CRIME DE BURLA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Sumário

A aplicabilidade da lei penal portuguesa, no que concerne ao crime de burla, verificar-se-á quando tiver sido em território nacional que o agente do crime desenvolveu a atuação que traduz o artifício fraudulento que visou colocar o ofendido em erro (parte da atuação compreendida no crime), mesmo que o empobrecimento do ofendido (resultado típico) tenha ocorrido fora do território nacional. Nesse caso, não se pode deixar de considerar, para os efeitos previstos no artigo 7º do Código Penal que o lugar dos factos corresponde ao território nacional, sendo a lei penal portuguesa aplicável em face do disposto na alínea a) do artigo 4º do mesmo código. Nessa conformidade, estaremos perante um caso de pura jurisdição dos tribunais portugueses, sem necessidade de aferição do funcionamento das regras especiais que conferem competência internacional aos tribunais portugueses para julgamento de factos praticados fora do território nacional.
Perante os factos da acusação (e só esses interessam, porque é a acusação que, nesta fase, delimita o objeto do processo), resultando que os factos foram praticados, ao menos parcialmente, em território nacional, tanto basta para assegurar a jurisdição dos tribunais portugueses e afastar a procedência da exceção de incompetência internacional suscitada pelo arguidos recorrentes, que assentava na errada invocação de que os factos integradores dos “delitos em causa na forma consumada tal como apresentados pelo Ministério Público, realizaram-se, todos eles, por via de acções prosseguidas quer em território espanhol (de onde emana o alegado ardil) quer em território inglês (de onde foram realizadas as alegadas transferências pelos ofendidos, como consequência daquele ardil)”.
Por aplicação do disposto no artigo 7º do Código Penal, os factos devem ter-se por praticados em território nacional, funcionando plenamente a norma do artigo 4º, al. a), do mesmo código e, por via do princípio da territorialidade, a jurisdição dos tribunais portugueses.
Isso sucede mesmo que posteriormente se venha a concluir que o empobrecimento dos ofendidos (resultado típico) ocorreu fora do território nacional, dado que o artigo 7º salvaguarda a jurisdição nacional mesmo nos casos de atuação meramente parcial em território nacional, inclusivamente nas situações em que a consumação do crime (designadamente do crime de resultado, como é a burla) ocorra fora do território nacional.

Texto Integral

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO

i. No dia 6 de março de 2025, foi proferido no Processo Comum Coletivo nº 285/15.8JAFAR despacho que indeferiu os requerimentos apresentados pelos arguidos AA e BB em que os mesmos vieram suscitar a incompetência dos tribunais portugueses, tendo tal despacho a seguinte fundamentação:

“O arguido AA, bem como o arguido BB (por requerimento apresentado em 15/10/2024 – fls. 5870 e ss.), vieram suscitar a incompetência dos tribunais portugueses para conhecimento dos factos.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferido tais requerimentos, face ao local indicado na acusação e o estatuído no art.º 7º do Código Penal.

Sendo certo que no libelo acusatório se faz referência a um início de actividade delituosa em território espanhol – vide facto 11 - , já no facto 15 é mencionado que os arguidos deslocaram a sua imputada actividade delituosa para Portugal, designadamente para … e, posteriormente, para …, sendo igualmente em território nacional que as quantias monetárias, remetidas através do Moneygram, eram levantadas.

Atente-se que a acusação nunca refere que as transferências foram efectuadas através de banco, ou por qualquer título de crédito, mas por uma concreta forma cujas especificidades de funcionamento não permitem considerar que tenha havido uma disposição patrimonial com o inerente empobrecimento do ofendido apenas com a ordem de transferência, realizada essa no Reino Unido.

A circunstância de ter sido em território nacional que foram realizados os levantamentos das quantias transferidas e o seu recebimento pelos arguidos, é que constitui o momento do empobrecimento, ou seja, quando ocorre a consumação do crime de burla imputado.

Sendo que, pelos factos descritos no libelo acusatório, também resulta que os demais ilícitos imputados decorreram em território nacional, é forçoso concluir que não se verifica qualquer nulidade, sendo os tribunais portugueses competentes para o conhecimento dos factos.

Notifique.”.

ii. O arguido BB, interpôs recurso de tal decisão, peticionando que a mesma seja revogada “ordenando a sua substituição por um outro que, ao abrigo nos artigos 32.º nº 1 e 2 alínea b) do Código de Processo Penal, declare a incompetência territorial dos Tribunais Portugueses, senão total, ainda que parcialmente, atento o facto do crime de burla qualificado ter sido alegadamente praticado e consumado no estrangeiro e, em consequência, ser o processo arquivado (art. 33º, n.º 4 do Código de Processo Penal).”

Extraiu da motivação as seguintes conclusões:

“1. Em 15-10-2024, o Recorrente apresentou junto do Tribunal recorrido requerimento a suscitar a incompetência territorial dos Tribunais Portugueses para a presente causa, ao abrigo do artigo 32.º nº 1 e 2 alínea b), e com o efeito previsto no artigo 33º nº 4, ambos do C.P.P.

2. Isto porque, no quadro descrito na acusação, os factos imputados aos arguidos, em particular os que

3. respeitam à subsunção aos crimes de burla (pelos quais o ora Recorrente vem acusado como cúmplice e dos quais emana o crime de associação criminosa que também lhe vem imputado e o crime de branqueamento como cúmplice) vêm consumados com o desapossamento dos alegados ofendidos das quantias em dinheiro que, por um lado, lhes foram alegadamente solicitadas em território espanhol e que, por outro lado, foram por aqueles alegadamente transferidas em território inglês.

4. Sobre tal requerimento veio a recair o despacho datado de 06-03-2025 que indeferiu a pretensão do Recorrente motivo pelo qual do mesmo se recorre com os fundamentos seguintes:

5. Embora o C.P.P., não contenha norma equivalente ao artigo 130º do Código de Processo Civil “princípio de que os tribunais não devem praticar actos inúteis”, vem entendendo a jurisprudência que este preceito do processo civil, pode ser aplicado no processo penal, ao abrigo do art.º 4.º, do C.P.P., na medida em que se harmoniza em absoluto com este, uma vez que é a proibição da prática de actos inúteis que subjaz à norma do art.º 311.º, do C.P.P. que permite ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e à norma do art.º 420.º, n.º 1, al. a), do C.P.P., onde se prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.

6. O art.º 119º, al. e), do C.P.P. comina com a nulidade insanável a violação das regras de competência do tribunal, mas estabelecendo de forma expressa uma excepção: “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32º do C.P.P.” - a saber, o caso da incompetência territorial.

7. No tocante à incompetência territorial, encontra-se sujeita a um regime próprio, fixado no art.º 33º do C.P.P., que estabelece as consequências/efeitos da declaração de incompetência territorial.

8. Assim, e ao contrário de outras causas de incompetência, a violação das regras da competência territorial (que tem que ser suscitada até ao início da audiência de julgamento, dada a limitação temporal decorrente do art.º 32º, n.º 2 do C.P.P.), tem como único efeito a remessa dos autos ao tribunal territorialmente competente, não ocasionando qualquer nulidade – art.º 33º, n.º 1, do C.P.P. - , subsistindo apenas uma exceção: não serem competentes os tribunais portugueses, caso em que o processo é arquivado (art. 33º, n.º 4 C.P.P.).

9. No nosso sistema processual penal, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites da intervenção decisória do tribunal.

10. Ora, o artigo 4º al. a) do Código Penal consagra o denominado princípio da territorialidade ao abrigo do qual, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável aos factos praticados em território português seja qual for a nacionalidade do agente.

11. Por sua vez, no artigo 7º do mesmo Código encontram-se os critérios de determinação do lugar da prática do facto e, conjugando estas disposições e por decorrência do princípio da territorialidade plasmado no artigo 4º do C.P., para que tenha lugar a aplicação da lei penal portuguesa é necessário que a infracção tenha com o território nacional qualquer um dos elementos de conexão previstos no art.º 7º C.P. (que definem o locus delicti).

12. Ainda que o lugar da prática dos factos não se localize em território nacional, com o alcance definido pelo sobredito art.º 7º do C.P., ainda assim prevê o artigo 5º do mesmo Código a possibilidade de aplicação da lei portuguesa poder vir a ter lugar a factos praticados fora do território nacional.

13. Uma vez determinada a aplicabilidade da lei penal portuguesa, em conformidade com os critérios decorrentes do C.P., é na lei geral de processo penal que se encontram previstas as disposições relativas ao deferimento de competência aos tribunais nacionais dentro da ordem jurídica interna.

14. Se o crime for praticado no estrangeiro (situação enquadrável na previsão do art.º 5º do C.P.) é competente para dele conhecer o tribunal da área onde o agente tiver sido encontrado ou do seu domicílio; e quando ainda assim não for possível determinar a competência, esta pertence ao tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime – art.º 22º do C.P.P.

15. E, por fim, se o crime for cometido em parte no estrangeiro e em parte em Portugal, atende-se ao local onde foi praticado o último acto – art.º 22º n.º 2 do C.P.P.

16. Ou seja, uma vez determinada alguma forma de conexão pelo artigo 7º do C.P., e havendo, também, actos praticados em território estrangeiro, a competência é, internamente, deferida em função do local do território nacional onde neste tiver sido praticado o último acto relevante. Assim, se o delito se apresentar na forma consumada, podem verificar-se duas hipóteses: a sua consumação ter ocorrido em território nacional – embora com actos de execução, total ou parcialmente, praticados em território estrangeiro – ou a sua consumação ter ocorrido em território estrangeiro – embora com actos de execução praticados, total ou parcialmente, em território português.

17. O enquadramento normativo acima percorrido conduz à conclusão de que as regras do Código de Processo Penal não contêm normas substantivas de deferimento de aplicação da lei penal portuguesa, pois que essas constam, em rigor, do Código Penal, acima citadas.

18. Ora, volvendo aos factos vertidos na Acusação do Ministério Público, outra conclusão não se pode sustentar senão a de que a lei penal portuguesa não lhes é aplicável, não sendo, consequentemente, os tribunais portugueses competentes para julgar estes autos.

19. Como resulta da acusação, os factos imputados aos arguidos, em particular os que respeitam à subsunção aos crimes de burla (pelos quais o ora arguido vem acusado como cúmplice e dos quais emana o crime de associação criminosa que também lhe vem imputado e o crime de branqueamento como cúmplice) vêm consumados com o desapossamento dos alegados ofendidos das quantias em dinheiro que, por um lado, lhes foram alegadamente solicitadas em território espanhol e que, por outro lado, foram por aqueles alegadamente transferidas em território inglês.

20. As condutas determinantes do suposto ardil que envolveu os ofendidos teve lugar em território espanhol, tendo ocorrido, posteriormente, em território inglês, o efeito do erróneo estado de convencimento a que aqueles foram conduzidos e que, alegadamente, os levaram, nesse território, a efectuar transferências de dinheiro (às quais corresponde o seu suposto empobrecimento).

21. Por conseguinte, os delitos em causa na forma consumada tal como apresentados pelo Ministério Público, realizaram-se, todos eles, por via de acções prosseguidas quer em território espanhol (de onde emana o alegado ardil) quer em território inglês (de onde forma realizadas as alegadas transferências pelos ofendidos, como consequência daquele ardil).

22. A jurisprudência é abundante e pacífica neste sentido: as alegadas burlas imputadas aos arguidos consumaram-se no momento em que os pretensos lesados abriram mão do seu dinheiro, perdendo o domínio, controlo e disponibilidade do mesmo – o que nunca ocorreu em território nacional, tal como não ocorreram aqui as pretensas condutas ardilosas que motivaram o referido momento em que aqueles abriram mão do seu dinheiro.

23. Exclusivamente no plano criminal, o destino das aludidas transferências não tem relevância típica para o imputado crime de burla e em nada acrescenta ao ponto de vista da realização do crime – pois que o mesmo, como referido, já se encontrava totalmente realizado, e na forma consumada, através das condutas dos alegados ofendidos ao transferirem as referidas quantias, em território estrangeiro, motivados pelo ardil originado em território espanhol.

24. Por conseguinte, são irrelevantes, não só o destino das alegadas transferências de dinheiro, bem como toda a tramitação factual que se verificou em momento posterior a esses actos de transferência, uma vez que tais vicissitudes não só não constituem actos de consumação do imputado crime de burla – já consumado pelo simples acto de transferência a que corresponde o empobrecimento dos alegados ofendidos – como, também, nunca poderiam esses descritos comportamentos ser punidos, autonomamente, a título de tentativa ou como crime consumado.

25. Ao referir-se no artigo 7º do C.P. que o facto se considera praticado nos locais em que o agente actuou por um dos modos aí referidos, o que está em causa é o facto que constitui o crime: o crime ficou consumado com a conduta dos ofendidos (ao transferirem as quantias monetárias, em Inglaterra, assim perdendo o domínio do dinheiro, ficando empobrecidos) localizando-se, apenas, em território nacional ocorrências posteriores que não revestem esse atributo.

26. De tudo se conclui não concorrer, no caso, qualquer conexão com o território português, nos termos prescritos pelos artigos 4º, 5º e 7º do C.P. a ditar, com base nestas disposições legais, a aplicação ao caso da lei substantiva portuguesa.

27. Acresce ainda que, como se adiantou acima, o mesmo raciocínio de inaplicabilidade da lei portuguesa se aplica aos factos que consubstanciam o crime de associação criminosa e o crime de branqueamento pelos quais o arguido vem acusado, na medida em que, o primeiro, diz respeito à alegada prática, como modo de vida, dos crimes de burla cometidos no estrangeiro, e o segundo porque, como dissemos, emana dos mesmos crimes de burla, sendo sua consequência – consistem, pois, em derivações exclusivas dos crimes de burla praticados no estrangeiro.

28. Aqui chegados, é entendimento do Arguido Recorrente não estar verificada qualquer das causas previstas na lei penal portuguesa, determinantes da sua própria aplicação ao caso que nos ocupa.

29. Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Tribunal recorrido quando escreve, no despacho recorrido, o seguinte: “Atente-se que a acusação nunca refere que as transferências foram efectuadas através de banco, ou por qualquer título de crédito, mas por uma concreta forma cujas especificidades de funcionamento não permitem considerar que tenha havido uma disposição patrimonial com o inerente empobrecimento do ofendido apenas com a ordem de transferência, realizada essa no Reino Unido.”

30. Desde logo, a acusação do Ministério Público não deixa margem para dúvidas sobre a origem/proveniência das quantias monetárias que terão sido desembolsadas pelos ofendidos de nacionalidade britânica, deixando bem claro que as mesmas provêm do Reino Unido e que foi neste local que os ofendidos diligenciaram pelas transferências (factos 10 12 17 18 20 21 26 27 28 30 32 e 37 da acusação) – o próprio Tribunal recorrido assim o consente.

31. Por outro lado, a acusação do Ministério Público também refere que as transferências de dinheiro com origem no Reino Unido foram realizadas através de várias operadoras financeiras, de entre elas a Moneygram.

32. Ora, como vimos dizendo, o crime de burla, como crime material ou de resultado, consuma-se com a saída das coisas ou dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vítima – entendimento pacífico e unânime na jurisprudência.

33. E, embora tenha de existir a intenção de enriquecimento ilegítimo, não se exige para a consumação do crime a concretização desse enriquecimento, pelo que, novamente, não faz sentido que o tribunal recorrido consigne no seu despacho que não tem elementos que lhe permitam apurar se o empobrecimento dos ofendidos se verificou no momento da ordem de transferência, efectuada pelos próprios.

34. Pelo que, sejam quais forem as “especificidades de funcionamento” do método com que as transferências foram realizadas pelos ofendidos britânicos, dúvidas não existem de que abriram mão do seu dinheiro no local onde ordenaram as transferências (Reino Unido).

35. Mas ainda que assim não fosse, já veio o Supremo Tribunal de Justiça – vide Acórdão acima identificado – decidir que, caso a Acusação não concretize os termos em que foram efectuadas as transferências (dúvida que o Tribunal recorrido parece manifestar no excerto do despacho recorrido acima transcrito), deve então considerar-se que é com a própria ordem de transferência – realizada por alegados ofendidos de nacionalidade britânica e neste território – que estes perderam a disponibilidade sobre as quantias transferidas, devendo considerar-se consumado o crime nesse momento (isto é, com o desembolsar do dinheiro, no Reino Unido, pelos ofendidos britânicos).”.

iii. Também o arguido AA interpôs recurso de tal decisão, visando ver declarada “a nulidade dos autos nos termos 119.º e) do CPP, a absolvição do Arguido, e arquivamento dos presentes autos nos termos do disposto no artigo 33.º n.º 4 do CPP, por incompetência dos tribunais portugueses.”.

Extraiu da motivação as seguintes conclusões:

“I. O Arguido, no passado dia 20/09/2024 apresentou a sua contestação e rol de testemunhas, no qual demonstrou e apresentou argumentos factuais e de direito relativos à incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecer da presente causa por falta de elementos de conexão do território nacional português com os factos imputados ao Arguido.

II. A decisão ora recorrida, veio atribuir a competência aos tribunais portugueses, em incumprimento do disposto no artigo 32.º n.º 1, 19.º e 10 do CPP e ainda em incumprimento do disposto nos artigos 4.º a 7.º do CP.

III. Com objetivo na reapreciação da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de … que declarou a competência absoluta dos tribunais portugueses para julgar os factos imputados, vem o ora Arguido e Recorrente apresentar o seu recurso, por entender que estamos perante uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º e) do CPP, uma vez que os tribunais portugueses, a seu ver e salvo melhor opinião, não são competentes para conhecer dos factos em discussão nos presentes autos.

IV. O recurso fundamenta-se na incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer dos factos descritos na acusação, que ocorreram integralmente fora do território nacional, sem conexão territorial ou internacional que sustente a competência da jurisdição portuguesa,

V. A decisão recorrida, notificada a 10 de março de 2025, na ótica do Recorrente limitou-se a adotar a tese do Ministério Público deduzida tanto na acusação, como no requerimento em resposta à contestação do Arguido, sem analisar os argumentos do Arguido sobre a nulidade por incompetência absoluta, violando o artigo 119.º, al. e), do CPP.

VI. Porquanto a competência material e funcional dos tribunais portugueses é regulada pelo artigo 10.º do CPP, complementado pelas leis de organização judiciária, que não se aplicam aos factos em causa nos presentes autos.

VII. O artigo 19.º, n.º 1, do CPP consagra o princípio do locus delicti, determinando que o tribunal competente é aquele da área onde o crime se consumou, sendo entendimento do Arguido e ora Recorrente o que não ocorreu em Portugal.

VIII. A consumação do crime de burla, como crime de resultado, ocorre no momento em que a vítima perde a disponibilidade do bem ou valor, conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 22-11-2006, e ainda o Acórdão do STJ de 21-06-2006, processo n.º 06P1055

IX. A acusação do MP alega que as vítimas transferiram valores via MoneyGram a partir do Reino Unido, sendo o empobrecimento consumado no momento da entrega ao agente MoneyGram, e não com o alegado levantamento do Arguido em Portugal.

X. O artigo 4.º do CP estabelece o princípio da territorialidade, aplicando a lei penal portuguesa apenas a factos praticados em território nacional, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, o que a decisão ora recorrida parece ignorar ou não querer conhecer.

XI. O artigo 7.º, n.º 1, do CP define o lugar da prática do facto como aquele onde o agente atuou ou o resultado típico se produziu, no caso e no seguimento da tese da acusação do MP, alegadamente, no Reino Unido (planeamento, indução em erro e perda de disponibilidade dos montantes pecuniários da esfera jurídica das alegadas vítimas) e Espanha (operações de call center).

XII. Nunca em Portugal, porquanto a ocorrer, o resultado típico já havia ocorrido em território que não o território português.

XIII. O artigo 5.º do CP prevê a aplicação da lei portuguesa a factos praticados no estrangeiro apenas em casos específicos, nenhum dos quais aplicável aos factos imputados, que não envolvem crimes listados nem condições de extradição.

XIV. O despacho recorrido reconhece que as ordens de transferência foram dadas no Reino Unido, momento em que os valores saíram da disponibilidade das vítimas, confirmando que a consumação ocorreu fora de Portugal.

XV. Mas não é capaz de reconhecer que foi nesse momento que, a ter ocorrido, ocorreu o referido facto ilícito.

Porquanto,

XVI. Os elementos constitutivos do tipo objetivo do crime de burla, previsto e punido nos termos do artigo 217.º do Código Penal, têm sido tradicionalmente identificados na jurisprudência como na verificação de um prejuízo patrimonial, resultante da indução de outrem em erro ou engano, o qual o leve à prática de atos que originem tal prejuízo, em benefício próprio ou de terceiro, sendo esse erro provocado através de manobras fraudulentas ou comportamentos astuciosamente engendrados.

XVII. Sendo que, obviamente, apenas ocorrerá quando a vítima perder da sua esfera jurídica a disponibilidade dos valores que entregou pelo erro em que foi induzida, momento esse que, a ter ocorrido, ocorreu no Reino Unido.

XVIII. Assim, também é entendimento do Recorrente, que a ocorrer, as alegadas vítimas apenas perderam a disponibilidade dos valores da sua esfera jurídica ao entregá-los ao agente do MoneyGram no Reino Unido, conforme a natureza do serviço MoneyGram,

XIX. E não em momento posterior, quando o MP alega que o Arguido e ora Recorrente procedeu a levantamentos desses valores.

XX. A MoneyGram, ao contrário de instituições bancárias, não estabelece contratos de depósito, sendo os valores considerados fora da disponibilidade da vítima no momento da entrega ao agente, e não no levantamento dos respetivos valores ou na autorização da transferência.

XXI. A MoneyGram opera como serviço de transferência imediata, sem retenção dos valores, pelo que o empobrecimento da vítima ocorre no momento da entrega, e não no levantamento, conforme a acusação.

XXII. Nenhum elemento objetivo do crime de burla, previsto no artigo 217.º do CP, conforme a tese da acusação do MP ou da decisão ora recorrida foi praticado ou sequer ocorreu em território português, ao contrário do que quer dar a entender a acusação do MP ou o despacho recorrido.

XXIII. Pelo que, ao entender que os tribunais portugueses são competentes, a decisão recorrida carece de fundamentação legal ou factual adequada, ao não analisar as normas de competência internacional (artigos 4.º a 7.º do CP) nem os argumentos do Arguido, ora Recorrente, ou sequer ao analisar a natureza dos serviços prestados pela instituição MoneyGram.

XXIV. A tese do MP e do despacho recorrido ignora que, conforme alega, terem ocorrido os referidos factos, o crime de burla se consuma no momento em que a alegada vítima ou vítimas remetem o referido valor pela plataforma MoneyGram, não sendo o levantamento pelo Arguido elemento do tipo legal do crime, porquanto, não podem ser declarados competentes os tribunais portugueses para conhecer da causa.

XXV. Neste sentido, a competência internacional dos tribunais portugueses é limitada aos casos previstos nos artigos 4.º a 6.º do CP, os quais, pela simples verificação do momento em que os valores saíram da disponibilidade da esfera das alegadas vítimas, não se aplicam aos factos imputados ao Arguido e ora Recorrente.

XXVI. Os crimes de branqueamento e associação criminosa imputados ao Arguido estão intrinsecamente ligados à alegada burla, cujos atos constitutivos a terem ocorrido (o que apenas se admite por mera hipótese) ocorreram fora de Portugal, reforçando a incompetência dos tribunais portugueses, e porquanto não deverá também o respetivo processo correr em território português no que a estes diz respeito.

XXVII. O despacho recorrido violou assim as regras de competência territorial, configurando uma nulidade insanável nos termos do artigo 119.º, al. e), do CPP.

XXVIII. Porquanto, o processo deve ser arquivado, com a absolvição do Arguido, nos termos do artigo 33.º, n.º 4, do CPP, por violação das regras de competência, porquanto nem acusação ou sequer o despacho recorrido demonstram qualquer conexão territorial com Portugal que justifique a competência dos tribunais portugueses, violando o artigo 7.º do CP para a presente factualidade.

XXIX. A ausência de atos praticados em Portugal exclui a aplicação da lei penal portuguesa, nos termos do artigo 4.º do CP, salvo exceções não verificadas no caso.

XXX. A competência internacional deve respeitar os critérios do artigo 5.º do CP, que não abrange os factos imputados, que a terem sido praticados, tiveram de ser praticados fora de território nacional português, conforme supra demonstrado.

XXXI. Sendo que é também entendimento do Arguido e ora Recorrente que a decisão recorrida não fundamentou a competência dos tribunais portugueses, limitando-se a seguir a acusação do MP, o que constitui violação do dever de fundamentação 97.º n.º 5 do CPP.

XXXII. A nulidade invocada pelo Arguido, por incompetência absoluta, deve ser reconhecida, com o consequente arquivamento dos autos, nos termos do artigo 119.º, al. e) e 33.º n.º 4 do CPP.

XXXIII. O Arguido e ora Recorrente, AA, deve ser absolvido por violação das regras de competência, com o arquivamento do processo, nos termos do artigo 33.º, n.º 4, do CPP.

XXXIV. Requer-se que o Tribunal da Relação de Évora declare a incompetência territorial dos tribunais portugueses, anule os autos e absolva o Arguido, por manifesta violação das normas de competência.”.

iv. Ambos os recursos foram admitidos, por legais e tempestivos.

v. O Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela sua improcedência, tendo concluído em ambos os casos do seguinte modo:

“1ª Salvo melhor opinião, não assiste razão ao ora recorrente.

2ª Primeiramente, cumpre sublinhar que o objeto processual é delimitado pela narrativa constante do libelo acusatório proferido nos autos.

3ª Ora, tal como assertivamente apontado no despacho judicial ora em crise, o libelo acusatório narra que o início da atividade delituosa se verificou em território espanhol – vide facto 11 -, sendo que no facto 15 é mencionado que os arguidos deslocaram a sua imputada atividade delituosa para Portugal, designadamente para … e, posteriormente, para …, sendo igualmente em território nacional que as quantias monetárias, remetidas através do Moneygram, eram levantadas.

4ª Por seu turno, tal como assertivamente apontado no despacho judicial ora em crise, o libelo acusatório não refere que as transferências foram efetuadas através de banco, ou por qualquer título de crédito, mas por uma concreta forma cujas especificidades de funcionamento não permitem considerar que tenha havido uma disposição patrimonial com o inerente empobrecimento do ofendido apenas com a ordem de transferência, realizada essa no Reino Unido.

5ª Ora, conjugando essa circunstância com aqueloutra de ter sido em território nacional que foram realizados os levantamentos das quantias transferidas e o seu recebimento pelos arguidos, é que constitui o momento do empobrecimento, ou seja, quando ocorre a consumação do crime de burla imputado.

6ª Por conseguinte, conjugando essas circunstâncias factuais com a demais factualidade narrada no libelo acusatório que descreve que os demais ilícitos imputados aconteceram em território nacional, é linear e objetivo que não se verifica qualquer nulidade, sendo, por isso, os Tribunais Portugueses competentes para o conhecimento dos factos imputados ao ora recorrente, tendo o despacho ora em crise respeitado os comandos processuais invocados pelo mesmo no presente recurso.”.

vi. Instruído o apenso dos recursos, subiu o mesmo a este Tribunal da Relação, tendo sido aberta vista ao Ministério Público, em cumprimento do disposto no artigo 416º do CPP.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos, nos seguintes termos:

• A acusação descreve que a atividade criminosa teve início em Espanha, mas foi transferida para Portugal (… e …), onde os arguidos desenvolveram a sua atuação, factualidade que, sem mais e de per si, coloca em causa o cerne do argumentário de ambos os arguidos;

• As transferências não foram realizadas por via bancária ou título de crédito, mas sim através do MoneyGram, cujo funcionamento específico afasta a consumação do crime no momento da mera ordem de transferência. Na verdade, como refere a decisão recorrida, não é inequívoco, como pretendido pela motivação de ambos os recursos, o funcionamento destas transferências, razão pela qual se entende não ser possível avaliar o verdadeiro momento da consumação do crime de burla objeto dos autos sem produção de prova sobre tal realidade. Quer dizer, não é possível tomar uma decisão sobre esse tema sem decidir sobre o objeto dos autos e de forma a ele prévia o que, sem mais, igualmente inviabiliza a procedência substantiva dos recursos;

• O empobrecimento das vítimas e a consumação da burla apenas ocorreram quando os valores foram levantados e recebidos pelos arguidos em território nacional: é o que está em discussão e terá de ser avaliado em sede de produção de prova e não previamente a esta, pelas razões antecedentemente explicitadas;

• Assim, existindo atos de execução e consumação em Portugal, os tribunais portugueses são plenamente competentes para conhecer dos factos;

• Adita-se que, diversamente do pretendido por ambos os arguidos recorrentes, igualmente não são irrelevantes os crimes conexos para o pretendido efeito de estabelecimento da competência dos tribunais portugueses, como o de branqueamento, necessariamente subsequente ao de burla e com atos de execução em território nacional.

Em conclusão, entende o Ministério Público que o despacho recorrido respeitou os comandos legais e não padece de qualquer nulidade, pelo deve a exceção de incompetência invocada pelos arguidos ser declarada manifestamente improcedente.

vii. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, tendo sido apresentada resposta ao parecer pelo arguido BB, mantendo os termos do seu recurso.

viii. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

*

II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

Nos presentes recursos e considerando as conclusões extraídas pelos recorrentes das respetivas motivações, as questões a apreciar e decidir são relacionadas com:

a) a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação;

b) a incompetência internacional dos tribunais portugueses para o julgamento dos crimes em causa.

*

III – FUNDAMENTAÇÃO.

Para apreciação das questões colocadas pelos recorrentes, importa ter presente o teor da acusação deduzida contra os arguidos no encerramento do inquérito, designadamente quanto aos factos e crimes ali imputados, que são os seguintes (transcrição parcial, sem inclusão dos quadros detalhados, por desnecessária para a apreciação dos recursos):

“1. Entre os anos de 2012 e 2015, os arguidos CC e DD organizaram, criaram e montaram um esquema internacional com estrutura hierarquizada e com comando vertical, com vista para à obtenção indevida de quantias junto de cidadãos do Reino Unido e a sua posterior recepção em Portugal, através de empresas de transferência de dinheiro e/ou de contas bancárias de terceiros, para dissimular a sua origem ilícita, mas em relação às quais tinha o domínio.

Assim,

2. Os arguidos CC e DD angariaram como recrutadores massivos das chamadas "money mules" (receptores de transferências bancárias com origem ilícita) os arguidos AA, EE e BB.

3. Estes arguidos AA, EE e BB, por seu turno, recrutaram, em Portugal, as ditas "money mules" para receberem transferências de dinheiro provenientes de cidadãos do Reino Unido — o que fizeram, tanto directamente, como por intermédio de terceiros, como o arguido FF.

4. Os monev mules/receptores dos fundos angariados pelo arguido BB — nomeadamente, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, XX, YY, ZZ, AAA, foram, essencialmente, pessoas que com ele trabalhavam no ramo da construção civil, sendo muitos deles oriundos de países do leste da Europa.

5. Os monev mules/receptores dos fundos angariados pelo arguido EE — nomeadamente, BBB, CCC, DDD, EEE, FFF, GGG, HHH, III, JJJ, KKK, LLL, MMM, NNN, OOO, PPP, QQQ, RRR, SSS, TTT, UUU, VVV, XXX, YYY, ZZZ — foram, essencialmente, seus conhecidos das saídas de diversão nocturna em … e …, sendo a sua maioria cidadãos brasileiros.

6. Os money mules/receptores dos fundos angariados pelo arguido FF — nomeadamente, AAAA, BBBB, CCCC, DDDD — são cidadãos portugueses residentes na zona de …, onde estudou e residiu.

7. O arguido AA angariou muito poucos money mules directamente, tendo, contudo, utilizado as contas bancárias da mãe — EEEE — e da filha — FFFF para a recepção dos referidos fundos ilícitos em quantias melhor descritas infra, incompatíveis com os respectivos rendimentos lícitos.

Posto isto,

8. Durante o ano de 2012, os arguidos CC e DD tiveram acesso a uma base de dados com os contactos de cidadãos oriundos do Reino Unido que eram titulares de participações em unidades turísticas em regime de direito real de habitação periódica (doravante, DRHP) localizadas em Espanha.

9. O acesso a essa base de dados foi feito por intermédio das sociedades onde aqueles arguido(s) trabalharam, designadamente a GGGG, a HHHH e a IIII.

10, Na posse dessa informação, os arguidos CC engendraram um plano para lograr que esses titulares do DRHP lhes enviassem quantias monetárias do Reino Unido sob falsos pretextos relacionados com essas unidades turísticas.

11. Para tanto, os arguidos CC e DD socorreram-se de um call center não identificado, a operar em território espanhol para comunicar a esses titulares do DRHP que as respectivas unidades turísticas estavam em processo de insolvência, em processo de venda ou outro constrangimento financeiro e/ou legal, sendo necessário que os mesmos transferissem quantias monetárias para fazer face ao pagamento de custas judiciais, emissão de certidões, pagamento de impostos e custos similares.

12. Nessa senda, por intermédio dos operadores desse call center, os arguidos CC e DD instruíram esses titulares DRHP a transferirem quantias monetárias para pagamento das aludidas despesas fictícias, através de operadoras financeiras como a Money Gram, e com destino aos "money mules"/receptadores, entretanto angariados pelos arguidos como parte integrante do citado esquema.

13. Os referidos cidadãos britânicos assim fizeram, o que lhes causou um prejuízo patrimonial e o correspondente enriquecimento indevido por parte dos arguidos.

14. Os cidadãos britânicos titulares das referidas participações de "time sharing", enganados nos termos descritos pelos arguidos CC e DD que fizeram transferências bancárias, através da MoneyGram e afins, foram os seguintes, identificados infra por nome, data de nascimento e respectivo documento de identificação:

(…)

15. Em finais de 2012, os arguidos CC e DD deslocaram a referida operação de contactos com os cidadãos ingleses para o escritório sito na Avenida …, …, criando para esse efeito a firma "JJJJ".

16, Depois, em finais de 2013, mudaram o escritório para a loja 1-A, da Rua …, ….

17. Entretanto, por modo a assegurar o recebimento dessas quantias monetárias em território nacional, os arguidos CC e DD integraram nesse seu plano os arguidos EE, AA e BB como angariadores de destinatários dessas remessas monetárias (moneymules), provenientes do Reino Unido, nas operadoras financeiras Money Gram, mediante o pagamento de uma comissão de cerca de 7 a 8% do valor de cada levantamento, remunerando estes, por seu turno, as money mules que angariavam com uma comissão de cerca de 0,5 a 2,5% do valor de cada levantamento.

18. Nessa sequência, em conjugação de esforços e de vontades, mediante instruções dos arguidos CC e DD, o arguido EE integrou o arguido KKKK nesse plano para o auxiliar na angariação de destinatários dessas remessas monetárias provenientes do Reino Unido pela operadora financeira Money Gram mediante o pagamento de comissão nos termos supra descritos.

19. Em consequência, essas remessas monetárias provenientes do Reino Unido tiveram como destino os seguintes money mules/receptores dos fundos, infra identificados por data de nascimento e documento de identificação que apresentavam para proceder ao levantamento do dinheiro:

(…)

20. Seguidamente, em conjugação de esforços e de forma concertada, mediante instruções dos arguidos CC e DD, os arguidos EE e KKKK recrutaram 24 destinatários nas localidades de …, … e … para recebimento dessas quantias monetárias provenientes do Reino Unido mediante o pagamento das referidas comissões.

21. Entre 23 de Maio de 2013 e 16 de Abril de 2014, na senda do urdido plano, o arguido EE logrou que os seus recrutados levantassem as seguintes quantia monetárias provenientes do Reino Unido na operadora financeira Money Gram (cronologicamente ordenadas), o remetidas pelos titulares das mencionadas participações em unidades turísticas, por impulso dos contactos telefónicos efectuados pelo call center, sob orientação dos arguidos CC e DD, no valor global de E58.888,20 e de €165.806,18:

(…)

22. Em suma, este arguido EE, no citado período, logrou receber 92 levantamentos (de quantias diversas, melhor id. no quadro supra) provenientes de 25 ofendidos britânicos, fazendo uso de 40 money mules por si recrutadas para esse efeito.

23. Após cada um desses levantamentos, o arguido EE, em conjugação de esforços, vontades e de forma concertada com os arguidos CC e DD, remunerou cada um dos seus recrutados que efectuaram os levantamentos acima indicados, por regra, com quantias que variavam entre os 0,5% a 2,5 0 0 do valor de cada levantamento.

24. Seguidamente - depois de descontar o valor a pagar aos seus recrutados, que retirava da sua própria comissão que também variava entre os 7% e os 8% do valor de cada levantamento - o arguido EE entregou o remanescente de cada uma das remessas monetárias acima indicadas aos arguidos CC e DD.

25. No final do mês de Abril de 2014, por motivos não apurados, o arguido EE abandonou essa actividade, ausentando-se para paradeiro incerto.

26. Nessa sequência, por modo a assegurar a manutenção do recebimento dessas quantias monetárias em território nacional, os arguidos CC e DD integraram nesse seu plano o arguido AA como angariador de destinatários dessas remessas monetárias provenientes do Reino Unido, essencialmente pela operadora financeira Money Gram, mediante o pagamento de comissões — nos mesmos moldes já descritos anteriormente - na medida em que já tinha experiência como recrutado do arguido EE.

27. Destarte, em conjugação de esforços, vontades e de forma concertada, seguindo as instruções dos arguidos CC e DD, o arguido AA integrou os arguidos BB e FF nesse plano para o auxiliarem na angariação de destinatários das aludidas remessas monetárias provenientes do Reino Unido, pela operadora financeira Money Gram mediante o pagamento de comissões nas aludidas percentagens.

28. Assim, na senda desse plano, entre 10 de Julho de 2014 e 26 de Outubro de 2015, o arguido AA logrou que os seus recrutados levantassem as seguintes quantia monetárias provenientes do Reino Unido, na operadora financeira Money Gram, remetidas pelos titulares das mencionadas participações em unidades turísticas, por impulso dos contactos telefónicos efectuados pelo call center, sob orientação dos arguidos CC e DD, no valor global de 60.052,30€:

(…)

29. Em suma, este arguido AA, no citado período, logrou receber 19 levantamentos (de quantias diversas, melhor id. no quadro supra) provenientes de 12 ofendidos britânicos, fazendo uso de 7 money mules/receptores por si recrutados para esse efeito.

30. Entre 6 de Agosto de 2014 e 30 de Março de 2016, na prossecução do descrito plano, o arguido BB, em conjugação de esforços, vontades e de forma concertada com os arguidos CC e DD, logrou que os seus recrutados levantassem as seguintes quantias monetårias provenientes do Reino Unido, pela operadora financeira Money Gram, remetidas pelos titulares das mencionadas participaqöes em unidades turisticas, por impulso dos contactos telef6nicos efectuados pelo call center, sob orientaqäo dos arguidos CC e DD, no valor global de e de €462.856,18:

(…)

31. Em suma, este arguido BB, no citado período, logrou efectuar 170 levantamentos (de quantias diversas, melhor id. no quadro supra) provenientes de 49 ofendidos britânicos, fazendo uso para o efeito de 56 money mules/receptores por si recrutados.

32. Por sua vez, o arguido FF integrou a arguida LLLL nesse plano para o auxiliar na angariação de destinatários dessas remessas monetárias provenientes do Reino Unido na operadora financeira Money Gram mediante o pagamento de comissões no valor máximo de €50, sendo por vezes €20, outras €30, por cada levantamento.

33. Seguidamente, em conjugação de esforços, vontades e de forma planeada, mediante as instruções dos arguidos CC e DD, os arguidos FF e LLLL recrutaram 5 destinatários na localidade de … — designadamente, MMMM, NNNN, OOOO, PPPP e QQQQ - para recebimento dessas quantias monetárias provenientes do Reino Unido mediante o pagamento da comissão de 0,5 a 1% do valor de cada levantamento que fizessem.

34. Entretanto, na prossecução do citado plano, os arguidos FF e LLLL, em conjugação de esforços, vontades e de forma concertada com os arguidos CC e DD, que lhes forneciam as directrizes, entre 23 de setembro de 2014 e 29 de Junho de 2015, lograram que os seus recrutados levantassem na operadora financeira Money Gram as seguintes quantias monetárias, provenientes do Reino Unido, remetidas pelos titulares das mencionadas participações em unidades O turísticas, por impulso dos contactos telefónicos efectuados pelo cal/ center, sob orientação dos arguidos CC e DD, no valor global de 65.133,28€:

(…)

35. Em síntese, estes arguidos, FF e LLLL, no citado período, lograram efectuar 21 levantamentos (de quantias diversas, melhor id. no quadro supra) provenientes de 15 ofendidos britânicos, fazendo uso para o efeito de 5 money mules/receptores por si recrutados.

36. Seguidamente, após descontar a sua comissão e a dos seus recrutados, o os arguidos FF e LLLL entregaram o remanescente de cada uma das remessas monetárias acima indicadas ao arguido AA que, por seu turno, entregava aos arguidos CC e DD, mediante o recebimento da sua comissão.

37. As enunciadas remessas monetárias do Reino Unido foram provenientes de 83 vítimas/ofendidos, totalizaram 302 transferências e foram levantadas em Portugal por 114 money mules (receptores directos), junto de diversas operadoras financeiras, maioritariamente a da MoneyGram, situadas no Centro e Sul do país, sendo que ascenderam a €141.672,33 e €753.847,94.

38. Tais quantias monetárias foram entregues por essas money mules/receptores aos recrutadores massivos, os arguidos EE, AA, BB e FF e recrutadores intermédios arguidos LLLL e KKKK, que, por sua vez, entregaram essas quantias monetárias aos arguidos CC e DD.

39. As zonas de actuação preferenciais de cada um dos arguidos recrutadores massivos/intermédios foram as seguintes:

a. o arguido BB na localidade de …;

b. os arguidos EE e KKKK na zona de …, … e, embora com menos expressão, na zona de …;

c. o arguido AA, em actuação directa/própria na zona do … e por intermediação no … e …;

d. os arguidos FF e LLLL na área de ….

40. O arguido AA, através de conta bancária própria — com o IBAN … — e através das contas bancarias de sua mãe e de sua filha – EEEE e FFFF, respectivamente — titulares das contas bancárias com os IBAN: …, IBAN …, …, …, …, …, … e …, a qual tinha associada a conta de depósito a prazo com o n.0… do … - creditou, entre Janeiro de 2013 e Dezembro de 2016 a quantia de €1.022.423,18, sendo que só recepcionou, a título de rendimentos elou remunerações a quantia de €73.144,8.

41. Entre esses créditos nas contas bancárias do arguido AA e do seu agregado familiar directo, conta-se uma transferência do arguido o CC, em Abril de 2014, no valor de €1.000,00, com proveniência da conta de CC com o IBAN … para a conta da referida mãe do arguido, EEEE, com o IBAN … ( vide anexos bancários I a 3)

42. O arguido CC é titular de, pelo menos, as seguintes contas bancárias em Portugal (vide anexo bancário 6):

a. No Banco … com 0 IBAN …

b. No … com 0 IBAN …

3 (Anexo Bancário 6)

c. No … com 0 IBAN …, co titulada com RRRR.

43. A referida sociedade do arguido CC, JJJJ, Lda., NIPC … - era titular de, pelo menos, as seguintes contas bancárias (vide anexo bancário 7):

a. No …, a fls. 93/101, com 0 IBAN …;

b. No … com 0 IBAN …

c. No … com 01BAN ….

44. Com excepção do arguido BB — que possui uma empresa de construção de estruturas em … — não são conhecidas aos demais arguidos quaisquer profissões remuneradas com carácter de estabilidade.

45. Os arguidos CC e DD, em conjugação de esforços e vontades, agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de induzir os identificados titulares de time sharing em erro e, concomitantemente, determiná-los a efectuar as mencionadas transferências bancárias a seu favor, circunstância que provocou prejuízo às vítimas/ofendidos e o correspectivo enriquecimento ilegítimo dos arguidos, fazendo dessa actividade o seu modo de vida, em função dos mencionados elevados valores monetários envolvidos, que lhe permitiram sustentar-se economicamente apenas com esses fundos.

46. O arguido EE agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de prestar auxílio material ao plano dos arguidos CC e DD de induzir os mencionados titulares de time sharing em erro e, concomitantemente, determiná-los a efectuar as mencionadas o transferências bancárias a seu favor, circunstância que provocou prejuízo às vítimas ofendidos e o seu enriquecimento ilegítimo.

47. Os arguidos AA, FF e BB agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de prestar auxílio material ao plano dos arguidos CC e DD de induzir os mencionados titulares de time sharing em erro e, concomitantemente, determiná-los a efectuar as mencionadas transferências bancárias a seu favor, circunstância que provocou prejuízos às vítimas/ofendidos e o seu enriquecimento ilegítimo.

48. Os arguidos CC, DD, EE, AA, FF, BB, KKKK e LLLL agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de dissimularem a proveniência ilícita das mencionadas transferências bancárias provenientes do Reino Unido.

49. Os arguidos CC, DD, EE, AA, FF e BB agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de pertencerem a um grupo, com estrutura hierarquizada e comando vertical, destinado à perpetração dos mencionados ilícitos.

Pelo exposto, os arguidos:

> CC e DD praticaram, em co-autoria, 83 (oitenta e três) crimes de burla qualificada (previsto e punível pela alínea b) do nº 2 do art. 218º do Código Penal, por referência ao nº 1 do art. 217º do mesmo diploma legal);

> EE, AA, FF e BB praticaram 83 (oitenta e três) crimes de burla qualificada (previsto e punível pela alínea b) do nº 2 do art. 218º do Código Penal, por referência ao nº 1 do art. 217º do mesmo diploma legal) na qualidade de cúmplices (cf. nº 1 do art. 27º do Código Penal);

> CC, DD, EE, AA, FF, BB, KKKK e LLLL praticaram, em coautoria, de 1 (um) crime de branqueamento (previsto e punível pelo nº 2 do art. 368ºA do Código Penal);

> CC, DD, EE, arguidos AA, FF e BB praticaram 1 (um) crime de associação criminosa (previsto e punível pelo nº 1 do art. 199º do Código Penal)”.

Para além desse teor da acusação deduzida e da circunstância de não ter sido requerida a fase de instrução, relevam para apreciação dos recursos apenas as circunstâncias mencionadas no relatório supra.

Cumpre apreciar.

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Da Falta de fundamentação da decisão recorrida:

O recorrente AA veio suscitar a nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação, concluindo do seguinte modo:

“Sendo que é também entendimento do Arguido e ora Recorrente que a decisão recorrida não fundamentou a competência dos tribunais portugueses, limitando-se a seguir a acusação do MP, o que constitui violação do dever de fundamentação 97.º n.º 5 do CPP”.

A falta de razão do recorrente é clamorosa.

Vejamos.

Tem assento na Lei Fundamental — artigo 205°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa — a imposição da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, devendo esta ser feita na forma prevista na lei.

Por sua vez, estabelece-se no artigo 97°, n° 5, do Código de Processo Penal, que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

A falta de fundamentação da sentença integra nulidade, conforme resulta dos artigos 374°, n° 2 e 379°, n°1, alínea a), do CPP, mas a omissão de fundamentação de despacho decisório que não seja de mero expediente (com exceção da situação prevista no n° 6, do artigo 194° e da decisão instrutória, esta face ao disposto nos artigos 308°, n° 2 e 283°, n° 3, do mesmo diploma) constitui mera irregularidade.

O arguido AA, notificado da decisão recorrida por via postal expedida em 10 de março de 2025, não veio arguir tempestivamente a irregularidade dessa decisão, tendo apenas em sede de recurso interposto em 22 de abril de 2025 suscitado a questão da falta de fundamentação. Daí decorre, inelutavelmente, a sanação de qualquer desconformidade que se pudesse arguir em termos de deficiência da fundamentação da decisão recorrida.

Mas mesmo que assim não fosse, sempre se constataria a improcedência da questão suscitada.

Não ocorre qualquer falta de fundamentação no despacho proferido em 06.03.2025 – tratando-se de despacho que não é de mero expediente, o dever de fundamentação mostra-se cumprido com a indicação concreta e especificada das circunstâncias de facto vertidas na acusação (factualidade processual relevante para a apreciação dos requerimentos apresentados pelos arguidos) e, por outro lado, com a expressa alusão ao artigo 7º do Código Penal como motivação de direito da decisão.

Com efeito, destinando-se o despacho proferido a proceder à apreciação dos requerimentos apresentados pelos ora recorrentes em que arguiram a incompetência internacional dos tribunais portugueses, a sua fundamentação tem apenas por objeto a análise de circunstâncias processuais que pudessem sustentar a pretensão dos arguidos, em face daquilo que a lei dispõe na matéria.

Impõe-se, pois, concluir que o despacho proferido em 06.03.2025 não carecia de mais aprofundada fundamentação, constituindo apreciação concretizada e suficiente da questão que o Tribunal devia resolver.

Não ocorre falta de fundamentação.

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Da alegada incompetência internacional dos tribunais portugueses:

Os recorrentes argumentam que os “factos imputados aos arguidos, em particular os que respeitam à subsunção aos crimes de burla ([…] dos quais emana o crime de associação criminosa que também […] vem imputado e o crime de branqueamento […]) vêm consumados com o desapossamento dos alegados ofendidos das quantias em dinheiro que, por um lado, lhes foram alegadamente solicitadas em território espanhol e que, por outro lado, foram por aqueles alegadamente transferidas em território inglês”.

Consideram que ao “referir-se no artigo 7º do C.P. que o facto se considera praticado nos locais em que o agente atuou por um dos modos aí referidos, o que está em causa é o facto que constitui o crime: o crime ficou consumado com a conduta dos ofendidos (ao transferirem as quantias monetárias, em Inglaterra, assim perdendo o domínio do dinheiro, ficando empobrecidos) localizando-se, apenas, em território nacional ocorrências posteriores que não revestem esse atributo”.

Daí concluem os recorrentes que não ocorre, no caso, qualquer conexão com o território português, nos termos prescritos pelos artigos 4º, 5º e 7º do C.P. a ditar, com base nestas disposições legais, a aplicação ao caso da lei substantiva portuguesa, no que se refere aos crimes de burla (alegadamente praticados no estrangeiro), estendendo a inaplicabilidade da lei portuguesa aos factos consubstanciadores dos crimes de associação criminosa e de branqueamento, na medida em que consistem, pois, em derivações exclusivas dos crimes de burla praticados no estrangeiro.

Cumpre apreciar.

A incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal resulta da violação dos critérios legais plasmados nos termos conjugados dos artigos 4º a 7º do Código Penal, preceitos que estabelecem:

Artigo 4.º

Aplicação no espaço: princípio geral

Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados:

a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou

b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses.

Artigo 5.º

Factos praticados fora do território português

1 - Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:

a) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 221.º, 262.º a 271.º, 308.º a 321.º, 325.º a 334.º, 336.º a 345.º;

b) Contra portugueses, por portugueses que viverem habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados;

c) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 144.º-A, 144.º-B, 154.º-B e 154.º-C, 159.º a 161.º, 278.º a 280.º, 335.º, 372.º a 374.º, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português;

d) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 171.º, 172.º, 174.º, 175.º e 176.º a 176.º-B e, sendo a vítima menor, os crimes previstos nos artigos 144.º, 163.º e 164.º:

i) Desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português; ou

ii) Quando cometidos por portugueses ou por quem resida habitualmente em Portugal; ou

iii) Contra menor que resida habitualmente em Portugal;

e) Por portugueses, ou por estrangeiros contra portugueses, sempre que:

i) Os agentes forem encontrados em Portugal;

ii) Forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e

iii) Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português;

f) Por estrangeiros que forem encontrados em Portugal e cuja extradição haja sido requerida, quando constituírem crimes que admitam a extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português;

g) Por pessoa colectiva ou contra pessoa colectiva que tenha sede em território português.

2 - A lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional.

Artigo 6.º

Restrições à aplicação da lei portuguesa

1 - A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação.

2 - Embora seja aplicável a lei portuguesa, nos termos do número anterior, o facto é julgado segundo a lei do país em que tiver sido praticado sempre que esta seja concretamente mais favorável ao agente. A pena aplicável é convertida naquela que lhe corresponder no sistema português, ou, não havendo correspondência directa, naquela que a lei portuguesa previr para o facto.

3 - O regime do número anterior não se aplica aos crimes previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior.

Artigo 7.º

Lugar da prática do facto

1 - O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido.

2 - No caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido.

Os recorrentes, centrando-se nos imputados crimes de burla, consideram que os factos foram praticados fora do território nacional.

Aparentemente esquecem o teor do artigo 7º do Código Penal, para se concentrarem exclusivamente na argumentação que pretendem construir com alicerces no local de consumação dos crimes de burla.

E nessa medida, enredam-se numa teia de logros que o despacho recorrido, com aparente simplicidade, afastou.

Para efeitos de determinação da aplicabilidade da lei penal portuguesa em conformidade com o disposto na alínea a) do artigo 4º do Código Penal (princípio da territorialidade), impõe-se seguir o critério definido no artigo 7º do mesmo código para a definição do lugar da prática do facto.

No artigo 7º, nº 1, o Código Penal impõe que se considere lugar da prática do facto:

- aquele em que se verificou totalmente a atuação do agente (sob qualquer forma de comparticipação); ou

- aquele em que se verificou parcialmente a atuação do agente (sob qualquer forma de comparticipação); ou

- aquele em que deveria ter ocorrido a atuação do agente em caso de omissão (sob qualquer forma de comparticipação); ou

- aquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido.

Significa isto que a aplicabilidade da lei penal portuguesa, no que concerne ao crime de burla, se verificará quando tiver sido em território nacional que o agente do crime desenvolveu a atuação que traduz o artifício fraudulento que visou colocar o ofendido em erro (parte da atuação compreendida no crime), mesmo que o empobrecimento do ofendido (resultado típico) tenha ocorrido fora do território nacional. Nesse caso, não se pode deixar de considerar, para os efeitos previstos no artigo 7º do Código Penal que o lugar dos factos corresponde ao território nacional, sendo a lei penal portuguesa aplicável em face do disposto na alínea a) do artigo 4º do mesmo código. Nessa conformidade, estaremos perante um caso de pura jurisdição dos tribunais portugueses, sem necessidade de aferição do funcionamento das regras especiais que conferem competência internacional aos tribunais portugueses para julgamento de factos praticados fora do território nacional.

Perante os factos da acusação (e só esses interessam, porque é a acusação que, nesta fase, delimita o objeto do processo), não pode deixar de considerar-se que os factos foram praticados, ao menos parcialmente, em território nacional – vejam-se as seguintes circunstâncias (destacados nossos):

1. Entre os anos de 2012 e 2015, os arguidos CC e DD organizaram, criaram e montaram um esquema internacional com estrutura hierarquizada e com comando vertical, com vista para à obtenção indevida de quantias junto de cidadãos do Reino Unido e a sua posterior recepção em Portugal, através de empresas de transferência de dinheiro e/ou de contas bancárias de terceiros, para dissimular a sua origem ilícita, mas em relação às quais tinha o domínio.

Assim,

2. Os arguidos CC e DD angariaram como recrutadores massivos das chamadas "money mules" (receptores de transferências bancárias com origem ilícita) os arguidos AA, EE e BB.

3. Estes arguidos AA, EE e BB, por seu turno, recrutaram, em Portugal, as ditas "money mules" para receberem transferências de dinheiro provenientes de cidadãos do Reino Unido — o que fizeram, tanto directamente, como por intermédio de terceiros, como o arguido FF.

4. Os monev mules/receptores dos fundos angariados pelo arguido BB — nomeadamente, (…) foram, essencialmente, pessoas que com ele trabalhavam no ramo da construção civil, sendo muitos deles oriundos de países do leste da Europa.

5. Os monev mules/receptores dos fundos angariados pelo arguido EE — nomeadamente (…) — foram, essencialmente, seus conhecidos das saídas de diversão nocturna em … e …, sendo a sua maioria cidadãos brasileiros.

6. Os money mules/receptores dos fundos angariados pelo arguido FF — nomeadamente (…) — são cidadãos portugueses residentes na zona de …, onde estudou e residiu.

7. O arguido AA angariou muito poucos money mules directamente, tendo, contudo, utilizado as contas bancárias da mãe — EEEE — e da filha — FFFF para a recepção dos referidos fundos ilícitos em quantias melhor descritas infra, incompatíveis com os respectivos rendimentos lícitos.

Posto isto,

8. Durante o ano de 2012, os arguidos CC e DD tiveram acesso a uma base de dados com os contactos de cidadãos oriundos do Reino Unido que eram titulares de participações em unidades turísticas em regime de direito real de habitação periódica (doravante, DRHP) localizadas em Espanha.

(…)

10, Na posse dessa informação, os arguidos CC engendraram um plano para lograr que esses titulares do DRHP lhes enviassem quantias monetárias do Reino Unido sob falsos pretextos relacionados com essas unidades turísticas.

11. Para tanto, os arguidos CC e DD socorreram-se de um call center não identificado, a operar em território espanhol para comunicar a esses titulares do DRHP (…)

12. Nessa senda, por intermédio dos operadores desse call center, os arguidos CC e DD instruíram esses titulares DRHP a transferirem quantias monetárias para pagamento das aludidas despesas fictícias, através de operadoras financeiras como a Money Gram, e com destino aos "money mules"/receptadores, entretanto angariados pelos arguidos como parte integrante do citado esquema.

13. Os referidos cidadãos britânicos assim fizeram, o que lhes causou um prejuízo patrimonial e o correspondente enriquecimento indevido por parte dos arguidos.

14. Os cidadãos britânicos titulares das referidas participações de "time sharing", enganados nos termos descritos pelos arguidos CC e DD que fizeram transferências bancárias, através da MoneyGram e afins, foram os seguintes, identificados infra por nome, data de nascimento e respectivo documento de identificação:

(…)

15. Em finais de 2012, os arguidos CC e DD deslocaram a referida operação de contactos com os cidadãos ingleses para o escritório sito na Avenida …, …, criando para esse efeito a firma "JJJJ".

16, Depois, em finais de 2013, mudaram o escritório para a loja …, da Rua …, ….

17. Entretanto, por modo a assegurar o recebimento dessas quantias monetárias em território nacional, os arguidos CC e DD integraram nesse seu plano os arguidos EE, AA e BB como angariadores de destinatários dessas remessas monetárias (moneymules), provenientes do Reino Unido, nas operadoras financeiras Money Gram, mediante o pagamento de uma comissão de cerca de 7 a 8% do valor de cada levantamento, remunerando estes, por seu turno, as money mules que angariavam com uma comissão de cerca de 0,5 a 2,5% do valor de cada levantamento.

18. Nessa sequência, em conjugação de esforços e de vontades, mediante instruções dos arguidos CC e DD, o arguido EE integrou o arguido KKKK nesse plano para o auxiliar na angariação de destinatários dessas remessas monetárias provenientes do Reino Unido pela operadora financeira Money Gram mediante o pagamento de comissão nos termos supra descritos.

19. Em consequência, essas remessas monetárias provenientes do Reino Unido tiveram como destino os seguintes money mules/receptores dos fundos, infra identificados por data de nascimento e documento de identificação que apresentavam para proceder ao levantamento do dinheiro:

(…)

45. Os arguidos CC e DD, em conjugação de esforços e vontades, agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de induzir os identificados titulares de time sharing em erro e, concomitantemente, determiná-los a efectuar as mencionadas transferências bancárias a seu favor, circunstância que provocou prejuízo às vítimas/ofendidos e o correspectivo enriquecimento ilegítimo dos arguidos, fazendo dessa actividade o seu modo de vida, em função dos mencionados elevados valores monetários envolvidos, que lhe permitiram sustentar-se economicamente apenas com esses fundos.

46. O arguido EE agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de prestar auxílio material ao plano dos arguidos CC e DD de induzir os mencionados titulares de time sharing em erro e, concomitantemente, determiná-los a efectuar as mencionadas o transferências bancárias a seu favor, circunstância que provocou prejuízo às vítimas ofendidos e o seu enriquecimento ilegítimo.

47. Os arguidos AA, FF e BB agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de prestar auxílio material ao plano dos arguidos CC e DD de induzir os mencionados titulares de time sharing em erro e, concomitantemente, determiná-los a efectuar as mencionadas transferências bancárias a seu favor, circunstância que provocou prejuízos às vítimas/ofendidos e o seu enriquecimento ilegítimo.

48. Os arguidos CC, DD, EE, AA, FF, BB, KKKK e LLLL agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de dissimularem a proveniência ilícita das mencionadas transferências bancárias provenientes do Reino Unido.

49. Os arguidos CC, DD, EE, AA, FF e BB agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuando com o propósito de pertencerem a um grupo, com estrutura hierarquizada e comando vertical, destinado à perpetração dos mencionados ilícitos.”

Desta transcrição parcial dos factos da acusação (com os destaques por nós introduzidos com a finalidade de acentuar a prática de factos em território nacional), resulta evidente a conclusão a que, com pleno acerto, se chegou no despacho recorrido: os factos foram parcialmente praticados em território nacional.

Tanto basta para assegurar a jurisdição dos tribunais portugueses e afastar a procedência da exceção de incompetência internacional suscitada pelo arguidos recorrentes, que, sublinhamos, assentava na errada invocação de que os factos integradores dos “delitos em causa na forma consumada tal como apresentados pelo Ministério Público, realizaram-se, todos eles, por via de acções prosseguidas quer em território espanhol (de onde emana o alegado ardil) quer em território inglês (de onde foram realizadas as alegadas transferências pelos ofendidos, como consequência daquele ardil)”.

Por aplicação do disposto no artigo 7º do Código Penal, os factos devem ter-se por praticados em território nacional, funcionando plenamente a norma do artigo 4º, al. a), do mesmo código e, por via do princípio da territorialidade, a jurisdição dos tribunais portugueses.

É, por isso, inelutável a constatação do Tribunal recorrido:

“Sendo certo que no libelo acusatório se faz referência a um início de actividade delituosa em território espanhol – vide facto 11 - , já no facto 15 é mencionado que os arguidos deslocaram a sua imputada actividade delituosa para Portugal, designadamente para … e, posteriormente, para …, sendo igualmente em território nacional que as quantias monetárias, remetidas através do Moneygram, eram levantadas.”.

Em face disto, os recursos não podem deixar de improceder.

Isso sucede mesmo que posteriormente se venha a concluir que o empobrecimento dos ofendidos (resultado típico) ocorreu fora do território nacional, dado que o artigo 7º salvaguarda a jurisdição nacional mesmo nos casos de atuação meramente parcial em território nacional, inclusivamente nas situações em que a consumação do crime (designadamente do crime de resultado, como é a burla) ocorra fora do território nacional.

Neste particular aspeto, cumpre subscrever o entendimento do Tribunal recorrido quando afirma: “Atente-se que a acusação nunca refere que as transferências foram efectuadas através de banco, ou por qualquer título de crédito, mas por uma concreta forma cujas especificidades de funcionamento não permitem considerar que tenha havido uma disposição patrimonial com o inerente empobrecimento do ofendido apenas com a ordem de transferência, realizada essa no Reino Unido”.

Sem prejuízo das circunstâncias que se vierem a apurar através da discussão da causa na fase de julgamento, temos apenas o narrado na acusação quanto ao levantamento das quantias em território nacional como facto integrador do empobrecimento do ofendido. Poderá vir a apurar-se que os ofendidos efetivamente perderam a disponibilidade das verbas ao ordenar as transferências em solo britânico. Mas não podemos, para já, afastar a possibilidade de se vir a demonstrar que tais remetentes mantiveram o direito de cancelar as transferências ordenadas através da MoneyGram enquanto as mesmas não tivessem sido levantadas ou recebidas pelos destinatários ou creditadas nas contas dos mesmos, cancelamento esse que levaria ao reembolso do montante.

Certo é que a solução da questão tem de encontrar-se em face dos factos vertidos na acusação.

*

Impõe-se, ainda, acrescentar algumas palavras.

A tentativa, simplista, de afastar a relevância dos imputados crimes de branqueamento de capitais e de associação criminosa não merece qualquer adesão e, mesmo a poder considerar-se que todos os factos referentes aos imputados crimes de burla teriam ocorrido fora do território nacional (o que não sucede), não encontra apoio na lei.

Nesse sentido, sem necessidade de melhor explicação, poderá ver-se o que foi decidido no douto Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de junho de 2017, que inteiramente subscrevemos1. Aí se escreveu, em decisão que revogou despacho que declarara a incompetência internacional dos tribunais portugueses para perseguir o crime de branqueamento de capitais:

“III. Sucede que, tanto a decisão recorrida, como o referido Acórdão do Tribunal de Relação em que se funda, resultam da desconsideração do quadro legal, nacional e internacional, das regras de perseguição do crime de branqueamento de capitais;

Como se demonstra na desconsideração do disposto no artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, baseado no artº 3º nº 3 da Convenção de Viena das Nações Unidas, e no artº 6º nº 2 alínea c) da Convenção de Estrasburgo do Conselho da Europa – que estabelece que, cada uma das Partes contraentes “deve conferir carácter de infracção penal, em conformidade com o seu direito interno: à conversão e transferência de bens (expressão, “conversão”, que, nos termos do artº 1º alínea b) do mesmo, compreende “um bem de qualquer natureza, que seja corpóreo ou incorpóreo, móvel ou imóvel, bem como os actos jurídicos ou documentos certificando um título ou o direito sobre um bem”) em relação aos quais aquele que o faz sabe que esses bens constituem produtos (expressão, “produtos”, que, nos termos do artº 1º alínea b) já referido supra, “designa qualquer vantagem económica resultante de infracções penais,”) com o fim de os dissimular ou de ocultar a origem ilícita dos referidos bens ou de auxiliar qualquer pessoa implicada na infracção principal (expressão, “infracção principal”, que, nos termos do artº 1º alínea e) do mesmo, consiste “em qualquer infracção penal em consequência da qual são gerados produtos, os quais são susceptíveis de se tornarem objecto de uma infracção, nos termos da presente Convenção,”) assim como “à dissimulação ou ocultação da sua verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimento ou propriedade de bens ou de direitos a ele relativos, sabendo o autor que esses bens constituem produtos”, resultando expressamente ressalvado do mesmo artigo artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, que:

“Existe branqueamento de capitais mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro ou de um país terceiro.”

Neste sentido, sobre a normativa internacional e o regime do branqueamento de capitais desde 1991, veja-se “Branqueamento de Capitais” de Jorge Manuel Monteiro Dias Duarte, em Estudos e Monografias, Publicações da Universidade Católica, Porto 2002, página 100 e seguintes.

As sucessivas evoluções legislativas operadas a partir de então tiveram reflexo nas sucessivas redacções do artº 468º - A do Código Penal, a saber:

- Lei nº 11/2004, de 27 de Março;

- Rectificação Legislativa nº 45/2004, de 5 de Junho;

- E Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.

O resultado foi a consagração no ordenamento jurídico interno, isto é, nacional, do princípio da privação dos criminosos do produto das suas actividades, - afirmado como o primeiro de três objectivos principais da Convenção da Nações Unidas de 1988, - “suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal, evitando, do mesmo passo, que a utilização desses fortunas ilicitamente acumuladas permita as organizações transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis.”

O artº 368º - A do Código Penal, resulta, assim, do compromisso internacional de admissão no ordenamento jurídico interno, do reconhecimento do próprio Estado Português do seu próprio interesse nacional, - sujeito aos princípios da nacionalidade e de defesa dos interesses nacionais - em evitar a invasão, contaminação e corrupção das estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis, punitivas do crime de branqueamento de capitais, mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro da Comunidade Europeia ou de um país terceiro, do que resulta que o crime de branqueamento de capitais é punido em Portugal quando os seus actos sejam perpetrados no território nacional, por força do artº 4º alínea) do Código Penal, não sendo aplicáveis as regras de aplicação supletiva da lei portuguesa previstos no artº 5º do Código Penal.

Não se trata por isso de uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses em matéria penal, mas tão só da competência dos tribunais portugueses para perseguir um crime perpetrado no território nacional, nos termos dos artigos 4º alínea a) e 368º - A, ambos do Código Penal.

A verificação do crime de branqueamento de capitais pressupõe, efectivamente, uma ilicitude prévia, mas não depende de uma condenação pelo crime anterior, nem sequer da sua perseguição criminal, no país de origem das produzidas vantagens, bens ou direitos, porque assim resulta o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais previsto no artº 368º A do Código Penal, como afirmado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Relator Raúl Borges, no Acórdão de 11 de Junho de 2014, proc.º nº 14/07.0TRLSB.S1, 3ª Secção:

“LXXVII. Esta relação entre o branqueamento e o facto precedente, a relação genérica entre a lavagem e o crime gerador das receitas, lucros necessitados de branquear, não impede a afirmação da autonomia do branqueamento.

LXXIX. O crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente.

LXXX. Desde que se tenha verificado a prática do crime-base e sejam praticados factos subsumíveis ao crime de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respectivo agente será penalmente perseguido, mesmo nos casos em que o autor do crime-base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal se encontre prescrito.”

Assim sucede, tal como observado pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu fundamentado parecer, porque o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais é imposto pelo artigo 9º nº 5 da Convenção do Conselho da Europa relativo ao branqueamento de capitais, concluída em Varsóvia, em 16 de Maio de 2005, e vigente na nossa ordem jurídica interna, desde 1 de Agosto de 2010, no qual se afirma que deverá ser garantida a possibilidade de condenação por branqueamento, “independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.”

Por isso o crime de branqueamento de capitais é um crime de acção e autónomo em relação ao crime subjacente, o que não foi respeitado tanto na decisão recorrida como no acórdão em que esta se fundou, do que resultou, nos termos sobreditos, que, tanto a decisão recorrida, como o referido Acórdão do Tribunal de Relação, incorreram em errada interpretação dos artºs 368º A e 4º do Código Penal, enredando-se em considerações sobre a pretensa relevância dos crimes precedentes ao do branqueamento de capitais, e a sua ocorrência fora do território nacional, em Angola, perdendo de vista o essencial quanto à consumação do crime de branqueamento de capitais, que ocorreu em Portugal.

O elemento objectivo do crime de branqueamento de capitais reconduz-se apenas “às vantagens ou bens, incluindo os direitos e as coisas”, os quais são alcançados através de “um facto típico ilícito antecedente, que o preceito (artº 368º - A do CP) enumera especificamente, e bem assim, em nome de uma cláusula geral, dos factos ilícitos puníveis com prisão por mais de seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos de prisão, operando a nível instrumental, chamados de “crime precedente” ou predicate offence” em concurso real com o de branqueamento, na esteira, aliás, do AUJ nº 13/2007, de 22 de Julho, atenta a diversa autonomia dos bens jurídicos protegidos”, verbi gratia o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Janeiro de 2014.

(…)

Como é consabido o crime de branqueamento de capitais previsto e punido no artigo 368º - A, nºs 2 e 3 do Código Penal supõe o desenvolvimento de actividades que podendo integrar várias fases, visam dar uma aparência da origem legal a bens de origem ilícita, assim encobrindo a sua origem fundada em crime precedente previsto no elenco ou catálogo constante do nº 1 do mesmo artigo.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente de perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa, conforme Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República ia dos direitos do Homem, em anotação ao artº 368º - A do CP, página 867.

Como afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relator Rui Gonçalves, de 18 de Julho de 2013:

“A punição do branqueamento visa tutelar a “pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime”, ou mais especificamente, o interesse do aparelho na detecção e perda das vantagens de certos crimes.

Quanto mais eficiente e sofisticada a conduta do branqueamento mais grave e perigoso é o atentado ao bem jurídico protegido com esta incriminação. Porém, mesmo a simples conduta do agente depositar na sua conta bancária quantias monetárias provenientes do crime precedente por si cometido, pode integrar a prática do crime de branqueamento.”

Por isso, muito mal andou a decisão recorrida, ao concluir pela incompetência internacional dos tribunais portugueses para perseguir o crime de branqueamento de capitais, perpetrado em Portugal, com fundamento em que os crimes precedentes ocorreram fora do território nacional, no caso em Angola, como ao entender aplicável o artº 5º do Código Penal.

A interpretação efectuada na decisão recorrida, assim como a do peregrino acórdão em que se fundou, resultam na desprotecção do interesse nacional, da soberania e do reconhecimento do próprio Estado Português “em evitar a invasão, contaminação e corrupção das estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis, punitivas do crime de branqueamento de capitais, mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro da Comunidade Europeia ou de um país terceiro,” e seriam um convite a que os “senhores do crime”, os “barões da droga” ou os modernos “piratas internacionais do crime organizado” passassem a utilizar o território nacional como “um porto de abrigo”, correspondente aos actuais “paraísos financeiros”, num retrocesso jurídico ao século XVII e aos tempos da lei inglesa de 1662, que ofereceu aos antigos piratas, que declarassem renunciar a tal actividade, o perdão total e o direito de conservação dos produtos das suas actividades criminosas, sendo a perda destes últimos (produtos do crime) o concreto objectivo, nacional e internacional, visado pela hodierna punição do crime de branqueamento de capitais.

Nestes termos, deve-se concluir pela procedência do recurso, revogação da decisão recorrida, indeferindo-se a requerida procedência da declaração de incompetência dos tribunais portugueses em matéria penal, para perseguir o crime de branqueamento de capitais previsto no artº 368º - A do Código Penal, e por outro lado declarar a inequívoca competência dos tribunais portugueses para perseguir aquele crime ainda que os crimes precedentes tenham ocorrido fora do território nacional, por força do artº 4º alínea a) do Código Penal.”.

*

Nesta conformidade, bem andou o Tribunal recorrido ao indeferir os requerimentos apresentados pelos arguidos com vista à declaração de incompetência do Tribunal.

Os recursos improcedem.

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IV- DECISÃO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB e, consequentemente, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Condena-se cada um dos Recorrentes em taxa de justiça que se fixa em quatro UC.

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DN (comunicando-se de imediato ao PCC nº 285/15.8JAFAR).

*

O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 28 de outubro de 2025

Jorge Antunes (Relator)

Carla Francisco (1ª Adjunta)

Beatriz Marques Borges (2ª Adjunta)

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1 Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de junho de 2017 – Relator: Ricardo Cardoso – acessível em: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/2426087866527eed80258147003818ea?OpenDocument