CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
CRIME DE CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL
CONCURSO APARENTE
Sumário

Tem-se considerado que existe concurso aparente (subsidiariedade expressa, em face do segmento final do n.º 1 do art. 292.º) entre o crime de conAdução perigosa de veículo rodoviário e o crime de condução sob o efeito do álcool, posto que o agente, na mesma ocasião, preencha os vários modos de atuação ilícita.
A relação de subsidiariedade, ocorre quando duas normas estão numa relação de grau, prevendo a norma dominante uma forma mais grave de violação do bem jurídico. Esta relação pode ser expressa ou implícita.
Vistos os tipos legais em confronto, temos que, expressamente, o tipo legal de condução de veículo em estado de embriaguez cede perante incriminação mais grave (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”), conclusão a que também chegaríamos, implicitamente, confrontando o crime de perigo abstrato, com o crime que pune o passo seguinte da concretização do iter criminis.
Estamos perante um único evento, uma única ação naturalística, concomitante no tempo, da qual se surpreende uma única resolução criminosa, criadora da mesma situação de perigo, a que apenas pode corresponder um único juízo de censura, justificado pela violação dos mesmos bens jurídicos e que preenche as duas alíneas do n.º 1, do art. 291.º, do Código Penal.
Em suma, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º, n.º 1 do Código Penal é consumido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, do mesmo diploma, pelo que o arguido apenas por este pode ser condenado.

Texto Integral

Acórdão deliberado em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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1 – RELATÓRIO

Submetido a julgamento em processo abreviado, foi o arguido AA condenado, em 05/03/2025, pela prática em 27/09/2024, em autoria material:

a) De um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa;

b) De um crime de condução de perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa.

Em cúmulo jurídico, pela prática dos crimes referidos em a) e b), foi condenado na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), o que perfaz o quantitativo global de 900,00€ (novecentos euros).

Descontado 1 (um) dia à pena única de multa aplicada, em virtude da privação de liberdade sofrida à ordem destes autos (cfr. artigo 80.º, n.º 2, do Código Penal), foi determinado o cumprimento de 149 (cento e quarenta e nove) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), o que perfaz o quantitativo global de 894,00€ (oitocentos e noventa e quatro euros).

Mais foi o arguido condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses e, pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.

Em cúmulo jurídico, condenou-se o arguido na pena única acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 7 (sete) meses.

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Não concordando com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, pugnando pela condenação pela prática, apenas, do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, em pena de multa e pena acessória mais reduzidas ou, caso assim não se entenda, pela redução das penas principais e acessórias, parcelares e únicas, aplicadas, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

« A)-Discorda o arguido da douta sentença que o condenou pela prática em concurso real de 1crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos arts 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do CP, na pena de 70 dias de multa e sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 4 meses e 1 crime de condução perigosa de veiculo rodoviário, p. e p., pelos arts 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, na pena de 130 dias de multa; e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 6 meses,

- Em cumulo jurídico, pela prática dos crimes referidos em a) e b) na pena única de 150 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, o que perfaz o quantitativo global de 900,00 €; e,

- Em cúmulo jurídico, pela prática dos crimes referidos em e) e f), na pena única acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 7 meses

B)-Por entender que, in casu, e dada a matéria de facto dada como provada, houve uma errada qualificação jurídica dos factos, uma vez que deveria ter sido considerado que os crimes em que o arguido foi condenado, foram praticados em concurso aparente, e não em concurso real.

C)- Estando em causa uma única acção naturalística, o crime de condução de veiculo em estado de embriaguez deveria ter sido consumido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário e,

D)- Assim, deveria o arguido ter sido punido unicamente pelo crime mais grave- condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, nº 1, b) e 69º, nº 1, a) ambos do C.Penal.

E) – Considerando o Mº Juiz a quo que “(...) o arguido é deliquente primário, encontra-se familiar, laboral e socialmente integrado (...) cfr. ficheiro aúdio da gravação da audiência nº 20250305140639_1120300_2870367, aos 00.17.50 minutos

F)- E que “(...) são reduzidas as necessidades de prevenção especial (...)”, cfr. ficheiro aúdio a gravação da audiência nº 20250305140639_1120300_2870367, aos 00.20.22 minutos

G)- Considerando a signatária que também deveria ser tido ponderado na sentença, a favor do arguido, que o mesmo admitiu a prática do crime de condução de veiculo em estado de embriguez, atendendo às declarações do próprio: “(....) Confesso que nesse dia bebi uns copitos (...) não devia ter bebido, bebi demais (...), cfr. ficheiro aúdio nº 20250225104858_1120300_2870367, aos 00.00.13 minutos e ainda o que é mencionado na fundamentação da sentença oral: (...) Relativamente às declarações do arguido, por este foi adiantado que realmente neste dia ingeriu álcool, pelo que pode ter sucedido ter a taxa de alcool que foi sinalizada (...)”, cfr. ficheiro aúdio da gravação da audiência nº 20250305140639_1120300_2870367, aos 00.09.48 minutos

H) Deveria o arguido ter sido sancionado unicamente pela prática de um crime de condução perigosa de veiculo rodoviário, numa pena de multa inferior a 130 dias ( ainda que à taxa diária de 6, 00 €),e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, por período inferior a 6 meses,

I)- Por se entender, serem, tanto a pena de multa como a sanção acessória aplicada, desajustadas e desproporcionais, atendendo a tudo o que depõe a favor do arguido, supra referido em 12º a 14º das Motivações e cfr. o disposto no art. 71º, do C.Penal

Caso assim não seja entendido, e se entenda terem os crimes sido praticados em concurso real

J)- Devem as penas de multa aplicadas ao arguido, pela pratica de cada um dos crimes, serem reduzidas; assim como reduzidos os períodos de cada sanção acessória de inibição de conduzir, aplicável a cada crime e,

L)-Consequentemente, ser reduzida a pena única de multa aplicável em cumulo jurídico, e também reduzida a sanção acessória única aplicada em cumulo jurídico

M)- Foram violadas as disposições dos arts. 30º e 71º, ambos do C.Penal, art. 344º, c.P penal».

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O recurso foi admitido, por tempestivo e legal.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela respetiva improcedência.

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Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso, referindo, nomeadamente:

«(…)Atenta a factualidade constante da acusação e que o Tribunal a quo julgou provada na íntegra, afigura-se que a conduta do arguido preenche todos os elementos do tipo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido, pelos artigos 291.º n.º 1, als. a) e b) e 69.º n.º 1, al. a) do Código Penal e artigos 4.º n.º 1, 11.º n.º 2, 13.º n.º 1 e 24.º n.º 1 do Código da Estrada, em concurso aparente com um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º n.º 1, 69.º n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1 e 26.º, 1.ª parte, todos do Código Penal.

Tal como decorre da jurisprudência e doutrina indicados na motivação do recurso.

Na exacta pena aplicada na sentença recorrida ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário [pena de 130 dias de multa na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 6 meses], uma vez que o Ministério Público dela não recorreu, pelo que não é possível a aplicação de pena superior e, por outro lado, as circunstâncias em que esse ilícito foi praticado, as condições pessoais do arguido julgadas provadas e as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, impedem a aplicação de penas inferiores.

Por tudo o exposto conclui-se pela concessão de provimento parcial ao recurso, nos termos acima apontados.»

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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado resposta.

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Teve lugar a Conferência.

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2. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 403.º, 410.º e 412.º, nº 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995).

Não se detetam questões de conhecimento oficioso que imponham a intervenção deste Tribunal. Atendendo às conclusões apresentadas, cumpre conhecer:

- Do concurso de crimes;

- Da medida da(s) pena(s) principal e acessória aplicadas ao recorrente.

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3. DA DECISÃO RECORRIDA

Do registo áudio, verificamos que resultam provados os seguinte factos:

Da acusação:

1. Na noite de 27 de Setembro de 2024, pelas 23h00, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …, na EN …, na localidade de …, em …, sendo portador de uma taxa de alcoolémia no sangue de 2,04 g/l, a qual, deduzido o erro máximo admissível, foi quantificada numa taxa de, pelo menos, 1,938 g/l.

2. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o militar da G.N.R. BB fazia patrulha no local e ao aperceber-se que o veículo conduzido pelo arguido fazia uma condução irregular, deu-lhe ordem de paragem utilizando os sinais luminosos.

3. O arguido, ao aperceber-se da presença do carro da patrulha da GNR, não parou e encetou fuga pelo Caminho Municipal …, imprimindo grande velocidade ao seu veículo.

4. Em ato contínuo, o carro da patrulha da GNR seguiu no seu encalço sempre com os avisadores luminosos e sonoros ligados.

5. Durante o seguimento, o carro da patrulha da GNR tentou por várias vezes ultrapassar o veículo do arguido, porém, por forma a impedir a manobra, o arguido realizava ziguezagues na via.

6. Perto da localidade de …, o carro da patrulha da GNR conseguiu ultrapassar a viatura do arguido, tendo cessado a marcha no meio da via com os sinais luminosos ligados, tendo o militar da GNR emitido ordem de paragem.

7. No entanto, o arguido não cessou a marcha do seu veículo e avançou na direção da viatura de patrulha da GNR que apenas não foi colhida porque o militar da GNR conseguiu desviá-la e saiu da trajetória efetuada pelo arguido.

8. Só foi possível abordar e fiscalizar o arguido quando a sua viatura se desligou e se imobilizou a alguns metros desse local.

9. O arguido antes de conduzir nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas ingeriu bebidas alcoólicas.

10. Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suscetível de lhe determinar um teor de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, e que a condução de veículo motorizado na via pública nessas circunstâncias se traduz num facto proibido e punido pela lei penal como crime, não obstante, quis conduzir o veículo nessas condições.

11. Mais sabia o arguido que, no exercício da condução, deveria conduzir de forma cautelosa e em respeito das regras estradais, tendo em atenção as características da via por onde circulava e os demais utentes e utilizadores, ciente que devia adequar a velocidade e trajetória do veículo por si conduzido por forma a executar, em condições de segurança, as manobras cuja necessidade fosse de prever, nomeadamente parar quando tal lhe fosse ordenado pelas autoridades policiais.

12. No entanto, disso ciente, o arguido quis violar, de forma grosseira, as regras estradais e com isso criou perigo para o veículo da GNR, que foi forçado a desviar-se sob pena de ser embatido, sabendo que com a sua conduta poderia provocar estragos alheios de valor elevado e colocar em perigo a integridade física e mesmo a vida do ocupante do veículo da patrulha e dos demais utentes da via.

13. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

14. Nasceu em …/…/1965, em ….

15. É solteiro, sem filhos.

16. Como habilitações literárias, tem o 4.º ano de escolaridade completo.

17. É trabalhador agrícola indiferenciado.

18. Pelo seu trabalho aufere a retribuição mínima legalmente garantida.

19. Reside com uma irmã, que sofre de …, e um irmão, em casa de seus pais.

20. Não tem antecedentes criminais registados.

O Tribunal decidiu inexistir matéria de facto não provada, com relevo para a formação da respetiva convicção, considerando, em síntese, os factos provados em função das declarações dos militares da GNR, da testemunha de defesa, do teor do auto de notícia, do crc, do comprovativo do exame pericial à amostra de sangue e das declarações do recorrente no que respeita às respetivas condições pessoais e económicas.

Mais se considerou que o recorrente, com a sua apurada conduta, preencheu os dois tipos legais dos crimes por que vinha acusado, praticando um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Sustenta o Tribunal a quo que, nesta situação concreta, não há um concurso aparente de crimes, mas sim um concurso efetivo, uma vez que o arguido não praticou o crime de condução de veículo rodoviário por estar em estado de embriaguez, mas sim através da violação grosseira das regras estradais. Entendeu-se, assim, estar perante situações distintas, merecedoras de distinta censura penal.

No que concerne às penas, principais e acessórias, optando, no primeiro caso, pela pena de multa prevista em alternativa em qualquer um dos mencionados ilícitos (o que não vem contestado) entendeu o Tribunal graduá-las, nos seguintes termos:

- 70 (setenta) dias de multa, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal;

- 130 (cento e trinta) dias de multa, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

Em cúmulo jurídico, considerando o Tribunal a moldura abstrata de 70 a 200 dias, condenou o recorrente na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), o que perfaz o quantitativo global de 900,00€ (novecentos euros), com desconto de um dia em virtude da privação de liberdade sofrida à ordem destes autos.

Mais foi o arguido condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses e, pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.

Em cúmulo jurídico, onde se considerou a moldura abstrata de 4 (quatro) a 10 (dez) meses, condenou-se o arguido na pena única acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 7 (sete) meses.

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4. FUNDAMENTAÇÃO

4.1 Do concurso de crimes:

O recorrente foi condenado pela prática, em concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1, al. a) e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

Sustenta, em recurso, que o Tribunal a quo errou na aplicação do direito ao caso, por se verificar, entre as duas disposições legais, uma relação de concurso aparente, devendo ter sido condenado, apenas, pelo tipo legal de condução perigosa de veículo rodoviário.

Já o Tribunal afastou a relação de concurso aparente por, no caso concreto, o recorrente ter praticado este último crime através da violação grosseira das regras estradais e não por se encontrar em estado de embriaguez.

Vejamos, num primeiro momento, as condutas típicas previstas em cada uma das normas:

Artigo 291.º

Condução perigosa de veículo rodoviário

1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou

b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada e nela realizar actividades não autorizadas, de natureza desportiva ou análoga, que violem as regras previstas na alínea b) do número anterior, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

3 - Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

4 - Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

Artigo 292.º

Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas

1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

Estamos, no primeiro caso, perante um crime de perigo concreto e, no segundo, perante um crime de perigo abstrato.

Qualquer um dos ilícitos em referência protege a segurança na circulação rodoviária, tutelando os mesmos bens jurídicos - a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.

O tipo objetivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário preenche-se em duas situações: por não estar o agente em condições de conduzir em segurança ou pela violação grosseira das regras da condução.

O perigo terá, assim, de resultar da falta de condições do agente para conduzir com segurança ou da violação grosseira das regras de condução, podendo ser resultado das duas situações.

Provada a condução sob o efeito do álcool, de que se presume a decorrente falta de condições do agente para conduzir, mas sem que se comprove, em concreto, a criação de uma situação de perigo, a conduta apenas pode ser integrada no art. 292.º, do Código Penal.

Quanto ao concurso de crimes, diz-nos o Código Penal, no seu art. 30.º, n.º 1, que o número de crimes efetivamente cometidos se determina pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Já o concurso de normas (também chamado de concurso aparente de crimes) não tem regulamentação expressa. Traduz-se na subsunção formal dos factos a uma pluralidade de tipos penais, sendo a aplicação de um desses tipos incriminadores suficiente para assegurar a punição, na concretização prática do princípio constitucional do non bis in idem.

Entre as normas penais típicas podemos encontrar uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.

Tem-se considerado que existe concurso aparente (subsidiariedade expressa, em face do segmento final do n.º 1 do art. 292.º) entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o crime de condução sob o efeito do álcool, posto que o agente, na mesma ocasião, preencha os vários modos de atuação ilícita1.

A relação de subsidiariedade, ocorre quando duas normas estão numa relação de grau, prevendo a norma dominante uma forma mais grave de violação do bem jurídico. Esta relação pode ser expressa ou implícita.

Vistos os tipos legais em confronto, temos que, expressamente, o tipo legal de condução de veículo em estado de embriaguez cede perante incriminação mais grave (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”), conclusão a que também chegaríamos, implicitamente, confrontando o crime de perigo abstrato, com o crime que pune o passo seguinte da concretização do iter criminis.

O Tribunal a quo afastou esta relação de subsidiariedade, sustentando que a situação de perigo resultou da infração das regras rodoviárias e não da condução sob o efeito do álcool.

Não partilhamos desta visão.

Não podemos cindir a conduta típica provada nos autos como se o recorrente, ao conduzir violando grosseiramente as regras de circulação rodoviária e, assim, criando perigo para a vida, a integridade física e bens jurídicos de valor elevado, não estivesse, como efetivamente estava, sob o efeito do álcool.

O perigo não pode ter resultado apenas da violação grosseira das regras estradais, como se o agente, já alcoolizado, pudesse atuar sem influência daquela condição. Não podia! Nem tal resulta da matéria de facto provada.

O agente não estava em condições de empreender a condução, fê-lo, infringindo grosseiramente as regras estradais e criou a situação de perigo concreto.

Não é possível, nesta situação, dissociar a conduta referente à produção de perigo real através da falta de segurança na condução motivada pelo efeito do álcool daquela em que esse perigo resulta exclusivamente da violação das regras da condução. Tendo as duas situações se verificado no decurso do mesmo trajeto, sem relevante interrupção temporal e, assim, criando uma única situação de perigo concreto, não há como considerar a realização plúrima de crimes.

Como tem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça2, o critério (teleológico) residirá na unidade ou pluralidade de resoluções criminosas, ou sentido de desvalor jurídico-social – daqui resultando que várias condutas naturalísticas possam acabar subsumidas ao mesmo tipo legal, sempre que exista uma única resolução criminosa, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, merecedores de um juízo de desvalor.

É o caso.

Estamos perante um único evento, uma única ação naturalística, concomitante no tempo, da qual se surpreende uma única resolução criminosa, criadora da mesma situação de perigo, a que apenas pode corresponder um único juízo de censura, justificado pela violação dos mesmos bens jurídicos e que preenche as duas alíneas do n.º 1, do art. 291.º, do Código Penal.

Em suma, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º, n.º 1 do Código Penal é consumido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, do mesmo diploma, pelo que o arguido apenas por este pode ser condenado.

Nesta parte, o recurso merece provimento.

4.2 Da medida da pena principal e acessória:

A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa, aferindo-se por esta, o patamar máximo da pena concreta a aplicar (art. 40.º do Código Penal).

A determinação da medida concreta da pena deve ser efetuada com recurso aos critérios gerais estabelecidos nos arts. 70.º e 71º, do Código Penal, isto é, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

E sufragamos o entendimento que só em caso de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta ou o modo de execução da mesma.

Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.

De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correção por parte do Tribunal de Recurso.

Ao recorrente foram aplicadas as seguintes penas:

- 130 (cento e trinta) dias de multa, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

- pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.

Considerando a relação de concurso aparente que entendemos existir entre este ilícito e o de condução de veículo em estado de embriaguez, caem as penalidades aplicadas por conta do preenchimento típico do mencionado crime, bem como as operações de cúmulo efetuadas, estas eivadas de erro por se ter considerado como limite mínimo da moldura do cúmulo as penalidades mais reduzidas, em desconformidade do que determina o art. 77.º, n.º 2 do Código Penal.

Por outro lado, a proibição de reformatio in pejus (art. 409.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal), na ausência de recurso do M.º P.º, veda o agravamento da pena pela prática do crime previsto no art. 291.º, do Código Penal.

Resta, por isso, ponderar se as penas (principal e acessória) aplicadas pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário são excessivas, como sustenta o recorrente.

O crime é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa (entre 10 e 360 dias (291.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1 do Código Penal).

Não vem questionada a opção pela pena de multa prevista em alternativa.

Sustenta o recorrente que as penas são excessivas e que o Tribunal não relevou a favor do arguido que o mesmo admitiu a prática do crime de condução em estado de embriaguez.

Mas sem razão.

O arguido não confessou livre e voluntariamente a respetiva conduta, limitando-se a referir, a custo, que nesse dia havia “bebido uns copitos”. Não chega para a confissão.

E o Tribunal relevou, na determinação da medida concreta da pena, as elevadas exigências de prevenção geral, a mediana ilicitude e o grau elevado de culpa, não deixando de ponderar, a favor do recorrente, as reduzidas necessidades de prevenção especial, decorrentes da ausência de antecedentes criminais e da respetiva inserção familiar, social e profissional.

O recorrente nada de relevante alega que possa justificar a redução da medida da pena aplicada.

A pena principal, graduada ainda abaixo do meio da moldura abstrata, e à razão diária de 6,00€ (quantitativo não contestado) não se revela excessiva, mostrando-se, sim, apta a satisfazer as necessidades de prevenção.

Quanto à pena acessória, também reclama o recorrente pela sua redução.

De acordo com o art. 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime previsto no art. 291.º, do mesmo diploma.

A aplicação desta pena acessória depende da condenação na prática de um dos crimes aqui previstos com a consequente aplicação da pena prinicipal, logo da censurabilidade da conduta e, dentro da moldura legal abstrata, deve ser graduada em função dos critérios gerais. Exerce uma função de prevenção geral, de intimidação.

O recorrente não refere, em concreto, nenhuma razão pela qual se possa considerar esta pena excessiva.

Não resultou provado, nem vem alegado, que se verifiquem particulares necessidades da carta para o exercício da profissão, ou para atender às obrigações familiares. Ou seja, não resulta dos autos que a circunstância de o recorrente ficar temporariamente, por 6 (seis) meses, não detentor de carta de condução lhe traga especial prejuízo.

E, na medida em que o arguido criou uma única situação de perigo para a circulação rodoviária, mas mediante a condução sob a influência do alcool bem como pela infracção grosseira de regras de conduta, desrespeitando ostensivamente a autoridade, sempre estaria arredada a graduação da pena acessória nos mínimos legais.

O Tribunal a quo ponderou as diversas circuntâncias, nomeadamente as que militam a favor do condenado (como a primariedade e a integração familar e sócio profissional) na respetiva graduação, mas ponderando as elevadas exigências de prevenção geral, graduando a pena acessória no primeiro quarto da moldura da mesma, pelo que nenhuma razão válida aduz o recorrente, nesta parte, para a intervenção deste Tribunal Superior.

Aqui, o recurso não pode, por isso, deixar de improceder.

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5. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido:

a) Revogando a sentença recorrida no que respeita à condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses.

b) Condenando o recorrente pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, als. a) e b) e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

c) No mais, confirma-se a decisão recorrida, mantendo a pena principal e acessória fixadas na sentença, descontando 1 (um) dia à pena de multa aplicada, em virtude da privação de liberdade sofrida à ordem destes autos (cfr. artigo 80.º, n.º 2, do Código Penal).

Sem custas.

Notifique.

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Évora, 28 de outubro 2025

Mafalda Sequinho dos Santos

Edgar Gouveia Valente

Moreira das Neves

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1PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, UCE, 5.ª ed. Atualizada, p. 1127; Ac. TRL de 31-10-2006, Proc. n.º 5794/2006-5, Relatora FILOMENA LIMA; Ac. TRE de 14/07/2020, Processo nº 446/19.0GHSTC.E1, Relatora ANA BRITO, Ac. do TRE 10/20/2023, Proc. n.º 140/19.2GTSTB.E1, Relator NUNO GARCIA, Ac. TRP 14/12/2017, Proc. n.º 29/13.9PTVNG.P1, Relatora ELIA SÃO PEDRO e Ac. TRP de 3/06/2020, Proc. n.º 31/20.4GAFLG.P1, Relatora MARIA DEOLINDA DIONÍSIO.

2 Ac. STJ de 10/09/2025, Proc. n.º 200/24.8PAVNF.S1, Relator LOPES DA MOTA.