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NULIDADE DA ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CRIME DE AMEAÇA
TIPO SUBJECTIVO
Sumário
I. A cominação de nulidade feita no artigo 283.º Código de Processo Penal visa não deixar seguir para a fase de julgamento uma acusação “deficiente” e trata-se de uma nulidade que deve ser arguida no prazo indicado na alínea c), do n.º 3, do artigo 120.º [não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito], não o tendo sido, nem tendo sido requerida a instrução, o processo segue para a fase de julgamento, onde as “deficiências” da acusação podem ser conhecidas oficiosamente no momento do saneamento do processo - artigo 311.º, do Código de Processo Penal -, já não enquanto nulidades, mas enquanto circunstâncias suscetíveis de conduzir à rejeição da acusação por manifestamente infundada. II. A verificação do tipo subjetivo de ilícito pressupõe a presença do elemento intelectual [traduzido no conhecimento de todas as circunstâncias do facto], do elemento volitivo [traduzido na vontade de realizar o facto típico] e do elemento emocional [traduzido na consciência da ilicitude da atuação, na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma]. III. Quando se refere na acusação que ao proferir determinadas expressões “ameaçadoras” de atentar contra a vida da ofendida o arguido “quis”, causar-lhe receio e intranquilidade, quis fazê-la recear que lhe poderia vir a tirar a vida e/ou atingir na sua integridade física, tal circunstancialismo integra o elemento volitivo do dolo [direto] de ameaças, traduzido na vontade do agente de praticar o facto. IV. E quanto ao elemento intelectual do dolo, pese embora se reconheça que o mesmo não decorre de forma evidente da acusação pública, pois ali não foi, de facto, expressamente alegado que o arguido agiu de forma consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica, mesmo assim afigura-se-nos defensável considerar que tal elemento intelectual estará contido na alegação de que quis causar o mencionado receio e intranquilidade da ofendida, o que pressupõe, lógica e necessariamente, que tinha conhecimento do potencial ameaçador das palavras que lhe dirigiu, pois quem pretende deliberadamente fazer outra pessoa temer, recear, sentir-se intranquilo quanto à sua integridade física e/ou vida, com as palavras que lhe dirige, conhece e pressupõe necessariamente o potencial ofensivo das mesmas, tanto mais que se descreve na acusação que o fez de forma “séria”. V. O mesmo será dizer que se, ao proferir as mencionadas expressões, o arguido quis, fazer recear a queixosa pela sua vida e/ou integridade física, é porque tinha o poder de decidir por si próprio, de agir de forma livre, não monopolizada, independente. Encontra-se, portanto, descrita na acusação pública factualidade necessária/suficiente ao preenchimento do elemento intelectual do dolo. VI. E se da acusação decorre que o arguido “Sabia também que a sua actuação era proibida e punida por lei, mas, apesar de o saber, quis actuar da forma descrita e causar aquele receio e intranquilidade.”., a mesma traduz a factualidade necessária ao preenchimento do elemento emocional – elemento do dolo do tipo de culpa.
Texto Integral
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 609/23.4GBGMR que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Guimarães - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, remetidos os autos para julgamento, a 26-02-2025, foi proferido despacho, nos termos do artigo 311.º, do Código de Processo Penal, que, no que agora releva, é do seguinte teor [transcrição]:
“(…)
--- Questão prévia: ---
--- O Ministério Público deduziu acusação pública contra AA, melhor identificado nos autos, imputando a este a prática, em autoria material, de um crime de ameaça, p.p. pelo art.º 153.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal.. ---
--- Consta da acusação que:
“No dia 18 de Outubro de 2023, pelas 20h30, o arguido avistou a queixosa, BB na sua residência e dirigindo-se a ela, em tom provocador e intimidatório, para além do mais, proferiu de viva voz, a seguinte expressão, repetidamente, “eu vou-vos matar”, “tira o carro daqui, eu vou-vos matar, tira o carro daqui imediatamente”.
Porque o arguido se encontrava alterado, a queixosa, convencendo-se que aquele seria capaz de concretizar os seus intentos, sentiu fundado receio pela concretização das ameaças e viu, por causa delas, prejudicada a sua liberdade de movimentos.
O arguido, mediante a supra descrita conduta, quis, de uma forma séria e convincente, fazer crer a queixosa que lhe poderia tirar a vida, ou atingir na sua integridade física, sendo, por isso, uma conduta adequada a provocar naquele, como efectivamente provocou, o receio, a intranquilidade de tal poder vir verdadeiramente a acontecer.
Sabia também que a sua actuação era proibida e punida por lei, mas, apesar de o saber, quis actuar da forma descrita e causar aquele receio e intranquilidade.”. ---
--- O arguido não requereu a abertura da instrução. ---
--- Dispõe o artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do C.P.Penal que a acusação deverá conter sob pena de nulidade: “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”. ---
--- Incorre na prática do crime de ameaça todo aquele que “ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.”. ---
--- É indiscutível que o bem jurídico tutelado pela norma em apreço é a liberdade de decisão e acção. Efectivamente, as ameaças, ao contribuírem para a intranquilidade ou receio da pessoa visada, tolhem a capacidade da vítima de se mover em paz, condição da autêntica liberdade. Todavia, atente-se que, não obstante a lei não exigir que a ameaça revista uma qualquer forma – podendo, de resto, ter uma mera componente gestual ou, pelo contrário, ser verbalizada oralmente ou por escrito –, a verdade é que, para o preenchimento do tipo objectivo, necessário se torna que se trate de ameaça com um mal, que possa ocorrer no futuro, e que esteja na dependência da vontade do agente ameaçador. ---
--- É evidente que a ameaça tem de ser inteligível para o respectivo destinatário, na medida em que a lei exige a adequação em provocar medo ou inquietação ou em prejudicar a liberdade de determinação do visado, de modo que o ilícito ora examinado se erige como um crime de perigo concreto. ---
--- De resto, tratando-se, não de um crime de resultado, mas de um crime de perigo (concreto), não é exigido, para o preenchimento do tipo, que se tenha provocado medo ou inquietação, bastando que a ameaça seja, em concreto, apropriada a provocar no ameaçado tais sentimentos. ---
--- O crime de ameaça exige o dolo. ---
--- Assim considerando, num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo) – Acórdão da Relação de Coimbra, 01-06-2011, publicado em www.dgsi.pt. ---
--- Segundo o Professor Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, vol. II, pág. 162, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo). ---
--- Ainda segundo o mesmo Professor, na obra citada, não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, pois nos expressos termos do artigo 16º do Código Penal, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo. ---
--- No mesmo sentido aponta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 332 e 333. Segundo aquele Professor a doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, sendo o conhecimento o momento intelectual e a vontade o momento volitivo de realização do facto. ---
--- Também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do CPP (…), 2ª ed., UCE, pág. 791, “Assim, o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa (…)”. ---
--- Analisando o teor da acusação deduzida, verifica-se que ali é dito apenas, com interesse, que “O arguido, mediante a supra descrita conduta, quis, de uma forma séria e convincente, fazer crer a queixosa que lhe poderia tirar a vida, ou atingir na sua integridade física, sendo, por isso, uma conduta adequada a provocar naquele, como efectivamente provocou, o receio, a intranquilidade de tal poder vir verdadeiramente a acontecer.
Sabia também que a sua actuação era proibida e punida por lei, mas, apesar de o saber, quis actuar da forma descrita e causar aquele receio e intranquilidade.”. ---
--- Contudo, in casu não obstante se diga que a conduta do arguido era proibida e punida por lei penal, o mesmo já não sucede no que concerne aos outros factos concretos demonstrativos da possibilidade de imputação do crime ao agente, do afastamento das causas de exclusão da culpa, do elemento volitivo ou emocional do dolo, e da imputabilidade, tal como supra se expôs. ---
--- Assim, entende-se que a factualidade vertida na acusação não é suficiente para configurar o crime imputado ao arguido. ---
--- Acresce que, como vem referido no Ac. Re 650/12.2IDFAR.E1 de 25/10/2016 em termos de fundamentação – que não de decisão – já o STJ assumiu posição em caso análogo, designadamente no A.U.J. nº 1/2015 a propósito do elemento subjectivo do tipo. “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente, dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do CPP” – relator Cons. Rodrigues da Costa in DR I8 Série I 27/01/2015. (sublinhado nosso) ---
--- Ora, tal, quanto a nós, conduz à omissão da narração ainda que sintética dos factos. Tal omissão consubstancia uma nulidade por inobservância do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do C.P.Penal. ---
--- Dispõe o artigo 311º, do C.P.Penal, sob a epígrafe de “saneamento do processo” que:
“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”. ---
--- Pelo exposto, rejeito a presente acusação ao abrigo do disposto no art.º 311º, n.ºs 2, alínea a) e 3 alínea b) do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada, uma vez que não contém a narração dos factos. ---
(…) ”.
I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
1. A acusação proferida nos autos refere que o arguido quis, de uma forma séria e convincente, fazer crer à queixosa que lhe poderia tirar a vida ou atingir na sua integridade física, sendo, por isso, uma conduta adequada a provocar naquela, como efectivamente provocou, o receio, a intranquilidade de tal poder vir verdadeiramente a acontecer.
2. Mais se refere que o arguido sabia que a sua actuação era proibida e punida por lei mas apesar de o saber, quis atuar da forma descrita e causar aquele receio e intranquilidade.
3. E, por fim que, o arguido sabia que a sua actuação era proibida e punida pela lei penal.
4. O que vale por dizer que resulta da acusação pública que o arguido sabia o que fazia, queria fazê-lo e agiu com a consciência de que praticou o crime.
5. Para além disso, resulta da acusação que o arguido quis os factos criminosos, ou seja, agiu de forma deliberada.
6. Ademais, sempre se dirá que o arguido ao ser confrontada com o teor da acusação pública percebe perfeitamente o que lhe está a ser imputado e do que está a ser acusado, não se vislumbrando que resultem coartados quaisquer direitos de defesa.
7. Nesta senda, urge concluir que a decisão recorrida não se afigura correta, tanto mais que o julgador apenas deve rejeitar a acusação quando seja de todo inviável a condenação da arguida e, por isso, quando seja de evitar que seja sujeito caso dos autos, pois a mesma contém a narração dos factos imputados.
8. Pelo que se entende que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 14.º, 26.º, 153.º, n.º1 e 212.º, n.º1 todos do Código Penal e 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que receba a acusação pública e determine o prosseguimento dos autos, nos termos do disposto no artigo 311.º-A, do Código de Processo Penal.
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA. (…)”.
I.3 Resposta ao recurso
Pese embora efetuadas as legais notificações, não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.
I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e decidir é a seguinte:
® Saber se a acusação pública deduzida nos autos é, ou não, omissa quanto à descrição dos factos que permitem integrar na sua plenitude o elemento subjetivodo crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal e, consequentemente, se não devia, ou, ao invés, se devia ter sido recebida pela Mm.ª Juíza do tribunal a quo, com o respetivo prosseguimento dos autos para julgamento.
II.2- Apreciação do recurso
Insurge-se o Ministério Público/recorrente contra o facto de o tribunal a quo ter rejeitado a acusação pública deduzida nos autos contra o arguido AA, argumentando, para o efeito, em suma, que a mesma contém todos os elementos atinentes ao elemento subjetivo do tipo de crime de ameaça que ali lhe vem imputado, pelo que, ao invés da sua rejeição, deveria ter sido admitida e determinado o prosseguimento dos autos nos termos do artigo 311.º-A, do Código de Processo Penal.
E, de facto, a razão está do lado do Ministério Público/recorrente.
Com efeito, conforme decorre do artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal: “(…) 3- A acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)”.
Ou seja, impõe-se que a acusação contenha os factos concretos suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que o Ministério Público, na acusação pública, considera terem sido preenchidos.
Por sua vez, sob a epígrafe “saneamento do processo”, dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal, no que aqui releva, o seguinte: “(…) 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; (…) 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: (…) b) Quando não contenha a narração dos factos; (…)”.
A cominação de nulidade feita no artigo 283.º Código de Processo Penal visa não deixar seguir para a fase de julgamento uma acusação “deficiente” e trata-se de uma nulidade que deve ser arguida no prazo indicado na alínea c), do n.º 3, do artigo 120.º [não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito], não o tendo sido, nem tendo sido requerida a instrução, o processo segue para a fase de julgamento, onde as “deficiências” da acusação podem ser conhecidas oficiosamente no momento do saneamento do processo - artigo 311.º, do Código de Processo Penal -, já não enquanto nulidades, mas enquanto circunstâncias suscetíveis de conduzir à rejeição da acusação por manifestamente infundada. In casu, entendeu o tribunal a quo que a acusação pública deduzida contra o arguido não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito, designadamente “…, do afastamento das causas de exclusão da culpa, do elemento volitivo ou emocional do dolo, e da imputabilidade”.
Ora, a acusação que foi rejeitada pelo tribunal a quo é do seguinte teor [transcrição da parte que aqui releva]: Acusação pública:
“(…)
No dia 18 de Outubro de 2023, pelas 20h30, o arguido avistou a queixosa, BB na sua residência e dirigindo-se a ela, em tom provocador e intimidatório, para além do mais, proferiu de viva voz, a seguinte expressão, repetidamente, “eu vou-vos matar”, “tira o carro daqui, eu vou-vos matar, tira o carro daqui imediatamente”.
Porque o arguido se encontrava alterado, a queixosa, convencendo-se que aquele seria capaz de concretizar os seus intentos, sentiu fundado receio pela concretização das ameaças e viu, por causa delas, prejudicada a sua liberdade de movimentos. O arguido, mediante a supra descrita conduta, quis, de uma forma séria e convincente, fazer crer a queixosa que lhe poderia tirar a vida, ou atingir na sua integridade física, sendo, por isso, uma conduta adequada a provocar naquele, como efectivamente provocou, o receio, a intranquilidade de tal poder vir verdadeiramente a acontecer. Sabia também que a sua actuação era proibida e punida por lei, mas, apesar de o saber, quisactuar da forma descrita e causar aquele receio e intranquilidade.
Assim, cometeu o arguido, como autor, um crime de ameaça, p.p. pelo artº 153º, nos. 1 e 2 do Cód. Penal. (…). [sublinhado e negrito nossos]
E do artigo 153.º, do Código Penal, sob a epígrafe “Ameaça” decorre que:
“1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - O procedimento criminal depende de queixa.”. [sublinhado e negrito nossos].
Analisada, à luz de tal preceito legal a acusação pública deduzida nos autos, logo se constata que da mesma decorre a descrição de factos tendentes a demonstrar o preenchimento do elemento objetivo do tipo de crime que ali se imputa ao arguido, facto que não é colocado em causa no despacho recorrido pelo tribunal a quo.
E, diga-se, ao contrário do decidido por este, também nada justificava que colocasse em causa a existência de factualidade atinente ao elemento subjetivo.
Com efeito, a verificação do tipo subjetivo de ilícito pressupõe a presença do elemento intelectual[traduzido no conhecimento de todas as circunstâncias do facto], do elemento volitivo [traduzido na vontade de realizar o facto típico] e do elemento emocional[traduzido na consciência da ilicitude da atuação, na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma].
Temos presente o teor do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015 de 27 de janeiro[3] citado no despacho recorrido, e deste, além do mais, decorre o seguinte: “10.2.4. Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime,nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpano sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.” [sublinhado e negrito nosso].
Ora, é precisamente com base nos ensinamentos daí decorrentes que chegamos a conclusão diversa daquela a que chegou o tribunal a quo.
Conforme se referiu no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 19-06-2017,[4]“todos esses elementos, que constituem os elementos subjetivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude)”.
E, conforme é defendido pela nossa jurisprudência, segundo cremos de forma unânime, de que é exemplo o recente Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 14-11-2023[5], “(…) II. Não existem fórmulas sacramentais na forma de transmitir os elementos, quer objectivos, quer subjectivos dos crimes. III. Sendo que a palavra “livre” não é a única que revela a vontade do agente em actuar contra legem, isto é, com a consciência da ilicitude sem constrangimentos exteriores que pudessem implicar uma diminuição ou mesmo anulação da sua culpa. (…) V. Afirmar que o arguido age de forma voluntária, equivale, a agir de forma livre e deliberada, pois o agir voluntariamente significa “agir por querer” ou “agir segundo a própria vontade”, sendo sinónimos da palavra voluntariamente as palavras: “deliberadamente”, “espontaneamente”, “intencionalmente”, “livremente” e “propositadamente. (…)”.
Ora, in casu, no que respeita ao elemento subjetivo, decorre da acusação pública que:
“O arguido, mediante a supra descrita conduta, quis, de uma forma séria e convincente, fazer crer a queixosa que lhe poderia tirar a vida, ou atingir na sua integridade física, sendo, por isso, uma conduta adequada a provocar naquele, como efectivamente provocou, o receio, a intranquilidade de tal poder vir verdadeiramente a acontecer. (…) quisactuar da forma descrita e causar aquele receio e intranquilidade.”.
Tal relato traduz a factualidade que é necessária para o preenchimento dos elementos intelectual [representou] e volitivo [quis] do tipo – elementos do dolo do tipo de ilícito.
Ou seja, ali refere-se que ao proferir as mencionadas expressões “ameaçadoras” de atentar contra a vida da ofendida o arguido “quis”, causar-lhe receio e intranquilidade, quis fazê-la recear que lhe poderia vir a tirar a vida e/ou atingir na sua integridade física, o que, indubitavelmente, integra o elemento volitivo do dolo [direto] de ameaças, traduzido na vontade do agente de praticar o facto.
E quanto ao elemento intelectual do dolo, pese embora se reconheça que o mesmo não decorre de forma evidente da acusação pública, pois ali não foi, de facto, expressamente alegado que o arguido agiu de formaconsciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica, mesmo assim afigura-se-nos defensável considerar que tal elemento intelectual estará contido na alegação de que quis causar o mencionado receio e intranquilidade da ofendida, o que pressupõe, lógica e necessariamente, que tinha conhecimento do potencial ameaçador das palavras que lhe dirigiu, pois quem pretende deliberadamente fazer outra pessoa temer, recear, sentir-se intranquilo quanto à sua integridade física e/ou vida, com as palavras que lhe dirige, conhece e pressupõe necessariamente o potencial ofensivo das mesmas, tanto mais que se descreve na acusação que o fez de forma “séria”.[6]
O mesmo será dizer que se, ao proferir as mencionadas expressões, o arguido quis, fazer recear a queixosa pela sua vida e/ou integridade física, é porque tinha o poder de decidir por si próprio, de agir de forma livre, não monopolizada, independente[7].
Encontra-se, portanto, descrita na acusação pública factualidade necessária/suficiente ao preenchimento do elemento intelectual do dolo.
Além disso, da mesma também decorre que:
“Sabia também que a sua actuaçãoera proibida e punida por lei, mas, apesar de o saber, quis actuar da forma descrita e causar aquele receio e intranquilidade.”.
Ou seja, traduz a factualidade necessária ao preenchimento do elemento emocional– elemento do dolo do tipode culpa.
Assim sendo, é inquestionável que a acusação pública contém o relato de toda a factualidade que é necessária ao preenchimento, quer do elemento objetivo, quer do elemento subjetivo, do tipo de crime de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, que ali vem imputado ao arguido, inexistindo, portanto, o invocado fundamento legal para o tribunal a quo a ter rejeitado.
Aqui chegados, só nos resta concluir, portanto, pela manifesta procedência do recurso.
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que receba a referida acusação e determine o legal subsequente prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 28 de outubro de 2025
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. [2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95. [3] In DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015. [4] Processo n.º 430/15.3GEGMR.G1, relator Jorge Bispo, publicado in www.dgsi.pt [5] Processo n.º 3/21.1GCBRG.G1, relatora Florbela Sebastião e Silva, publicado in www.dgsi.pt [6] Neste sentido, ainda, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 06-02-2018, Processo n.º 54/16.8T9CBA.E1, relator António João Latas, in www.dgsi.pt., embora reportado a uma tipologia criminal diferente, mas que, mesmo assim, pela sua pertinência aqui se traz à colação. [7] Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 06-02-2024, Processo n.º 647/21.1PCBRG.G1, da mesma relatora, in www.dgsi.pt embora reportado a uma tipologia criminal diferente, mas que, mesmo assim, pela sua pertinência aqui se traz à colação.