DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
TESTEMUNHAS VULNERÁVEIS
Sumário

Revelando-se importante para a investigação e, inerentemente, para os fins do processo penal, a inquirição de testemunhas vulneráveis, o balanço entre os interesses em conflito que devemos sempre efetuar (art.º 18.º, n.º 2 da CRP) pende claramente para a realização deste tipo de inquirição, para não prejudicar a tutela penal efetiva que a comunidade demanda, sendo que, quando se puder ponderar um juízo densificado sobre a necessidade da inquirição, pode já ser tarde demais por vulneração dos mecanismos que tornam o depoimento fiável. Por seu turno, para além das vantagens evidentes que um depoimento precoce representa em termos de fidelidade dos mecanismos da memória, quanto menos tempo mediar entre o evento presenciado e o depoimento, também tendencialmente se reduzirá o impacto decorrente dessa re-vivência, tornando-se notoriamente mais doloroso à medida que o tempo decorre.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos autos de inquérito n.º 74/25.1GCPTM, foi, no Juízo de Competência Genérica de …(J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … (atos jurisdicionais), requerida pelo MP ao Juiz de Instrução Criminal (JIC), ao abrigo do art.º 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal1, a tomada de declarações para memória futura a dois menores (irmãos) por suspeitas de agressão pela mãe de um deles, vindo aquela (JIC) a indeferir o requerido.

Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1 - O objecto do presente recurso é o despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo, a 23.09.2025 [ref.ª CITIUS …], o qual decidiu indeferir a tomada de declarações para memória futura às vítimas AA e BB.

2 - Nos presentes autos encontra-se suficientemente indiciada a prática, pelo denunciado, de factos susceptíveis de integrar o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal.

3 - Alega o Mm.º Juiz a quo: "poder o juiz de instrução proceder, na fase de inquérito, à inquirição de testemunhas por contraposição, no caso de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual do menor, à expressa imposição da sua inquirição (conferir n.º 2 do artigo 271.º do Código de Processo Penal) ";

4 - Afirma também o Mm.º Juiz a quo: «O juízo que permita aferir da concreta viabilidade ou bondade de tal propósito é, contudo - e necessariamente - casuístico, dependente de uma necessária ponderação de interesses de forma a se não desvirtuarem princípios e valores caros ao regime processual criminal português. Este circunstancialismo impede a implementação do princípio de que qualquer menor vítima de violência doméstica deva ou tenha, sempre que requerido, prestar declarações para memória futura».

5 - Continua afirmando: «se não vislumbra maior possível revitimização do que sujeitar um menor a uma audiência de declarações memória futura (na presença de pelo menos, dois magistrados, um funcionário, um assistente social e, regularmente, pelo menos um advogado) quando se não sabe se será deduzida acusação ou julgamento. Por outro lado, não é de todo algum garantido que um menor inquirido em sede de declarações memória futura não tenha de prestar novo depoimento em sede de julgamento para, ademais, confrontação com outra prova ali entretanto produzida (como também regularmente, dita a experiência, acontece). Acresce que a probabilidade de tal ocorrer aumenta quando é impossível, por falta de meios, registar vídeo do depoimento do menor - o que, infelizmente, ocorre na comarca de

…. Finalmente, importará atender que também numa audiência de julgamento podem — e devem — ser pelo tribunal tomadas medidas para proteção de qualquer pessoa especialmente vulnerável, podendo ser (como é regularmente) determinado o afastamento do arguido ou a prestação do depoimento à porta fechada».

6 - E por último, é referido no despacho objecto do presente recurso: «Por outro lado, o denunciado nunca foi constituído arguido ou prestou declarações, o que contribuiria para uma mitigação do princípio do contraditório na diligência pretendida.

7 - Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 12/10/2021, no âmbito do processo 103/20.5GDETZ, que refere: "1 - Embora o processo penal português tenha estrutura acusatória e seja regida pelos princípios da oralidade e da imediação da prova no julgamento, o regime de declarações para memória futura consubstancia uma exceção a essa regra, designadamente quando o juiz se depare perante um caso de violência doméstica. 2 - O artigo 33.º da Lei 112/2009 de 16 de setembro, acaba por na prática se tornar num "mecanismo de aplicação quase automática" e o requerimento para tomada de declarações para memória futura deve tendencialmente ser deferido, atendendo à especial vulnerabilidade revelada pelas vítimas de violência doméstica".

8 – E o Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 10/01/2024, no âmbito do processo no 260/23.9GAPNI-A.C11, que decidiu no seguinte sentido: "Nos crimes de violência doméstica deve ter lugar a tomada de declarações para memória futura, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, sem necessidade de justificação acrescida, só assim se não procedendo quando existam razões relevantes para o não fazer".

9 - O artigo 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e os artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º, n.º 1 da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, prevêem a tomada de declarações para memória futura das vítimas de crime de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis, onde se enquadram as vítimas.

10 - Tal regime é especial relativamente ao regime geral do artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pois aqueles diplomas legais visam essencialmente a protecção das vítimas de determinada criminalidade, existindo um dever de colaboração das autoridades competentes nessa protecção.

11 - Assim sendo, quando estamos no "âmbito desta criminalidade, a recolha antecipada de prova deve ser a regra, só assim não sendo quando for manifesta a desnecessidade da diligência, o que, salvo melhor opinião, não é o caso: sendo este um direito das vítimas.

12 - Destarte, impõe-se a tomada de declarações para memória futura da vítima para que a mesma não volte a prestar novas declarações nos autos e, dessa forma, evitar a sua revitimização.

13 - Por outro lado, a recolha antecipada da prova permite minorar os lapsos de memória que vão ocorrendo com o decurso do tempo (e que as vítimas, por reflexo, tendem a apagar da sua memória) e que podem impedir a concretização dos factos de forma pormenorizada, dificultando a realização da justiça.

14 - Vejam-se os Acórdãos da Relação de Évora, datado de 04/11/2024, no âmbito do processo no 149/24.4GCSTB-A.E1 e datado de 06/05/2025, no âmbito do processo no 1467/24.7T9TMR-A.E1, que decidiram no seguinte sentido: “(…) importando acautelar a genuinidade dos depoimentos, em tempo útil, pois é do conhecimento comum que este tipo de crimes são de investigação complexa e demorada, do que resulta prejuízo para o apuramento de toda a verdade dos factos vivenciados, para além de alta probabilidade de interferências externas, tendo em vista a recomposição da realidade factual, caso decorra lapso de tempo significativo desde o momento das práticas delituosas".

15 - Não está na discricionariedade do Juiz, sem mais, indeferir a tomada de declarações para memória futura quando está em causa a investigação a prática do crime de violência doméstica, devendo antes esse indeferimento ser fundado em razões objectivas que revelem a total desnecessidade na recolha antecipada de prova.

16 - A fase de inquérito destina-se a recolher a prova, com vista a proferir um despacho final de acusação ou de arquivamento. Ou seja, não sendo inquiridas as testemunhas em sede de declarações para memória futura, para que o Ministério Público consiga perceber o teor do seu depoimento terá que inquiri-las, ignorando o seu estatuto de vítimas especialmente vulneráveis e as prorrogativas que o mesmo lhes confere.

17 - Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.06.2024 (proc. 590/23.0PBSTB-A.E1, Maria José Cortes): "Não está na disponibilidade do Juiz de Instrução realizar, em sede de inquérito, um juízo de oportunidade acerca do momento mais adequado para a tomada de declarações para memória futura, desde que tenham fundamento legal e que hajam sido solicitadas pelo Ministério Público, por esse juízo competir exclusivamente a quem detém a titularidade, direção e realização do inquérito (o Ministério Público), sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal. "

18 - É certo que não fica de todo vedada a possibilidade de a testemunha ouvida em sede de declarações para memória futura vir a ser chamada à audiência de julgamento. Aliás, essa possibilidade consta do próprio artigo 271.º/8 do CPP.

19 - No entanto, há que perceber que a inquirição em sede de audiência de julgamento de uma testemunha que já foi ouvida em declarações para memória futura tem um carácter excepcional.

20 - A diligência de declarações para memória futura está sujeita ao regime previsto nos artigos 363.º e 364.º do CPP ex vi artigo 271.º/6 do mesmo diploma: as declarações prestadas oralmente são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade, sendo a documentação efetuada, em regra, através do registo de áudio ou audiovisual.

21 - Pelo que, havendo a opção entre o registo áudio ou audiovisual, não poderá o facto de não ser possível o registo audiovisual ser um óbice à realização da diligência requerida.

22 - Não tem de haver prévia constituição como arguido relativamente à diligência de declarações para memória futura, sendo o princípio do contraditório garantido nessa diligência através da nomeação de defensor para o suspeito.

23 - Neste sentido, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06.02.2024 (proc. 1132/23.2GBLLE-A.E1, Fátima Bernardes): «As declarações para memória futura de vítima de crime de violência doméstica, sendo meio de proteção da vítima e meio de prova, podem ser prestadas no processo antes da constituição como arguido do denunciado, tendo como objetivo evitar pressões .com perturbação para a aquisição e para a conservação da prova) e, ainda, visando prevenir a vitimização secundária da declarante, II - Nesse caso, a prestação de declarações para memória futura deverá, apenas, ser precedida da nomeação de defensor ao denunciado (e respetiva notificação para comparência à diligência), a fim de ser salvaguardado o princípio do contraditório (assegurando-se, desse modo, a possibilidade de defesa e de contrainterrogatório). III - Compete ao Ministério Público (enquanto titular da ação penal), e não ao Juiz de Instrução Criminal, determinar qual o momento adequado para a constituição do denunciado como arguido».

24 - Assim, conclui-se pela inexistência de motivo para o Mm.º Juiz a quo indeferir a tomada de declarações para memória futura das vítimas.

25 - Razão pela qual o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 271.º, n.º 1 do CPP, no artigo 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/ 2009, de 16 de Setembro, nos artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, os artigos 67.º-A, n.º 1, alínea b) e n.º 3 e o artigo 1º, alínea j), ambos do CPP e o artigo 152.º/n.º 1 do Código Penal, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que determine a realização da referida diligência.”

Pugnando, em síntese, pelo seguinte:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos; entendemos que deverá conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se a sua substituição por outro em que o Tribunal a quo determine a realização da requerida diligência de tomada de declarações para memória futura das vítimas AA e BB”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer defendendo que “deve ser revogado o douto despacho recorrido e, consequentemente, que se determine a tomada de declarações para memória futura, conforme referido na dita motivação.”

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Veio o Ministério Público requerer a tomada de declarações para memória futura de AA e BB (menores) com os fundamentos que constam do despacho que antecede (referência …) e que se dão por reproduzidos.

Temos como manifesto constituir qualquer indivíduo menor de idade exposto — direta um indiretamente — a um crime de violência doméstica ele próprio, em maior ou menor medida, uma vítima. Da mesma forma, é um menor, pela simples natureza da sua idade, uma vítima (também em abstrato) especialmente vulnerável quando contra ele (ou mesmo meramente na sua presença) sejam perpetrados ilícitos criminais que envolvam ou perturbem o seu ambiente, meio e espaço, porquanto são estes necessários ao seu adequado desenvolvimento e crescimento pessoal. O crime de violência doméstica constituirá, neste contexto, um exemplo paradigmático da (muito provável) perturbação daqueles; e, portanto, do próprio menor.

Paralelamente, podem as testemunhas especialmente vulneráveis (menores de idade ou não) serem inquiridas no âmbito de declarações para memória futura: o artigo 28.º da Lei n.º 93/99 de 14 de julho expande a regra geral prevista no artigo 271.º do Código de Processo Penal de forma a incluir tais testemunhas. Mas — conforme já anteriormente defendemos — explicitam os artigos 271.º n.º 1 do Código de Processo Penal, 24.º n.º 1 da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e 33.º n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro poder o juiz de instrução proceder, na fase de inquérito, à inquirição de testemunhas — por contraposição, no caso de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual do menor, à expressa imposição da sua inquirição (conferir n.º 2 do artigo 271.º do Código de Processo Penal).

E temos a ratio de qualquer daqueles normativos a múltiplos níveis compreensível: garantir a preservação de prova e/ou evitar a estigmatização/perturbação desnecessárias da vítima (ou, como vimos, da testemunha).

O juízo que permita aferir da concreta viabilidade ou bondade de tal propósito é, contudo — e necessariamente — casuístico, dependente de uma necessária ponderação de interesses de forma a se não desvirtuarem princípios e valores caros ao regime processual criminal português. Este circunstancialismo impede a implementação do princípio de que qualquer menor vítima de violência doméstica deva ou tenha, sempre que requerido, prestar declarações para memória futura.

Importará delapidar o argumento relativo à revitimização do menor. Antes de mais, se não vislumbra maior possível revitimização do que sujeitar um menor a uma audiência de declarações memória futura (na presença de, pelo menos, dois magistrados, um funcionário, um assistente social e, regularmente, pelo menos um advogado) quando se não sabe se será deduzida acusação ou julgamento. Por outro lado, não é de modo algum garantido que um menor inquirido em sede de declarações memória futura não tenha de prestar novo depoimento em sede de julgamento para, ademais, confrontação com outra prova ali entretanto produzida (como também regularmente, dita a experiência, acontece). Acresce que a probabilidade de tal ocorrer aumenta quando é impossível, por falta de meios, registar vídeo do depoimento do menor — o que, infelizmente, ocorre na comarca de …. Finalmente, importará atender que também numa audiência de julgamento podem — e devem — ser pelo tribunal tomadas medidas para proteção de qualquer pessoa especialmente vulnerável, podendo ser (como é regularmente) determinado o afastamento do arguido ou a prestação do depoimento à porta fechada.

E por tudo isto foi o legislador especialmente cauteloso ao remeter para a referida apreciação casuística do juiz a ponderação entre prejuízos e benefícios do recurso à diligência de prestação de declarações para memória futura. A opção legislativa encerra expressa flexibilidade para adaptação às conveniências do caso concreto.

No caso dos autos, para justificar o recurso ao instituto é invocado o cumprimento da Portaria 5/2019 da Procuradoria Geral da República (que não mais constitui do que uma orientação ou ordem de serviço no âmbito da magistratura do Ministério Público), a idade e essencialidade do depoimento das testemunhas e a circunstância de a menor AA ter já sido diretamente ameaçada pelo suspeito.

Mas conforme decorre do depoimento da própria queixosa, a mesma viverá com as suas filhas em … desde há cerca de três anos (conferir auto de inquirição de 21 de julho). Por outro lado, o denunciado nunca foi constituído arguido ou prestou declarações, o que contribuiria para uma mitigação do princípio do contraditório na diligência pretendida.

Em face do que — pelo menos por ora e de acordo com os elementos disponíveis — se não vislumbra concreto, sólido fundamento para o pretendido e, efetuada a supra referida ponderação de interesses e valores, entende-se indeferir o requerido.”

Do requerimento para audição das menores formulado pelo MP nos autos em 18/09/2025 (ref. CITIUS …), consta:

“Por ser(em menor(es), a sua vulnerabilidade é especialmente acentuada. Acrescendo que o denunciado é seu pai o que, por si só, potencia o seu constrangimento. Os factos já indiciados nos autos carecem de confirmação e de especificação por parte das menores, que se encontravam presentes e que os poderão relatar de forma detalhada, bem como trazer ao processo o conhecimento de novos factos.

Mais acresce que, segundo as declarações da ofendida, CC, a menor, AA, por pelo menor uma vez, terá sido vítima directa do denunciado, o qual a terá ameaçado de morte.

Pelos factos expostos, urge conferir particular protecção e preservação das vítimas, colhendo de imediato o seu depoimento e evitando desse modo a sua revitimização e colher novos elementos de prova para os autos.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão (única) a decidir no presente recurso é a seguinte:

O JIC deve ou não, ao abrigo do art.º 271.º, n.º 1, tomar declarações para memória futura a (alegadas) testemunhas (com 13 e 11 anos de idade), sendo uma delas também uma (alegada) vítima de violência doméstica.

B. Decidindo.

Vejamos:

Estabelece o art.º 271.º (na parte que nos interessa):

Declarações para memória futura

1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

(…)

3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

(…)

5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º

7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.

8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”

Por outro lado, determina a Lei n.° 93/992, de 14.07 (Lei de Proteção de Testemunhas), que regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal:

Artigo 26.º

Testemunhas especialmente vulneráveis

“1 - Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.

2 - A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.

Artigo 28.°

Intervenção no inquérito

1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271° do Código de Processo Penal.”

Por seu turno, ainda é de convocar a Lei n.º 111/2009, de 16.09 (Estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas):

Artigo 33.º

Declarações para memória futura

1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.

4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.

6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.

7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Também importa fazer referência ao disposto na Lei n.º 130/2015, de 04.09 (aprova o Estatuto da Vítima):

Artigo 21.º

Direitos das vítimas especialmente vulneráveis

1 - Deve ser feita uma avaliação individual das vítimas especialmente vulneráveis, a fim de determinar se devem beneficiar de medidas especiais de proteção.

2 - As medidas especiais de proteção referidas no número anterior são as seguintes:

(…)

d) Prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.º.

Artigo 24.º Declarações para memória futura

1 - O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.

2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas.

4 - A tomada de declarações é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto.

5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal.

6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Devemos ainda levar em conta o disposto no art.º 67.º-A, n.º 1, alínea b):

1 - Considera-se:

(…)

b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;

Sobre o quadro normativo acabado de traçar existe jurisprudência, ao que sabemos uniforme, como se infere dos exemplos que transcrevemos: Acórdão do TRL de 13.09.2016 proferido no processo n.º 304/15.8PHAMD-A.L1-53:

“[A]o contrário do que sucede nos casos de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, em que a tomada de declarações para memória futura é obrigatória, como resulta do nº 2, do artigo 271º, do CPP, encontrando-se em investigação crimes de violência doméstica ou maus tratos, como na situação em apreço, esse acto não tem natureza de imperatividade, ou seja, não é obrigatória a sua prática, de onde surge a problemática do critério a considerar para saber quando, requerida que seja, se admite ou indefere a tomada de declarações.

Elucida-nos o Acórdão deste Tribunal da Relação de 11/01/2012, Proc. nº 689/11.5PBPDL-3, disponível em www.dgsi,pt, que “esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça”.

No caso sub judice a vítima (…) é uma criança de onze anos de idade, sendo que o arguido é o seu progenitor, de onde resulta objectivamente a sua especial vulnerabilidade – que, aliás, deriva também do estatuído no artigo 67º-A, nºs 1, alínea b) e 3, do CPP - que cumpre proteger, importando também acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, pois é do conhecimento comum que este tipo de crimes são de investigação complexa e demorada, do que resulta prejuízo para o apuramento de toda a verdade dos factos vivenciados.

No decurso de inquérito, com o escopo de apurar da eventual prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), do Código Penal ou de crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), sendo a vítima (igualmente também eventualmente conhecedora de elementos fácticos relativos a agressões à sua progenitora) uma criança de onze anos de idade e o arguido seu progenitor, de onde resulta objectivamente a sua especial vulnerabilidade – que, aliás, deriva também do estatuído no artigo 67º-A, nºs 1, alínea b) e 3, do CPP - que cumpre proteger, importando também acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, pois é do conhecimento comum que este tipo de crimes são de investigação complexa e demorada, do que resulta prejuízo para o apuramento de toda a verdade dos factos vivenciados, deve o Juiz de Instrução Criminal proceder à tomada de declarações para memória futura ao menor como requerido pelo Ministério Público.”

Acórdão do TRL de 07.03.2023 proferido no processo n.º 658/22.0T9LRS-A.L1-5:

“As declarações para memória futura constituem uma produção antecipada de prova, um meio cautelar de prova, que tem em vista assegurar a obtenção e conservação de determinada prova pessoal, com vista ao respectivo aproveitamento em sede de julgamento – pelo perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento – artigo 271.º do Código de Processo Penal.

Estando em causa a investigação de um crime de violência doméstica, como é o caso dos autos, a Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência às suas vítimas, prevê no seu artigo 33.º a possibilidade de o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Igual previsão está estabelecida no Estatuto da Vítima aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, quanto à vítima especialmente vulnerável (artigo 24:º).

Nestes casos, a produção antecipada de prova não tem tanto a ver com o perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento, mas antes com a protecção da própria vítima, por forma a minimizar a vitimização secundária, direito que é garantido à vítima por aquelas leis (artigo 22.º da Lei n.º 112/2009 e artigo 17.º da Lei 130/2015), permitindo assim que ela encerre o episódio de que foi vítima, já que só será prestado novo depoimento, em casos excepcionais (nº 7 do artigo 33.º da mesma Lei).

De acordo com o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, não se impõe ao juiz de instrução a obrigatoriedade de proceder à inquirição de uma vítima para memória futura, nem se estabelece os critérios em que deve assentar essa decisão. Porém, é aconselhável que o faça neste tipo de crime em função da fragilidade das vítimas ou da sua idade, mas, sobretudo, da relação que têm com o arguido, em que deve evitar-se a exposição da vítima em julgamento.

(…)

No caso dos autos a menor, de 6 anos, tem a qualidade de vítima nos termos do artigo 67.º- A do Código de Processo Penal e tem capacidade para depor, nos termos do artigo 131.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pois não resulta do relatório, que se refere no despacho recorrido, qualquer incapacidade para a menor poder prestar depoimento e ser ouvida.

A valoração do depoimento que vier a ser prestado pela menor será feita pelo tribunal de julgamento na altura própria e, por isso, não pode o tribunal recorrido estar a antecipar que a menor não pode testemunhar de modo relevante e processualmente útil, para indeferir a prestação do seu depoimento antecipado.

A prestação antecipada de declarações pela menor, que tenderá a esquecer o que vivenciou, tendo em conta a sua tenra idade, e que continua a viver com a alegada agressora e, portanto, sob a sua influência, pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos que a mesma vivenciou, com a precisão e rigor necessários à investigação e, sobretudo, à descoberta da verdade material, além de que evita que a menor volte a ser sujeita a estar presente em tribunal e a reviver a situação, minimizando a vitimização secundária.”

Acórdão do TRL de 07.04.2021 proferido no processo n.º 86/20.1T90FR-A.C1:

“O que vem a traduzir-se numa faculdade atribuída ao juiz da tomada de declarações antecipada de vítimas de crime de violência doméstica, que implica como regra, “dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova” - Ac Rel Lisboa de 04.06.2020.

No mesmo sentido Ac da Rel Coimbra de 21 de agosto de 2020 - relatora Des Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso, onde se assinala: “Conforme resulta do transcrito art. 33º, n.º 1, a tomada de declarações para memória futura não é obrigatória (pode proceder). No entanto, deve ser este o procedimento a adotar, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, só assim se não procedendo quando existam razões relevantes para o não fazer (no mesmo sentido, cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 9.11.2016, no proc. 5687/15.7T9AMD-A.L1, e de 4.6.2020, no proc. 69/20.1PARGR-A.L1, e da Relação de Évora de 23.6.2020, no proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1, todos em www.dgsi.pt).”

Importa ponderar que o direito de audição antecipada, que se materializa nas declarações para memória futura, visa evitar a vitimização secundária e repetida e ainda quaisquer formas de intimidação e de retaliação e evitar também que as repercussões decorrentes do trauma se reflictam negativamente na aquisição da prova.”

Acórdão do TRL proferido no processo n.º 382/19.0PASXL-A.L1: “Diz o Mm.° Juiz a quo que, na perspectiva do recorrente Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica acaba por se tornar automática. Dir-se-á, porém, que, não sendo rigorosamente assim, é muito assim. Efectivamente, casos há de crimes de violência doméstica em que; nada, manifestamente, justifica este tipo de preocupação na recolha antecipada de prova. Por isso se compreende o poder de decisão que o já citado art.° 33.° confere ao juiz, analisando o caso concreto e aferindo do interesse e oportunidade na realização da diligência. Porém, na nossa perspectiva, o art.° 33.° em causa haverá de ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova, contrariamente ao aqui entendido pelo Mm.° Juiz a quo (…) Assim, como se disse, atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do dever de protecção à mesma vítima consagrado no art.° n.° 2 da Lei n.° 112/2009, só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento. Deste modo, se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso vêem interesse, sendo este, também, necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efectiva realização da justiça.”

Acórdão do TRL de 10.09.2020, proferido no âmbito do processo n.º 91/20.8PBRGR-A.L1-9:

“Assim, sendo certo que o art.º 33.º da citada Lei n.º 112/2009 deixa nas mãos do juiz o “poder” de proceder à recolha das declarações da vítima para memória futura ainda na fase de inquérito, não é o mesmo um poder arbitrário ou que possa ser levianamente exercido, pois que a crescente gravidade dos factos neste, também, cada vez mais repetido tipo de crime exige de todos os operadores judiciários cuidados e preocupações acrescidas, ajustado sentido de oportunidade nas respectivas decisões, as quais deverão ser marcadas por um inequívoco fim preventivo, ainda que aferido em “excesso”, acautelando-se, sempre, as piores e imprevisíveis consequências.”.

Pode, das decisões acabadas de mencionar-se, concluir-se, com alguma segurança, o seguinte:

Em primeiro lugar, fora dos casos de “catálogo” previstos no art.º 271.º, n.º 2, nunca é obrigatório o JIC deferir um pedido de declarações para memória futura.

Em segundo lugar, no critério de admissibilidade das referidas declarações a que o JIC está vinculado, que acima mencionámos e que subscrevemos, deve aferir-se a ponderação do interesse da vítima (ou mesmo mera testemunha) de não ser inquirida apenas na medida do estritamente indispensável à prossecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça, especialmente amplos nos mencionados casos, atendendo às realidades traçadas na própria lei:

(i) Caracterização da vítima como especialmente vulnerável – no caso dos autos, por duas circunstâncias, o denunciado é progenitor das testemunhas e estas têm “diminuta idade”, ou seja, 13/11 anos.

(ii) Necessidade da inquirição o mais brevemente possível, até em função dos mecanismos da memória, pouco sedimentados nestas idades.

(iii) Quanto mais tempo passar, mais se poderão (eventualmente) formar (ou acentuar) formas de intimidação e de retaliação, evitando tal inquirição que as repercussões decorrentes do (eventual) trauma se reflitam negativamente na aquisição da prova.

Quanto aos argumentos nucleares do Mm.º JIC, dir-se-á:

(i) Relativamente à apreciação da temática da “revitimização” que é invocada, ao invés da argumentação do MP (segundo a qual a mesma é evitada porque a testemunha só excecionalmente volta a ser inquirida no processo), na perspetiva de que a inquirição pode vir a revelar-se desnecessária com o desenvolvimento da investigação e, assim, se evitaria o contacto precoce das testemunhas com o aparelho de Justiça, diremos:

Salvo o devido respeito por tal posição, não nos parece que a mesma tenha o mínimo de fundamento. Com efeito, revelando-se importante para a investigação e, inerentemente, para os fins do processo penal, a inquirição de testemunhas vulneráveis, o balanço entre os interesses em conflito que devemos sempre efetuar (art.º 18.º, n.º 2 da CRP) pende claramente para a realização deste tipo de inquirição, para não prejudicar a tutela penal efetiva que a comunidade demanda, sendo que, quando se puder ponderar um juízo densificado sobre a necessidade da inquirição, pode já ser tarde demais por vulneração dos mecanismos que tornam o depoimento fiável. Por seu turno, para além das vantagens evidentes que um depoimento precoce representa em termos de fidelidade dos mecanismos da memória, quanto menos tempo mediar entre o evento presenciado e o depoimento, também tendencialmente se reduzirá o impacto decorrente dessa re-vivência, tornando-se notoriamente mais doloroso à medida que o tempo decorre.

(ii) Quanto à invocada inexistência dos meios técnicos para registo vídeo do depoimento, consideramos, salvo o devido respeito, um argumento insuscetível de fundamentar um indeferimento de depoimento para memória futura. Na verdade, como é sabido, os depoimentos nos tribunais de 1.ª instância têm gravação áudio, não constituindo tal característica (nomeadamente no confronto com a gravação vídeo) qualquer handicap à respetiva consideração.

(iii) Relativamente, por último, à invocada “mitigação” do princípio do contraditório, também não deve a mesma constituir um argumento hermenêutico para denegar uma inquirição deste tipo, na medida em que, como acertadamente alega o recorrente, as garantias de defesa são plenamente asseguradas pela nomeação de defensor e presença do mesmo no ato da inquirição.

O entendimento do Mm.º JIC sobre a oportunidade da requerida inquirição, parece-nos, salvo o devido respeito, uma inadmissível intromissão no poder de direção do inquérito deferido ao MP, entendendo-se que, ao interpretar-se as normas que regulam a admissibilidade de depoimento para memória futura de acordo com aquele entendimento, estaríamos perante uma violação do princípio do acusatório vertido no art.º 32.º, n.º 5 da CRP.

Assim, dado o tipo de crime investigado e a idade das testemunhas, entendemos, ao abrigo dos normativos acima reproduzidos, que estão preenchidos os pressupostos legais para o deferimento das requeridas inquirições, que, como se nos afigura também evidente, não implica qualquer juízo sobre a prática de quaisquer crimes em investigação.

Assim, o recurso procede.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida por ausência de fundamento legal, devendo ser admitido o formulado pedido de tomada de declarações para memória futura de AA e BB, se outros impedimentos que não os conhecidos na decisão recorrida não sobrevierem.

Sem custas.

Évora, 28/10/2025,

Edgar Valente (relator)

Laura Goulart Maurício (1.ª adjunta)

Manuel Soares (2.º adjunto)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

..............................................................................................................

1 Diploma a que pertencerão todas as indicações normativas ulteriores sem indicação diversa.

2 Com a redação introduzida pela Lei n.º 29/2008, de 04.07.

3 Disponível, como os demais, em www.dgsi.pt.