... de 2023 a vítima dá conta à mãe que tinha sido agredido e que a polícia já lá estava; fls. 1168 em que a vítima dá conta que o arguido tinha desaparecido outra vez, que teria ido para a sauna, as de fls. 1174, 1093, fls. 1146 e 1147, em que a vitima dá conta à mãe que o arguido desapareceu e que ao voltar teve um show de excesso de álcool e em que a assistente lhe pergunta directamente se eles se tinham agredido; a vítima diz à mãe YY nao aceita que pergunte nada, estava bêbado e brigou; (...) ia embora aquela mesma cena de sempre.
Relevante afigurou-se, igualmente, o depoimento de QQ porquanto demonstrou conhecer bem a vítima GG. Não só trabalhou com a mesma em Portugal como era uma das suas melhores amigas no nosso país.
De forma totalmente clara, escorreita e circunstanciada descreveu vários aspectos da vida de GG, incluindo as mudanças que pode observar após o mesmo ter iniciado a relação amorosa com o arguido. A descrição efectuada por esta testemunha mereceu credibilidade ao tribunal porquanto se encontra corroborada, em parte, pelo teor de fls. 525 (gravação áudio enviada pela vítima à testemunha, em que se queixa de ser tratado como lixo) e fls. 526 e 527 (em que a vítima explica que não poderia ir ao aniversário dela porquanto teria sido agredido "por um vizinho").
Resumindo, diremos que quanto à factualidade dada por provada nos pontos 1 a 37 analisou o tribunal, de forma conjugada, as declarações prestadas pelo arguido e o depoimento prestado pelas testemunhas LL, MM, NN, OO, ZZ, KK, AAA, UU, BBB, CCC, DD, CC, VV, SS e WW.
A prova testemunhal foi, ainda, conjugada com a vasta prova documental da qual destacamos a de fls. 8 (comunicação na notícia do crime); fls. 5 e ss (relatório de inspecção judiciária, com a localização e fotografias da parte do cadáver encontrado); fls. 31, 30 e 107 (autos de apreensão); fls. 40 a 46 (auto de visionamento da loja de chinês sita na ..., dia .../.../2024, entre as 16h25 e as 16h28), fls. 59 a 65 (fotografias do arguido e da vítima); fls. 80 (auto de revista e apreensão ao arguido); fls. 93 a 101 (cópia do testamento celebrado pelo arguido em ... no dia .../.../2024, em que o mesmo nomeia como único e universal herdeiro dos bens que tem em Portugal a vítima GG); fls. 106 a 155 (auto de busca e apreensão de roupas e outros pertences do arguido que permite estabelecer a sua ligação às imagens recolhidos em estabelecimento comerciais); fls. 117 a 129 (relatório preliminar do laboratório de Polícia Científica); fls. 271 a 296 e 301 a 367 (relatórios periciais); fls. 425 a 428 (auto de visionamento de imagens de um minimercado onde o arguido se deslocou no dia .../.../2024); fls. 543 a 548 (auto de visionamento do arguido na zona das ..., na madrugada do dia .../.../2024); fls. 636 (relatório da autópsia) e fls. 667 a 692 (print screen das conversas mantidas, no WhatsApp, pelo arguido AA, no grupo de família da vítima e com a mãe daquele entre o dia ... e .../.../2024).
Com efeito, analisando e sopesando a prova testemunhal efectuada em julgamento e procedendo à sua conjugação com o teor dos documentos a que aludimos com nenhuma dúvida ficou o tribunal acerca da factualidade dada por provada nos referidos pontos e que corresponde, na sua quase totalidade, à factualidade descrita pelo Ministério Público na acusação pública deduzida.
Diremos, desde já, que relativamente aos dois únicos factos que entendemos não terem resultado provados respeitam a aspectos relativamente aos quais não foi feita prova ou que a consistência da que foi efectuada é insuficiente.
Quanto ao dia em que os arguidos teriam regressado de ... diremos que para além do que foi referido por algumas testemunhas, as mensagens que se encontram juntas aos autos e que a vítima trocou com a sua mãe demonstram, de forma inequívoca, que os mesmos regressaram a Lisboa não no dia ..., mas antes no início do mês de ..., mais concretamente no dia 3 (vide fls. 1234 a 1237).
Já no que respeita ao quarto golpe que o arguido teria desferido quando a vítima já se encontraria no solo, diremos que não o tendo confessando o arguido e não tendo sido encontrado parte do corpo da vítima GG, ignora o tribunal quantos mais golpes o arguido poderá, ou não, ter desferido naquela mormente no tronco, braços e rosto.
No que respeita às condições pessoais do arguido, dadas por provada nos pontos 78 a 109 diremos que atendeu o tribunal às declarações do próprio, ao teor do Relatório Social junto a fls. 1785 a 1787, bem como ao teor do depoimento prestado pelas testemunhas ZZ, DDD, EEE, HH, II e FFF, amigos do arguido.
Relativamente à factualidade dada por provada nos pontos 38 a 76, que respeita aos factos alegados pelos demandantes em sede de pedido de indemnização civil, formou o tribunal a sua convicção, mais uma vez, da conjugação que efectuou entre os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e os documentos juntos com o referido pedido e que se encontram juntos a fls. 908 a 1211 e 1230 a 1471.
A factualidade dada por provada nos pontos 38 a 48, 50 e 51 foi descrita de forma clara, pormenorizada e, por isso, totalmente credível pelos demandantes QQ e CC, para além de se encontrar, corroborada pelos documentos que juntaram, a que já fizemos referência, e pelos que já se encontravam juntos aos autos.
Encontra-se junto fls. 1052 (doc. 14) o pedido para contrair matrimónio efectuado pelo arguido e pela vítima em .../.../2023, sendo certo que este aspecto também foi confirmado pelo arguido e era do conhecimento de diversas testemunhas.
A circunstância dos demandantes terem passado 5 dias a pensar que o filho estaria desaparecido - ponto 49 - encontra-se documentado não só nas mensagens que foram trocando com o arguido entre os dias .../.../2024 e os dias .../.../2024, como também foi corroborado pelo depoimento das testemunhas QQ, PP e RR, amigos de GG em Portugal, com quem a mãe entrou em contacto e a quem pediu que tentassem encontrar o seu filho ou saber notícias do mesmo.
Quanto às despesas em que os demandantes incorreram em consequência dos crimes de que foi vítima o seu filho e que incluíram não só as despesas que tiveram com as cerimónias fúnebres, com a sua deslocação para Portugal, mais concretamente para Lisboa, com a hospedagem nos dias em que aqui permaneceram, com o aluguer do carro que necessitaram para as suas deslocações, com o regresso ao ... para onde transportaram os cães do seu filho e acompanhamento psicológico de que necessitaram - pontos 52 a 64, atendeu o tribunal para além do descrito pelos demandantes, pelas testemunhas SS, GGG e HHH, ao que se encontra plasmado nos documentos juntos a fls. 979, 982, 983, 986 a 989, 992, 995 a 1002, 1005 a 1020,1022,1032 a 1035,1037 a 1042 a 1051.
Quanto às despesas em que incorreram considerou o tribunal aquelas cujos documentos atestam que foram pagas pelos próprios demandantes, mormente porque os documentos se encontram emitidos em nome daqueles, tendo-se em todas as situações em que os valores se encontravam em Reais considerado a taxa de câmbio indicada (cotação da moeda à data do pagamento), porque devidamente documentada.
Quanto às condições pessoais e profissionais da vítima GG, e bem assim ao seu relacionamento com os seus pais, demandantes III e CC (pontos 66 e 73 a 77), atendeu-se aos depoimentos das testemunhas QQ (amiga residente em Portugal), RR (amiga residente em Portugal), SS (sobrinha da vítima), TT (melhor amigo da vítima, residente no ...), III (amiga da vítima com quem residiu enquanto estudou no ...), JJJ (cunhada da vítima), KKK (comadre dos pais da vítima), LLL (primo da vítima e sobrinho dos demandantes), MMM (amigo da vítima), NNN (amigo da vítima) e OOO (amiga e colega de faculdade da vítima).
Todas as testemunhas supra identificadas demonstraram ter uma relação de proximidade com a vítima e com os seus pais, logo, um conhecimento directo do que foi a vivência da vítima enquanto residiu no ..., do seu percurso escolar, do relacionamento que manteve com a família e com os amigos após a sua vinda para Portugal e, bem assim, do impacto que a morte de GG teve para a sua família.
Descreveram e atestaram o sofrimento e dor que a morte do filho dos demandantes causou nos mesmos e que perdura até hoje - sendo que as circunstâncias provadas nesta parte, para além de descritas em julgamento, decorrem em si mesmas de elementares regras de experiência comum, relacionadas com a absoluta e indiscutível evidência de ser o direito à vida o valor supremo e inabalável de qualquer pessoa, e com aquilo que se considera ser, na nossa sociedade, a mais normal e quase axiomática essencialidade dos laços de paternidade e dos sentimentos de amor e estima que os mesmos sustentam, laços e sentimentos facilmente apreensíveis e entendíveis por qualquer pessoa média com um mínimo de senso comum.
Essas regras de experiência, cumpre assinalá-lo, de forma nenhuma foram afastadas pela prova produzida em sede de audiência final, antes pelo contrário, resultando plenamente corroboradas não só pelo depoimento das testemunhas referenciadas, como pelas declarações emotivas prestadas pelos próprios assistentes. A dor, angústia e sofrimento vivenciado por estes pais ficou, por demais, evidenciada ao longo do julgamento.
Os depoimentos das referidas testemunhas foram, ainda, corroborados pela análise das conversas mantidas pela vítima com os seus pais e que se encontram documentadas nos autos, bem como pelas fotografias de fls. 1178 a 1211.
Relativamente à factualidade dada por não provada no que respeita ao pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes diremos que se tratam de factos cuja prova não foi feita de forma cabal em audiência de julgamento. Com efeito, não há nenhum documento (diagnóstico e/ou relatório médico) que ateste os aspectos dados por não provados.
Assim, tendo em conta os valores pagos pela demandante nos meses cujos documentos se encontram juntos aos autos, optou o tribunal pelo ressarcimento de todas as despesas com consultas de apoio psicológico despendidas pela demandante até à presente data.
Já a factualidade dada por não provada que havia sido alegada pelo arguido/ demandado AA em sede de contestação ao pedido de indemnização civil diremos que resultou da total ausência de prova e mesmo contradição clara com aquela que foi produzida e que resulta do processo.
Na verdade, resultou por demais evidenciado que os pais da vítima lhe enviavam com regularidade dinheiro e que asseguravam todas as despesas do filho e, inclusivamente, algumas do próprio arguido.
Para além de tal facto ter sido referido pelos demandantes e ser do conhecimento de algumas testemunhas, mormente de RR, a verdade é que existem nos autos mensagens da vítima trocada com os seus pais a pedir dinheiro, a pedir informações sobre cartões (vide entre outras a mensagem de f Is. 1159).
Acresce ao exposto, ter ficado, para além do mais, demonstrado que mesmo após a sua morte o arguido teve necessidade de recorrer ao cartão de crédito da vítima para efectuar alguns pagamentos (cfr. decorre de f Is. 507 a 509 e 745).
A imagem que o arguido tentou passar de que era ele quem tinha disponibilidade financeira; que era ele quem sustentava a vítima foi de todo infirmada não só com a prova produzida em julgamento, como até pelos depoimentos de alguns dos seus amigos que não só referiam ter-lhe emprestado dinheiro (caso de HH) como descreveram a situação complicada em que o mesmo vivia depois de ter fechado o seu restaurante após a pandemia.
Aliás, bastaria analisar o que consta do próprio relatório social do arguido, feito com base naquilo que foram as suas declarações (vide pontos 97 e 98).
Em suma, percorrida ainda que de forma naturalmente sintética a vasta prova testemunhal efectuada em julgamento, que se encontra gravada e por isso a todo o momento sindicável, diremos que a forma de actuação do arguido e respectiva personalidade ficou sobejamente demonstrada.
A frieza e insensibilidade que usou tanto para matar e mutilar a vítima, pessoa que repetidamente referiu amar loucamente, perdurou nos dias seguintes a .../.../2024.
O arguido demonstrou uma total falta de empatia para com os pais da vítima não só nos dias imediatamente a seguir aos factos, em que ia trocando mensagens com a família como se a ausência de GG se devesse a uma decisão pessoal daquele e ele próprio estivesse preocupado em o encontrar, mas perdurou na audiência de julgamento volvidos todos estes meses.
A tentativa de vitimização e a falta de empatia ficaram demonstradas, desde logo, quando as primeiras palavras que disse em julgamento sobre os factos foram para pedir perdão ao pai da vítima. Ao invés de se referir, desde logo, a GG e às consequências dos seus actos, disse que estava há um ano a morrer lentamente. As primeiras palavras do arguido não são sobre a vítima, sobre a gravidade dos seus actos, ou sobre o sofrimento que trouxe a estes pais, mas sobre si próprio.
Aliás, após a prática dos factos, cuja brutalidade e gravidade nos escusamos de repetir ou enfatizar, a única preocupação do arguido foi fazer tudo o que estava ao seu alcance para se eximir à responsabilidade dos seus actos e prosseguir com a sua vida.
Desde compras em diversos estabelecimentos comerciais, limpeza e pintura da casa, passeios com os cães, contactos para prosseguir com a venda do imóvel e de móveis, o arguido AA fez de tudo um pouco.
O arguido recebeu, inclusivamente, após ter morto o seu noivo/companheiro a visita de ZZ em casa.
Esta testemunha referiu que foi a casa do arguido numa 5a feira, no início de ... de 2024, na véspera de fazer uma viagem para ... (motivo pelo qual recordava as datas), com o propósito de ver uns móveis que o AA pretendia vender, uma vez que segundo aquele lhe transmitiu ele e o GG estavam a dias de ir viver para ....
Recordava-se que quando chegou a casa do AA, e enquanto via os móveis, o mesmo lhe terá comentado que o GG teria ido fazer uma pequena cirurgia, mas que teria de o consultar quanto ao valor que a testemunha lhe estava a propor (400 €). Passadas umas horas recebeu um telefonema do arguido a dizer-lhe que o GG tinha concordado com o preço e a testemunha efectuou o pagamento no dia seguinte, .../.../2024, pela manhã. Mais referiu que ainda se encontrava ainda em ... quando recebeu umas mensagens dos amigos a dizer o que tinha acontecido. Ficou perplexa e nem queria acreditar no que se tinha passado.
Também após ter morto e desmembrado o companheiro o arguido tratou de dinamizar a venda da sua casa, como se extraí do depoimento da sua amiga II.
Em suma, sem necessidade de ulteriores considerações, diremos que toda a postura do arguido, durante o cometimento dos factos, após a sua prática e mesmo em julgamento, demonstra uma total insensibilidade e uma total falta de empatia.
Por último, diremos que a ausência de antecedentes criminais do arguido resultou do teor do CRC junto ao processo.
* * *
Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, o recorrente:
- impugna a decisão sobre a matéria de facto;
- invoca a ilegitimidade dos demandantes para deduzirem o pedido de indemnização civil e, em particular, para obterem compensação pelo transporte dos cães da vítima para o ...; e
- alega ser excessiva medida das penas (parcelares e única) aplicadas.
*
Da impugnação sobre a matéria de facto
Alega o recorrente que os factos 68. a 71. da matéria de facto provada, foram assim considerados sem qualquer sustentação probatória, isto é, nem com base nos depoimentos de testemunhas, declarações do arguido, ou mesmo pelos documentos juntos aos autos. Considera, por isso, que o acórdão recorrido “é nulo por contradição com as respostas dadas à matéria de facto 68. a 71. e a base probatória dos autos”.
Desta alegação verifica-se uma confusão de conceitos.
Se os factos provados não têm sustentação na prova produzida, ou contradizem a prova, tal não acarreta qualquer nulidade (cfr. o disposto no nº 1 do art. 118º do Cód. Proc. Penal), podendo apenas existir um erro de julgamento que conduziria a que os factos provados se quedassem por não provados.
Admite-se, também, que se a circunstância de terem sido dados como provados determinados factos, estiver em contradição com as razões constantes da motivação, tal constitua uma contradição insanável, com previsão na alínea b), do nº 2, do art. 410º do Cód. Proc. Penal, a acarretar o correspondente vício (mas não uma nulidade).
Os factos em questão são os seguintes:
68. A morte da vítima não foi imediata após o primeiro golpe do demandado.
69. Desde o primeiro golpe até à sua morte, a vítima sofreu outros dois golpes enquanto ainda se encontrava de pé vindo a falecer quando já se encontrava caído no solo.
70. A vítima teve dores na sequência dos golpes de que foi alvo.
71. A vítima sentiu angústia quando teve consciência que a sua vida ia terminar na sequência dos golpes que lhe foram dados pela pessoa por quem estava apaixonada e com quem tinha feito planos para casar.
A impugnação da decisão sobre matéria de facto pode fazer-se por duas vias: mediante a invocação de vícios da sentença enunciados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal (dita impugnação de âmbito restrito), ou mediante a invocação de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada pelo Tribunal recorrido (impugnação ampla).
Começaremos por apreciar se existe vício de contradição insanável
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada.
E a contradição que consubstancia o vício, para além de resultar apenas do texto da decisão, tem que ser notória, isto é evidente para qualquer pessoa de são e médio discernimento.
Perscrutado o recurso verifica-se que o recorrente alega que o acórdão recorrido “é nulo por contradição com as respostas dadas à matéria de facto 68. a 71. e a base probatória dos autos”.
Analisada a motivação do Tribunal recorrido quanto à concreta matéria impugnada, temos que ali consta:
«No que tange ao dia dos factos (... de ... de 2024) disse que haviam consumido produtos estupefacientes e que a discussão entre ambos terá começado por questões de dinheiro, tendo a vítima começado a arrancar as portas e as janelas da casa. Referiu que disse à vítima para parar, uma vez que queriam vender a casa e ir residir para ..., tendo a vítima começado a bater-lhe, tendo-lhe arremessado com o suporte do rolo de papel da cozinha, facto que o levou a pegar na faca de cozinha.
Confirmou a factualidade descrita nos pontos 9 a 12 referindo não se recordar do quarto golpe, uma vez que estaria "fora dele" embora confirmasse que, a determinada altura da discussão e da luta, caíram ambos ao chão.
Recorda-se que cerca de 5 minutos depois de ter esfaqueado o seu companheiro, por volta das 12h00, apercebeu-se que o mesmo estaria morto.
(…)
Relativamente à factualidade dada por provada nos pontos 38 a 76, que respeita aos factos alegados pelos demandantes em sede de pedido de indemnização civil, formou o tribunal a sua convicção, mais uma vez, da conjugação que efectuou entre os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e os documentos juntos com o referido pedido e que se encontram juntos a fls. 908 a 1211 e 1230 a 1471.
(…)
Encontra-se junto fls. 1052 (doc. 14) o pedido para contrair matrimónio efectuado pelo arguido e pela vítima em .../.../2023, sendo certo que este aspecto também foi confirmado pelo arguido e era do conhecimento de diversas testemunhas.»
Lida a motivação, não se encontra qualquer contradição, evidente, entre a matéria de facto impugnada e a motivação, pelo que resta afirmar que não existe o alegado vício.
Falta, então, averiguar da existência de erro de julgamento.
Neste âmbito há que esclarecer que (como é consensual entre a doutrina e a jurisprudência) o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo Tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida – duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no Tribunal de recurso.
Assim, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa – sobre este ponto, cfr. os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007 (Processo 07P21), de 23 de Maio de 2007 (Processo 07P1498) e de 3 de Julho de 2008 (Processo 08P1312), todos disponíveis em www. dgsi.pt).
Com efeito, quanto à eventual existência de erro de julgamento, temos que os n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. Proc. Penal contêm directrizes muito precisas e exigentes: o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (em conformidade com o nº 3 do citado art. 412º), além dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo Tribunal recorrido (obrigação só satisfeita com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida), também as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, sendo que, nos termos do nº 4, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do art. 364º do mesmo código, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação). Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida.
No caso em análise, o recorrente impugna factos determinados mas não cumpre o ónus de especificação no que se refere às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, mas também seria impossível, na medida em que diz que não há prova dos factos que impugna.
Cientes de que não consta da motivação a existência de testemunhas oculares e que, não tendo sido encontrada a parte superior do corpo da vítima, não foi feita autópsia que determinasse as lesões que causaram a morte, procedeu-se à audição, gravada, das declarações prestadas pelo recorrente.
O recorrente, nas declarações que prestou disse que na sequência da discussão que teve com a vítima, a dada altura dirigiu-se a ele (vítima) e abanou-o, ao que a vítima lhe atirou um suporte, em madeira, do rolo de papel e ele (recorrente) ficou “desesperado”, “estava muito nervoso” e “defendi-me com uma faca”; esbracejaram os dois, um com o outro, a vítima fez-lhe um golpe e “eu atingi-o no pescoço com 3 golpes do lado esquerdo” e ambos caíram. Perguntado se não tinha desferido um quarto golpe na vítima esclareceu o recorrente que após o 3º golpe a vítima caiu no chão e não se recorda de o ter golpeado quando ele estava caído. Mais disse o recorrente que só deu conta que a vítima estava morta 5 minutos depois.
Estas declarações, analisadas de acordo com as regras da experiência são de molde a concluir que a vítima só faleceu após o 3º golpe, que foi quando caiu, pelo que suportou em vida o 1º e o 2º golpes e, mesmo após o 3º golpe, a morte não terá sido imediata, já que o recorrente só se apercebeu, 5 minutos depois da queda, do falecimento da vítima.
Lembramos que o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da livre apreciação da prova, livre mas, de acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111), “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Também o Tribunal Constitucional (Ac. nº 464/97/T, D.R., II Série, nº 9/98 de 12.1), chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e estribando-se nos ensinamentos dos Prof. Castanheira Neves e Figueiredo Dias, refere que “esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso «está apta para o consenso». A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça”.
Ora as declarações do arguido, analisadas de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, impõem a conclusão supra referida: a vítima só faleceu após a inflicção do 3º golpe e quando já estava caída no solo.
E analisados estes factos (golpes e falecimento) de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, impõe-se também concluir que “A vítima teve dores na sequência dos golpes de que foi alvo” (70.) e que “A vítima sentiu angústia quando teve consciência que a sua vida ia terminar na sequência dos golpes que lhe foram dados pela pessoa por quem estava apaixonada e com quem tinha feito planos para casar” (71.), sendo que quanto à última parte deste facto é o próprio recorrente que assume que estavam apaixonados e que tinham intenção de casar (cfr. ainda, o documento de fls. 1053 – o pedido para contrair matrimónio efectuado pelo arguido e pela vítima em ........2023).
Pelo que improcede a impugnação com referência ao erro de julgamento.
Da legitimidade dos demandantes para o pedido de indemnização
Alega o recorrente que apesar de os demandantes se arrogarem com direito de reclamarem indemnização pelo falecimento da vítima, não provaram ter aquela falecido no estado de solteiro e/ou sem descendentes, pelo que deve improceder, na totalidade, o prejuízo moral que invocam.
Mais alega que o Acórdão recorrido assumiu como ressarcíveis apenas as despesas que os demandantes demonstraram ter realizado, por causa da morte da vítima, e que não teriam realizado se não fosse o mesmo ilícito, pelo que deve ser absolvido do pagamento no valor de 437,36 €, suportado por EE e por FF e referente a valores pagos pela preparação e deslocação, por via aérea, dos canídeos, da vítima, de ... - ....
Não se encontra junta aos autos uma escritura de habilitação de herdeiros, mas que os demandantes/assistentes são pais da vítima, resulta provado, desde logo, pelo Relatório de Autópsia junto aos autos em 18.07.2024, onde a vítima é identificada com referência ao nº do passaporte e onde consta a filiação da mesma. Que a vítima era solteiro consta também do documento junto com o pedido de indemnização civil a fls. 1053 o (pedido para contrair matrimónio efectuado pelo arguido e pela vítima em ........2023), estando a vítima também identificada com referência ao nº do passaporte.
Repare-se, além do mais, que a filiação e o estado civil da vítima foram considerados provados no ponto 77., do acórdão recorrido, o qual não foi especificamente impugnado pelo recorrente.
E quanto à circunstância de a vítima poder ter descendentes é certo que, se fosse esse o caso, o recorrente, que viveu com a vítima como casal, certamente saberia e não deixaria de os indicar.
Conclui-se, assim, pela legitimidade dos demandantes.
Em relação ao valor de 437,36 €, suportado por EE e por FF e referente a valores pagos pela preparação e deslocação, por via aérea, dos canídeos, da vítima, de ... -..., dir-se-á que foi dado como provado no ponto 59. (não especificamente impugnado) do acórdão recorrido, que “Para além do referido valor e relacionado com a deslocação dos referidos cães para S. GG os demandantes tiveram ainda que despender 437,36 €”, que é o valor em causa (e nada obsta que, mesmo havendo facturas nos autos em nome de EE e por FF, estes tenham adiantado pagamentos que depois receberam dos demandantes).
Pelo que improcede esta vertente do recurso.
Das penas
Alega o recorrente que a condenação nas penas parcelares de 25 anos e de 1 ano e 9 meses, respectivamente, para o crime de homicídio qualificado e para o crime de profanação de cadáver e a aplicação da pena única de 25 anos, não observou os critérios de determinação da pena que resultam da conjugação dos arts. 40º e 71º do Cód. Penal.
Afirma que não foi ponderado o seu arrependimento sincero, a confissão integral e sem reservas e a ausência de premeditação, defendendo como adequada, necessária e proporcional a aplicação das penas parcelares de 19 anos prisão para o crime de homicídio qualificado e de 1 ano e 6 meses de prisão para o crime de profanação de cadáver, com aplicação de pena única de 20 anos.
Com respeito às penas parcelares e única aplicadas, disse o Tribunal recorrido:
«Feito o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido AA impõe-se, agora, proceder à determinação da medida da pena que cabe aplicar relativamente a cada um dos dois ilícitos que são imputados ao arguido e pelos quais irá ser condenado.
No que tange à medida concreta da pena, é o art.71º do Código Penal que trata da sua determinação, que será encontrada dentro da moldura legal abstractamente prevista fixada pelo legislador no preceito legal.
Impõe, assim, o art.71º nº1 do Código Penal que a pena tenha por limite máximo a culpa e por limite mínimo as exigências de prevenção geral.
Debrucemo-nos um pouco sobre estes conceitos, maxime sobre as suas implicações em sede de medida concreta da pena.
A prevenção geral, a que o legislador manda atender, não é o conceito de prevenção em sentido amplo, entendendo-se este como a finalidade global de toda a política criminal, isto é, como o conjunto dos meios e estratégias preventivos, destinados à luta contra a criminalidade.
O conceito de prevenção geral, no sentido em que é referido no Código Penal, e enquanto finalidade da pena, visa o reforço da consciência comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma jurídico-penal.
Estamos, pois, perante a noção de prevenção geral positiva ou de integração.
Não se prevê, no Código Penal, a prevenção geral negativa ou de intimidação, em relação à qual Eduardo Correia manifestou expressa e publicamente, ("Jornadas de Direito Criminal" - As grandes linhas da reforma penal) a sua oposição e preocupação, pois temia que caso ela fosse consagrada, o direito penal se transformasse num "direito penal de terror".
Contrariamente, a prevenção geral positiva, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida, contribuirá também como factor de reintegração do delinquente na comunidade.
Em suma, a moldura penal mínima, a estabelecer em função da defesa do ordenamento jurídico, haverá de pautar-se por critérios alheios a quaisquer considerações atinentes à culpa ou à prevenção especial.
Decisivo deverá ser, somente, o quantum de pena que seja indispensável para que não se ponham em causa a crença da comunidade na validade da norma e, em consequência, os sentimentos de confiança e segurança nas instituições jurídico-penais, maxime nos tribunais.
No que concerne ao critério em função do qual vai ser estabelecido o máximo da pena concretamente aplicável, importa salientar que esse quantum de pena vai ser, como já dissemos, determinado em função da culpa.
O princípio da culpa é indispensável, exercendo uma função fundamentadora e limitadora da pena.
Na realidade, a função da culpa é a de estabelecer um máximo de pena concreta, aplicável ao agente, mas de molde a que esta seja ainda compatível com as exigências, constitucionais, de preservação da dignidade da pessoa humana, próprias de um Estado de Direito Democrático.
Assim, a culpa servirá para estabelecer o limite máximo da pena, o qual não poderá ser ultrapassado, em obediência ao princípio basilar do nosso direito penal"nulla poena sine culpa".
Esta culpa deverá ser entendida como uma censura dirigida ao agente, em virtude da sua atitude desvaliosa, documentada num determinado facto, sendo de realçar que não relevarão para a pena, em sede de culpa, quaisquer tipos de circunstâncias atípicas ou extra- típicas do facto.
Em seguida, e dentro da moldura penal encontrada de acordo com a culpa e a prevenção geral, irão actuar as exigências de prevenção especial de socialização, sendo esta finalidade a determinar, em última análise, a medida final da pena aplicável ao agente.
Quanto aos factores a ter em conta na determinação da medida da pena, também aí o nosso Código Penal fornece indicações ou orientações indiciárias ao julgador, como resulta do preceituado no nº2 do art.71º.
A dosimetria penal será, assim, apurada em função da culpa do agente, que fixa o limite máximo da pena, das exigências de prevenção geral e de prevenção especial, em função das quais se determina, dentro da moldura penal abstracta aplicável, a pena concreta a aplicar.
Assim, na determinação da medida concreta da pena atender-se-á às circunstâncias constantes do art.71º do Código Penal, maxime ao grau de ilicitude, ao modo de execução do crime, à gravidade das consequências e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente.
Veja-se, aliás, sobre esta matéria o referido no recente Acórdão do STJ, de 14/07/2010 (in www.dgsi.pt):
"(...) As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
No caso do crime de homicídio qualificado nos termos do disposto no artigo 132º nºs 1 e 2 alínea b), vimos que o mesmo é punido com uma pena que oscila entre os 12 e os 25 anos de prisão, ao passo que o crime de profanação de cadáver nos termos do disposto no artigo 254º nº1 alíneas a) e b), é punido com uma pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa.
Voltando aos elementos dos autos e à factualidade dada por provada diremos que, relativamente ao crime de homicídio qualificado perpetrado na pessoa de GG, a gravidade de toda a actuação do arguido, mormente as circunstâncias que rodearam as agressões em análise aliadas à forma e meio através do qual foram praticadas, os sentimentos manifestados durante e após o cometimento dos factos, nos levam a optar pela aplicação de uma pena de prisão situada no limite máximo permitido.
Com efeito, toda a actuação do arguido denota uma personalidade completamente contrária ao direito e aos mais elementares valores de respeito, solidariedade ou empatia para com o ser humano.
Não vemos em toda a sua actuação mais do que frieza, insensibilidade, agressividade, crueldade e egoísmo, aliados a um profundo e intensíssimo desrespeito para com a vítima, que recorde-se era à data seu companheiro/noivo, e para com seus familiares.
Para além de ter perfurado o ofendido, com uma faca, numa zona particularmente sensível do corpo (pescoço), o arguido começa logo por agir com particular intensidade e com profundo desprezo pelo sofrimento e vida do seu companheiro. Tal como admitiu em julgamento, desferiu-lhe não um, que seria suficiente para o imobilizar e até para o matar, mas três golpes no lado esquerdo do pescoço, no sentido descendente por forma a perfurá-lo.
E, se a ilicitude é relevante em todas as situações, principalmente cujo desfecho é a morte de um ser humano, mostra-se particularmente intensa no presente caso atendendo ao modo de execução das agressões e à forma como as mesmas culminaram - com o ofendido GG a morrer esvaído em sangue.
Foi tal a brutalidade da actuação do arguido e as consequências que a mesma teve na vítima GG que fez com que o sangue da vítima tivesse ficado espalhado por vários locais da casa, ou nas palavras do próprio "saído em jorro".
Tal como admitido pelo próprio, AA teve necessidade de limpar chão, pintar paredes e desmembrar um sofá para ocultar os vestígios do crime por si praticado na pessoa daquele que referiu como sendo "o amor da sua vida".
Mas se são graves os factos praticados pelo arguido que culminaram na morte do seu companheiro, a sua conduta nas horas seguintes é por demais reveladora da sua frieza, calculismo, egoísmo e perversidade.
Não só não chamou qualquer tipo de ajuda médica que pudesse, eventualmente, salvar a vida do companheiro, como tratou de pensar em si, prosseguir a sua vida e de rapidamente elaborar um plano que lhe permitisse sair incólume de toda a sua actuação.
Desde comprar os sacos para meter as partes do corpo do companheiro, a comprar comida, a comprar rolos para pintar a casa, a passear os cães, a descolar-se ao ... para comprar comida para animal, tudo fez o arguido nos dois dias seguintes a ter morto o seu companheiro. Tendo, inclusivamente, feito uso do cartão de crédito da vítima para efectuar alguns dos pagamentos das referidas compras.
A perversidade do arguido não conheceu limites nas horas seguintes à morte de GG.
O arguido conseguiu falar com a mãe da vítima, apercebendo-se da preocupação e angústia crescente da mesma por não conseguir entrar em contacto com o filho, e conseguiu inventar toda uma história.
Não só nunca assumiu a prática dos factos, entregando-se às autoridades e/ou até mesmo fazendo-o somente, num momento inicial, perante os familiares do seu companheiro, como conseguiu vitimizar-se perante a mãe de GG, dizendo-lhe que também ele estava a morrer de preocupação; que andava à procura do mesmo por diversos locais da cidade, imputando o desaparecimento da vítima e ausência de contactos daquela para com a família com actos da mesma, já que teria decidido ir a uma festa e não mais regressar ou dar notícias. Ia inclusivamente mandando, como demonstram as mensagens juntas ao processo a que já aludimos, fotografias e localizações suas, por forma a que a mãe acreditasse que estava empenhado em encontrar o seu filho.
Ao mesmo tempo que acalentava esperança à mãe da vítima, dizendo que esta tinha saído para uma festa, o arguido arrastou o seu cadáver pelos pés para a casa de banho, cortou-o ao meio, desmembrou-o, infligiu-lhe ferimentos e feridas, tudo como demonstram as fotografias da única parte do corpo encontrada, decidindo deitar o que restava do seu companheiro no lixo.
O arguido após ter morto o seu companheiro, a pessoa com quem pretendia casar e a favor de quem dias antes tinha feito um testamento, nem sequer tentou dar ao corpo do mesmo um fim digno e condigno à sua natureza humana.
Com efeito, é por demais revelador dos seus sentimentos e da sua total falta de empatia, quer para com a vítima quer para com os familiares daquela, a decisão do arguido de deitar GG no lixo. Sim, no lixo.
Dificilmente poderemos encontrar atitude de maior desrespeito para com o cadáver de um ser humano do que aquele que apreciamos no presente processo.
A única coisa que o arguido sopesou foi a maneira mais segura de poder não vir a ser incriminado pelo assassinato que havia cometido. E, caso tivesse acontecido à única parte do corpo que foi encontrada o mesmo que aconteceu à restante, pois recordemos que a cabeça e o tronco da vítima nunca apareceram, tal poderia até ter sucedido.
Assim, e por todo o exposto, entendemos que tendo o arguido actuado como dolo directo nos dois ilícitos pelos quais vai condenado, o grau elevado, para não dizermos elevadíssimo, de ilicitude revelado pela forma como matou o seu companheiro (meio utilizado e zona atingida), são elevadas quer as exigências de prevenção especial quer as de prevenção geral.
Como é comummente referido, os índices de criminalidade violenta no seio de contexto de relações amorosas e/ou conjugalidade têm vindo a aumentar, a par com o desprezo pela vida e integridade física dos seus elementos. São crimes que provocam na colectividade sentimentos de choque, insegurança e revolta.
Com efeito, não podemos ignorar que estamos perante tipos criminais que no domínio atinente às exigências de prevenção geral exigem resposta especialmente eficaz, dado tratar-se de criminalidade cuja danosidade social é sentida por toda a sociedade que, infelizmente e cada vez mais, tem vindo a ser confrontada com comportamentos como os que teve o arguido AA, resposta que sendo vital não se poderá ir além da medida da culpa do agente, ponto inultrapassável, como já se reflectiu. Sucede que, no presente caso a culpa do arguido encontra-se, em face de todo o exposto, num nível elevadíssimo.
No parâmetro das exigências ao nível da prevenção especial, torna-se necessário usar a pena na função subordinada de advertência do agente, alertando-o para uma maior conformação com os padrões axiológicos vigentes, consubstanciados no respeito pelo valor da liberdade individual de decisão e acção.
Sucede que, no presente caso, a favor do arguido pouco ou nada se pode referir que não seja os seus aparentes hábitos de trabalho e ausência de antecedentes criminais à data, aspecto este que mais não é do que uma expressão do cumprimento dos deveres inerentes a um cidadão num Estado do Direito.
Não ignorando o tribunal o tempo entretanto decorrido desde a detenção do arguido, entende-se que ao mesmo terá de ser aplicada uma pena situada no limite máximo da moldura abstractamente aplicável ao crime de homicídio e próxima desse limite no que tange ao crime de profanação de cadáver, uma vez que também a sua culpa se situa nesse patamar, assim como as consequências que advieram das suas condutas.
Tal como supra salientado, o arguido actuou na situação em apreço com dolo directo de elevadíssima intensidade, não mitigado por qualquer circunstância, o que sempre revela uma personalidade, manifestada no facto, distanciada da pressuposta no "homem fiel ao direito".
Tal como já salientámos, em seu desfavor, deve ser ponderada a ilicitude dos factos, ao nível do desvalor de acção, tendo em conta o grau de violência empregue e a motivação desvaliosa que presidiu ao seu comportamento, uma vez que matou o seu companheiro, no âmbito de uma discussão, de uma forma brutal e grotesca que acarretou para a vítima certamente um sofrimento atroz, sendo a sua reacção perfeitamente desproporcionada em relação à discussão que pudessem estar a ter.
A ilicitude da sua actuação perdurou nos momentos imediatamente a seguir às agressões que levaram à morte da vítima, pois recordemos que em momento nenhum o arguido tentou prestar-lhe qualquer auxílio, chamando ajuda, antes se centrou em si, preocupando-se em munir-se de utensílios que lhe permitissem encobrir a brutalidade da sua actuação.
O arguido, depois de ter assassinado o seu namorado/companheiro, continuou a falar com os familiares daquele como se o mesmo tivesse vivo, tentou vender os móveis de sua casa, incrementar a venda do seu apartamento, saiu à rua e foi às compras, tendo como única preocupação ocultar o que tinha feito e tentar eximir-se à sua responsabilidade. Em sede de prevenção e no que respeita à ilicitude do facto, ao nível do desvalor de acção, haverá ainda que ponderar todas as suas atitudes posteriores, e que culminaram na circunstância de perante o cadáver do namorado ter decidido desmembrá-lo e deitá-lo no lixo.
Ponderando todos os elementos referenciados e os aspectos relativos às condições pessoais do arguido AA temos por adequado condená-lo nas seguintes penas:
» 25 anos pela prática do crime de homicídio qualificado;
» 1 ano e 9 meses de prisão pela prática do crime de profanação e ocultação de cadáver.
* Do cúmulo jurídico das penas aplicadas.
Face ao exposto, haverá que fazer o cúmulo das penas aplicadas ao arguido AA, nos termos do disposto no artigo 77º do CP.
Dispõe o referido preceito que "Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. (nº1)
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. (nº2)”
A medida da pena a atribuir em sede de cúmulo jurídico tem uma especificidade própria.
Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal mais abrangente. Por outro, tem lugar uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71º do Código Penal.
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §§ 420 e 421, págs. 290/2, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72º-1 (actual 71º-1), um critério especial: o do artigo 77º, nº1, 2ª parte.
Explicita o Autor que, na busca da pena do concurso, "Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta".
E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)".
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
A moldura abstracta do concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas, e como máximo a soma de todas elas, mas sem ultrapassar os 25 anos de prisão.
No caso concreto, tendo em atenção as penas parcelares agora aplicadas ao arguido AA a moldura penal a aplicar em cúmulo tem como limitação 25 anos, que corresponde a uma das penas aplicadas, termos em que é essa, em face da limitação legal, a pena única a aplicar a este arguido.»
Perante a transcrita operação da determinação das penas parcelares pode colocar-se a questão da existência de uma nulidade por omissão de pronúncia.
Efectivamente, não obstante o crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. pelo art. 254º, nº 1, alíneas a) e b), do Cód. Penal, prever a punição, em alternativa, de uma pena de multa ou de uma pena de prisão, o Tribunal recorrido não explicou a sua opção pela escolha da pena detentiva, apesar da imposição constante do art. 70º do Cód. Penal.
Contudo, do contexto do acórdão resulta evidente a opção, pelo que, a haver omissão de pronúncia sempre seria permitido a este Tribunal ad quem saná-la, ao abrigo do disposto no art. 379º, nº 1, alínea c) e 2 do Cód. Proc. Penal), uma vez que a gravidade da conduta e a personalidade do recorrido que a mesma revela, demonstram que uma medida não detentiva não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (repare-se que, como refere o acórdão recorrido, o arguido, depois de matar a vítima, “cortou-o ao meio, desmembrou-o, infligiu-lhe ferimentos e feridas, tudo como demonstram as fotografias da única parte do corpo encontrada, decidindo deitar o que restava do seu companheiro no lixo”).
Quanto à concreta medida das penas aplicadas, dá-se aqui por reproduzida a fundamentação do Tribunal recorrido no que se refere aos fins das penas e, bem assim, dá-se também por reproduzida a cuidada análise no que se reporta à concretização dos factores a que alude o art. 71º do Cód. Penal.
Neste âmbito, resulta evidente que o Tribunal recorrido não sopesou “o arrependimento sincero” alegado pelo recorrente porque considerou o mesmo inexistente. E não podemos deixar de concordar com o Tribunal recorrido. Toda a actuação do recorrente levada a cabo após a prática dos factos revela frieza, não só no modo como tentou ocultar o crime mas, sobretudo, nas conversas que mantinha com os familiares da vítima. Se algum arrependimento houve, foi provocado pela detenção.
Concede-se, todavia, que a confissão (no final da audiência de julgamento e depois da produção de prova) revelou o modo como ocorreu o homicídio, nessa medida tendo contribuído para a descoberta da verdade.
Por tal facto, por o homicídio ter ocorrido em contexto de discussão e tendo por parâmetro outras decisões dos Tribunais portugueses para crime idêntico e em contexto idêntico, entende-se por mais justo e adequado reduzir a pena aplicada ao recorrente (para a prática do crime de homicídio) para 22 anos de prisão.
Já no que concerne ao crime de ocultação de cadáver, analisando as circunstâncias apuradas na sua globalidade, a pena aplicada pelo Tribunal recorrido afigura-se ajustada à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada).
Por força da alteração da pena aplicada ao homicídio há que reformular o cúmulo jurídico.
Assim, e por força do disposto no nº 2 do art. 77º do Cód. Penal, a pena aplicável ao recorrente tem como limite mínimo 22 anos de prisão e como limite máximo 23 anos e 9 meses de prisão.
Na determinação da pena conjunta, deve atender-se a critérios gerais e a um critério especial, que entre si se conjugam e interagem. Com efeito, tal determinação obedece, em primeiro lugar, aos critérios gerais constantes do art. 71º, nº 1 do Cód. Penal, já supra referidos, e ainda ao critério especial a que alude o art. 77º, nº 1, in fine, do Cód. Penal, tendo que ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
De harmonia com este critério, a conjugar com os demais supra referidos, deve sopesar-se o conjunto dos factos para aquilatar da gravidade da sua ilicitude, sendo decisiva para esta avaliação o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira” criminosa), ou tão só uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.
No caso concreto, a consideração unitária dos factos (sendo o 2º consequência do 1º, mas ambos de extrema gravidade e pormenores macabros, cometidos com elevada ilicitude e dolo intenso) e da personalidade do agente (ainda que sem antecedentes criminais registados, uma personalidade fria, calculista e incapaz de se determinar em conformidade com o direito) leva-nos a considerar como ajustada à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção a fixação da pena única em 23 anos de prisão.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso e decidem:
- no que concerne à impugnação sobre a matéria de facto (que fica definitivamente fixada) e no que se refere ao pedido de indemnização civil, confirmam o acórdão recorrido, julgando improcedente o recurso nesta parte;
- no que concerne à medida das penas, modificam a decisão recorrida determinando a condenação do recorrente: pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea b), ambos do Cód. Penal, na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão; e mantém a pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão pela prática de um crime de profanação de cadáver. Mais reformulam, em consequência, o cúmulo jurídico, condenando o recorrente na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.
Sem custas.

Lisboa, 18.11.2025
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Paulo Barreto
João Grilo Amaral