ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
NO ÂMBITO DO IVA
REGIMES ESPECIAIS TRANSITÓRIOS CRIADOS PELO DECRETO-LEI N.º 125/2021
DE 30 DE DEZEMBRO
Sumário

I. O crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objetivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária o que, no âmbito do IVA, significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, ou seja, se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente.
II. O pressuposto é o de que se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da ação (rectior, do desvalor da omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária e temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efetivamente recebido.
III. O Decreto-Lei n.º 125/2021, de 30 de dezembro, ao vir permitir o pagamento de dívidas fiscais em prestações mensais, não descaracterizou o crime de abuso de confiança fiscal, nos casos em que sendo devidos os impostos estes não haviam sido liquidados pelos contribuintes nos prazos legais!
IV. Veio antes criar instrumentos adicionais para acudir à situação criada pela COVID-19, cada um dos quais com as suas especificidades.
V. Designadamente «um novo regime de pagamento em prestações de impostos, antes da instauração do processo de execução fiscal, e (…) alterações ao regime de pagamento em prestações de impostos, no processo de execução fiscal. Em primeira linha, para a generalidade dos impostos geridos pela AT, cria-se uma verdadeira fase pré-executiva, que é um momento entre o fim do cumprimento voluntário da obrigação de pagamento e a instauração de execução fiscal, permitindo ao contribuinte que, querendo cumprir e não o podendo fazer de uma vez só, pagar a sua obrigação sem o estigma de ter pendente um processo executivo.
VI. E permitir pagamentos prestacionais oficiosos para dívidas de reduzido valor, visando apoiar a franja de contribuintes que em princípio terá menor apoio técnico externo para os ajudar a conhecer e encontrar soluções para garantir o cumprimento das suas obrigações fiscais.

*

Texto Integral

ACÓRDÃO
I – RELATÓRIO

a. No Juízo Local Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal singular, de AAA, nascido a …/…71965, e de BB, ambos com os demais sinais dos autos, aos quais – a cada um deles – estava imputada a prática em coautoria de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105.º, § 1.º, 2.º, 4 e 7, a mais dos artigos 6.º, § 1.º, als. a) e b), 7.º, § 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), previsto na Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (com as alterações subsequentes) e artigos 37.º, § 1.º e 41.º, § 1.º, al. b) do Código do IVA.

Os arguidos apresentaram contestação.

E a final o Tribunal proferiu sentença, pela qual os condenou pela prática, em coautoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto nos artigos 105.º, § 1.º e 7.º do RGIT, na pena de 350 dias de multa à razão diária de 5€ (arguido AA) e na pena de 180 dias de multa à razão diária de 20€ a arguida BB.

b. Inconformados, viram os arguidos recurso da referida sentença, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (transcrição1):

(…)

2. Os arguidos confessaram os factos, tendo aclarado as circunstâncias e motivos pelos quais não fizeram em devido tempo a entrega do IVA, aclarando que apresentaram um plano de pagamento dessa dívida em prestações, plano que foi aceite pela AT - Administração Fiscal e que está a ser cumprido regularmente nos termos contemplados nesse plano de pagamento, estando, por isso, a situação contributiva da arguida/devedora BB, fiscalmente regularizada.

(…)

5. O processo de execução fiscal pelo IVA não pago pelos arguidos, foi instaurado no decorrer do ano de 2022, ou seja, no período compreendido entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2022.

6. Atendendo à emergência de saúde pública causada pela pandemia da doença COVID-19, em 30 de Dezembro de 2021 foi publicado o DL nº 125/2021, de 30 de Dezembro, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2022, nos termos do qual foi permitido o pagamento de dívidas fiscais de IRS, IRC, IVA, IMT e IUC em prestações mensais.

7. Visando o pagamento do IVA não entregue, no indicado montante de €25.767,24, juros e custas, a arguida BB, recorreu à faculdade do pagamento da dívida de IVA em prestações, o que foi aceite pela AT, estando o plano de pagamento a ser regularmente cumprido, pelo que tem a sua situação contributiva fiscalmente regularizada, tendo passado de contribuinte incumpridora a contribuinte cumpridora.

8. A publicação do Decreto-Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro, permitindo aos contribuintes o pagamento dos impostos em prestações, nos termos em que foi disciplinado nesse diploma, veio descaracterizar o crime de abuso de confiança fiscal nos casos em que, sendo devidos, os impostos previstos nesse diploma não foram pagos pelos contribuintes nos prazos legais.

9. Dispõe a alínea c) do artº 2º do Decreto-Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro, que o regime de pagamento em prestações previsto nesse diploma se aplica ao Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) quando a liquidação seja promovida oficiosamente pelos serviços.

(…)

11. Ao interpretar e decidir no sentido em que o fez, a Meritíssima Juiz “a quo” fez uma interpretação literal e restritiva na norma da alínea c) do artº 2º do DL nº 125/2021, de 30 de dezembro, norma essa que, sob pena de inconstitucionalidade, por violação do artº 13º da CRP, deve ser interpretada em sentido extensivo ou seja, no sentido de que a aplicação do regime previsto no Decreto Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro, não se restringe apenas às situações em que os serviços da administração fiscal procedam a liquidações oficiosas de IVA, mas também às liquidações de IVA que tenham resultado de declarações voluntariamente apresentadas ou remetidas pelos contribuintes à AT - Autoridade Tributária.

12. É que, em matéria fiscal, vigora o princípio da igualdade fiscal que impõe aos poderes públicos um tratamento igual de todos os contribuintes perante a lei fiscal e uma proibição de discriminações infundadas, sem prejuízo de impor diferenciações de tratamento entre pessoas, quando existam especificidades relevantes que careçam de protecção, o que não acontece no caso “sub judice”.

13. O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade, estabelecida no artº 13º da CRP, concretizasse na generalidade e uniformidade dos impostos e na sua repartição em que o critério tem de ser idêntico para todos, não podendo o legislador criar critérios discriminatórios em favor dos contribuintes que não apresentam as declarações de IVA obrigatórias, ou as apresentam com informações omissas ou incorrectas, obrigando a administração fiscal a emitir liquidações oficiosas, e com desfavor dos contribuintes que apresentam correctamente preenchidas as declarações, mas, por razões advindas da pandemia COVID-19 e de dificuldades financeiras, como aconteceu com a arguida, ñão entregaram em tempo os valores do IVA recebidos.

14. Aplicando-se ao caso “sub judice” o regime do Decreto Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro, que, por força do estatuído na alínea c) do seu artº 2º, descaracterizou o crime de abuso de confiança fiscal imputado aos arguidos, devem os mesmos ser absolvidos da prática desse crime.

Em todo o caso,

15. A ser entendido no sentido da não aplicabilidade ao caso sub judice do regime jurídico resultante da publicação do Decreto Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro, que descaracterizou o crime do abuso de confiança fiscal imputado aos arguidos, então a pena aplicada à arguida BB, foi notoriamente mal graduada, mostrando-se exagerada, desproporcional e injusta.

16. A arguida BB, confessou nos factos e contextualizou a não entrega do IVA no quadro da falta de recursos financeiros disponíveis e das dificuldades decorrentes da crise da pandemia Covid-19 que se abateu sobre o país.

17. A arguida BB, no contexto das prorrogativas decorrentes da publicação do Decreto Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro, requereu o pagamento em prestações mensais da dívida fiscal do IVA que não havia entregue, tendo a Autoridade Tributária deferido o pagamento dessa dívida em prestações mensais, conforme plano que a arguida tem estado a cumprir regularmente, tendo a sua situação fiscal regularizada e, de contribuinte incumpridora passou a contribuinte cumpridora.

18. Nesse contexto, a entender-se que a arguida deve ser condenada pela prática do crime de abuso de confiança fiscal que lhe foi aplicada, a pena de multa a aplicar à arguida BB, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 71º e 72º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal, e do artº 15º, nº 1, do RGIT, na redacção dada pela Lei 15/2001, de 05/06, deve ser graduada pelo mínimo legal, isto é, em 120 dias de multa, correspondente a 1/3 do limite máximo, à razão de 5,00 €/dia, correspondente ao montante mínimo previsto no artº 15º do RGIT, perfazendo o montante total de 600,00 € (seiscentos euros).

18. Nos termos em que foi proferida, a sentença ora recorrida violou as seguintes disposições legais: - alínea c) do artº 2º do DL nº 125/2021, de 30 de Dezembro;

- artº 13º da CRP (Constituição da República Portuguesa);

- artigos 71º e 72º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal;

- artº 15º, nº 1, do RGIT, na redação dada pela Lei 15/2001, de 05/06.

c. Recebido o recurso o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância respondeu, sintetizando a sua posição nos seguintes termos2:

«(…)

3 - Os arguidos/recorrentes insurgem-se quanto à inaplicabilidade do Decreto-Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro ao presente caso.

4 - A arguida/recorrente BB, discorda, ainda, da medida da pena de multa aplicada e do quantitativo diário.

5 - Não assiste qualquer razão aos recorrentes.

6 - Assim, no que concerne à não aplicação do Decreto-Lei nº 125/2021, de 30 de Dezembro, a sentença recorrida não merece qualquer reparo.

7 - Com efeito, o art. 2, c) do referido diploma afasta a aplicação daquele diploma ao presente caso, por a liquidação do imposto de valor acrescentado não ter sido promovido oficiosamente pelos serviços.

8 - No que respeita à medida da pena de multa aplicada à arguida, também a douta sentença não merece qualquer reparo.

9 - Com efeito, a pena de 180 dias de multa aplicada pelo Tribunal a quo é inferior a 1/3 da do limite máximo.

10 - Na determinação da medida da pena o Tribunal a quo não violou qualquer norma, tendo observado os critérios ínsitos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal.

11 - Entendemos, assim, adequado a pena de multa de 180 dias aplicada à arguida.

12 - Relativamente ao quantitativo diário, o Tribunal a quo teve em conta a situação financeira da sociedade arguida, pelo que, neste ponto, também nenhum reparo merece a douta sentença.

13 - Face ao exposto, deverá o recurso apresentado pelos recorrentes ser julgado improcedente.»

d. Na vista prevista no § 1.º do artigo 416.º CPP, o Ministério Público junto deste órgão jurisdicional de recurso, lavrou parecer em que refere o seguinte:

«(…)

O artº 15º, do Dec. Lei nº 125/2021, dispõe o seguinte:

“1 - Em consequência dos efeitos da pandemia da doença COVID-19, aos processos de execução fiscal instaurados entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2022 aplica-se o disposto no n.º 5 do artigo 196.º do CPPT, independentemente do valor em dívida.

2 - Os devedores com planos prestacionais em processos de execução fiscal em curso podem igualmente requerer à AT, até 31 de janeiro de 2022, a aplicação do presente regime excecional, sendo adicionadas às prestações aprovadas as prestações remanescentes até ao limite de cinco anos.”

Dessa norma resulta que o seu nº 1, tem aplicação aos processos de execução fiscal, instaurados durante o ano de 2022 -o que ocorreu com o IVA em causa nos autos, cujo processo de execução fiscal, possui o nº PEF … [cfr. informação do Serviço de Finanças de …, junta aos autos no dia 22.02.2024]- pelo que beneficia do estabelecido no nº 5, do artº 196º, do CPPT.

De acordo com essa norma, a sociedade arguida, devedora do IVA referente ao quatro trimestre de 2021, poderia, realizando as demonstrações exigidas nessa norma, solicitar à autoridade tributária, o alargamento do número de prestações mensais até 5 anos, mesmo sendo a dívida inferior a 500 unidades de conta.

Foi essa a única alteração introduzida pelo artº 15º, nº 1, do Dec. Lei nº 125/2021.

Note-se que essa norma tem aplicação a dívidas em fase de execução fiscal, ou seja, dívidas já vencidas, cujo prazo de pagamento já se encontra expirado, ou seja, a situações em que o crime de abuso de confiança fiscal já se encontra consumado.

Essa norma não introduziu um novo prazo de pagamento do tributo devido ao Estado, que teria reflexos no preenchimento do tipo do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 105º, do RGIT.

Apenas permitiu o seu pagamento, em número de prestações superior ao que decorria do CPPT, nos casos em que o pagamento do tributo não foi efectuado no prazo legal.

De igual forma, essa norma não despenalizou as condutas como a praticada pelos arguidos, nos termos julgados provados em primeira instância, como a Exmª. Srª. Juiz que proferiu a sentença bem expressou na parte interlocutória da sentença.

Por tudo o exposto, ainda que se seguisse a tese defendida pelos arguidos, no sentido de que o disposto no artº 15º, do Dec. Lei nº 125/2021 é também aplicável às prestações de IVA liquidadas pelos contribuintes, essa norma em nada excluiria a punibilidade da sua conduta, tal como se encontra plasmada na factualidade julgada provada na sentença.

Consequentemente,

Afigura-se que este segmento do recurso dos arguidos não deverá merecer provimento.

(…)»

e. Notificados os recorrentes para responderem, querendo, nada vieram dizer.

f. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP).

Nessa sequência, suscitam os recorrentes as seguintes questões, respeitante ambas a erros de julgamento da questão de direito:

i. Inverificação dos elementos constitutivos do ilícito;

ii. E erro de julgamento na determinação da medida concreta das penas.

2. Da sentença recorrida

2.1 A matéria de facto provada no Juízo de 1.ª instância é a seguinte:

«1. A sociedade arguida BB é uma sociedade por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o número de identificação de pessoa coletiva …, com o capital social de €1,00 (um euro), com sede na Avenida …, Edifício …, Bloco …, ….

2. A sociedade arguida tem como objeto social a compra, venda, gestão e prospeção de imóveis, a consultadoria e prestação de serviços na área imobiliária, bem como a importação e exportação de veículos automóveis.

3. A sociedade arguida está enquadrada em sede de IRC (Imposto Rendimento Pessoas Coletivas), no regime geral, desde 01.01.2010, estando igualmente enquadrada em sede de IVA (Imposto Valor Acrescentado), no regime normal de tributação, com periodicidade trimestral, desde 29.07.2020.

4. Desde a respetiva data de constituição e até à presente data que o Arguido AA é o gerente da sociedade Arguida, comandando os destinos da sociedade Arguida, sendo responsável pelos atos de gestão e de regularização tributária da pessoa coletiva, decidindo o pagamento ou não pagamento dos respetivos impostos.

5. Durante o quarto trimestre do ano 2021 (2021.12T), a sociedade Arguida exerceu a atividade para a qual se encontra registada, emitindo aos seus clientes as faturas dos serviços que prestava, nas quais declarava ter recebido daqueles clientes, a título de contrapartida por diversas prestações de serviços, as importâncias aí constantes, acrescidas de IVA faturado à taxa legal.

6. Durante o referido período, a sociedade Arguida emitiu faturas aos seus clientes, tendo recebido e liquidado IVA à taxa legal em vigor à data de emissão de cada fatura.

7. A sociedade arguida submeteu junto da Administração Tributária a competente declaração periódica de IVA relativa ao quarto trimestre do ano 2021.

8. Na referida declaração foram indicados pela Sociedade Arguida o tipo de operações realizadas no exercício da sua atividade, o valor total da base tributável de €112.500,00 (cento e doze mil e quinhentos euros), o valor total de imposto a favor do sujeito passivo de €125,89 (cento e vinte e cinco euros e oitenta e nove cêntimos), o valor total do imposto a favor do Estado de €25.893,13 (vinte e cinco mil oitocentos e noventa e três euros e treze cêntimos), bem como apurado o imposto a entregar ao Estado, no montante de €25.767,24 (vinte e cinco mil setecentos e sessenta e sete euros e vinte e quatro cêntimos).

9. A referida declaração periódica não foi acompanhada de qualquer meio de pagamento, não tendo a sociedade arguida entregue o IVA devido ao Estado, no valor de €25.767,24 (vinte e cinco mil setecentos e sessenta e sete euros e vinte e quatro cêntimos) dentro do prazo legal que tinha para o efeito, ou seja, até ao dia 25.02.2022.

10. O pagamento também não foi efetuado nos noventa dias seguintes ao termo desse prazo, o que originou um crédito tributário a título de IVA não entregue ao Estado.

11. A sociedade arguida e o arguido AA foram notificados pessoalmente, no dia 26.07.2023, para procederem, no prazo de trinta dias, ao pagamento dos montantes em dívida.

12. Nenhum dos Arguidos efetuou qualquer pagamento junto da Autoridade Tributária dentro do referido prazo.

13. O Arguido AA, na qualidade de gerente, de Direito e de facto, da sociedade Arguida, sabia que ambos tinham a obrigação legal de entregar ao Estado o montante total de €25.767,24 (vinte e cinco mil setecentos e sessenta e sete euros e vinte e quatro cêntimos), correspondente ao diferencial entre o imposto liquidado a terceiros no quarto trimestre do ano de 2021 e o imposto suportado e dedutível referente àquele período.

14. O arguido AA, agindo por conta e no interesse da sociedade Arguida, optou deliberadamente por não entregar ao Estado a quantia referida, tendo, ao invés, e em seu benefício próprio e da sociedade arguida, feito sua a referida quantia, a qual integrou no seu património e no da sociedade arguida e utilizou, obtendo, assim, vantagens patrimoniais e benefícios que sabia serem indevidos e proibidos por lei, prejudicando, em igual montante, o Estado Português.

15. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

Mais se provou que:

16. Os arguidos optaram por não entregar a quantia devida a título de IVA para proceder ao pagamento aos credores para manter a atividade.

17. O arguido vive sozinho em casa cedida gratuitamente; aufere o salário mínimo nacional; não tem filhos; tem o 9.º ano de escolaridade.

18. A sociedade arguida está laboralmente ativa. Não tem trabalhadores a seu encargo.

Tem uma faturação mensal de cerca de 10 000€ brutos. Suporta prestações mensais para no valor global de 1 200€, para cumprimento de acordo prestacional com a Autoridade Tributária. Após pagamento das despesas e imposto, fica com um rendimento disponível de 2 000€.

19. Os arguidos não têm antecedentes criminais averbados.»

3. Conhecendo dos fundamentos do recurso

3.1 i. Inverificação dos elementos constitutivos do ilícito

Consideram os recorrentes que o Decreto-Lei n.º 125/2021, de 30 de dezembro, veio permitir o pagamento de dívidas fiscais de IRS, IRC, IVA, IMT e IUC em prestações mensais, com isso descaracterizando o crime de abuso de confiança fiscal, nos casos em que sendo devidos os impostos naquele indicados, não haviam sido liquidados pelos contribuintes nos prazos legais.

Isto é, consideram que o legislador discriminou positivamente certos contribuintes (os que não apresentam as declarações de IVA obrigatórias, ou as apresentam com informações omissas ou incorretas) em desfavor dos contribuintes que apresentaram corretamente preenchidas as declarações, mas que em razão das dificuldades financeiras advindas da pandemia COVID-19, não entregaram os valores do IVA recebido em tempo.

E assim porquanto, o princípio da igualdade fiscal impõe aos poderes públicos um tratamento igual de todos os contribuintes, proibindo discriminações infundadas.

Ora, o processo de execução fiscal pelo IVA não pago pelos arguidos, foi instaurado no decorrer do ano de 2022, tendo a sociedade arguida recorrido à faculdade do pagamento da dívida de IVA em prestações, o que foi aceite pela AT, estando o plano de pagamento a ser regularmente cumprido, pelo que tem a sua situação contributiva fiscalmente regularizada, tendo passado de contribuinte incumpridora a contribuinte cumpridora.

Consideram os arguidos que o entendimento seguido na sentença, relativamente à verificação do ilícito, resulta de uma interpretação meramente literal da alínea c) do artigo 2.º do citado Decreto-Lei, sendo que a interpretação correta (interpretação extensiva) é a que considera que o âmbito de aplicação do regime especial do Decreto Lei n.º 125/2021, de 30 de dezembro, se não restringe às situações em que os serviços da administração fiscal procedam a liquidações oficiosas de IVA, mas também às liquidações de IVA que resultaram de declarações voluntariamente apresentadas ou remetidas pelos contribuintes à AT - Autoridade Tributária.

Pois bem.

O crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objetivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária o que, no âmbito do IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária ou seja se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente.

O pressuposto é o de que se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da ação (rectior, do desvalor da omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária e temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efetivamente recebido.

Justamente a propósito da subsunção dos factos ao direito aplicável, refere a sentença recorrida que:

«Da factualidade provada resulta que os arguidos liquidaram o IVA aos seus clientes, recebendo os respetivos montantes, durante o trimestre referido, não entregando ao Estado Português essa quantia, entrega que deveria processar até aos dias 25 do 2.º mês seguinte ao trimestre correspondente; resultando ainda provado que, além dessa não entrega, os mesmos se apropriaram do imposto liquidado, fazendo-o seu (pois que se alguém recebe algo que tem que entregar a outrem e não o faz, dispondo de um largo período de tempo para tal, é porque fez tal coisa sua) – verificando-se, assim, a entrega de determinada coisa móvel, a título não translativo da propriedade, ocorrendo posteriormente a tal entrega uma inversão do título da posse, por parte do arguido que passou dela a dispor como se fosse sua3.

Mais resultou provado que os arguidos, após a notificação efetuada nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, não efetuaram o pagamento da quantia devida.

Deste modo, conclui o Tribunal que, com esta conduta omissiva, os arguidos preencheram a previsão do n.º 1 e 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.

Consequentemente, encontra-se o nexo de imputação objetiva, pelo preenchimento dos elementos do tipo pela conduta dos arguidos.

A nível subjetivo, exige-se dolo por parte do agente, nos termos do art.º 13.º do C.P.

Tal dolo consiste no conhecimento e vontade de não efetuar a entrega da quantia que não lhe pertencia em vez de entregar à administração tributária (art.º 14.º do C.P.).

Provou-se que os arguidos sabiam que tal quantia não lhe pertencia e que, ao não entregar a mesma à Administração tributária, causava prejuízos ao Erário Público e, mesmo assim, não a entregou tendo agido deliberada, livre e conscientemente.

Está, assim, preenchido o elemento subjetivo do crime de Abuso de confiança fiscal, tendo os agentes atuado com dolo direto (art.º 14.º, n.º 1 do C.P.).

Porque não se verificam quaisquer causas que excluam a ilicitude do facto ou a culpa do agente, importa concluir que o arguido cometeu o crime de que vem acusado.»

Comecemos por transcrever a norma que contém o ilícito que foi imputado aos arguidos e que a sentença considerou verificados os respetivos elementos constitutivos.

Preceitua o artigo 105.º do RGIT, na redação dada pela Lei 64-A/2008, que:

«1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente prestação tributária de valor superior a 7 500€, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4. Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

5. Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efetuada for superior a € 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.

6. (Revogado).

7. Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.»

Esta norma tem evidentemente de se conexionar com as que caracterizam o tributo em causa:

Artigo 1.º, § 1.º, al. c) do Código do IVA:

«Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal.»

Mais dispondo o artigo 2.º do mesmo código, que:

«1. São sujeitos passivos de imposto:

as pessoas singulares ou coletivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços (…).»

Prevendo o artigo 3.º, § 1.º do mesmo código que:

«Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.»

Sendo o imposto devido e torna-se exigível nas prestações de serviços, no momento da sua realização (conforme resulta do artigo 7.º, § 1.º, al. b) do Código do IVA.

Resultando do preceituado no § 1.º do artigo 27.º do código a que nos vimos referendo, que:

«Sem prejuízo do disposto no regime especial referido nos artigos 60.º e seguintes, os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 26.º e 78.º, no prazo previsto no artigo 41.º, nos locais de cobrança legalmente autorizados.»

Ora, convocados os factos provados constatamos estarem preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do ilícito pelo qual os recorrentes foram condenados, porquanto no prazo legal, intencionalmente, não entregaram ao Estado as quantias que arrecadaram e que àquele pertenciam.

Retomam agora os arguidos em sede de recurso o argumento já esgrimido perante o Tribunal recorrido, por considerarem que o Decreto-Lei n.º 125/2021, de 30 de dezembro, ao permitir o pagamento de dívidas fiscais em prestações mensais, veio descaracterizar o crime de abuso de confiança fiscal, nos casos em que sendo devidos os impostos estes não haviam sido liquidados pelos contribuintes nos prazos legais! Mas que ao fazê-lo apenas relativamente a uma dada categoria de contribuintes descriminou, sem razão atendível, aqueles que já haviam feito a liquidação e se encontravam a fazer o pagamento em prestações. Não podendo o legislador, em decorrência do princípio da igualdade fiscal, discriminar os contribuintes sem razão atendível, pelo que tem de lhes ser aplicável também aquele regime e, nesse caso, uma vez que se encontrava pagar em prestações os tributos devidos, não se verifica a pratica do crime pelo qual foram condenados!

Os recorrentes não têm razão.

O legislador explicita a sua intenção no preâmbulo da lei a que os recorrentes se referem: «considerando a importância de que se reveste a regularização da situação tributária, designadamente no quadro da obtenção de diversos incentivos, que, no presente contexto, podem ser essenciais à subsistência das famílias e das empresas, e o necessário apoio à promoção do cumprimento voluntário, foram aprovados o Despacho n.º 8844-B/2020, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 179, de 14 de setembro de 2020, e o Despacho n.º 1090-C/2021, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 17, de 26 de janeiro de 2021, que determinam que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) deve disponibilizar oficiosamente aos contribuintes, independentemente da apresentação do pedido, a faculdade de pagamento em prestações, sem necessidade de prestação de garantia, nos termos do Decreto-Lei n.º 492/88, de 30 de dezembro, na sua redação atual, e, no caso do Despacho n.º 1090-C/2021, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 17, de 26 de janeiro de 2021, e do Código de Procedimento e de Processo Tributário, nos casos em que as dívidas já podem ser pagas sem prestação de garantia.»

Isto é, o Estado criou vários instrumentos para acudir à situação criada pela COVID-19, cada um deles com as suas especificidades.

Beneficiando os contribuintes do regime especial aplicável a cada uma das classes que a lei criteriosamente estabeleceu.

Nesse contexto, através do diploma legal que os recorrentes invocam, aprovou-se «um novo regime de pagamento em prestações de impostos, antes da instauração do processo de execução fiscal, e são aprovadas alterações ao regime de pagamento em prestações de impostos, no processo de execução fiscal. Em primeira linha, para a generalidade dos impostos geridos pela AT, cria-se uma verdadeira fase pré-executiva, que é um momento entre o fim do cumprimento voluntário da obrigação de pagamento e a instauração de execução fiscal, permitindo ao contribuinte que, querendo cumprir e não o podendo fazer de uma vez só, pagar a sua obrigação sem o estigma de ter pendente um processo executivo.

Por outro lado, ao criar os pagamentos prestacionais oficiosos para dívidas de reduzido valor, esta solução apoia aquela franja de contribuintes que, teoricamente, terão menos apoio técnico externo para os ajudar a conhecer e encontrar soluções para garantir o cumprimento das suas obrigações fiscais, libertando ainda os cidadãos e a administração de procedimentos burocráticos, para solicitação desses planos e procedimentos de autorização» (preâmbulo do Decreto-Lei n.º125/2021, de 30 de dezembro).

Ora, conforme decorre das normas respetivas, o regime previsto no DL n.º 125/2021, de 30 de dezembro, é aplicável às dívidas de imposto previstas no artigo 2.º; e no que respeita ao IVA, na alínea c) do mesmo artigo, ocorrerá apenas «quando a liquidação seja promovida oficiosamente pelos serviços.»

E qual era então a situação dos recorrentes?

A sentença descreve-a: já haviam remetido «declaração periódica relativa ao período 2021/12T, (…) por transmissão eletrónica de dados, em 09.02.2021, na qual consta como sujeito passivo, BB (fls. 34 a 36)».

Atente-se que a liquidação oficiosa do imposto só ocorre quando a declaração periódica de entrega de Imposto Sobre o valor Acrescentado não é apresentada.

Ora, como os arguidos haviam entregue aquela declaração, conforme se mostra apurado, não se procedeu à liquidação oficiosa.

Isto é, a situação dos recorrentes não se encontrava no enquadramento legalmente previstos por este novo instrumento. Sendo que a razão da distinção estabelecida na lei não foi entre contribuintes, mas entre fases em que se encontrava a cobrança dos impostos devidos, pelas razões muito bem explicitadas no preâmbulo da lei.

Os recorrentes sabem bem disso, mas consideram que o legislador deveria ir ao encontro de critério distinto.

Neste contexto importará recordar que o bem jurídico tutelado pela incriminação, é um bem jurídico coletivo, «cuja titularidade é da comunidade dos indivíduos, por meio do Estado que se compromete a realizar uma gestão adequada e a prosseguir objetivos económicos e sociais reconhecidos como fundamentais pela sociedade.»4

Consumando-se o crime de abuso de confiança fiscal, como crime de omissão pura que é, com o fim do prazo para a entrega das prestações que o substituto fiscal (neste caso os arguidos) está legalmente obrigado a deduzir.5 O que os recorrentes não fizeram. Razões pelas quais não podemos senão considerar, como fez a sentença recorrida, que os arguidos/recorrentes cometeram o crime pelo qual foram condenados.

ii. Do erro de julgamento na determinação concreta da medida da pena relativamente à arguida BB

Sustenta a arguida/recorrente que a pena em que foi condenada é desproporcionada e injusta, porquanto houve confissão dos factos, ficando a dever-se a não entrega do IVA (ao Estado) à falta de recursos financeiros disponíveis e das dificuldades decorrentes da crise da pandemia Covid-19. Mais alegando que se encontra a cumprir o acordo celebrado, tendo a sua situação fiscal regularizada e, de contribuinte incumpridora passou a contribuinte cumpridora. Pelo que a pena deverá graduar-se no mínimo legal, isto é, em 120 dias de multa, correspondente a 1/3 do limite máximo, à razão de 5€/dia.

Por seu turno o Ministério Público considera que o Tribunal a quo teve em conta a situação financeira da sociedade arguida, pelo que nenhum reparo merece a douta sentença recorrida.

Os factos provados não confirmam totalmente o alegado pela recorrente BB. O que deles consta é apenas que:

«16. Os arguidos optaram por não entregar a quantia devida a título de IVA para proceder ao pagamento aos credores para manter a atividade.

17. O arguido vive sozinho em casa cedida gratuitamente; aufere o salário mínimo nacional; não tem filhos; tem o 9.º ano de escolaridade.

18. A sociedade arguida está laboralmente ativa. Não tem trabalhadores a seu encargo.

Tem uma faturação mensal de cerca de 10 000€ brutos. Suporta prestações mensais no valor global de 1 200€, para cumprimento de acordo prestacional com a Autoridade Tributária. Após pagamento das despesas e imposto, fica com um rendimento disponível de 2 000€.

19. Os arguidos não têm antecedentes criminais averbados.»

Em conformidade com a matriz constante do artigo 40.º do Código Penal, toda a pena tem como finalidades «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, (…) em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.»

Referindo o § 2.º deste normativo que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Indicando que a pena assume um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo já, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa do infrator.

Para a determinação da medida concreta da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, cumpre atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.

Decorre dos princípios enunciados que o limite superior da pena concreta é determinado pela medida da culpa do agente.

Sendo o seu limite mínimo determinado pelos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor, não podendo a pena quedar-se abaixo das expectativas mínimas da comunidade).

A medida exata é depois determinada de acordo com as regras de prevenção especial de socialização, devendo corresponder à que é necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal que para isso seja necessário. Centra-se, pois, no condenado, visando afastá-lo da delinquência e integrá-lo nos princípios e valores dominantes na comunidade.6

Nesta valoração que lhe competia realizar matéria a sentença recorrida considerou: ser mediano o grau da ilicitude do facto, atendendo aos valores em dívida, nos moldes supra referidos; continuar a laborar, apesar de não dispor de estabelecimento comercial para o efeito; o risco de voltar a prevaricar ainda se mostra plausível; ser responsabilizada em razão da atuação do seu órgão de gestão; e não registar antecedentes criminais. E por assim, no âmbito de uma moldura abstrata da pena de 20 a 720 dias de multa graduou a pena concreta em 180 dias e no respeitante ao quantitativo diário, entre 5€ e 500€, fixou-o em 120€.

Neste contexto importa considerar que em matéria de pena o recurso segue o arquétipo de remédio jurídico, do qual decorre que o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, ou na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena.

Assim, o recurso nesta parte não visa, nem aqui se pretende, eliminar a margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de 1.ª instância enquanto componente individual do ato de julgar. Posicionando-se a sindicabilidade da medida da pena na deteção de um qualquer desrespeito dos princípios que norteiam a pena e as operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.7

Daí que só perante patente desconformidade com os critérios legais de escolha, de desproporcionalidade na sua fixação ou de necessidade de correção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as concretas circunstâncias do caso, o Tribunal de 2.ª instância deverá intervir, alterando a espécie ou o quantum da pena concreta. Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2.ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.

Em suma: o recurso não é uma oportunidade dada ao recorrente para o Tribunal da Relação fazer um novo juízo sobre a decisão de primeira instância ou a este se substituir; sendo apenas um meio de corrigir o que de menos próprio tenha sido decidido pelo tribunal a quo.

E como nada se deteta nada se altera.

Termos em que o recurso não se mostra merecedor de provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida.

b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Évora, 28 de outubro de 2025

Francisco Moreira das Neves (relator)

Manuel Soares

Carla Francisco

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1 Naturalmente apenas das «conclusões» em sentido técnico.

2 Também neste caso, evidentemente, apenas as «conclusões» em sentido técnico.

3 Neste sentido, TRCoimbra, 27jun2001, proc. 127/2001, rel. Ferreira Diniz.

4 Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, 2009, Coimbra Editora, p. 299.

5 Neste sentido cf. Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, 2009, Coimbra Editora, p.305.

6 Neste exato sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, pp. 227 e ss.; e Claus Roxin, Derecho Penal - Parte General, I, Madrid, Civitas, 1997, p. 86.

7 Neste preciso sentido entre outros, vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27mai2009, proc. 09P0484, rel. Raúl Borges; acórdãos do TRÉvora, de 22abr2014, proc. 291/13.7GEPTM.E1, rel. Ana Barata Brito; de 29mai2012, proc. 72/11.2PTFAR.E1, rel. António João Latas; e de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, rel. Clemente Lima, todosdisponíveis em www.dgsi.pt.