NULIDADE DE OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ARBITRAMENTO OFICIOSO DE INDEMNIZAÇÃO
SUPRIMENTO PELO TRIBUNAL SUPERIOR
Sumário


I. No caso de condenação pelo crime de violência doméstica, o tribunal não pode deixar de arbitrar uma indemnização, nos termos impostos pelo artigo 21.° da Lei n.º 112/2009.
II. A omissão desse arbitramento configura uma nulidade de omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
III. O tribunal de recurso suprir a nulidade da sentença recorrida, desde que disponha de todos os elementos que o permitam e o vício não implique qualquer processo de reconstrução da sentença e respetiva motivação que só ao Tribunal recorrido esteja reservado (artigo 379.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

Texto Integral


Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

AA, filho de BB e de CC, nascido a ../../1968, na freguesia ..., concelho ..., residente na Rua ..., em ..., foi julgado em processo comum com intervenção do tribunal colectivo e, a final, condenado: a. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º1, 152.º, n.º 1, alíneas b), d) e e), n.º 2, alínea a), n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, na pessoa de DD na pena de 4 (quatro) anos de prisão; b. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º1, 152.º, n.º 1, alíneas b), d) e e), n.º 2, alínea a), n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, na pessoa de EE, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão; c. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3º, n.º4, alínea a) e 86º, n.º1, alínea c), da Lei n.º5/2006, de 23/02, na pena de 1 (um) ano de prisão; d. em cúmulo jurídico as penas referidas em 7.1.1., 7.1.2., 7.1.3. na pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão; e. suspender a pena referida em (…) na sua execução por igual período (a contar do trânsito em julgado), acompanhada de regime de prova, nos termos dos artigos 50.º, n.ºs 1 e 5, e 53º, n.º 1, 2 e 3 todos do Código Penal; f. condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida/assistente DD pelo período 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses, nos termos do artigo 152º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal; g. condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses, nos termos do artigo 152º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal; h. condenar o arguido AA na pena acessória de frequentar de programa específico de prevenção da violência doméstica, nos termos do artigo 152º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal.
Foi igualmente julgado parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante DD contra o Arguido/demandado AA e condenado este no pagamento de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimónios acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral e efectivo pagamento.

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões:

(…) 1. O arguido AA incorreu na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, 152.º, n.º 1, alíneas b), d) e e), n.º 2, alínea a), n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, na pessoa de EE, pelo qual foi condenado.
2. Ora, prescreve o artigo 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, que «1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.»
3. Para além disso, expressamente determina o artigo 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, sob epígrafe «Direito a indemnização e a restituição de bens», que «1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.»
4. Ao impor a aplicação deste regime em qualquer caso, apenas ressalvando os casos de oposição expressa por parte da vítima, o legislador afastou o pressuposto previsto na parte final do n.º 1 do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, quando esteja em causa uma vítima de violência doméstica; assim, salvo oposição expressa da vítima, deverá sempre o Tribunal arbitrar uma quantia a título de reparação, ainda que não se verifiquem no caso particulares exigências de protecção.
5. Como tal, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º1, 152.º, n.º 1, alíneas b), d) e e), n.º 2, alínea a), n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, na pessoa de EE, sua filha e menor de idade, nos termos do disposto no artigo 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei 112/2009, na ausência de oposição expressa da vítima, deveria ter havido lugar ao arbitramento de reparação da vítima (cf. Ac. TRP, de 04-12-2024, R. Maria Ângela Reguengo da Luz).
6. Abstendo-se de conhecer do arbitramento de indemnização à vítima EE, deixou o Tribunal de pronunciar-se sobre questão que deveria apreciar, padecendo, por isso, o Acórdão recorrido do vício de omissão de pronúncia, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
7. A omissão de pronúncia sobre a referida questão consubstancia nulidade a arguir em sede de recurso, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, alínea c) e 410.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, que deve ser sanada mediante o reconhecimento à vítima de uma indemnização a arbitrar pelo Tribunal a título de reparação dos prejuízos materiais e/ou morais sofridos e a consequente condenação do arguido no respectivo pagamento (cf. Ac. TRG, de 07-03-2016, R. Luís Coimbra).
8. Ao decidir conforme decidiu, o Tribunal a quo incorreu em incorrecta interpretação dos normativos vertidos nos artigos 82.º-A, do Código de Processo Penal, 16.º, n.º 1, do Estatuto de Vítima, 67.º-A, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, e 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
Termos em que, julgando V. Exas. procedente o presente recurso, deverá o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene o arguido na reparação devida à vítima EE, nos termos previstos no artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, com que se fará, como sempre, JUSTIÇA! (…)”.

Também o arguido não se conformou com a decisão proferida no acórdão condenatório, dela vindo a interpor recurso onde apresentou as conclusões que seguem:
“(….)
1ª O presente recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de Direito porquanto a defesa apenas discorda e não se conforma com a condenação que lhe foi imposta, no que respeita à sua filha, EE, dado que na nossa óptica, a conduta descrita não integra a prática de tal ilícito de violência doméstica e bem assim e no que concerne à procedência do pedido de indemnização civil e à condenação ao pagamento da indemnização de 4500 euros à demandante civil, valor que consideramos desproporcionado e excessivo.
2ª Expressões proferidas no mesmo dia e na mesma ocasião como “e tu, maria rapaz”? …. “dou-te com a pá que te fodo”, só por si, não se nos afigura suficiente para representar a afectação do bem jurídico protegido pela norma que incrimina a violência doméstica, não consubstanciando de modo algum uma ofensa à dignidade da pessoa humana.
3ª De sublinhar que nunca antes exerceu quaisquer maus-tratos físicos ou psíquicos a esta menor, sua filha, nem tal resulta do texto da decisão recorrida.
4ª E não sendo um comportamento do arguido continuado ou reiterado em relação a esta ofendida, tal não revela uma intensidade ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa grave da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
5ª Destarte, a sobredita conduta, mesmo no pior dos cenários, integraria, tão só e quando muito, a prática de um crime ameaças simples, e não um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, do mesmo Código, que assume natureza semi-pública.
6ª Nesta senda, deveria o recorrente ter sido absolvido deste crime de violência doméstica, com as legais consequências, com natural impacto na pena.
7ª No que concerne ao pedido de indemnização civil formulado pela ofendida DD, e a condenação em primeira Instância do arguido a pagar-lhe o valor de 4500 euros a título de compensação, também entendemos que tal quantia é excessiva e desproporcionada.
8ª Consideramos que, em concreto e tendo em conta todas as circunstâncias que rodeiam o caso e a factualidade considerada assente, o valor de 2500 euros, a título de indemnização a atribuir a esta, seria razoável, equitativa e suficiente para ressarcir aqueles danos não patrimoniais.
9ª A situação económica do arguido é de franca penúria, pobreza e nítida insuficiência económica, o que também constitui um dos critérios a ter em conta e a sopesar pelo Tribunal, à luz do disposto no artº 494º do cód.Civil.
10ª Sem mais considerações, ínclitos Desembargadores, entendemos que a pena única a aplicar ao arguente no caso concreto, resultante da valoração da prova e de todas as circunstâncias que rodeiam o caso sub judice, em caso algum deveria ter ultrapassado os quatro anos de prisão.
11ª Foram violadas as seguintes normas jurídicas: - art.ºs 127º, 327º, 355º, 356º e 379.º nº 1, alínea c), do C.P.P.; - art.ºs 14º, nº1 ,26º, 40º,71º e 152º do Código Penal; - artº 32 da C.R.P.; e - Artºs 494º e 496º, nº 3, ambos do Cód. Civil.

NESTES TERMOS e nos mais de direito, que V. Exªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se parcialmente a Sentença recorrida e decidindo o Tribunal superior:

1)-Absolver o arguido do crime de violência doméstica, de que vinha acusado e alegadamente infligido na pessoa de sua filha, EE;
2)-Como consequência disso, deve ser condenado em cúmulo jurídico numa pena única não superior a 4 anos de prisão, suspensa na execução, subordinada nos termos e nos moldes que o Tribunal de 1ª Instancia já consagrou;
2)-Deve decretar-se a redução da indemnização a atribuir à ofendida, para ressarcimento de danos, para um valor não superior a 2500 euros.(…)”.
O Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.
Os recursos foram admitidos.

*
Cumprido o disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, veio o Ministério Público, nesta Relação, emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso do Ministério Publico e negado provimento ao recurso do arguido.
Em resposta a este parecer, o arguido nada disse.
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Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

As relações conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP).
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Não se descortinando outras questões (passíveis de conhecimento oficioso) para além daquelas que os recorrentes suscitam nas conclusões insertas nos recursos que interpuseram, deveremos aqui deter-nos na apreciação e decisão das seguintes:
a. Qualificação jurídica da conduta do arguido para com a sua filha EE;
b. Indemnização fixada a DD;
c. Omissão de pronúncia quanto à fixação de indemnização a EE.
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Transcrição das partes pertinentes da decisão sob recurso:
3.1. FACTOS PROVADOS
(…)     
3.1.1. O arguido AA viveu em comunhão de cama, mesa e habitação com DD desde o ano de 2008, naquela que foi a residência comum do casal, sita na Rua ..., em ..., até à data da sua detenção, ocorrida a 9 de Setembro de 2024.
3.1.2. Do referido relacionamento nasceu uma filha em comum, EE, nascida a ../../2010.
3.1.3. O arguido AA tem ainda dois filhos de relacionamentos anteriores, já maiores de idade, FF e GG, e DD tem também um filho de um anterior relacionamento, HH, nascido a ../../1999.
3.1.4. Sucede que, em diversas ocasiões, em número e datas não concretamente apurados, sobretudo situadas a partir do ano 2009, o arguido AA forçou DD a manter relações sexuais contra a vontade desta, sendo que nessas ocasiões, o arguido - referindo-se ao então filho menor da ofendida, HH, com 9 anos de idade-, dirigia as seguintes expressões à ofendida: “se não fazes agora, faço mesmo em frente do teu filho”.
3.1.5. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2009, no interior da habitação do casal, sita, à data, na Rua ..., ..., em ..., o arguido AA surgiu na rectaguarda de DD que, nessa ocasião, estava a estender a roupa numa janela da habitação, e após, retirou-lhe as calças que aquela usava, contra a sua vontade.
3.1.6.  Nessa ocasião, o arguido AA empurrou a ofendida contra a janela, e contra a vontade da mesma, introduziu o seu pénis na vagina desta até ejacular.
3.1.7. Em datas e número de ocasiões não concretamente apurados, mas situados sobretudo após o nascimento da filha em comum do casal, o arguido AA começou a manifestar ciúmes em relação a terceiros que se relacionassem com DD, nomeadamente os donos dos estabelecimentos que esta frequentava, os seus vizinhos e inclusive alguns familiares.
3.1.8.  Com efeito, em múltiplas ocasiões, a ofendida deixou de conviver com familiares seus para evitar discussões com o arguido que demonstrava ciúmes.
3.1.9. Apesar disso, em datas não concretamente apuradas e em múltiplas ocasiões, o arguido AA iniciava discussões DD, nas quais a apodava de “filha da puta”, e de “coirão”.
3.1.10.  Em virtude dos comportamentos descritos, a ofendida tentou por diversas vezes separar-se do arguido, porém, nessas ocasiões, este dirigia-lhe as seguintes expressões: “se me deixares, alguém da tua família vai pagar” e “dou umas facadas no bandulho do filho” (referindo-se ao filho da ofendida, HH).
3.1.11. Fazendo com que a ofendida temesse pela integridade física e vida dos seus familiares.
3.1.12. Sucede que, em pelo menos duas ocasiões distintas, DD acabou por se separar do arguido, passando a residir, com os filhos HH e EE, na habitação da sua mãe.
3.1.13. Assim, em data não concretamente apurada, e aquando da primeira separação do casal, a ofendida deslocou-se até à sua habitação, com o intuito de ir buscar alguma roupa.
3.1.14. Nessa ocasião o arguido pegou num garrafão, contendo no interior gasolina, e derramou o seu conteúdo no chão do corredor da habitação, ao mesmo tempo que dirigiu à ofendida as seguintes expressões: “se não voltares, ficamos aqui os dois” e que “punha fogo à casa”.
3.1.15. Noutra ocasião, estando o casal separado, o arguido AA deslocou-se até à habitação da mãe da ofendida, de noite, e bateu insistentemente na porta, pedindo à ofendida para voltar para casa.
3.1.16. Após a reconciliação do casal, em datas não concretamente apuradas, em duas ocasiões, e quando DD regressava casa vinda de um passeio com os seus familiares, o arguido exibiu-lhe uma corda e disse que se iria enforcar.
3.1.17. Em data não concretamente apurada, na cozinha da habitação, o arguido AA e a ofendida começaram a discutir, tendo, então, aquele agarrado esta pela roupa, e se munido de um garfo que apontou na direcção da ofendida, causando-lhe receio.
3.1.18. No dia 22 de Dezembro de 2023, no interior da habitação do casal, o arguido AA começou a insinuar que a ofendida mantinha um relacionamento afectivo com um padeiro tendo, na referida ocasião, proferido a seguinte expressão: “agora até já andas metida com o padeiro, que tem cacete o ano inteiro, até camisinha lá tinha” (referindo-se, com este último termo, aos sacos de plástico do pão).
3.1.19. Em data não concretamente apurada, mas situada em Junho de 2024, e quando se encontravam na cozinha da habitação, o arguido, disse o seguinte: “se me deixares, alguém de quem gostas muito vai sofrer as consequências, voltou outra vez lá para dentro, mas não me importo”.
3.1.20.  Em dia não concretamente apurado, do mês de Julho de 2024, o arguido AA dirigiu-se a DD, que tinha regressado da missa, e disse: “vais muito à missa, já andas metida com o padre, ainda por cima é preto”.
3.1.21. Devido ao referido comportamento do arguido, DD deixou de frequentar a Missa.
3.1.22. No dia 25 de Agosto de 2024, DD deslocou-se até à ... acompanhada da sua irmã, DD, e da sua filha, EE.
3.1.23. Nesse dia, pelas 01:30h, quando DD e EE regressaram da referida festa, à sua habitação, aperceberam-se que a fechadura da porta estava trancada, tendo, nessa ocasião, o arguido aberto a porta.
3.1.24. Após, e enquanto DD se deslocava até ao seu quarto, o arguido dirigindo-se a esta, proferiu as seguintes expressões: “se não fosse pela tua filha mandava-te para a cona da tua mãe”.
3.1.25. Nessa ocasião, EE aproximou-se do arguido, questionando-o quanto ao que este tinha acabado de referir, tendo o mesmo lhe respondido “e tu Maria Rapaz?”, acabando ambos por iniciar uma discussão.
3.1.26. Em acto contínuo, o arguido muniu-se de uma pá de ferro, levantou a mesma no ar, e dirigiu-se à sua filha EE, dizendo: “dou-te com a pá que te fodo”.
3.1.27. Nessa sequência, DD agarrou a pá que o arguido segurava, acabando por conseguir retirá-la a este.
3.1.28. Após, DD e EE foram para o interior do quarto a chorar, no qual o arguido entrou, posteriormente, a proferir a seguinte expressão “ela está a fingir, não tem nada”.
3.1.29. No dia 9 de Setembro de 2024, o arguido AA detinha numa dependência para arrumos, na sua residência sita na Rua ..., em ..., duas armas de caça e uma arma de ar comprimido.
3.1.30. Em todos os momentos descritos, o arguido AA agiu com o propósito concretizado de lesar a ofendida, sua companheira, na honra, no bom nome, e na saúde, atingindo-a fisicamente na sua liberdade sexual, e no seu bem estar emocional e psicologicamente através de maus tratos, bem sabendo também que as expressões e comportamentos que lhe dirigiu e assumiu, eram adequados a provocar-lhe sentimentos de insegurança, intranquilidade e receio pela sua vida e pela sua integridade física.
3.1.31. O arguido AA agiu com o propósito concretizado de lesar a sua filha EE, na honra, na integridade física, e na dignidade enquanto pessoa humana, atingindo-a emocional e psicologicamente através de ameaças e maus tratos.
3.1.32. Sabia também o arguido AA que EE é sua filha e que, à data dos factos, a mesma consigo coabitava, sendo pessoa particularmente frágil em razão da idade.
3.1.33. Sabia o arguido AA que, ao praticar os factos descritos no interior da residência de DD e de EE, dificultava às mesmas o auxílio por parte de terceiros, deixando-as vulneráveis no interior do próprio lar.
3.1.34. Como sabia que, praticando tais actos contra DD na presença da filha menor, EE, a humilhava perante a própria filha, e perturbava emocionalmente ambas.
3.1.35. O arguido AA não está legalmente habilitado para a detenção das supra aludidas armas.
3.1.36. O arguido AA agiu livre, voluntária, e conscientemente, com o propósito concretizado de deter os objectos em questão, ciente das características de tais armas, bem sabendo que a sua detenção era proibida e punida por lei.
3.1.37. Em tudo, agiu o arguido AA, livre, voluntária e conscientemente, ciente que as suas condutas eram, como são, proibidas e punidas por lei.
(…)
3.1.38. Como consequência directa de tais agressões, resultaram para a ofendida/assistente além de dores físicas e mal estar e uma profunda tristeza e angustia.
3.1.39. Em consequência das agressões de que foi alvo a ofendida/assistente padeceu de (…) , transtornos emocionais que a perseguem até aos dias de hoje.
3.1.40. Ao que acresce a humilhação e vexame que a perseguem diariamente.
3.1.41. Sendo que, o seu nível de vida sofreu profundas alterações, vivendo a ofendida/assistente em permanente amargura, vexada, humilhada, com medo e desconfiança profunda.
3.1.42. Actualmente a ofendida/assistente ainda se ressente das lesões sofridas, especialmente a nível psicológico, pelo que lhe é penoso sair à rua sozinha.
b) Sobre a situação socio económica do arguido.
3.1.43. AA à data dos factos subjacentes ao presente processo residia com a ofendida, a filha do casal e filho da ofendida (atualmente com 15 e 24 anos de idade, respetivamente), na Rua ..., ... (atual morada da ofendida e descendentes desta).
3.1.44. No presente o arguido reside na Rua ..., ..., em ..., a cerca de 50 m da habitação da ofendida. É um espaço habitacional cedido temporariamente ao arguido por II, constituido por um quarto, uma cozinha, com luz eletrica, água e sem sanemento básico.
3.1.45. O arguido iniciou a relação de união de facto com a ofendida no presente processo em 2008, relação que o próprio assume que modificou após o acidente grave com envolvimento de veiculo de tração animal (carroça), de que foi vitima em 15/05/2018, o qual exigiu internamento e tratamento do arguido, inicialmente em contexto hospitalar e posteriormente nos cuidados continuados, de longa e média duração.
3.1.46. Conforme o próprio referiu, o seu estado de dependência de terceira pessoa motivou-lhe sentimentos de inferioridade, baixa de auto-estima e instabilidade relacional com a ofendida.
3.1.47. Relativamente à descendente de menoridade iniciou o pagamento do valor da prestação de alimentos no passado mês de março, conforme determinado judicialmente. Não mantém relacionamento com esta descendente, e conforme o próprio refere, por desinteresse da menor.
3.1.48. Relativamente à sua família de origem, ambos os progenitores já pereceram e a relação com os irmãos, 4 residentes em ... e 1 em ..., é mantida, sobretudo, via telefone.
3.1.49. Tem dois filhos de uma relação matrimonial anterior, atualmente com 28 e 27 anos de idade, cujo acompanhamento educativo esteve a cargo da irmã do arguido, JJ e marido desta. O relacionamento com estes descendentes é distante, conforme nos foi referido pela irmã do arguido.
3.1.50. No âmbito formativo, o arguido iniciou as atividades escolares em idade própria, em ..., onde residia o seu agregado de origem. Tem a certificação do 4.º ano de escolaridade, e refere precoce desistência escolar, por desinteresse das atividades escolares e dificuldades de aprendizagem.
3.1.51. Com 16/17 anos iniciou a atividade profissional na área da construção civil, que exerceu até 1998, ano em que iniciou o cumprimento de execução da pena de prisão de 11 anos, após a aplicação do perdão da Lei 29/99. No decorrer da medida de liberdade condicional, voltou a exercer funções na área da construção civil, em ..., e posteriormente na área agricola, no concelho ....
3.1.52. Em ..., onde permanece a residir desde há 17 anos, manteve a atividade de jornaleiro agricola e de pastoricia. Após a ocorrência do referido acidente de trabalho, o arguido passou a ser beneficiário de pensão de invalidez, e concomitantemente mantém a atividade de pastor, de um rebanho com um número reduzido de animais (de sete animais, no presente).
3.1.53. No âmbito económico o arguido refere que as despesas com o fornecimento da àgua e luz têm sido suportadas pelo vizinho que lhe cede o espaço habitacional, informação corroborada pelo comodante. Sobrevive com o valor da reforma de invalidez, no valor de cerca de 415 euros/ mês e da venda dos animais que pastoreia, e assume que irá manter o pagamento da prestação de alimentos à descendente de menoridade, no valor de 100 euros/mês.
3.1.54. Considera necessitar de gerir com parcimónia o provento, ressaltando não dispor de outro apoio económico.
3.1.55. No âmbito clinico mantém sequelas do acidente que registou, sobretudo no âmbito da locomoção, com necessidade de acompanhamento clinico.
3.1.56. Nos tempos livres, AA refere partilhar o convívio com conhecidos e alguns amigos na Associação Cultural e Recreativa de ..., onde também vê televisão.
3.1.57. Percepciona adequada inserção comunitária na aldeia de ..., onde mora há 17 anos e onde se sente acolhido e respeitado, perspetivando manter a sua residência nesta aldeia.
3.1.58. No âmbito do Proc. 2846/00.0TXLSB beneficiou de regime de liberdade condicional, concedida a 17/03/2006 e terminus em 16/11/2009, com acompanhamento por este serviço e cumprimento das injunções impostas.
3.1.59. No âmbito da medida de coação aplicada ao arguido nos presentes autos, o mesmo mantém entrevistas regulares nesta Equipa da DGRSP com incidência na temática da violência doméstica, mostrando-se empenhado no cumprimento dos agendamentos de entrevista que esta Equipa tem efetuado, e esforçado na interiorização de alguns conceitos.
3.1.60. A distância entre as moradas do arguido e da ofendida é de cerca de 50 metros, situação que tem inviabilizado a instalação dos equipamentos de vigilância eletrónica. Não obstante, assume distanciamento em relação à ofendida e familia desta, informação que nos foi corroborada pela ofendida.
3.1.61. Vivencia a existência do presente processo judicial penal com preocupação, e aguarda com expectativa o desfecho dos autos, estando disposto a aceitar e colaborar com a decisão do Tribunal.
3.1.62. No âmbito familiar, mantém o apoio dos irmãos, e não refere repercussões negativas no âmbito do enquadramento social, em ..., resultantes do presente confronto judicial.
3.1.63. No presente dispõe de espaço habitacional com parcas condições de habitabilidade, cedido por um vizinho, está reformado por invalidez, mantém apoio dos irmãos e regista inserção comunitária.
3.1.64. A distância entre as moradas do arguido e da ofendida é de cerca de 50 metros, situação que tem inviabilizado a instalação dos equipamentos de vigilância eletrónica. Não obstante, assume distanciamento em relação à ofendida e familia desta, informação que nos foi corroborada pela ofendida.
3.1.65. Face ao exposto, em caso de condenação do arguido e se a pena concretamente aplicada o permitir, consideramos que AA apresenta condições para a execução de uma medida de natureza probatória direcionada para a interiorização do desvalor da sua conduta criminal, com concomitante injunção de afastamento da residência e local de trabalho da ofendida.(…)”.
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Em face do quadro exposto, comecemos, então, a apreciação das questões que nos foram colocadas.
Entende o arguido que não cometeu o crime de violência doméstica na pessoa da sua filha EE, essencialmente, porque o comportamento (contra a mesma) que lhe é imputado e foi provado ocorreu uma única vez.
Comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite (artigo 152.º do CP).
Como se lê no acórdão de do TRE de 11.07.2019 (in www.dgsi.pt), “(…) O actual tipo legal, previsto no mencionado art. 152.º do CP, foi introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, além do mais, tendo o legislador evoluído na própria denominação de maus-tratos para violência doméstica e optado por distribuir por três preceitos as previsões que se encontravam concentradas numa só (Teresa Pizarro Beleza, in “Violência Doméstica”, Jornadas sobre a revisão do Código Penal – Estudos, Revista do CEJ 1.º semestre 2008, n.º 8 (especial), págs. 288/289). A sua consagração surgiu como reflexo de uma crescente consciencialização da sociedade para a necessidade de intervenção do Estado perante uma realidade existente, traduzindo problemática de afirmação de domínio do mais forte, para o que concorrem diversos factores de risco, sociais e culturais. E acompanhando, por recente, o acórdão do STJ de 07.12.2018, (…) (…) O bem jurídico protegido é a saúde, abrangendo, na sua complexidade, a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afectada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinja a dignidade da pessoa visada, seja por acção, seja por omissão. Pressupõe-se que o agente se encontre numa determinada relação para com a vítima desses comportamentos e, neste sentido, é um crime específico, não supondo, contudo, um vínculo afectivo estável. Para a subsunção ao crime, tanto releva a reiteração como a intensidade, o que significa que a conduta daquele que maltrata deve ser especialmente grave, devendo, ainda, incluir-se num determinado contexto social de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, ou estreita relação de vida. Todavia, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima(…) tem de ser integrado por padrão de comportamento com perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima, o que haverá de ser apreciado pela imagem global do facto, conforme sublinhado no acórdão desta Relação de Évora de 08.01.2013, no proc. n.º 113/10.0TAVVC.E1 (rel. ora Adjunto), in www.dgsi.pt: entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à “imagem global do facto” se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual. (…)”.
Ora, no caso em apreço e diversamente do sustentado pelo arguido, não é possível diminuir a intensidade da ofensa à sua filha menor EE, quando, num contexto doméstico já muito marcado pela violência e agressividade do arguido, diríamos até de real terror psicológico (como é típico destas situações), a apoda de “Maria Rapaz” e lhe diz “dou-te com a pá que te fodo”, segurando essa mesma pá, que só pela companheira lhe foi retirada, fazendo, em seguida, pouco caso das consequências da sua conduta ao referir, no quarto em que a sua filha se encontrava a chorar, “ela está a fingir, não tem nada”.
É inequívoco que a intensidade agressiva e lesiva exigida pelo tipo legal, ainda que circunscrita àquele episódio, afirmou-se suficientemente mediante os actos do arguido recorrente, porque, além do mais, reveladores de tratamento incompatível com a dignidade, dentro do espaço doméstico em que ocorreram e denotando considerável desrespeito, no âmbito de uma relação paternal de domínio.
A imagem global do facto fornece acentuado desvalor de acção e de resultado, traduzido na intimidação, humilhação, insegurança e vulnerabilidade que a filha menor do arguido sentiu.
Tanto basta para se acompanhar o acórdão recorrido e se considerar verificada a prática pelo arguido do crime de violência doméstica contra a sua filha EE.
No que tange agora à indemnização fixada à vítima DD, também questionada pelo arguido.
A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil (artigo 129.º do CP).
Nos termos do artigo 483.º do CC, “Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Verifica-se a existência dos pressupostos para a existência de um dever de reparação resultante da responsabilidade civil por actos ilícitos: o facto, a ilicitude, a imputação de facto ao lesante (culpa), o dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano – nesse sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Vol. I, pág. 471.
São escassos (inexistentes) os factos atinentes à situação da lesada DD, o que não sucede com os factos referentes às profundas lesões psicológicas que sofreu.
Ora, mediante a comprovação das condutas ilícitas do arguido e das consequências psicológicas que tiveram na lesada DD, não descurando a modesta situação económica do arguido, peca apenas por defeito a indemnização fixada pela primeira instância, que não podemos alterar.
Desta feita, improcede in totum o recurso do arguido.
Já o recurso do Ministério Público deverá proceder.
Convocaremos a seu propósito o ensinamento vertido no acórdão do STJ de 2.05.2018 (in www.dgsi.pt).
Ali se escreveu: “(…) É, pois, neste quadro, que deve entender-se o estatuído no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, havendo que distinguir as situações do n.º 1 e do n.º 2 deste preceito, na incompletude das suas normas, cujo sentido apenas se pode obter por recurso a outras normas. Enquanto o n.º 1 se limita a declarar que “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”, sem alterar o regime processual estabelecido no CPP quanto ao estatuto e intervenção das partes civis, titulares do direito à indemnização, no processo penal, o n.º 2 vem acrescentar algo de novo, ao estipular que, “para efeitos da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”. (…) Tem-se entendido que, no caso de condenação pelo crime de violência doméstica, o tribunal não pode deixar de arbitrar uma indemnização, pois, nessa situação, as particulares exigências de protecção da vítima resultam da própria opção legislativa constante da Lei nº 112/2009, dada a utilização do advérbio “sempre”, a não ser que esta expressamente se oponha a esse arbitramento (cfr. designadamente, entre outros, os seguintes acórdãos, em www.dgsi.pt: de 15-04-2015, Proc. 303/13.4PPLSB.L1-3, e de 16-09-2015, Proc. 67/14.42S2LSB.L1-3 (Relação de Lisboa); ; de 19-05-2015, Proc. 150/11.8GAVNO, de 22-9-2015, Proc. 671/14.0PBFAR.E1, de 24-05-2016, Proc. 253/14.7PBEVR.E1, e de 04-04-2017, Proc. 66/15.9GBABF.E1 (Relação de Évora); de 16-10-2013, Proc. 670/11.4PDVNG.P1 (Relação do Porto); de 07-03-2016, no Proc. 697/14.4GAVNF.G1 (Relação de Guimarães). No mesmo sentido, refere Pinto de Albuquerque (Código de Processo Penal Anotado, Católica, 4.ª ed., pág. 245) que o “direito à indemnização previsto no art.º 21.° da Lei n.º 112/2009, prejudica as regras do art.º 82.°-A, uma vez que consagra o carácter obrigatório do arbitramento oficioso de indemnização. As únicas condições de reparação oficiosa da vítima são, nestes casos, a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e a não oposição da vítima à reparação.” (…) Em sentido divergente, entende-se que o que resulta da lei não é a obrigação de fixar indemnização, mas apenas de se ponderar a sua atribuição nos termos daquele artigo 82.º-A, do CPP, mantendo-se a necessidade de verificar o requisito da existência de particulares exigências de protecção da vítima; não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil, o tribunal está obrigado a analisar a situação com vista a verificar se no caso concreto há ou não lugar a condenação no pagamento de indemnização (neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 24-06-2015, no Proc. 94/12.6GAACB.C1). Optando por outra solução, entende-se noutros casos, que, havendo sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do CPP, para que seja arbitrada tal indemnização é necessário que se verifiquem os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e do dever de indemnizar e que, verificados estes, não havendo oposição expressa do titular do direito correspondente, o tribunal está vinculado a ponderar a atribuição de uma indemnização, não podendo negá-la com o argumento de que a vítima não beneficia de particulares exigências de protecção, pois que, pelo facto de ter sido vítima de crime de violência doméstica, a lei atribui-lhe esse estatuto; o que, assim, haverá de apurar é o valor da indemnização adequada pelos danos (patrimoniais ou não patrimoniais) face aos factos provados (assim, no acórdão da Relação do Porto de 15-12-2016, no Proc. 192/15.4GBVFR.P1). (…) O que vem de se expor, na consideração dos elementos de interpretação convocados (supra, 10), permite firmar a conclusão de que a reparação a que se refere o artigo 82.º-A do CPP não tem natureza estritamente civil, de “indemnização”, comportando uma dimensão penal, de efeito penal da condenação, apesar de convocar elementos de caracterização provenientes do direito civil. (…) Assim sendo, (…) o tribunal deverá condenar (“sempre”) na “reparação pelos prejuízos causados”, como efeito penal da condenação (da aplicação da pena) pela prática de crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal. Isto, sublinhe-se, desde que, verificados os respectivos pressupostos formais – não dedução de pedido de indemnização e não oposição à reparação –, a pessoa ofendida pelo crime tenha sofrido “um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, (…) desde que essa pessoa seja uma “vítima” do crime na acepção da alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 112/2009. A caracterização e conteúdo desta “reparação”, de natureza pecuniária, sem se confundir com a indemnização civil, remete, porém, como antes se sublinhou, para conceitos que lhe são próprios, nomeadamente quanto ao “dano” ou “prejuízos”, mas já não quanto à “quantia” a fixar, a qual, como antes se afirmou (supra, 11) não tem que coincidir com o montante da indemnização. (…)”.
Na situação vertente, o acórdão recorrido omitiu o arbitramento de indemnização à filha do arguido, EE.
Importa, pois, concluir que o acórdão recorrido padece da nulidade de omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Quanto às consequências da nulidade da sentença, dispõe o artigo 379.º do CPP: «2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º. 3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade».
Desta disposição decorre o dever de o tribunal de recurso suprir a nulidade da sentença recorrida, desde que disponha de todos os elementos que o permitam não implicando a mesma qualquer processo de reconstrução da sentença e respetiva motivação que só ao Tribunal recorrido esteja reservado (cfr., neste sentido, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 27/01/2010 e 14/11/2023, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, sendo nula a decisão que não conheceu de uma questão que a Lei impunha que tivesse sido conhecida, deverá este tribunal suprir tal nulidade (vide, entre muitos outros, acórdão do STJ de 3.10.1996, in www.dgsi.pt), já que possui todos os elementos de facto que o habilitam a decidir sobre esta questão, que não mereceram qualquer oposição por parte do Ministério Público ou do arguido.
Condenado pela prática de um crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.º do Código Penal, perpetrado contra a sua filha, EE, e não tendo havido pedido deduzido pela lesada, não deve o arguido ser condenado no pagamento em “indemnização” nos estritos termos da lei civil, mas sim no pagamento de uma reparação à vítima do crime, nos termos do artigo 82.º-A do CPP, em conformidade com o disposto no artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009.
Esta reparação, na falta de fixação de critério próprio no artigo 82.º-A do CPP, deve levar em conta os danos não patrimoniais causados e a situação da vítima, como expressão da gravidade das consequências do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, numa ponderação conjunta dos critérios da lei civil, nomeadamente dos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do Código Civil, convocados pela natureza compensatória da reparação, e dos critérios da lei penal de fixação da reacção criminal atendíveis por via da culpa e da prevenção, nos termos das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal (vide acórdão do STJ de 2.05.2018, acima referenciado).
Desta feita, considerando a violência e agressividade da conduta do arguido para com a sua filha EE (ainda que isolada) e, bem assim, o grau de culpa daquele (elevado) e as suas circunstâncias económicas (que se provaram), consideramos ajustado arbitrar uma indemnização no valor de € 1.000 (mil euros).

III DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

a. Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido;
b. Julgar procedente o recurso do Ministério Público e, em consequência, arbitrar o valor de € 1.000 (mil euros), a pagar pelo arguido AA à sua filha EE;
c. No demais, manter integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (artigo 513.º, n.º 1, do CPP).
Guimarães, 28 de Outubro de 2025

Artur Cordeiro
António Bráulio Alves Martins
Paulo Alexandre da Costa Correia Serafim
(com a declaração de voto de vencido que se segue)

Vencido, nos termos da seguinte declaração:
Votei vencido na parte em que o acórdão - que subscrevo no demais - supriu a declarada nulidade por omissão de pronúncia da sentença recorrida decorrente do não conhecimento sobre a questão da fixação de reparação oficiosa à ofendida EE.
Salvo o muito respeito que nutro pela posição que fez vencimento, tenho entendido em vários acórdãos deste Tribunal da Relação, por mim relatados ou em que intervim como adjunto, que o suprimento da sobredita nulidade por banda deste Tribunal ad quem consubstancia uma indevida supressão de um grau de jurisdição, considerando que a presente deliberação ex novo sobre tal questão representa a retirada da possibilidade de pronunciação da primeira instância e impede, por irrecorribilidade, a eventual sindicância por parte dos sujeitos processuais afetados pela decisão ora tomada.
No sentido que pugnamos, veja-se Oliveira Mendes, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anot. 4 ao art. 379º, p. 1158; Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 12 ao art. 379º, p. 966; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.02.2010, Processo nº 35/09.8JAPRT.P1, Ricardo Silva, e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.01.2013, Processo nº 905/05.2JFLSB.L1-9, Abrunhosa de Carvalho, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Paulo Alexandre da Costa Correia Serafim