I - A incompetência em razão do território só pode ser arguida pela parte interessada (artigo 103.º, do CPC) e em momento processual próprio, não podendo, por isso, ser conhecida ex oficio fora das situações em que a lei o permite.
II – É nula, por exceder os respectivos poderes de conhecimento, a decisão que declara, oficiosamente, a incompetência territorial do tribunal, em desrespeito do disposto no artigo 104.º, n.º1, do Código de Processo Civil.
I – Relatório
1. AA intentou, no Juízo Central Cível de Leiria, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, CC e DD, pedindo a condenação dos Réus:
- a reconhecê-la como co-herdeira da herança aberta por óbito de EE;
- no reconhecimento de que os prédios que identifica fazem parte da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE;
- na restituição à herança indivisa dos aludidos prédios, assim como quaisquer outros bens que integrem o acervo hereditário, deixado na sequência do óbito de EE.
Indicou à acção o valor de 3000.000,01 €.
2. A acção foi distribuída ao Juízo Central Cível – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.
3. Posteriormente e ao abrigo do disposto no artigo 146.º, do Código de Processo Civil (doravante CPC), a Autora requereu a correcção do valor da causa constante do formulário para €30.000,01.
4. Por despacho de 03-09-2024, deferida a correcção, o Juízo Central Cível julgou-se incompetente para julgar causas de valor inferior a €50.000,01, determinando a notificação da Autora para declarar qual o tribunal para onde pretendia que os autos fossem remetidos.
4. Notificada, a Autora veio requerer a remessa do processo para o Juízo Local Cível de Leiria, o que foi deferido.
5. No Juízo Local Cível de Leiria foram citados os Réus, que contestaram, tendo a Autora apresentado resposta.
6. Foi proferido despacho que determinou a notificação da Autora para esclarecer da razão de ter indicado o Juízo Local Cível de Leiria para prosseguimento dos autos por não resultar dos mesmos qualquer conexão com a área de competência do referido juízo (a Autora reside no Cacém, o primeiro Réu reside em Alverca, a segunda Ré no Barreiro e o terceiro Réu em Lisboa).
7. Em resposta esclareceu que indicou como Tribunal competente, o Tribunal do lugar da abertura da sucessão na sequência do óbito de EE ter ocorrido no concelho de Alvaiázere, e que existindo no caso uma pluralidade de Réus, residentes em domicílios que correspondem a diferentes tribunais, requeria a remessa do processo para os Juízos Locais Cíveis de Lisboa, correspondente ao domicílio do último Réu. Assegurado o contraditório os Réus nada disseram.
8. Por despacho de 24-03-2025 o Juízo Local Cível de Leiria (Juiz 2) declarou a incompetência territorial do tribunal para o conhecimento da acção e determinou a remessa do processo aos Juízos Locais Cíveis de Lisboa.
9. No Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 14 foi proferido despacho que considerou que o Juízo Local Cível de Leiria estava impedido de determinar a remessa do processo aos Juízos Locais Cíveis de Lisboa, já que “transitada em julgado a decisão do Juízo Central Cível de Leiria ficou resolvida definitivamente a questão da competência relativa, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada”.
10. O processo foi remetido ao Juízo Local Cível de Leiria que voltou a considerar competente territorialmente o Juízo Local Cível de Lisboa e, por entender estar em causa um conflito negativo de competência, suscitou a sua resolução junto do Supremo Tribunal de Justiça
11. Neste Tribunal, cumprido que foi o n.º 2 do artigo 112.º do CPC, o Ministério Público emitiu douto parecer em que defende a atribuição da competência para a acção ao Juízo Local Cível de Leiria – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, “por ser o que inicialmente detinha a competência territorial e funcional.”
II – Apreciando e decidindo
Nos termos do disposto do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n. 3, do CPC).
No presente caso, o Juiz 2 do Juízo Local Cível de Leiria e o Juiz 14 do Juízo Local Cível de Lisboa, declinam mutuamente a competência territorial própria para conhecer da presente ação atribuindo-a um ao outro.
O legislador entendeu que esse impasse teria de ser ultrapassado por decisão cometida ao presidente do tribunal com competência para o efeito, por forma a assumir uma intervenção clarificadora e mesmo liderante com repercussão em litígios futuros1.
Por estarem em causa decisões com a área de competência de diferente tribunal da Relação cabe ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a competência para resolução de conflito, por ser este o Tribunal superior com hierarquia imediata sobre os Juízes conflituantes, cfr. artigo 110.º, n.º 2, do CPC.
2. Na sequência do referido, os autos foram inicialmente distribuídos ao Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 2. Por decisão de 03-09-2024 este Juízo declarou-se incompetente em razão do valor e determinou a remessa dos autos aos Juízos Locais Cíveis de Leiria tendo aí sido distribuídos ao Juiz 2.
Neste Juízo foram citados os Réus, apresentadas as respectivas contestações e exercido o contraditório, com resposta da Autora.
Como se verifica do despacho proferido em 11-01-2025, a declaração de incompetência territorial foi suscitada pelo próprio Juízo Local Cível de Leiria, levando a Autora a esclarecer “um eventual lapso na indicação do tribunal territorialmente competente”.
A resposta/esclarecimento da Autora não pode significar que está a arguir a excepção de incompetência relativa do tribunal, pois, nos termos do disposto no artigo 103.º, do CPC, não tinha legitimidade, nem se encontrava em prazo para o efeito.
A incompetência territorial foi, assim, conhecida de forma oficiosa e, também, de forma oficiosa foram realizadas as diligências destinadas a investigar, confirmar ou infirmar a sua existência.
Sob a epigrafe “Conhecimento oficioso da incompetência relativa”, dispõe o 104.º do CPC, designadamente no seu n.º 1, al, a), o seguinte:
“A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes:
Nas causas a que se referem o artigo 70.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 71.º, os artigos78.º, 83.º, e 84.º, o n.º 1 do artigo 85.º e a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 89.º.”
Daqui resulta, por argumento a contrario, que a incompetência em razão do território só pode ser arguida pela parte interessada (artigo 103.º, do CPC) e no momento processual próprio, não podendo, por isso, ser conhecida ex officio fora das situações em que a lei o permite (a incompetência territorial é do conhecimento oficioso só nos casos em que a lei o prevê - artigos 104.º, n.º 1 e 578.º do CPC, quando os autos forneçam para o efeito todos os elementos necessários).
As ocorrências processuais verificadas no processo evidenciam que o Juízo Local Cível de Leiria – Juiz 2 ao declarar-se, oficiosamente, incompetente territorialmente fê-lo ao arrepio do permitido legalmente para o efeito, excedendo, nessa medida, os seus poderes de conhecimento, mostrando-se tal decisão ferida de nulidade.
Consequentemente, cabe manter no Juízo Local Cível de Leiria - Juiz 2 a competência territorial.
3. Face ao exposto, decide-se o presente conflito negativo de competência atribuindo ao Juízo Local Cível de Leiria - Juiz 2 a competência para prosseguir os autos.
Sem custas.
Notifique e comunique ao Ministério Público e aos tribunais em conflito (artigo 113.º, n.º 3 do CPC).
Lisboa, 17 de Novembro de 2025
Graça Amaral
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1 Louvando-se em entendimento doutrinário e jurisprudencial que indica, o Ministério Público, no seu douto parecer, defende a inaplicabilidade do preceituado nos artigos 109.º e 110.º, n.º 2, ambos do CPC, ao presente caso. Porém, não partilhamos tal entendimento.
Conforme defendemos no âmbito do Processo n.º 7297/18.8T8CBR.E1.S1.
“Interpretar este artigo no sentido de que o tribunal para o qual a acção foi remetida pelo tribunal que se julgou incompetente fica impedido de se julgar também relativamente incompetente, pelo mesmo fundamento, significaria que o primeiro (deixando transitar a decisão, e, só há conflito de decisões transitadas) teria o poder de determinar a competência do segundo tribunal, sem que fosse admissível recorrer ao mecanismo de resolução de conflitos pelo presidente de um tribunal superior a ambos. Ficaria, assim, prejudicada a intenção de uniformidade de critérios que preside à concentração da competência dos presidentes dos tribunais superiores (artigo 110.º, do CPC).
Cabe realçar que não fica afectado tal objectivo interpretando o n.º 2 do artigo 105.º do CPC, em conjunto com o n.º 3 do artigo 109.º do mesmo diploma legal, cujo significado (comum aos conflitos de competência e de jurisdição) é o de só haver conflito (ou seja, de só ser possível desencadear os mecanismos de resolução de conflito) quando estão em confronto duas decisões definitivas.
Sempre se poderia contrapor que o n.º 3 do artigo 109.º se refere apenas à susceptibilidade de recurso e que, com o CPC de 2013, a via de reacção contra uma decisão sobre competência relativa passou a ser a da reclamação para o presidente do tribunal superior (n.º 4 do artigo 105.º), e que, assim, o n.º 3 do artigo 109.º só se aplica à incompetência absoluta.
No entanto, o n.º 3 do artigo 109.º corresponde, ipsis verbis, ao n.º 3 do artigo 115.º do CPC anterior, no domínio do qual o problema da interpretação do (então) artigo 111.º, n.º 2 (“A decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada”) e da sua conjugação com esse n.º 3 do artigo 115.º se colocava da mesma forma.
Consideramos que também não procede uma eventual objecção baseada no n.º 4 do artigo 105.º do CPC. Com efeito, ainda que se interprete este n.º 4 no sentido de a decisão do presidente da Relação ser definitiva, ou seja, de não se lhe poder seguir um conflito – como parece acertado -, mesmo que a resolução da questão de competência “envolva” tribunais de 1.ª instância integrados em áreas de jurisdição de diferentes Relações (cfr. o n.º 2 do artigo 110.º do CPC), não se verificariam os inconvenientes, nem da dispersão de critérios, nem de ser um tribunal da mesma categoria a determinar a competência do tribunal para o qual o processo seria remetido. Se os tribunais de 1.ª instância pertencerem à área da mesma Relação, é sempre o presidente dessa mesma Relação a decidir.
Na sequência deste entendimento, cremos pois que o legislador entendeu que o impasse em que se consubstancia o conflito teria de ser ultrapassado por decisão cometida ao presidente do tribunal com competência para o efeito, por forma a assumir uma intervenção clarificadora e mesmo liderante com repercussão em litígios futuros.