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CRIME DE INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO
SALÃO DE CABELEIREIRO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário
I – Há crime de introdução em lugar vedado ao público (art. 191.º do Código Penal) quando o agente – depois de ter sido informado pelo proprietário do salão de cabeleireiro que não o podia atender por não ter hora marcada, e ter acedido ao pedido deste para sair – volta a entrar no estabelecimento e, perante a ordem do proprietário (a atender outra pessoa) para que saia, o arguido não a acata. II – São muito intensas as necessidades de prevenção especial quando um arguido, no espaço de menos de onze anos, sofreu treze condenações criminais, por um vasto catálogo de ilícitos, a maior parte deles punidos com penas de prisão, algumas efectivas – furto qualificado (várias), dano, condução sem habilitação legal, desobediência, resistência e coacção sobre funcionário, ameaça agravada, injúria agravada, ofensa à integridade física (simples e agravada) e violência doméstica – e, num só dia, escassos quatro meses sobre a sua restituição à liberdade, comete cinco crimes.
Texto Integral
Neste processo n.º 177/22.4GBVNF.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I - RELATÓRIO
No processo comum singular n.º 177/22.4GBVNF, a correr termos no Juízo Local Criminal (J...) de Vila Nova de Famalicão, Comarca de Braga, em que é arguido AA, foi proferida sentença que o condenou, pela prática de:
- um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa do assistente BB, na pena de 5 (cinco) meses de prisão;
- um outro crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa da assistente CC, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
- um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
- um crime de introdução em lugar vedado ao público (salão de cabeleireiro), p. e p. pelo art. 191.º do Código Penal, na pena de 1 (um) mês e 15 (quinze) dias de prisão; e
- um crime de introdução em lugar vedado ao público (logradouro da habitação), p. e p. pelo art. 191.º do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o mesmo arguido condenado na pena única de 1 (um) ano de prisão efectiva.
Na parcial procedência do pedido de indemnização civil, foi ainda o arguido condenado a pagar aos demandantes € 210,00, a título de danos patrimoniais, bem como, a cada um deles, a quantia individual de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros de mora até integral pagamento.
Inconformado, recorreu o arguido, apresentando as seguintes conclusões[1]:
«II) Entende o arguido, ora recorrente, que, face à decisão que o condenou, que não se conforma com a matéria de direito dada como provada, por considerar que os elementos dos factos típicos ilícitos não se encontram preenchidos. III) Considerando-se aqueles factos como provados em que assentou a sentença objeto de recurso, constatamos, claramente, que o recorrente não praticou os [três] crimes pelo qual foi condenado (…) VI) Quer a ação do arguido, nos factos provados números 4 e 5, quer a ação nos números 10, 11 e 12, demonstram que foi uma conduta capaz de integrar os pressupostos objetivos e subjetivos da legítima defesa, prevista no artigo 32º do Código Penal, não devendo o arguido ser punido, por apenas se ter defendido. VII) A legítima defesa, como causa de exclusão da ilicitude, constitui o exercício de um direito constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 21º da Constituição da República), o qual, de igual modo, se encontra previsto, para efeitos penais, nos artigos 31º e 32° do Código Penal. VIII) Ora, na primeira situação, ocorrida no cabeleireiro, o assistente colocou-se à frente do arguido e fê-lo recuar até à porta de entrada, sendo altamente duvidoso que o assistente o tenha feito sem ter recorrido ao uso da força e agredindo, por isso, de forma atual e ilícita a integridade física do arguido. IX) Nesta sequência o arguido somente repeliu tal agressão tendo para o efeito apertado o braço esquerdo do assistente. X) Assim, o arguido apenas se defendeu e verifica-se a exclusão da ilicitude por legítima defesa. XI) E mesmo que se entenda algum excesso de legítima defesa (o que salvo o devido respeito, não resulta da produção de prova), o mesmo se deve à perturbação e susto, compreensível de quem se viu cercado pelo assistente, que possui altura e fisionomia bem superiores à do arguido. XII) Ora, na segunda situação, ocorrida em casa dos assistentes e as alegadas ofensas à integridade física sobre a assistente, salvo melhor opinião em contrário, está em causa o instituto da legítima defesa, por se encontrarem verificados os pressupostos objetivos suprarreferidos. XIII) Por mera cautela de patrocínio, sempre se poderá equacionar que em ambas situações, quer no cabeleireiro, quer na casa dos assistentes, o arguido estaria a responder à conduta dos assistentes: o assistente homem no cabeleireiro, fez com o que o arguido se dirigisse para o exterior do cabeleireiro de forma certamente violenta e na casa dos assistentes, foi a assistente quem se abeirou do arguido, certamente adotando uma postura igualmente agressiva. XIV) Pelo que, o arguido apenas estava a responder à conduta dos assistentes. XV) Por tudo isto, estamos perante um caso de retorsão. XVI) deveria, antes, ter sido considerado o disposto nos artigos 143º, nº 3, al. b) e artigo 74º, nº 1 e 3 do Código Penal, uma vez que, a ação do arguido só foi levada a cabo porque houve uma ação dolosa prévia por parte dos lesados, não sendo exigida indeminização/reparação. XVII) Para que se aplique a dispensa de pena é necessário ainda que: a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas; b) O dano tiver sido reparado; e c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção. XVIII) Quanto ao primeiro requisito, estamos perante um agarrão do braço do assistente e depois perante ofensas à integridade física levianas, que surgiram como resposta aos anteriores comportamentos da assistente, pelo que, consideramos serem diminutas, quer a ilicitude quer a culpa. XIX) Por sua vez, e em igual sentido, a ação do arguido só foi levada a cabo porque existiu uma ação dolosa prévia por parte dos lesados, não podendo ser exigida indemnização/reparação. XX) Por fim, e apesar do considerado na sentença condenatória, não se vislumbram razões de prevenção. XXI) Por último, e no seguimento do já referido, não poderá o arguido ser condenado ao pedido civil indemnizatório que veio condenado, uma vez que, a ação do arguido foi ao abrigo do instituto da legitima defesa e caso assim não se considere, sempre se estará perante a figura da retorsão. XXII) Também, por mera cautela de patrocínio, perante os relatórios periciais presentes nos autos, sempre poderá concluir que as ofensas perpetradas se qualificam como insignificantes e que nesta esteira, tal como certo setor da doutrina e da jurisprudência, vem defendendo que, quando se tratem de ofensas insignificantes, deverão ser excluídas do tipo de crime do artigo 143º do Código Penal, por não terem dignidade para lesar o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço. XXIII) No que toca aos crimes de introdução em lugar vedado ao público (salão de cabeleireiro), previsto e punido pelo artigo 191º do Código Penal não cremos que esteja cumprido o tipo legal de crime, devendo o arguido ser absolvido deste. XXIV) Dos factos como provados resulta, o arguido entrou no salão de cabeleireiro explorado pelo assistente tendo-lhe pedido para lhe cortar o cabelo – facto dado como provado nº 1. XXV) Daqui resulta que o arguido somente queria cortar o cabelo e dirigiu-se a um estabelecimento comercial, de porta aberta ao público, para esse mesmo efeito, inexistindo uma indicação clara e objetiva da falta de consentimento e de autorização para aquele ali estar. XXVI) Pelo que, daqui não resulta a prática do crime do qual vem acusado, uma vez que o arguido tinha intenção de ir cortar o cabelo e dirigiu-se ao local indicado para esse efeito e quanto muito, em face da ausência de uma indicação clara e objetiva da falta de consentimento dever-se-ia ter aplicado o princípio in dúbio pro reo. XXVII) Por sua vez e ademais, cremos e à cautela de patrocínio que a medida da pena que foi nos presentes autos aplicada é manifestamente excessiva. XXVIII) É na fixação concreta da medida de uma pena estabelecida no âmbito de uma moldura abstrata que se evidencia a tarefa mais importante do juiz, obedecendo, no entanto, a um rigoroso cumprimento da lei, seja das normas estabelecidas no Código Penal (artigos 40º, 70º e 71º) seja dos princípios constitucionais que se evidenciam como orientadores primários da interpretação jurídico-penal. XXIX) Como se sabe, é na culpa do agente e nas razões preventivas gerais e especiais que se encontram as guias fundamentais para fixar a pena devida em determinado caso, sendo que o Código Penal estabelece um limite inequívoco e inultrapassável onde tem que assentar a medida da pena: a culpa do agente, nomeadamente a sua medida. XXX) O arguido, pese embora possua antecedentes criminais, deve ser valorado o facto de não ter atuado com intenção de aplicar aos assistentes lesões físicas demasiado gravosas, tendo pensado, prima facie que estava a atuar a coberto da causa de justificação de legítima defesa. XXXI) Resulta, para nós, então, que o quadro factual que subjaz à aplicação das medidas das penas, que estão concretamente aplicadas, não se mostram adequadas por ultrapassar o necessário para a estrita reintegração das normas afetadas pelo comportamento do arguido e cremos que são ultrapassados não apenas os limites da prevenção, geral e especial, como também o grau de culpa do arguido e da medida da pena, o que nos a leva peticionar a reapreciação das medidas das penas. XXXII) Por conseguinte e no que toca ao quantum indemnizatório que foi aos assistentes atribuído na douta sentença, manifestar igualmente a nossa discordância, pois consideramos o mesmo manifestamente excessivo, já que os factos dados como provados são exíguos e não conseguem justificar o montante que foi arbitrado. XXXIII) Pelo que, nesta matéria deve igualmente naufragar o pedido de indemnização da quantia individual de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros), a pagar a cada um dos demandantes ou pelo menos nesta sua extensão, devendo ser reduzido. XXXIV) O princípio do in dúbio pro reo “pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor.” XXXV) Toda a sentença ao fundamentar-se nos factos provados nunca poderia condenar o arguido. XXXVI) Estamos, sem dúvida, perante a violação do princípio do in dúbio pro reo, segundo o qual o juiz deve decidir “sobre toda a matéria que não se veja afetada pela dúvida”. XXXVII) O certificado de registo criminal do arguido não deve, nem pode, ser meio influenciador para o condenar por outros crimes ou por crimes semelhantes; pois o arguido e condenado após cumprir a sua pena já pagou a sua “dívida” para com a sociedade. XXXVIII) O tribunal a quo ao rotular e a considerar o registo criminal do aqui recorrente violou também os princípios basilares do direito penal e, inerentemente, os princípios do Estado de Direito. XXXIX) A pena aplicada é desadequada e desproporcional, imerecido, impondo-se a sua reapreciação, o que se reclama, pelo que a condenação pelo seu mínimo seria suficiente para ver cumprida a finalidade do direito penal português.»
Pugna o recorrente pela revogação da sentença, com a sua absolvição pelos três crimes; em alternativa, pede a reapreciação das medidas das penas que lhe foram aplicadas, bem como a redução do montante de indemnização atribuída aos assistentes.
O recurso foi admitido.
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso, uma vez que estão preenchidos todos os tipos legais de crime pelos quais o arguido foi condenado (inexistem factos provados que integrem a legítima defesa ou a retorsão e as lesões causadas não são diminutas) e que a pena é adequada, a este respeito subscrevendo os fundamentos da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto acompanha esta resposta, também assinalando a sua concordância com a sentença recorrida relativamente à pena aplicada.
Cumprido o contraditório, o recorrente nada disse.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[2], e face às conclusões do recurso, são cinco as questões a resolver:
- se, relativamente aos dois primeiros crimes, estão reunidos os pressupostos da legítima defesa;
- se, ainda nesse âmbito, é caso de retorsão e dispensa de pena;
- se as lesões causadas aos ofendidos são insignificantes, não merecendo tutela penal;
- se ocorreu crime de introdução em lugar vedado ao público; e
- se há desproporção na medida da pena.
Há, no entanto, uma questão prévia, relacionada com o pedido de redução da indemnização fixada na sentença recorrida.
Nos termos do art. 400.º, n.º 2, “o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.”
A alçada da 1.ª instância é de € 5.000,00 (art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto); ora, no caso o pedido de indemnização civil tinha o valor de € 3.210,00 (ref.ª ...49).
Portanto, nem sequer está preenchido o primeiro requisito daquele art. 400.º, n.º 2, o que obsta necessariamente à admissibilidade do recurso (também não se verifica o segundo, face ao montante total que o arguido foi condenado a pagar, de € 1.710,00), que deve ser rejeitado.
B. Factos provados e não provados da decisão recorrida[3]
«a) Factos provados Da acusação pública: 1. No dia 14 de maio de 2022, às 15h30, o arguido entrou no salão de cabeleireiro explorado pelo assistente BB, denominado “EMP01...”, situado na Av.ª ..., ..., em ..., V. N. de Famalicão, tendo-lhe pedido para lhe cortar o cabelo, o que aquele recusou, com a justificação de que não tinha hora marcada. 2. Após aceder ao pedido do assistente BB para sair do interior do salão, devido a quezílias anteriores, o arguido tornou a entrar no interior do salão, quando o assistente BB já cortava o cabelo a um cliente. 3. Apesar do assistente lhe ter ordenado que saísse, o arguido não lhe obedeceu, ali permanecendo, dizendo-lhe que “hoje vou fazer-te uma espera, és um homem morto”. 4. O assistente BB colocou-se à sua frente e fê-lo recuar até à porta de entrada. 5. Ao chegar à porta da entrada, o arguido apertou-lhe, com força, o braço esquerdo e puxou-o para o exterior do estabelecimento, provocando-lhe no referido braço um hematoma e um arranhão, tentando prosseguir as agressões, sem sucesso, porquanto o assistente e o cliente deste o impediram. 6. Ao final da tarde do mesmo dia, o arguido dirigiu-se para a residência do assistente BB, situada na Rua ..., em ..., ..., V. N. de Famalicão e, conforme por ele anunciado ao início da tarde, esperou que aquele chegasse a casa. 7. Quando o assistente BB chegou, às 20h15, o arguido proferiu contra ele palavras insultuosas e, após o mesmo, sem lhe responder, ter entrado no logradouro da habitação, que é totalmente murado e fechado por um portão, disse-lhe: “Vem cá fora, vou-te pôr a comer de palheirinha”. 8. Ao ouvir as palavras do arguido, a assistente CC, esposa do assistente BB, assomou ao logradouro da residência e pediu ao arguido que tivesse calma. 9. Nesse momento, o arguido, em vez de se ausentar, saltou o muro que vedava o logradouro da habitação dos assistentes e dirigiu-se à assistente CC com um pedaço em borracha de uma mangueira, com cerca de 60 cm de comprimento. 10. O arguido empunhou o pedaço de mangueira e desferiu com ele uma pancada no braço esquerdo da assistente CC, altura em que o assistente BB o agarrou. 11. Nesse momento, a assistente CC desequilibrou-se e embateu com a perna esquerda numa vaseira do jardim. 12. Quando agarrou o arguido, o assistente BB caiu sobre a sua mão direita com a qual embateu na guia do mosaico. 13. Ao ver que a assistente CC falava com o 112 através do telemóvel da filha menor, com 13 anos de idade, o arguido largou o assistente BB e tirou-lhe o telemóvel da mão, atingindo-a, com este gesto, na face direita, entregando-o à sua companheira, que se mantinha na via pública. 14. Quando a assistente CC lho pediu, a companheira do arguido restituiu-lhe o telemóvel. 15. Porém, o arguido tornou a tirar o telemóvel à assistente CC e, com o mesmo, saltou o muro, abandonando o logradouro. 16. Perante os pedidos da assistente CC para lhe devolver o telemóvel, o arguido projetou-o na direção do assistente BB, fazendo com que caísse ao chão e partisse um dos cantos do vidro do ecrã. 17. Mercê do vertido em 12, resultou para o assistente BB equimose amarelada com 4cm x 2.5cm, com edema adjacente, na face palmar da mão direita, sob a raiz do primeiro e segundo metacarpos e dor sob a articulação metacarpo falângica de D1, ferimentos estes que lhe determinaram, direta e necessariamente, quinze dias de doença, com cinco dias de incapacidade para o trabalho geral e profissional. 18. Mercê do vertido em 10, resultou para a assistente CC equimose amarelada, arredondada, com 1 cm de maior diâmetro na face lateral do terço proximal do antebraço esquerdo. 19. Mercê do vertido em 11, resultou para a assistente CC equimose amarelada com 6cm x 2cm de maior eixo oblíquo e equimose amarelada com 5 por 3 cm de maiores dimensões na perna esquerda. 20. Os ferimentos referidos em 18 e 19 determinaram, para a assistente CC, direta e necessariamente, oito dias de doença, sem incapacidade para o trabalho geral ou profissional. 21. Ao atuar como descrito em 5, o arguido fê-lo com a intenção alcançada de molestar fisicamente o assistente BB, e de lhe provocar dores e ferimentos do tipo dos verificados, bem sabendo que a sua conduta era adequada a tal resultado. 22. O arguido atuou nos termos descritos em 10 com o objetivo conseguido de molestar fisicamente a assistente CC e lhe provocar ferimentos do tipo dos verificados, bem sabendo que a sua conduta era adequada a tal resultado. 23. O arguido atuou ainda com o objetivo alcançado de penetrar no interior do salão de cabeleireiro pertencente ao assistente BB e no logradouro da sua residência, e da assistente CC, e aí permanecer contra as suas vontades e sem as suas autorizações, apesar de saber que se tratavam de espaços vedados, onde não estava autorizado a entrar e permanecer. 24. Finalmente, o arguido atuou com o objetivo conseguido de estragar o telemóvel pertencente à filha dos assistentes e lhes provocar um prejuízo patrimonial, apesar de saber que o referido aparelho não lhe pertencia e que agia contra a vontade e sem o consentimento dos assistentes. 25. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente e embora soubesse que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiu de os concretizar.
Do pedido de indemnização civil: 26. Mercê da atuação do demandado, os demandantes sentiram receio, angústia, revolta e dor. 27. O demandante BB sentiu medo de voltar a encontrar o arguido no salão de cabeleireiro e em casa.
Da audiência de discussão e julgamento: 28. Por não ter sido reparável, os demandantes tiveram de substituir o telemóvel da sua filha menor, que havia sido adquirido, em 13/09/2021, pelo valor de 210,00 €.
Dos autos: 29. O arguido tem averbadas no seu CRC as seguintes condenações: a) Por decisão datada de 14 de maio de 2009, transitada em julgado a 16 de novembro de 2009, pela prática em janeiro de 2007, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º1 e 204.º n.º1 alínea e), ambos do Código Penal, na pena de 2 anos e oito meses, suspensa com regime de prova por igual período, já declarada extinta, a 21 de junho de 2013, pelo decurso do prazo de suspensão de execução da pena – processo n.º 46/07.8PBGMR; b) Por decisão datada de 26 de abril de 2013, transitada em julgado a 30 de setembro de 2013, pela prática a 12 de maio de 2005, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º e 204.º n.º2 alínea e), ambos do Código Penal, e pela prática a 1 de março de 2012, de um crime de dano simples, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal, na pena única de 2 anos e oito meses de prisão, suspensa com regime de prova por igual período, já declarada extinta, a 30 de maio de 2016, pelo decurso do prazo de suspensão de execução da pena – processo n.º 178/05.7GBVNF; c) Por decisão datada de 2 de junho de 2009, transitada em julgado a 30 de julho de 2009, pela prática em julho de 2008, de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 2014.º, 22.º e 23.º do Código Penal, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 374.º do Código Penal, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º do Código Penal, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º e 204.º n.º2 alínea e) do Código Penal, e de um crime de dano simples, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, já declarada extinta, a 1 de dezembro de 2012, pelo decurso do prazo de suspensão – processo n.º 853/08.4PAVNF; d) Por decisão datada de 20 de abril de 2010, transitada em julgado a 14 de junho de 2010, pela prática a 3 de abril de 2010, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 1 ano de prisão, substituída por 365 horas de trabalho, já declarada extinta, a 12 de janeiro de 2011, pelo seu cumprimento – processo n.º 128/10.9GBVNF; e) Por decisão datada de 8 de junho de 2010, transitada em julgado a 14 de julho de 2010, pela prática a 16 de maio de 2010, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º n.º1 alínea c) do Código Penal, e de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena única de 145 dias de multa, à taxa diária de 6,00 euros (que veio a ser convertida em 96 dias de prisão subsidiária), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses, já declarada extinta, a 27 de setembro de 2011, pelo cumprimento – processo n.º 394/10.0GAVNF; f) Por decisão datada de 31 de maio de 2011, transitada em julgado a 20 de junho de 2011, pela prática a 19 de novembro de 2007, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, e de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º e 204.º n.º2 alínea e) do Código Penal, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, já declarada extinta, a 20 de outubro de 2013, pelo decurso do prazo de suspensão – processo n.º 439/07.0GDSTS; g) Por decisão datada de 30 de janeiro de 2013, transitada em julgado a 1 de março de 2013, pela prática a 3 de dezembro de 2011, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º1 e 155.º n.º1 do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º e 145.º n.º1 do Código Penal, na pena única de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com regime de prova, já declarada extinta, a 30 de janeiro de 2013, pelo decurso do prazo de suspensão – processo n.º 368/11.3GBVNF; h) Por decisão datada de 7 de maio de 2013, transitada em julgado a 28 de junho de 2013, pela prática a 18 de julho de 2010, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º do Código Penal, e de 3 crimes de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º e 184.º, por referência ao artigo 132.º n.º2 alínea l) do Código Penal, pela prática a 5 de fevereiro de 2010, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º e 145.º n.º1 alínea a) do Código Penal, e de 4 crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º n.º1 e 155.º nº1 alínea a) e c) do Código Penal, pela prática a 13 de junho de 2010, de 10 crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º n.º1 e 155.º n.º1 alínea a) e c) do Código Penal, e pela prática a 18 de outubro de 2010, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º1 do Código Penal, na pena única de 3 anos de prisão efetiva, já declarada extinta, a 15 de setembro de 2016, pelo seu cumprimento – processo n.º 47/10.9GBVNF; i) Por decisão datada de 25 de maio de 2017, transitada em julgado a 9 de outubro de 2017, pela prática em 2010, de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º1 alínea b) e n.º2 do Código Penal, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão efetiva, e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo mesmo prazo, esta última declarada extinta, a 9 de junho de 2021, pelo seu cumprimento – processo n.º 275/16.3GBVNF; j) Por decisão datada de 17 de outubro de 2017, transitada em julgado a 16 de novembro de 2017, pela prática a 4 de setembro de 2016, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º1 do Código Penal, na pena de 7 meses de prisão efetiva – processo n.º 238/16.9GBVNF; k) Por decisão datada de 19 de março de 2018, transitada em julgado a 27 de abril de 2018, pela prática em 24 de setembro de 2016, de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º n.º1 e 184.º, com referência ao artigo 132.º n.º2 alínea l) do Código Penal, e de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 155.º n.º1 alínea c), com referência aos artigos 132.º n.º1 alínea l) e 153.º n.º1 do Código Penal, na pena única de 4 anos e 5 meses de prisão, que englobou, em cúmulo jurídico, as penas referidas em i) e j) supra – processo n.º 307/16.5GCVF; l) Por decisão datada de 24 de maio de 2018, transitada em julgado a 25 de junho de 2018, pela prática em 27 de outubro de 2016, de dois crimes de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º e 184.º, por referência ao artigo 132.º n.º2 alínea l) do Código Penal, de dois crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º1 e 155.º n.º1 alínea c) do Código Penal, e de um crime de dano simples, previsto e punido pelo artigo 212.º n.º1 do Código Penal, na pena única de 14 meses de prisão efetiva – processo n.º 270/16.2GBVNF; m) No processo referido em l) foi realizado cúmulo jurídico, que englobou as penas referidas em i), j) e k), e aplicada ao arguido, por decisão transitada em julgado em 11 de fevereiro de 2019, a pena única de 4 anos e 10 meses de prisão, já declarada extinta, por cumprimento, a 27 de janeiro de 2022. n) Por decisão datada de 5 de dezembro de 2019, transitada em julgado a 17 de janeiro de 2020, pela prática em 24 de março de 2019, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º1, 155.º n.º1 alínea c) e artigo 132.º n.º2 alínea 1 do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão efetiva, já declarada extinta, a 18 de agosto de 2020, pelo seu cumprimento – processo n.º 1397/19.4T9GMR. 30. O arguido havia sido colocado em liberdade em 04/01/2022.
Das condições pessoais do arguido: 31. À data dos factos, AA integrava o agregado familiar da sua então companheira, DD, composto pela própria, 53 anos, beneficiária do rendimento social de inserção, um descendente do casal, nascido a ../../2011, e um irmão da ex-companheira que apenas pernoitava. 32. O núcleo familiar habitava um imóvel arrendado em nome da, então, companheira, e que corresponde a uma moradia de tipologia 2 que reúne adequadas condições de habitabilidade. 33. Aquela união de facto, iniciada em 2010, pautou-se sempre pela instabilidade, condicionada pelas características de impulsividade que o arguido apresenta e os comportamentos agressivos perpetrados, que deram origem ao processo 275/16.3GBPNF. 34. Sem qualquer ocupação laboral, AA exibia um quotidiano ocioso e sem estruturação, sendo a sua subsistência assegurada pela prestação do RSI atribuído à companheira, no valor de 460€, e pelos rendimentos auferidos por aquela a título informal em fábrica de confeção. 35. No meio socio residencial, o arguido detém uma imagem associada à ausência de hábitos de trabalho e à interação conflituosa que estabelecia com a comunidade, evidenciado problemas de impulsividade, que o mesmo reconhece, mas que desvaloriza. 36. AA habilitou-se, em idade própria, com o 2º ciclo do ensino básico, tendo iniciado atividade laboral aos 13 anos de idade como ajudante de carpinteiro. 37. Porém este percurso foi condicionado pelo envolvimento no consumo de substâncias estupefacientes (haxixe e drogas sintéticas) durante a adolescência, pela instabilidade pessoal e pela dificuldade em cumprir com as exigências profissionais. 38. Por volta dos 20 anos de idade teve um internamento de curta duração no Hospital ..., onde foi submetido a tratamento psiquiátrico com medicação antidepressiva e ansiolítica, mantida depois através do médico de família, momento em que reporta ter abandonado o consumo das drogas sintéticas, embora tenha mantido o consumo esporádico de cocaína e álcool em excesso, comportamento que manteve até à aplicação da atual medida de coação. 39. Em fevereiro/2023, após o termo do relacionamento com a sua companheira, o arguido foi residir para ..., com outra companheira, EE. 40. AA deu entrada no Estabelecimento Prisional ... a 22/04/2024, à ordem do processo nº 82/24.0GBVNF do Juízo Central Criminal de Guimarães – Juiz ... (violência doméstica), por aplicação da medida de coação de prisão preventiva. 41. Quando levado a refletir sobre as anteriores condenações, o arguido verbaliza reconhecimento da sua ilicitude e diz-se arrependido, desculpabilizando-se com fatores externos. 42. No Estabelecimento Prisional ..., o arguido não tem ocupação, embora já tenha solicitado, e tem apresentado um comportamento ajustado. 43. Relativamente à problemática aditiva e saúde mental, está a ser acompanhado em consultas de psiquiatria. 44. AA não tem visitas, embora mantenha contactos telefónicos diários com a atual companheira, EE.
b) Factos não provados:
Da acusação pública: i) Por força do desequilíbrio referido em 11 a assistente caiu. ii) O arguido atuou nos moldes referidos em 15 porque a assistente CC disse que iria ligar para a entidade policial.
Da acusação dos assistentes: iii) O desequilíbrio referido em 11 e a queda da assistente decorreram da ação do arguido. iv) Foi a assistente CC quem ligou para o 112. v) O arguido atuou nos moldes referidos em 15 porque se apercebeu que a assistente CC ia ligar para a entidade policial. (…)»
C. Apreciação do recurso
1.Legítima defesa
Assinale-se, desde já, a contradição ínsita na argumentação do recorrente (conclusão II): por um lado, afirma que «não se conforma com a matéria de direito dada como provada» – no que confunde o direito com a prova dos factos; por outro, diz «considerar que os elementos dos factos típicos ilícitos não se encontram preenchidos» – no que é, claramente, uma avaliação da aplicação do direito aos factos.
Quando se prossegue na leitura da argumentação do recorrente, adensa-se a confusão, em afirmações como «sendo altamente duvidoso que o assistente o tenha feito sem ter recorrido ao uso da força» (conclusão VIII), a referência à «altura e fisionomia [do assistente] bem superiores à do arguido» (conclusão XI) e, já no âmbito da alegada retorsão, dizendo que o assistente «fez com o que o arguido se dirigisse para o exterior do cabeleireiro de forma certamente violenta e na casa dos assistentes, foi a assistente quem se abeirou do arguido, certamente adotando uma postura igualmente agressiva» (conclusão XIII), que a conduta do recorrente foi «resposta aos anteriores comportamentos da assistente» (conclusão XVIII) ou que «só foi levada a cabo porque existiu uma ação dolosa prévia por parte dos lesados» (conclusão XIX).
De tudo isto decorrem duas notas, decisivas para boa parte da sorte do recurso:
- não havendo válida arguição de erro de julgamento, nos termos do art. 412.º, n.º 3, a matéria de facto apurada na 1.ª instância é a única relevante para este Tribunal;
- como corolário, as afirmações destacadas no parágrafo anterior mais não são do que inócuos desabafos do recorrente, a manifestação do seu desejo de que certos factos (ausentes da matéria provada) dela constassem.
Ora, a vontade do recorrente e a realidade dos factos são planos bem diferentes, e apenas esta última tem importância para analisar o recurso.
Isto posto, alega o recorrente que, quer na situação descrita nos factos provados 5 quer na de 10 a 12, agiu em legítima defesa, razão pela qual não devia ter sido condenado pela prática dos dois crimes de ofensa à integridade física, cada um na pessoa de um dos assistentes (conclusões VI a XII).
Prevê o art. 32.º do Código Penal: “Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”
No caso, para que se pudesse sequer apreciar a aplicação deste instituto, teria de haver prova, ao menos, da existência – prévia à acção do recorrente – de uma agressão de cada um dos assistentes ao arguido.
Ora, não há qualquer vestígio disso na matéria provada, relativamente ao que se passou imediatamente antes de cada actuação do recorrente:
- no salão de cabeleireiro (factos provados 1 a 4), o recorrente, já depois de o assistente se ter recusado a cortar-lhe o cabelo, por falta de marcação, e de o assistente lhe ter pedido para sair do estabelecimento – o que o recorrente fez –, é o arguido que volta a aí entrar (já o assistente está ocupado com um cliente); perante tal atitude, o assistente ordenou-lhe que saísse e o arguido não lhe obedeceu, ainda acrescentando a declaração “hoje vou fazer-te uma espera, és um homem morto”. Perante isto, a única acção do assistente foi colocar-se à frente do recorrente e fazê-lo recuar até à porta de entrada, o que não configura, de modo nenhum, o requisito da “agressão” previsto no citado art. 32.º…
- no logradouro da casa dos assistentes (factos provados 6 a 9), e no mesmo dia, o recorrente estava à espera que o assistente chegasse a casa e, como este não reagiu aos insultos que o recorrente lhe dirigiu, entrando na sua propriedade, nem à expressão “Vem cá fora, vou-te pôr a comer de palheirinha” – e apesar do apelo à calma por parte da assistente, que assomou àquele logradouro –, o recorrente saltou o muro de vedação deste e dirigiu-se à assistente com um pedaço em borracha de uma mangueira, com cerca de 60 cm de comprimento (com o qual atingiu o braço esquerdo da assistente). Mais uma vez, nem a indiferença que o assistente manifestou perante o despropositado comportamento do recorrente, nem a tentativa de acalmar os ânimos por parte da assistente constituem uma agressão (“acto ou efeito de agredir; ataque violento; hostilidade; provocação”[4]).
Na ausência de qualquer acto deste tipo por parte dos assistentes, em ambas as situações, fica prejudicado o conhecimento dos demais requisitos da legítima defesa: sem o substantivo (agressão) carecem de interesse os adjectivos do art. 32.º (actual e ilícita).
Isto posto, é evidente que este segmento do recurso deve improceder, porque não é caso de aplicação do instituto da legítima defesa.
2.Retorsão
A este propósito, e já a título subsidiário, alega o recorrente que ambas as situações descritas se enquadram no art. 143.º, n.º 3, b), do Código Penal: em casos de ofensa à integridade física simples, “[o] tribunal pode dispensar de pena quando o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”.
Mesmo em linguagem corrente (e indo precisamente à mesma fonte[5]), são sinónimos de retorsão “represália” e “retaliação”, pressupondo-se que quem retorque já foi alvo de um acto semelhante por parte de outra pessoa; no domínio jurídico, e constante daquele dicionário, a palavra significa “mera resposta recíproca a uma conduta ilícita ou repreensível de que se foi alvo”.
Ora, conforme já se analisou no ponto anterior deste acórdão, não há réstia de qualquer acção prévia de qualquer um dos assistentes sobre o arguido que configure ilicitude (penal) ou sequer censurabilidade de nenhuma espécie: colocar-se à frente do recorrente e fazê-lo recuar até à porta da entrada é um livre direito do assistente, que não apenas lhe tinha dito não ter vaga para o atender, mas também o tinha mandado sair uma vez do cabeleireiro e ainda teve de suportar nova entrada do recorrente, a prometer-lhe “uma espera”; a circunstância de o assistente ter ignorado essa mesma espera, acompanhada pelas palavras que lhe foram dirigidas pelo recorrente, e entrado no seu logradouro, bem como o apelo à calma por parte da assistente, demonstram uma civilidade e conduta cordata.
Perante isto, é evidente que não existem factos provados que configurem a figura jurídica da retorsão, não assistindo qualquer razão ao recorrente nesta matéria.
3. Tutela penal das lesões dos ofendidos
O recorrente entende que as lesões sofridas pelos assistentes são «insignificantes», pelo que não merecem a tutela penal do art. 143.º do Código Penal (conclusão XXII).
Quanto ao sucedido no salão de cabeleireiro, em que o recorrente apertou «com força, o braço esquerdo e puxou-o para o exterior do estabelecimento», tal conduta provocou nesse braço do assistente «um hematoma e um arranhão» (facto provado 5).
Relativamente à pancada no braço esquerdo da assistente desferido pelo arguido com o pedaço de mangueira (10), o resultado foi uma «equimose amarelada, arredondada, com 1 cm de maior diâmetro na face lateral do terço proximal do antebraço esquerdo» (18).
É inelutável não terem os assistentes sofrido, por acção do arguido, lesões graves, ou até que lhes trouxessem sequelas permanentes; por isso se escreveu, de forma adequada, na sentença recorrida: «Tais atuações configuram a autoria pelo arguido de ataques diretos à integridade física de cada um dos assistentes, mostrando-se, em ambos os casos, verificado o resultado típico posto que as ofensas, apesar da sua diminuta gravidade, prejudicaram o bem-estar físico dos visados, de uma forma não insignificante, face às sequelas que neles provocaram.»
No caso do assistente, um hematoma e um arranhão, além de provocarem dores em que os sofre – sendo o primeiro uma acumulação de sangue que resulta da ruptura de um vaso sanguíneo, com inchaço –, não são lesões de cura instantânea; o mesmo se diga, para a assistente, quanto à equimose amarelada e arredondada (vulgarmente designada como “nódoa negra”), também ela resultante de um traumatismo que dá lugar a derrame interno de sangue, que extravasa dos vasos capilares.
Ou seja, e mais uma vez citando a decisão recorrida, ambas as condutas do recorrente «envolveram ações vigorosas, violentas, desprovidas de qualquer adequação social», assim preenchendo os elementos objectivos do tipo legal do art. 143.º, n.º 1 do Código Penal: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa (…)”.
Por outro lado, também o tipo subjectivo de ambos os crimes se provou: o agiu actuou com «a intenção alcançada de molestar fisicamente o assistente BB, e de lhe provocar dores e ferimentos do tipo dos verificados, bem sabendo que a sua conduta era adequada a tal resultado» (21) e «com o objetivo conseguido de molestar fisicamente a assistente CC e lhe provocar ferimentos do tipo dos verificados, bem sabendo que a sua conduta era adequada a tal resultado» (22).
Perante tudo isto, apenas pela lente do recorrente, como pessoa interessada na desvalorização penal da sua conduta, se poderia ver os crimes em causa como subtraídos à tutela do art. 143.º, n.º 1…
Portanto, também aqui a pretensão do recorrente deve soçobrar, pelo que carece de fundamento o peticionado naufrágio das indemnizações fixadas aos assistentes.
4. Crime de introdução em lugar vedado ao público
Mais uma vez na óptica do recorrente, este crime não teria sido por ele cometido no que respeita ao salão de cabeleireiro, uma vez que se trata de «um estabelecimento comercial, de porta aberta ao público, para esse mesmo efeito, inexistindo uma indicação clara e objetiva da falta de consentimento e de autorização para aquele ali estar» (conclusões XXIII a XXVI).
Como ponto prévio, diga-se que não faz qualquer sentido a invocação, nesta sede – tal como mais adiante (conclusões XXIV a XXXVI) –, do princípio in dubio pro reo por parte do recorrente, uma vez que este opera no âmbito dos factos, e não no direito: tal regra deve operar quando o julgador tem dúvidas sobre a actuação do arguido e sobre a respectiva culpa, no sentido de o non liquet daí resultante ter de ser sempre resolvido a favor do arguido, ou seja, dando-se o facto ou factos como não provados.
Lembre-se, agora, o teor do art. 191.º do Código Penal, na parte que releva para esta questão[6]: “Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em (…) lugar vedado e destinado (…) ao exercício de profissões ou actividades, (…) é punido com pena até três meses ou com pena de multa até 60 dias.”
Um salão de cabeleireiro é precisamente vocacionado para o desempenho dessa profissão – no caso, como decorre dos autos, por parte do assistente – e, por isso, é um espaço aberto ao público.
Porém, como já se referiu supra, o assistente não atendeu naquele dia o recorrente, justificando que não tinha hora marcada, e pedindo-lhe em seguida que saísse do salão, ao que o arguido acedeu.
Só que, claramente, mudou de ideias, porque voltou a entrar no estabelecimento quando o assistente estava a atender outra pessoa; e é aí, quando o assistente ordena ao arguido que saia – ou seja, quando lhe retira a autorização para este lá continuar – que o crime em causa se consuma (3): o ora recorrente não acata essa ordem do assistente e permanece no estabelecimento, tendo actuado com o objectivo de ficar nesse espaço (vedado, porque dentro de um edifício e com porta de acesso) contra a vontade expressa do seu proprietário, não para ter vaga para cortar o cabelo (o fim próprio do salão) mas para…dirigir uma expressão ameaçadora ao assistente.
Portanto, ao contrário do que defende o recorrente, há uma «indicação clara e objetiva da falta de consentimento» por parte do assistente para o arguido permanecer no salão de cabeleireiro.
É, por isso, evidente que o recorrente cometeu o crime ora em análise; conforme bem se escreveu na sentença recorrida, «[n]ão há, face à factualidade apurada, qualquer dúvida de que o arguido sabia que o assistente não o queria ali e lhe tinha ordenado que saísse, ordem que o mesmo desrespeitou. (…) o arguido atuou com o objetivo alcançado de penetrar naqueles espaços e de neles permanecer contra a vontade e sem autorização dos respectivos donos, apesar de saber que se tratavam de espaços vedados, onde não estava autorizado a entrar e permanecer, o que fez de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que incorria na prática de crime.»[7]
Nada havendo a apontar à subsunção jurídica feita pela Mm.ª Juiz a quo, também esta parte do recurso não terá sucesso.
5. Medida da pena
O recorrente insurge-se contra a medida da pena, que considera «manifestamente excessiva» (conclusão XXVII), tecendo a propósito várias considerações sobre os critérios legais da respectiva fixação, só por uma vez usando o plural, «medidas das penas» (conclusão XXXI) e invocando a seu favor «o facto de não ter atuado com intenção de aplicar aos assistentes lesões físicas demasiado gravosas, tendo pensado, prima facie que estava a atuar a coberto da causa de justificação de legítima defesa» (conclusões XXVIII a XXXI, XXXVII a XXXIX).
Escusado será dizer que, como supra se explicou, nenhum suporte se encontra na matéria provada desta última alegação, pelo que não merece sequer apreciação…
Ao terminar o seu recurso pedindo a reapreciação das medidas das penas, o recorrente afasta já da intervenção deste Tribunal a escolha da pena: é que todos os crimes pelos quais foi condenado (dois de ofensa à integridade física simples, um de dano e dois de introdução em lugar vedado ao público) são puníveis, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa.
Conformando-se o recorrente com a aplicação, por parte da 1.ª instância, de penas de prisão, resta apurar se cada uma delas, e o cúmulo jurídico encontrado, pecam por excesso.
Diga-se, antes de mais, que na fixação das penas está o Tribunal a quo numa posição privilegiada em relação ao Tribunal de recurso, já que a imediação, a oralidade e tudo o que estas implicam – o contacto directo com as pessoas e toda a linguagem não verbal observada – proporciona ao primeiro instrumentos de avaliação que escapam ao Tribunal ad quem.
Tal significa que só em caso de manifesta desadequação haverá fundamentos para alterar as penas ali fixadas: “A actividade judicial de determinação da pena apresenta-se como uma actividade juridicamente vinculada, mas não é uma ciência exacta, pelo que (…) o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta apenas quando se justifique uma alteração minimamente significativa, isto é, quando se evidencie que foi aplicada, sem fundamento, com desvios aos critérios legalmente apontados.”[8]
Analisando a parte relevante da sentença recorrida, constata-se ter a Mm.ª Juiz a quo invocado as normas pertinentes – arts. 40.º e 71.º do Código Penal –, tecendo depois adequadas considerações e invocação de doutrina a propósito dos fins das penas.
Na aplicação dos critérios legais ao caso concreto, escreveu a Mm.ª Juiz a quo:
«O grau da ilicitude dos factos é elevado, considerando as condutas adotadas pelo arguido, com uma postura totalmente contrária ao dever-ser ético jurídico, que, não se tendo contentando com os atos que levou a cabo no salão de cabeleireiro, e, mostrando ser patente a sua contrariedade ao direito, aguardou pelo final do dia com o derradeiro objetivo de perturbar o assistente, na sua intimidade e recato, levando por arrasto a sua família, designadamente, a assistente. Tal comportamento evidencia persistência e reforço na sua atividade criminosa, escalada da violência e diversificação da afetação de bens jurídicos. Quanto ao crime de ofensa à integridade física simples na pessoa da assistente CC, valora-se a utilização, na sua execução, de objeto contundente. Valora-se o caráter do dolo enquanto elemento subjetivo da ilicitude (o dolo-do-facto ou dolo-do-tipo), que se apresentou na sua modalidade mais gravosa, a direta, no que tange a todos os crimes, a indiciar uma culpa dolosa, passível de especial reprovação. Atende-se aos vastos antecedentes criminais do arguido, por crimes contra o património, contra as pessoas, contra a autonomia intencional do Estado, e a gravidade das sanções penais que sofreu, manifestamente insuficientes a prevenir novas práticas criminosas. O arguido agiu motivado por intuito vingativo, não afetando apenas o seu alvo inicial, mas também terceiros inocentes (como familiares), ampliando as consequências negativas da conduta. Revela uma personalidade violenta, impulsiva, pautada pela intolerância à frustração, falta de empatia e por comportamentos dominantes e intimidatórios. O seu percurso de vida tem sido marcado pela sua ligação ao consumo de estupefacientes e álcool. Nos períodos em meio livre, apresentava um estilo de vida ocioso e sem estruturação, não lhe sendo reconhecidos hábitos de trabalho. Em contraponto, o arguido conta com o apoio da atual companheira, com quem residia antes da aplicação da medida de coação de prisão preventiva em execução. Em meio prisional, solicitou ocupação e tem apresentado um comportamento ajustado. Relativamente à problemática aditiva e saúde mental, está a ser acompanhado em consultas de psiquiatria. Ponderam-se as contidas consequências das suas condutas, espelhadas nas lesões e prejuízo causados aos assistentes. Todavia, o arguido nenhum esforço demonstrou no sentido de ressarcir os assistentes. Em julgamento, admitiu ter andado “embrulhado” com o assistente, não reconhecendo ter causado qualquer lesão a qualquer dos assistentes ou danificado o telemóvel da filha destes. Adotou um discurso de vitimização e desculpabilizante, não revelando auto-censura pelo seu comportamento ou pelas respetivas consequências.»
Ora, não só todas estas circunstâncias, agravantes umas e atenuantes outras, encontram fundamento nos factos provados, como o Tribunal a quo não se esqueceu de valorar, também, o que favorecia o recorrente; e, ao contrário do que este alega, o seu certificado de registo criminal influenciou o que não podia deixar de influenciar – a demonstração, à saciedade, de que as necessidades de prevenção especial são muito intensas no seu caso.
Trata-se de um arguido que, no espaço de menos de onze anos, sofreu treze condenações criminais, por um vasto catálogo de ilícitos, a maior parte deles punidos com penas de prisão: furto qualificado (várias), dano, condução sem habilitação legal, desobediência, resistência e coacção sobre funcionário, ameaça agravada, injúria agravada, ofensa à integridade física (simples e agravada) e violência doméstica.
Beneficiou da oportunidade de reflexão concedida pela aplicação de pena suspensa na execução nas suas primeiras três condenações e, mais tarde, noutras duas; a partir daí, foi condenado em várias penas de prisão efectivas, que cumpriu, tendo a extinção da última ocorrido a 27 de Janeiro de 2022 e o recorrente restituído à liberdade a 4 de Janeiro de 2022.
E o que encontrou de melhor para fazer, escassos quatro meses volvidos da sua libertação? Cometer, num só dia, os cinco crimes em causa nos autos, sendo quatro deles uma repetição de condutas pelas quais já tinha sido punido criminalmente!
Neste quadro, não é certamente a pouca extensão das lesões sofridas pelos assistentes que vai pesar a favor do recorrente, com tudo o que ele tem contra si, apenas e só por opção sua.
Isto posto, quedarem-se as penas relativas às ofensas à integridade física simples e ao dano abaixo do quinto inferior (7 meses) da medida possível (de 1 mês a três anos, com o termo médio em 1 ano, 5 meses e 15 dias) e a de introdução em lugar vedado ao público (no estabelecimento) bem abaixo do termo médio (que seria de 2 meses), é adequado para situação e responde às necessidades da punição, não ultrapassando a medida da culpa do arguido.
O mesmo se diga a propósito da pena de 3 meses de prisão pelo crime de introdução em lugar vedado ao público relativo à casa dos assistentes, fixada no máximo legal, que se justifica – tal como alude o excerto atrás citado da sentença recorrida – porque demonstra uma persistência delituosa do recorrente: no exacto dia em que já tinha agredido, insultado e ameaçado o assistente, ainda achou por bem invadir o logradouro da casa dele, ao pé da qual lhe estava a fazer uma espera, certamente por pensar que tinha o “direito de vingar a afronta” da qual se achava (!) vítima…
Constata-se, assim, que as penas parcelares foram aplicadas pela Mm.ª Juiz a quo em respeito pelos critérios legais, não havendo motivo para a sua alteração.
Importando proceder à operação de cúmulo jurídico das cinco penas individuais, nos termos do art. 77.º, n.º 1 e n.º 2, estava o Tribunal a quo limitado entre o mínimo de 6 meses (a pena mais alta) e o máximo de 19 meses e 15 dias (a soma das cinco penas).
Para a sua fixação, na sentença recorrida foram ponderados «os antecedentes criminais do arguido, o conjunto dos factos criminosos, a sua gravidade, a conexão entre os mesmos e o tempo que os mediou, revelando persistência na atuação criminosa, a personalidade do arguido neles referenciada e o seu estilo de vida», o que é não só um correcto enquadramento dos factos mas também uma ajustada avaliação da personalidade do agente, em respeito pelo art. 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal.
Aqui, a Mm.ª Juiz a quo optou pela pena de 1 ano de prisão, abaixo do termo médio dos citados limites, que era de 1 ano, 1 mês e 15 dias; não há, mais uma vez, qualquer razão para este Tribunal interferir nessa operação, e alterar a pena fixada, que até se mostra tocada por alguma benevolência em relação ao recorrente, também não obtendo o recurso acolhimento nesta parte.
Note-se que aqui termina a intervenção deste Tribunal, já que o recorrente não questionou o carácter efectivo da pena de prisão nem a sua forma de cumprimento, aliás cabalmente justificados pela Mm.ª Juiz a quo, como decorre da leitura da sentença recorrida (ref.ª ...40, págs. 22 a 25).
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- rejeitar o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil; - julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, com 3 UC de taxa de justiça.
Guimarães, 28 de Outubro de 2025
(Processado em computador e revisto pela relatora)
Os Juízes Desembargadores
Cristina Xavier da Fonseca Florbela Sebastião e Silva Carlos da Cunha Coutinho