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CRIME DE COACÇÃO
Sumário
I. Está assente que a atuação o arguido visava o convencimento do assistente à prática de um determinado comportamento – obtenção dos certificados de matrícula referente às viaturas que tinha vendido, que o assistente se recusava a entregar, e é neste circunstancialismo que o arguido refere “o meu afilhado vai tratar deste assunto consigo” e, mais à frente na troca de mensagens escreveu: “Vai ter o que mereces”. II. Estas frases não encerram em si o anúncio de um mal futuro e não atentam nem fazem temer pela integridade física do assistente, logo não integram a prática de um crime de coação.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No processo comum singular 187/21.9PEOER, que corre termos no Juízo Local Criminal de Oeiras, Juiz 2, foi decidido:
• Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de coação, pp. pelo artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º, n.º 2, alínea a) e 23.º, todos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um valor total de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros);
• Condenar o Demandado / Arguido AA no pagamento ao Demandante / Assistente BB do montante de € 500,00 (quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, contados da data da prolação da decisão até integral e efetivo pagamento.
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Inconformado com esta decisão, veio o arguido interpor o presente recurso, apresentado motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição): “1. O ponto 7, referente à matéria de facto alegadamente provada, repeteoteor dos outros dois pontos antecedentes, decerto, por manifestolapso doMeritíssimo Juiz. 2. Assim sendo, Requer a eliminação do ponto 7, da matéria de factoreputada por demonstrada, pelos motivos apontados. 3. Compulsadas as mensagens onde o arguido referiu "o meu afilhadovaitratar deste assunto Consigo" e "Vai ter o que mereces", apura-seque taisexpressões não foram utilizadas de forma continua, ou seja, não foramditadas de forma sequencial, e o contexto em que foram escritas, tambéméabsolutamente diverso. 4. Tal estado de situação, não sopesado, por nenhuma forma pelo Meritíssim o Juiz, desvirtuou, grosseiramente, o sentido das expressões empregues, em ostensivo e notório prejuízo para o arguido, como, aliás, é palmar. 5. Sendo certo que, o arguido, na sequência das mensagens acima transcritas, mais à frente, refere, sintomaticamente: “Envie morada do advogado, pois não faço acordos com pessoas fora da lei” 6. Só por claro lapso do Tribunal, é mencionado que as declarações do arguido foram tomadas em consideração, conjugadas com os demais elementos probatórios, quando ao longo do processo, nomeadamente, em sede de audiência de julgamento, não prestou declarações. 7. Compulsadas as mensagens trocadas entre arguido e assistente, em momento ou circunstância alguma se poderia inferir a interpretação levada a cabo, por este, pelo que é clamorosamente abusiva e sem respaldo na sua letra, quando referiu que "caso o Assistente não entregasse os mencionados documentos ao arguido, o afilhado deste último iria matar ou esfaquear o Assistente ou provocar-lhe outro tipo de maltrato físico." 8. Objectivamente, de acordo com o juízo de um homem comum, o arguido não coagiu o assistente ao referir "Eu estou muito doente, mas não faz mal o meu afilhado vai tratar deste assunto consigo." 9. Ao longo de todo o processo o assistente sempre solicitou que as suas declarações fossem prestadas por via eletrónica em razão da suas continuadas ausência do território de Portugal, em consequência do exercício das suas funções de piloto comercial. 10. Foi o próprio assistente a infirmar tais alegados receios do arguido, ao assumir expressamente que a razão das suas ausências de Portugal, se deviam única e exclusivamente ao exercício das suas funções de piloto de aviação comercial, de longo curso. 11. Inexiste qualquer ameaça de um de mal importante adequada a constranger o assistente, prejudicando a sua liberdade de determinação. 12. O arguido nunca teve consciência de que a expressão utilizada era susceptível de constranger a pessoa do assistente. 13. O arguido não sabia que, com o seu comportamento, constrangia o assistente e, bem assim, que não lhes era lícita tal conduta, o que nunca previu ou quis. 14. Tanto mais, que o arguido solicitou o contacto do advogado do assistente, na perspectiva de ser alcançado um acordo referente à entrega dos certificados dos motociclos. 15. Inexistem quaisquer provas da prática do crime de coacção, na forma tentada. Sem conceder, por mera cautela e dever de patrocínio 16. Atenta a factualidade reputada por provada, entende o arguido que caso tivesse de ser condenado - o que não concebe - nunca o seria pela prática de um crime de coacção, mas por um crime de ameaça, também na forma tentada, de acordo com o disposto no art.153" do C.P. Ainda assim, 17. Pelos motivos e razões supra enunciadas a despeito do crime de coacção, entende o arguido, que não se encontram também preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos do crime de ameaça, previsto no art.153.º do C.P Ainda sem conceder 18. Caso seja entendida que a condenação do arguido se deve manter, pela prática de um crime de coacção ou de ameaça, deverá ser aplicada a pena de admoestação - Cfr. Art. 60º do C.P. 19. O Meritíssimo Juiz violou o correto entendimento dos preceitos legais invocados na presente peça recurslva.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Publico respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Também respondeu o assistente, BB, requerendo que seja negado provimento ao recurso.
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Remetido o processo a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer (transcrição): “Analisada a sentença, afigura-se-nos a mesma suficientemente fundamentada, de facto e de direito, dela constando exame critico da prova com base na qual o tribunal formou a sua convicção e concluiu pela pena aplicada que se afigura mostra adequada, sem evidência de vicio lógico de julgamento ou de violação das disposições legais invocadas pelo recorrente, pelo que não merece reparo e deve ser mantida, julgando-se improcedente o presente recurso.”.
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Notificado do parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, o arguido não respondeu.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido, de harmonia com o disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
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II. Questões a decidir:
Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise são as seguintes as questões a decidir por ordem de procedência lógica:
• Impugnação da matéria de facto;
• Se os factos dados como provado integram a prática do crime de coação na forma tentada ou um crime de ameaça.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente o seguinte teor da sentença proferida (transcrição parcial): “Factos provados: Referentes à Decisão Instrutória: 1. O assistente e o arguido eram amigos. 2. E em razão desta amizade o assistente, que era proprietário de cerca de 35 motociclos, pactuou com o arguido que este venderia os motociclos a terceiros. 3. Quando o assistente regressou do ... solicitou ao arguido os valores provenientes da venda dos motociclos, tendo sido por este informado que tais valores já se encontravam entregues por meio de outros negócios que ambos haviam feito. 4. O arguido vendeu todos os aludidos motociclos a terceiros, sem que tivesse entregado a esses terceiros os certificados de matrícula desses mesmos motociclos, certificados esses que continuaram na posse do Assistente. 5. No dia ... de ... de 2021 o arguido enviou mensagem SMS requerendo que lhe fossem entregues os documentos dos referidos motociclos, tendo o assistente se recusado. 6. Tendo o arguido respondido: «o meu afilhado vai tratar deste assunto consigo» e «Vai ter o que mereces». 7. Ato contínuo, o arguido, com o evidente intendo de constranger o assistente a lhe entregar os certificados de matrícula dos veículos – após o mesmo ter se recusado a fazer – disse-lhe: «o meu afilhado vai tratar deste assunto consigo» e «Vai ter o que mereces.». 8. O arguido, ao ameaçar o assistente com mal importante, constrangeu-o a realizar ação que não queria, na tentativa de lhe tolher a liberdade de escolha, a despeito de o assistente não lhe ter entregado os referidos documentos. 9. O assistente sentiu grande medo e temeu por sua integridade física, mesmo tendo se recusado a ceder aos intentos do arguido, acreditando que aquele poderia lhe fazer mal. 10. O arguido praticou as ações descritas de forma livre, deliberada e consciente, sabedor que sua conduta era reprovável e punida por lei, não se inibindo ainda assim de a realizar. Referentes ao Pedido de Indemnização Cível: 11. Em consequência da conduta do arguido, o assistente sentiu e sente medo, receando estar em Portugal por temer que o arguido concretize o por si comunicado ao assistente. Referentes à Contestação: Inexiste factualidade relevante alegada na contestação julgada provada. Mais se provou que: 12. O arguido não tem antecedentes criminais. Factos Não Provados: Referentes à Decisão Instrutória: Inexiste factualidade relevante julgada não provada. Referentes ao Pedido de Indemnização Cível: Inexiste factualidade relevante alegada no pedido de indemnização cível julgada não provada. Referentes à Contestação: Inexiste factualidade relevante alegada na contestação julgada não provada. ** Os restantes factos não especificados como provados ou não provados constituem expressões conclusivas ou de direito, ou são mera negação de factos já considerados provados, ou ainda são factos irrelevantes para a decisão da causa”.
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IV. Do Mérito do Recurso
IV-A) Impugnação da matéria de facto
De acordo com o disposto no artigo 410.º, n.º 1 do Código de Processo Penal “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” e, nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”.
No que se refere à matéria de facto, há duas formas de a impugnar:
• Através da invocação de vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (impugnação em sentido estrito, a chamada “revista alargada”), sendo que o vício pode resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, tendo por fundamento:
– Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou
– Erro notório na apreciação da prova.
• ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal (impugnação em sentido lato).
Quanto à primeira situação - impugnação em sentido estrito - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova -, sendo de conhecimento oficioso, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença/acórdão e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Quanto à segunda situação - impugnação em sentido lato -, impõe-se, conforme resulta do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, que:
• o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados (artigo 412.º, n.º 3, alínea) do Código de Processo Penal);
• indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada (alínea b) do número).
• As provas que devem ser renovadas (alínea c) do mesmo número).
O n.º 4 do mesmo preceito legal exige, outrossim, que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Estamos perante dois institutos diferentes com natureza e consequências distintas. Os vícios previstos no referido artigo 410.º, n.º 2 devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, e aí se ficam. A impugnação ampla da decisão da matéria de facto analisa a fundo a apreciação da prova.
A existência de um dos vícios do referido artigo 410.° demonstra que há algo de errado na decisão, mas a circunstância de se não verificar nenhum daqueles vícios, não garante que a matéria de facto haja sido bem julgada. O mesmo é dizer que podem não existir os vícios previstos no n.° 2 do artigo 410.° do Código de Processo Penal e, no entanto, a prova ter sido mal apreciada.
O recorrente pretende impugnar a matéria de facto em sentido amplo, para que se tenha em consideração que o ponto 7 da matéria de facto apurada repete o teor dos dois pontos anteriores. Requer, ainda, que se atente à prova documental dos autos referente às mensagens trocadas entre o assistente e o arguido e de onde resulta que as mensagens não foram enviadas de forma continua, há outras entre elas, e o contexto não é aquele que está vertido na matéria de facto assente.
Assim, o recorrente indicou os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, como é imposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea) do Código de Processo Penal, e deu cumprimento ao exigido nas demais alíneas do referido n.º 3 e no n.º 4 do mesmo artigo. Ou seja, indicou as concretas provas que na sua ótica impõem decisão diversa da recorrida, que no caso são apenas documentais.
As mensagens trocadas entre o arguido e o assistente estão vertidas nos autos – Ref. 19040717, de ........2021 - e não há dúvida que o arguido tem razão quando diz que as frases constantes da sentença final, por um lado, estão descontextualizadas e, por outro, que a frase constante do ponto 7 está repetida, não tendo sido enviada duas vezes.
Efetivamente, a frase “o meu afilhado vai tratar deste assunto consigo” só é referida uma vez e a frase completa tem o seguinte teor: “Eu estou muito doente, mas não faz mal o meu afilhado vai tratar deste assunto consigo”-
A troca de mensagens continua e só mais à frente o arguido refere: “Vai ter o que mereces”.
Verificamos, outrossim, que no ponto 8. é referido “O arguido, ao ameaçar o assistente com um mal importante, constrangeu-o a realizar acção que não queria(…)”. Parece-nos claro que a expressão “ameçar com um mal importante” é um conceito conclusivo e reproduz a letra da lei – cf. artigo 154.º, n.º 1 do Código Penal. Este conceito amplo e abstrato deve ser preenchido com a alegação e comprovação de factos concretos.
A ser assim, resta considerar tal afirmação como não escrita.
Posto isto, os pontos 5), 6) e 7) impugnados pelo recorrente passam a ter a seguinte redação:
(…) 5 - No dia ... de ... de 2021 o arguido enviou mensagem SMS requerendo que lhe fossem entregues os documentos dos referidos motociclos, tendo o assistente se recusado.
6- Eliminado
7. Ato contínuo, o arguido, com o evidente intento de constranger o assistente a lhe entregar os certificados de matrícula dos veículos – após o mesmo ter se recusado a fazer – disse-lhe: «o meuafilhado vai tratar deste assunto consigo» e, mais à frente na troca de mensagens, escreveu: «Vai ter o que mereces.».
Os demais factos não foram impugnados.
Sabemos, no entanto, que efetivamente o arguido tentou intimidar o assistente, pois tal resulta da motivação que matéria de facto. Todavia, o que consta no despacho de pronúncia, que como sabemos fixa o objeto do processo, e passou para os factos assentes são apenas as expressões acima identificadas e, como veremos, elas são mais avisos, sem que se perceba o que efetivamente encerram de ameaçador.
Existe efetivamente um lapso na motivação da matéria de facto, como refere o recorrente, quando se diz que a convicção do tribunal resultou da conjugação e análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente, das declarações do arguido, pois este não prestou declarações.
Assim, proceder-se-á à retificação deste lapso com a eliminação da expressão: “das declarações do arguido”.
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IV.B) Verificação dos elementos do crime de coação agravado
Dispõe o artigo 154.º, n.º 1 do Código Penal que “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão ou a suportar uma atividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
O crime de coação constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e ação, abrangendo quer as ações que apenas restringem a liberdade de decisão e de ação (as ações de constrangimento em sentido estrito, ou seja, a tradicional “vis compulsiva”) quer as ações que eliminam em absoluto a possibilidade de resistência (a chamada “vis absoluta”), quer ainda as ações que afetam os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, isto é, a própria liberdade de decidir2.
A punição da coação retira o seu fundamento na defesa das pessoas contra a violência ou ameaça à sua personalidade física e moral que coloque em causa a liberdade de determinação.
O tipo objetivo de ilícito da coação consiste em constranger outra pessoa a adotar um certo comportamento – praticar, omitir ou suportar uma determinada ação – centrando-se, assim, num constrangimento ilegal3.
Pressuposto do crime de coação é, nestes termos, a perda de liberdade de determinação, o constrangimento de alguém que é levado a praticar um ato que não deseja, ou ter de o suportar, contra a sua própria vontade, uma atividade alheia.
Note-se que sujeito passivo do crime de coação pode ser qualquer pessoa, como qualquer uma pode ser a conduta coagida4, desde que os meios da coação se reconduzam a violência ou a ameaça com mal importante.
Trata-se, com efeito, de crime de execução vinculada ou de processo típico, em que o constrangimento, enquanto elemento do tipo objetivo, pode apenas ser alcançado por meio de violência ou por meio de ameaça com mal importante.
Quanto ao que deve ser entendido por ameaça (isto é, mal futuro dependente da vontade do agente) com mal importante “há uma larga margem de indefinição a ser preenchida pelo prudente arbítrio do julgador. Não se quis, evidentemente, tornar punível toda a atividade social suscetível de causar um mal, mas só a atividade suscetível de causar um mal importante, ou seja, um mal que tenha um acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que causa ou pode causar”5.
A coação é um crime de resultado, exigindo a sua consumação que a pessoa objeto da ação de coação tenha efetivamente sido constrangida a praticar, omitir ou suportar uma certa ação, de acordo com a vontade do coator e contra a sua vontade.
No caso em apreciação, não temos dúvidas que com a sua atuação o arguido tentava o convencimento do assistente à prática de um determinado comportamento – obtenção dos certificados de matrícula referente às viaturas que tinha vendido, que o assistente se recusava a entregar. É neste circunstancialismo, que o arguido refere “o meuafilhado vai tratar deste assunto consigo” e, mais à frente na troca de mensagens escreveu: “Vai ter o que mereces”.
Ora, estas frases não encerram em si o anúncio de um mal, sabemos, por ter sido dado como provado, que o assistente sentiu medo e temeu pela sua integridade física mas certamente não foi somente pelas frases acima transcritas que em si não atentam nem fazem temer pela integridade física do assistente.
Os factos que integram a decisão instrutória e que foram dados como provados não integram o conceito de ameaça, dizer a alguém que o sobrinho vai tratar do assunto que os divide não tem nada de ameaçador, nem anuncia um mal futuro. Como dizer a alguém que vai ter o que merece também não tem nada de ameaçador. São avisos, desabafos sem conteúdo concretizado que integre o conceito de ameaça.
Neste conspecto, resta concluir que não estão preenchidos os elementos objetivos do crime que é imputado ao arguido, nem o aventado crime de ameaça, que pressupõe a ameaça com a prática de crime contra vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou contra bens patrimoniais de considerável valor – artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal.
Assim, merece provimento o recurso, sendo o arguido absolvido do crime de coação.
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O arguido também tinha sido condenado no pedido de indemnização civil.
O pedido de indemnização civil fundado na prática do crime é regulado pela lei civil - artigo 129.º do Código Penal -, o que nos remete para a responsabilidade civil extracontratual.
O Ac. do STJ n.º 7/99 6 fixou jurisprudência neste sentido, dizendo que “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.”
Há, assim, que atender ao disposto no artigo 483º, n.º 1 do Código Civil, que regula os casos de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.
Este normativo determina que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Por outro lado, determina o n.º 1, do artigo 496º, do mesmo diploma legal, que: “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
No caso em apreciação não se tendo concluído pela ilicitude da conduta do arguido, um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, é manifesto que a pretensão do recorrente não pode vingar, devendo o pedido ser julgado improcedente.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência:
I. Alterar a matéria de facto constante dos pontos 5 a 8 que passa a ter a seguinte redação:
(…) 5 - No dia ... de ... de 2021 o arguido enviou mensagem SMS requerendo que lhe fossem entregues os documentos dos referidos motociclos, tendo o assistente se recusado.
6- Eliminado
7. Ato contínuo, o arguido, com o evidente intendo de constranger o assistente a lhe entregar os certificados de matrícula dos veículos – após o mesmo ter se recusado a fazer – disse-lhe: «o meuafilhado vai tratar deste assunto consigo» e, mais à frente na troca de mensagens escreveu: «Vai ter o que mereces.».(…).
II. No ponto 8 deve ter-se por não escrito o seguinte segmento: “ameaçar o assistente com mal importante”.
III. Eliminar na motivação da matéria de facto a referência às declarações do arguido;
IV. Absolver o arguido do crime de coação na forma tentada.
V. Absolver o arguido do pedido de indemnização civil deduzido nos autos.
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Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 18 de novembro de 2025
Ana Lúcia Gordinho
Paulo Barreto
Ester Pacheco dos Santos
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1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Cfr. Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 354.
3. Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 2º Vol., 3ª edição, Rei dos Livros, pág. 315.
4. cfr. neste sentido, Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 354.
5. Cfr., Maia Gonçalves, in “Código Penal Anotado”, comentário ao artigo 154º. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/assento/7-345132