REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
Sumário

O mérito ou demérito das razões invocadas, que em abstrato podem obstar à submissão da causa a julgamento, deve ser apreciado na decisão que encerra a instrução e não no despacho que aprecia o requerimento da abertura de instrução.
Nesta fase processual apenas cumpre analisar os requisitos para abertura da instrução, não sendo o momento para se verificar da plausibilidade dos argumentos da defesa, num juízo antecipatório da (in)suficiência indiciária.
Ainda que possamos entender que a atuação de uma causa de exclusão de ilicitude reveste uma necessidade demonstrativa pouco compatível com a suficiência indiciária com que se basta a fase de instrução, não vemos como tal propósito demonstrativo deixe de ser compatível com a comprovação da decisão de submeter os arguidos a julgamento.
A apreciação do mérito das razões invocadas tem o seu lugar na decisão instrutória, após discussão em debate contraditório.
Assim, porque a atividade pedida ao Tribunal cabe dentro das finalidades suscetíveis de justificar a abertura da instrução, sendo o requerido, em abstrato, idóneo a obstar a que o processo, no que diz respeito a estes arguidos, prossiga para a fase de julgamento, tendo aptidão para cumprir a sua função processual, não é possível concluir pela inadmissibilidade legal da instrução requerida.

Texto Integral

Acórdão deliberado em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
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I – RELATÓRIO

Em 01/04/2025, no Juízo de Instrução Criminal de Évora, foi proferido despacho rejeitando os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelos arguidos AA e BB.

Discordando da decisão, os arguidos interpuseram recurso da mesma, pugnando pela abertura da fase de instrução.

A arguida AA, extraí da respetiva motivação as seguintes conclusões:

«22. Erra o douto despacho recorrido quando pretende que seja aplicável o disposto no artigo 180º nº 3 do C.P. à divulgação que a Arguida fez acerca de factos da vida pessoal da Ofendida junto dos progenitores desta.

23. A partir do momento em que a Ofendida publica fotos que atestam a sua vida dissoluta e luxuosa, a qual não é sustentável com meios próprios, mas por recurso a atividades ilícitas, não se trata mais de factos relativos à intimidade da vida privada e familiar.

24. Por outro lado, existe um interesse legítimo em proteger menores em risco pelo facto de estarem à guarda da Ofendida e ser totalmente justificável que os ascendentes desta tenham conhecimento do que está a passar, para, desse modo, atuarem em conformidade.

25. E existe igualmente um interesse público em denunciar quem se dedica ao tráfico de droga, sobretudo para sustentar um estilo de vida ao qual não teria acesso se não fossem as atividades ilícitas.

26. O douto despacho recorrido está a fazer um juízo antecipatório, prematuro, acerca da culpabilidade da Arguida e, por tal facto, considera inútil, por inadmissibilidade legal, a abertura de instrução e a realização do respetivo debate, com inquirição da própria Arguida.

27. Tal como entendeu o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5-02-2013 (Processo 129/11.0GBLGS-A.E1):

28. “II. O que se pede ao Juiz da Instrução, no decurso dessa fase processual, é que avalie a correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público. A sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador.”

29. A “inadmissibilidade legal” a que se reporta o artigo 287º nº 3 do C.P.P. diz respeito a uma inutilidade prática da fase da instrução quando inexistem provas ou indícios que possam infirmar a tese da acusação.

30. Ora, as justificações (e provas) apresentadas pela Arguida para requerer a abertura de instrução são absolutamente razoáveis e congruentes, não podendo, portanto, a decisão de rejeição da abertura de instrução ser subsumível na inadmissibilidade legal prevista no artigo 287º nº 3 do C.P.P.

31. Por tais razões, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que defira a abertura de instrução por parte da Arguida.»

Já o arguido BB, concluí, na suas alegações:

«33.O despacho recorrido enferma de uma perfunctória e apressada apreciação do requerimento de abertura de instrução do Arguido, não podendo ser apresentado como fundamento da rejeição da abertura de instrução a inadmissibilidade legal da mesma.

34. É manifestamente irrealista, da parte do despacho recorrido, admitir que o Arguido estava em condições de, a conduzir, por mero recurso à “força braçal”, dissuadir os agressores de lhe infligirem lesões ao colocarem as mãos em zonas particularmente sensíveis do corpo, tal como o são os olhos e os órgãos genitais.

35. A fuga era a única forma de o Arguido escapar às agressões e aos agressores…o facto de estes se terem pendurado ou agarrado ao veículo, enquanto agrediam o Arguido, e, por tal facto, terem sofrido lesões, não será imputável ao primeiro.

36. “O que se pede ao Juiz da Instrução, no decurso dessa fase processual, é que avalie a correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público. A sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador.”

37. O douto despacho recorrido antecipou a decisão de mérito acerca de uma eventual condenação do Arguido, prematuramente, sem ter analisado as provas da defesa que poderiam infirmar a tese da acusação.

38. E, por tal facto, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 287º nº 3 do C.P.P., razão pela qual deverá a mesma ser revogada e substituída por outra que admita a abertura de instrução requerida pelo Arguido.»

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O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

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O Ministério Público respondeu aos recursos interpostos, pugnando pelo não provimento dos mesmos e consequente manutenção da decisão recorrida, concluindo:

«1.ª A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, nos termos do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal;

2.ª O requerimento de abertura da instrução, ainda que apresentado pelo arguido, pode ser rejeitado, inter alia, por inadmissibilidade legal da instrução, o que sucede quendo se apresente inapto ou inidóneo a satisfazer as aludidas finalidades da instrução;

3.ª A imputação à assistente, feita pela arguida, nas mensagens que remeteu a um seu (da assistente) familiar, de factos, de todo não comprovados,

– de natureza criminal, tais como a insinuação de a assistente ser traficante de droga; e

– sobre a sua vida sexual, tais como a assistente “andar” com homens casados e que “todos os dias vais buscar um home[m] diferente ao Hospital, é objetivamente ofensiva da honra e consideração da assistente;

4.ª Ainda que fossem verdadeiras - e não está demonstrado ou sequer indiciado que o sejam - aquelas imputações, porque não se destinavam a proteger terceiros, defender direitos ou alertar uma autoridade, não realizam qualquer interesse legítimo (artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal), continuando a ser, por isso, penalmente ilícitas e censuráveis;

5.ª Em todo o caso, mesmo que fosse verdadeira - não está demonstrado ou sequer indiciado - a imputação feita pela arguida relativa à vida sexual da assistente, porque envolve matéria da vida privada e familiar (artigo 180.º, n.º 3, do Código Penal), nunca estaria a coberto de qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa.

6.ª Limitando-se, no requerimento de abertura de instrução, o arguido BB a invocar, sem mais, a legítima defesa da sua atuação - sem apresentar, com base nos elementos probatórios recolhidos no inquérito, uma verdadeira “razão de discordância” com a acusação - tal requerimento deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução porquanto não preenche os requisitos plasmados no artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e, além disso, não respeita a finalidade plasmada no artigo 286., n.º 1, do Código de Processo Penal, com que foi configurada aquela fase processual.»

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A arguida/assistente CC não respondeu ao recurso interposto.

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Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, subscrevendo as razões adiantadas pelo Ministério Público junto do Juízo de 1.ª instância, pugnando pela improcedência dos recursos.

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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, não tendo os arguidos respondido ao parecer.

Teve lugar a conferência.

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II. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (AUJ de 19/10/1995, D.R. 28/12/1995) pelo que no presente caso cumpre apreciar e decidir se os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelos recorrentes são legalmente admissíveis e se, por isso, deveriam ter sido recebidos, dando causa à abertura dessa fase processual.

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III. FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida:

«I. Mantenha a autuação como instrução.

II. O tribunal é o competente.

III. Da admissibilidade legal

a) AA

No seu requerimento de abertura de instrução, a arguida AA alega em síntese:

1- Não ter agido com o propósito de denegrir a imagem e o bom nome de CC ou de a atingir na sua honra e consideração pessoal; pretendendo alertar os familiares mais próximos para os riscos que a conduta da assistente poderá ter para a educação da filha desta e as fotos enviadas estão publicadas em redes socais;

2- O estilo de vida é sustentado pela atividade criminosa investigada no proc. n.º 1033/21.9T9EVR.

3- Invoca que nos termos do art.º 180.º, n.º2, do Cód. Penal para dizer que existiu um interesse legitimo por parte da arguida em denunciar a conduta aos familiares próximos e a arguida tem fundamentos sérios para reputar como verdadeiras as imputações que fez acerca da moralidade da assistente.

4- Assim, atento à exclusão da ilicitude constante do art.º 180.º, n.º2, al. a) e b), deverá a arguida ser não pronunciada.

b) BB

No seu requerimento de abertura de instrução, o arguido/assistente BB alega em síntese:

1- A legítima defesa.

2- A caducidade do direito a apresentar queixa e o exercício do dever enquanto ao agente de autoridade no que tange ao crime de difamação.

c) CC

No seu requerimento de abertura de instrução, a arguida/assistente CC alega em síntese:

(…)

Cumpre apreciar e decidir.

O art. 180.º, n.º 1, do Cód. Penal, incrimina “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”. A tutela penal do bem jurídico honra cessa, nos termos do n.º 2 do referido normativo, na circunstância de expectio veritatis conjugada com a realização de interesses legítimos, excepto se a imputação for relativa a factos atinentes à intimidade da vida privada e familiar. O tipo objectivo depende da (i) imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa física viva, (ii) a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou reprodução daquela imputação ou deste juízo, (iii) dirigido a terceiro.

A estrutura subjectiva do crime em questão é dolosa, admitindo qualquer modalidade de dolo, nos termos do art. 13.º e 14.º ambos do Cód. Penal. Não há na lei um dolo específico, um propósito de ofender a honra e a consideração de alguém – animus diffamandi – bastando a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém.

Nos termos do n.º3, sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número 2 não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar. Acresce que o n.º 2 do art.º 180.º, do Cód. Penal, não é aplicável à formulação de juízos de valor ofensivos da honra e consideração.

Os juízos de valor desprezíveis não admitem prova da verdade, conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/10/2004, in www.dgsi.pt, ao estabelecer: “II - Ora, como vem sendo defendido na doutrina e na jurisprudência (ver por significativo nesta matéria, o Ac. da RE de Outubro de 1996, BMJ, 460, 817), «a causa de justificação prevista no nº 2 do artº 180 do C. Penal apenas é aplicável à imputação de factos ou à reprodução da correspondente imputação, pelo que não abrange a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos». III– Com efeito, nos casos de formulação de juízos ofensivos, o recurso à causa de justificação prevista no citado artº 180º, n° 2 do C. Penal, não é legalmente possível, dada a inadmissibilidade da “exceptio veritatis”, bem como a circunstância de o legislador entender que para a salvaguarda do interesse legítimo (requisito essencial da causa de justificação em apreço), basta que se possam manifestar os factos desonrosos.”.

Encontrando-se a arguida AA acusada da prática de um crime de difamação, por ter enviado mensagens a familiares da assistente, aquela pretende fazer valer no requerimento de abertura de instrução a cláusula exceptio veritatis e a inexistência da intenção criminosa. Porém, a lei veda a aplicação do disposto no n.º2 do art.º 180.º do Cód. Penal quando os factos imputados respeitam à intimidade e à privacidade da ofendida. Acresce que o ilícito criminal em questão não exige o dolo particularmente qualificado para fazer incorrer o agente em responsabilidade. Conforme ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2020, “(...) o animus difamandi não integra o tipo subjetivo do crime em análise, ou seja, não se exige que o agente tenha agido com a intenção - consciência e vontade - de ofender a honra e/ou a consideração de outrem, bastando a consciência, por parte do mesmo, de que o seu comportamento é de molde a produzir a ofensa da honra e/ou da consideração de alguém e que a queira realizar (...) – disponível em www.dgsi.pt. Com efeito, é despicienda a alegação da arguida de que não tinha a intenção da difamar a assistente CC.

Pela invalidade dos argumentos da arguida AA, só existe uma consequência; haverá sempre julgamento, tornando supérflua para efeitos de instrução criminal a discussão sobre quão desonroso é dizer que alguém vive do tráfico de estupefaciente. E tal como decidido no acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, no processo n.º 226/09.1 PBEVR.E1: «É o que se passa nos presentes autos: mesmo que a decisão instrutória fosse inteiramente favorável ao arguido ora recorrente, sempre a causa (o processo) transitar(á)ia para julgamento. Consequentemente, nos termos do artº 287º, nº 3 do CPP, estamos perante uma situação em que se impunha legalmente a rejeição do requerimento para abertura da instrução por inadmissibilidade legal da mesma.». Entendimento que, por razões em tudo idênticas às invocadas no aludido aresto, aqui se acolhe, para considerar que se impõe a rejeição do requerimento de abertura de instrução desta arguida, pois a expressões relativas à vida da assistente têm um nítido conteúdo criminal.

(…)

Foi imputada a BB a prática de dois crimes de ofensas à integridade física devido às lesões provocadas em CC e em DD. No requerimento de abertura de instrução daquele foi alegada a legítima defesa. Em face de do quadro factual delineado pela acusação, as agressões imputadas a BB surgem como resposta à conduta dos indivíduos supramencionados.

A legítima defesa é uma causa de justificação ou de exclusão da ilicitude prevista nos arts. 32.º do Código Penal e 337.º do Código Civil, e consiste no facto praticado como meio necessário para repelir uma agressão actual e ilícita de quaisquer interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Dispõe o artigo 31º, nº 1, e nº 2, al. a), do Código Penal, que “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado em legítima defesa”. Por sua vez, nos termos do art.º 33.º, do Cód. Penal, “1 - Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada. 2 - O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis”. Tendo em consideração que a jurisprudência vêm entendendo o veículo automóvel como meio perigoso para o cometimento de lesões físicas a outrem (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 27 de Junho de 2008 e 08 de Maio de 2018 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Junho 2018), há desproporção entre os meios utilizados na suposta e a invocada atitude de defesa numa perspectiva ex ante em face da agressões e lesões que o arguido BB diz ter sofrido.

Não se encontrando os ofensores – CC e DD – munidos de instrumentos de agressão, o arguido BB não podia o lançar ou avançar o veículo automóvel sabendo que iria provocar lesões ou o atropelamento daqueles colocando em causa não só a integridade física como as suas vidas. Não existe adequação e necessidade do meio utilizado pelo requerente quando este corresponde ao veículo automóvel e a intensidade do ataque sofrido é de pouca monta merecendo – tão só - uma acção dissuasora com força braçal. De modo que, em função do disposto no art.º 33.º, n.º1, do Cód. Penal, deverá ser sempre o arguido pronunciado para julgamento a fim de se determinar a pena.

No que tange à caducidade do direito de queixa, aqui assiste inteira razão ao requerente. O procedimento criminal encontra-se extinto por caducidade. Em face de fls. 309, concordamos com a asserção do Ministério Público que reproduzimos: “os factos foram praticados no dia 1 de Outubro de 2021, CC teve conhecimento dos mesmos no dia 19 de Outubro de 2021 (como admitiu em interrogatório complementar) e apenas veio aos autos manifestar vontade de proceder criminalmente contra aquele no dia 20 de Abril de 2022. Ou seja, quando a “queixa” foi apresentada já tinham decorrido mais de seis meses sobre a data em que os factos foram praticados - caso em que o direito de queixa, relativamente aos mesmos, se encontrava extinto por caducidade (vd. 19 de Abril de 2022, artigo 115.º do Código Penal), sendo, portanto, nesta parte, o procedimento criminal legalmente inadmissível.”.

Nos termos do artigo 286.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

O requerimento só pode ser rejeitado por extemporaneidade, incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal, cfr. n.º 3 do citado normativo legal.

Ressalvado o devido respeito, é legalmente inadmissível a comprovação da acusação particular e do despacho de arquivamento (quanto ao crime de perseguição) pelos termos apresentados nos requerimentos de abertura de instrução das arguidas, assim como a questão da legítima defesa invocada não determinará a não pronúncia do requerente. Por inadmissibilidade legal, deverão ser rejeitados os requerimentos de abertura de instrução.

Nos termos expostos e ao abrigo das disposições legais citadas, decide-se rejeitar os requerimentos de abertura de instrução de AA, BB (em parte) e CC, cujas custas se fixam em 2 UC a ter em conta a final; declarar extinto o procedimento criminal relativamente a BB pela prática de um crime de difamação previsto e punível pelos artigos 180.º e 184.º, ambos do Cód. Penal, com custas a suportar pela assistente CC que se fixam em 2 UC a ter em conta a final; e, julgar inútil a instrução na parte remanescente e atinente ao crime de difamação imputado a BB.

Notifique. »

Para apreciação do mérito, relevam, ainda, as seguintes circunstâncias processuais:

Nos presentes autos, em 11/06/2024, foi deduzida acusação particular pela assistente CC imputando a prática aos arguidos, aqui recorrentes, BB e AA, de um crime de difamação previsto e punido pelo art. 180.º, do Código Penal, agravado quanto ao primeiro pelo art. 184.º, do mesmo diploma.

O Ministério Público aderiu parcialmente à acusação particular (contra a arguida AA).

Em 9/09/2024, foi proferida acusação pelo Ministério Público, imputando a prática:

A) À arguida CCs, em autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal;

B) Ao arguido DD, em autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal;

C) Ao arguido BB, em autoria e em concurso real e na forma consumada, de dois crimes de ofensa à integridade física, previstos e punidos pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal;

D) À arguida AA, em autoria e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal.

Da (in)admissibilidade legal da instrução:

Está em causa a interpretação das exigências do artigo 287.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, relativamente ao conteúdo do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido e, consequentemente, da possibilidade de rejeição da mesma por inadmissibilidade legal, prevista no n.º 3 do mesmo preceito.

A instrução é uma fase processual autónoma, facultativa, cuja direção compete a um juiz, diverso do juiz de julgamento, que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal).

Assim, nos termos em que a lei vigente regula esta fase processual, a mesma não tem natureza investigatória, destinando-se à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação, não se podendo constituir num complemento da investigação, prévia à fase de julgamento.

A estrita vinculação temática do tribunal aos factos alegados na acusação ou no requerimento de abertura de instrução (art. 309.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal), enquanto limitação da atividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal, reflexo da garantia de defesa consagrada no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

O art. 287.º do Cód. Processo Penal define os prazos e requisitos de abertura desta fase processual, a legitimidade de quem a pode desencadear, assim como as condições que o requerimento deve observar e em que o Tribunal o pode rejeitar.

Na parte que para aqui releva, temos que a abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação ou do arquivamento, pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação (n.º 1).

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (n.º 2), só podendo ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal de instrução (n.º 3).

O requerimento de abertura de instrução terá, assim, de conter a apresentação das razões de facto e de direito que opõe à acusação, mas estas não têm de ser enunciadas de maneira completa ou exaustiva, ponto por ponto. O requisito de conteúdo será observado com a mera súmula dessas razões, desde que da mesma se depreenda a pretensão do arguido e seja possível fixar adequadamente o objeto da instrução.

A faculdade de o arguido desencadear esta fase processual em caso de acusação por parte do Ministério Público ou do assistente, ainda que a mesma não seja obrigatória por não imposta por um modelo de estrutura acusatória, tem sido entendida como um complemento do direito de defesa constitucionalmente consagrado, alavancado, ainda no art. 32.º, ns.º 4 e 5 da CRP.

Mas o exercício desta faculdade processual por parte do arguido, pressupõe a tutela do interesse em não ser submetido a julgamento1.

E como enuncia o STJ no acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ) n.º 7/2005 (prolatado a propósito dos requisitos a observar pelo assistente que apresenta requerimento de abertura de instrução), citando SOUTO MOURA “A instrução surge, no CPP, como um direito, disponível, nem por isso deixando de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da actuação do Ministério Público, pelo que tal garantia se esvaziaria se o direito à instrução se revestisse em condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados”.

Perspetiva também evidenciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 46/20192 onde, não se deixando de evidenciar a jurisprudência sedimentada no sentido de que o nosso texto fundamental não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha lugar uma exaustiva e completa verificação judicial das razões que sustentem o juízo de presumível condenação, afasta a possibilidade de o legislador processual penal negar ao arguido, quer direta, quer indiretamente, o direito de provocar a abertura de instrução. Não arredando, no espírito do due processo of law, a liberdade de conformação do legislador ordinário na definição de ónus processuais ao exercício do direito de defesa, evidencia que a interpretação dessas condições, se traduzida numa oneração excessiva do mesmo, pode reconduzir-se à violação das garantias de defesa do arguido.

As razões de eficiência e eficácia que têm justificado um progressivo alargamento das causas de rejeição do requerimento de abertura de instrução, todas reconduzidas à interpretação a conferir ao conceito de inadmissibilidade legal de instrução, não podem perder de vista o teor literal das normas em que se fundamentam, assim como as razões subjacentes à consagração da faculdade do arguido requerer a apreciação judicial do bem fundado da decisão de acusar.

De tudo isto, decorre que, não estando o requerimento de abertura de instrução sujeito a requisitos especiais e sendo as causas de rejeição do mesmo taxativas, apenas se verificando uma destas condições pode ser vedada ao arguido a abertura desta fase processual.

Mas, se a falta de observância do prazo e de competência do juiz não levantam dificuldades de maior, já assim não é no que diz respeito à prevista cláusula geral de rejeição por inadmissibilidade legal de instrução.

Se a plena garantia dos direitos de defesa não determina a obrigatoriedade desta fase processual, nem é incompatível com a vinculação temática que orienta a atividade do juiz que à mesma preside, em nosso entender, já encontra obstáculos a uma interpretação legal deste conceito que se traduza em ónus excessivos para a defesa, com condições com que aquela não poderia contar, ainda que, no modelo processual penal atual, se pressuponha a possibilidade de o arguido intervir ativamente no inquérito, inteirando-se dos factos antes da acusação e podendo, quanto aos mesmos, se pronunciar.

O que pode, então, integrar o conceito de inadmissibilidade legal de instrução, em que se pretende cada vez mais ancorar um maior número de situações, justificando-se, assim, a não abertura de uma fase processual, malquista por muitos, tem sido objeto de explanação doutrinária e jurisprudencial.

De várias situações que podem preencher este conceito (melhor elencadas no AUJ n.º 7/2005), estarão aquelas em que a lei expressamente prevê não haver lugar a esta fase intermédia (286.º, n.º 3 do Cód. Processo Penal), restrita à forma de processo comum, assim como aquelas das quais deriva a inutilidade da mesma, e que podem extravasar meras razões formais e reconduzir-se ao conteúdo do requerimento. Como refere PEDRO SOARES DE ALBERGARIA3, “nem sempre essa inadmissibilidade resulta direta e obviamente de norma expressa (cf. art. 286º/3), mas mais frequentemente até da consideração do desenho e lugar da fase de instrução na estrutura (acusatória) jurídico-constitucionalmente sancionada do processo penal português (…)– é dizer, não raro a inadmissibilidade legal da instrução resulta não propriamente de uma norma-regra (ainda o art. 286º/3), mas da correta compreensão e otimização dos princípios que caraterizam o processo penal pátrio.”. Será o caso, refere, quando os termos do requerimento do arguido são, em si mesmos, insuficientes para obstarem à introdução do feito em juízo, tornando-o inepto para o fim visado. Concordamos que a interpretação desta cláusula não poderá prescindir da sua concatenação com as finalidades que norteiam a fase processual a que se almeja aceder4, pois que se proíbe em qualquer fase processual a prática de atos inúteis e se distingue, claramente, a atividade probatória que deve ter lugar na fase de julgamento, daquela outra que pode ser deferida na fase de instrução (não devendo esta última transmutar-se num julgamento antecipado). Mas esta conformação material da cláusula de rejeição do requerimento de abertura de instrução, como acima referimos, não pode alhear-se da letra do preceito, da taxatividade das causas determinadas para rejeitar tal requerimento, nem das garantias de defesa do arguido.

Posto isto, temos que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido tem que conter os argumentos que o mesmo repute pertinentes à demonstração de que a acusação é infundada, obstando por essa via à sua submissão a julgamento.

Vejamos, então, o que consta dos requerimentos de abertura da instrução apresentados pelos recorrentes:

❖ Requerimento de abertura de instrução da recorrente AA:

«(…)

5.Contrariamente ao que a acusação refere, ao remeter as referidas mensagens, a Arguida AA não agiu com o propósito de denegrir a imagem e o bom nome de CC ou de a atingir na sua honra e consideração pessoal.

6. As pessoas destinatárias das mensagens são, respetivamente, o padrasto e mãe da Assistente CC, ou seja, os familiares mais próximos desta, para além da filha menor.

7. A Arguida tem conhecimento da vida escandalosa da CC porque é companheira do Arguido BB que já foi namorado da CC.

8. É do conhecimento da Arguida que a conduta promíscua da Assistente e a sua ligação ao tráfico de droga estão a ser objeto de investigação no Processo crime 1033/21.9T9EVR, o qual foi autonomizado destes autos.

9. Ao denunciar os factos dos quais tem conhecimento, por ter tido conhecimento, entre outras fontes, através do seu companheiro, que foi namorado da CC, a Arguida pretendeu apenas alertar os familiares mais próximos para os riscos que a conduta da Assistente poderá ter para a educação da filha desta última.

10. Mais: para ela própria, CC, que parece ter perdido a noção das realidades e salta de namoro em namoro, deixando a filha menor para trás, ao cuidado dos avós, e mentindo-lhes quanto às suas frequentes ausências de casa.

11. As fotos que a Arguida enviou à mãe e ao padrasto da CC, estão publicadas na rede social Instagram, com dezenas de likes, e ilustram bem a vida dissoluta da Assistente.

12. A vida desregrada e a promiscuidade da CC colocam a filha menor desta em situação de risco e era premente que algum familiar próximo fosse alertado de tal.

13. A Arguida julga que o padrasto da CC, Sr. EE, será uma pessoa responsável e capaz de tomar a medida correta para o bem da filha...

14. E mesmo a mãe da CC deverá ter um pouco de vergonha ao saber que a filha se exibe em hóteis e viagens nas redes sociais, ostentando um estilo de vida muito acima das possibilidades duma assistente operacional/empregada de limpezas...

15. Esse estilo de vida é sustentado pela atividade criminosa que está neste momento a ser investigada no Processo 1033/21.9T9EVR, para além dos devaneios que ela tem com homens com um certo status económico...e que se divertem com ela, claro...

16. Aliás, a Arguida teria muito mais para dizer... porque está em risco uma criança que não tem culpa da situação familiar em que vive... restou à Arguida apelar ao bom senso do padrasto e da mãe da CC..

17. Nos termos do artigo 180.º nº2 - b) do C.P., a conduta prevista no corpo do artigo não é punível quando o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

18. Ora, a Arguida conhece a CC há muitos anos: já foi ameaçada, agredida e injuriada por esta, estando processos-crime a correr contra ela na sequência de queixas apresentadas pela Arguida.

19. O seu companheiro, BB, também já foi vítima da Assistente e dos amantes, os quais são normalmente agentes da autoridade, para, desse modo camuflar as atividades criminosas.

20. O que a Arguida disse nas mensagens dirigidas à mãe e ao padrasto da CC é muito pouco relativamente àquilo que ela, Arguida, sabe acerca da vida da aqui Assistente e dos perigos que a aproximação a ela colocam...em especial, para a educação da filha menor...

21. Deste modo, alguém terá que dar conhecimento à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo da vida escandalosa da aqui Assistente para que sejam tomadas as devidas precauções quanto à filha menor...

22. Não é a Arguida que está a atentar contra o bom nome, honra e consideração da aqui Assistente...é esta que causa escândalo e problemas da mais variada ordem com a vida promíscua e os negócios ilícitos com que ela sustenta o estilo de vida que as suas posses não lhe permitem custear.

23. Deste modo, existiu um interesse legítimo, por parte da Arguida, em denunciar a conduta da CC aos familiares mais próximos, estando assim a ilicitude da conduta excluída pelo artigo 180º nº 2 - a) do C.P.

24. E a Arguida tem fundamentos sérios para reputar como verdadeiras as imputações que fez acerca da moralidade da Assistente.

25. Assim, atenta a exclusão das ilicitudes constantes do artigo 180º nº 2 - a) e b) do C.P., deverá a Arguida ser não pronunciada».

❖ Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente BB:

(expurgado da parte em que contesta a imputação pela prática de um crime de difamação previsto e punível pelos artigos 180.º e 184.º, ambos do Código Penal, porquanto não vem questionado, em recurso, o segmento da decisão que declarou extinto o procedimento criminal pela prática do mesmo).

«(…)14. Tal como se pode constatar da descrição acima efetuada, o Arguido BB agiu em legítima defesa.

15. Ora, estando ele a ser agarrado pelos outros arguidos nas partes mais sensíveis do corpo (olhos e testículos), não poderia continuar no local onde estava; tinha que fugir rapidamente.

16. E se ambos os arguidos estavam pendurados no veículo, havia necessariamente que sacudi-los do mesmo e escapar às agressões.

17. Não existe agressão física; existe legítima defesa, não estando de modo nenhum preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime do qual o Arguido vem acusado, quer relativamente a CC quer a DD.

18. Por outro lado, não corresponde à verdade que o Agente DD tenha caído da janela e sido projetado no chão (fls. 63, 60 parágrafo).

19. O Agente DD esteve todo o tempo agarrado a BB e ao veículo conduzido por este.

20. BB continuou a pressionar o acelerador, imprimindo velocidade ao veículo que conduzia, tendo DD saído apenas da janela do carro e largado o arguido BB no cruzamento da Rua da … com o Caminho Municipal ….

21. Entretanto, BB sustém a marcha do veículo e, com a reaproximação de DD, alcança o rádio emissor receptor da … que este trazia no cinto das calças, e sinaliza um pedido de socorro através do mesmo para a central da polícia de ….

22. BB, nessa contenda, através do rádio intercomunicador, depois de pedir por socorro ao comunicar com a Central da …, carrega no acelerador para fugir...deixando o Agente DD de pé, com o rádio entretanto devolvido pelo Arguido...e não no chão, tal como relatado na acusação (fls. 63, 60 parágrafo).

23. A CC agarrou-se à janela do veículo do Arguido BB, colocou as mãos e unhas pontiagudas na zona dos olhos para, obviamente, o molestar fisicamente.

24. Não foi percecionado pelas testemunhas oculares que a Arguida/Assistente CC tenha caído ao chão.

25. Segundo as testemunhas, após o embate do veículo do Arguido no muro da D. FF e consequente danificação do contador da água, a Assistente terá "abalado a correr para baixo", andando para trás e para a frente, de forma muito rápida, tal como descrito na carta enviada ao Diap a 17 de fevereiro de 2021 (fls. 871).

26. O Arguido, desde já, requer que seja oficiado a Direção Nacional da … para identificar e inquirir o responsável de serviço no dia 18 de julho de 2020, pelas 2h00, no Comando Distrital de …, e confirmar se o ora Arguido contatou, através do rádio distribuído ao Agente DD, aquele Comando, reportando uma situação de agressão e efetuando um pedido de ajuda urgente SOS..

27. Não se sabe que maiores consequências, para além das que ficaram descritas no relatório médico junto aos autos, teriam ocorrido se o Arguido não tivesse fugido dos agressores...

28. E as agressões ao Arguido BB tinham um móbil específico: para além do triângulo amoroso que tinha existido, entretanto desfeito, com a CC no centro, o Arguido BB desconfiava dos negócios de tráfico de droga em que ela estava envolvida.

29. Por outro lado, o Arguido BB, ao fotografar o carro descaracterizado da … de … naquele local (fls. 873), colocava o Agente DD em processo disciplinar grave, com suspeição de no seu turno de serviço perpetuar outras acções que não as de serviço policial.

30. A testemunha D. FF confirmou ao Arguido e ao Chefe GG a presença regular, pelas 23 horas, nas imediações dum veículo suspeito de cor cinzenta semelhante, senão mesmo igual, ao do Agente DD (fls. 871).

31. Na carta enviada pelo Arguido BB ao Diap em 17-02-2021 (fls. 871), é ainda referido que o dístico da via verde no veículo do Agente DD se encontra tapado com um papel de prata de modo a poder circular em locais de controlo da via verde, sem pagar portagens, e, desse modo, conseguindo dissimular a presença do veículo, fugindo ao controlo da ….

32. E são juntas duas fotos com vista ampla e pormenorizada da viatura policial cinzenta conduzida pelo Agente DD.

33. Aliás, a CC tinha todo o interesse em manter relacionamentos com agentes da autoridade para que, desse modo, as suas atividades criminosas passassem despercebidas.

34. A testemunha HH confirmou, em inquirição, a presença regular do Agente DD, ao fim do dia, junto da casa da CC, a qual frequentava habitualmente, tendo apenas visto o Arguido BB nesse dia da ocorrência (fls. 793).

35. E a presença do Agente DD naquele local, que é patrulhado pela Guarda Nacional Republicana, e não pela Polícia de Segurança Pública, suscitou logo suspeitas ao Arguido BB. ..e, ao aperceberem-se que o Arguido BB iria denunciar o relacionamento de ambos e as atividades criminosas da CC, trataram de o agredir de modo a constranger amedrontá-lo...

36. Deste modo, o facto de os Arguidos CC e DD terem lesões físicas deve-se à sua conduta criminosa quando, estando o veículo do Arguido BB já em andamento e em fuga às intenções de agressão da parte deles, pretenderam infligir-lhe lesões, amedrontá-lo, constrangê-lo, e tirar-lhe o telemóvel, bem sabendo que a imobilização e subsequente fuga do veículo traria as consequências que acabaram por se verificar.

37. A atuação do Arguido BB, ao carregar no acelerador e escapar às agressões de ambos, outra coisa não foi senão o exercício da legítima defesa prevista no artigo 31º nº 1 - b) do C.P.

38. Aliás, não pode a douta acusação entender que o Arguido BB devia manter o veículo parado, sujeitando-se a toda a espécie de humilhações, até que os Arguidos CC e DD se fartassem ou até à própria morte do Arguido...sem fazer nada...sem reagir...ou então que os convidasse a entrar no próprio veículo.

39. É demasiada incongruência e a acusação deverá soçobrar porque, ela própria, sem necessidade de prova complementar, é contraditória.

40. Torna-se evidente uma falha na análise crítica dos factos que poderiam indiciar a prática de dois crimes de ofensa à integridade física contra a CC e o DD, tal como decorre da acusação, mas que, na realidade, apenas indiciam o inverso: a prática destes crimes por parte destes dois também arguidos.

(…)

Conclusão:

65. A atuação do Arguido, perante as agressões dos Ofendidos CC e DD, foi totalmente justificada porquer se não carregasse no acelerador e avançasse, com toda a probabilidade, as agressões que sofreu ainda seriam de maior gravidade, podendo até por em risco a sua própria vida.

66. Face ao disposto no artigo 31º nº 2 - a) do C.P., encontra-se excluída a ilicitude da conduta do Arguido face aos dois Ofendidos.(…)

69. Perante o acima exposto, deverá o Arguido ser não pronunciado»

Posteriormente, requereu o esclarecimento/retificação do requerimento apresentado:

«2. Relativamente aos artigos 20º a 22º , o Arguido reformula o articulado nos seguintes termos:

20. BB continuou a pressionar o acelerador, imprimindo velocidade ao veículo que conduzia, tendo DD permanecido debruçado, através da janela do condutor, sobre o interior do carro, agarrado a BB e agredindo este.

21. O contato via rádio tem lugar quando BB sustém a marcha do veículo, no cruzamento da Rua da … com o Caminho Municipal …, ainda com DD debruçado sobre a janela do carro a agredi-lo, e consegue alcançar o rádio emissor recetor da …, que DD trazia atrás, no cinto das calças, e sinalizar um pedido de socorro para a Central da … de ….

22. Após a sinalização do pedido de socorro, BB carregou no acelerador para fugir...deixando o Agente DD de pé, com o rádio entretanto devolvido pelo Arguido...e não no chão, tal como relatado na acusação (fls. 63, 60 parágrafo).

(…)

Local da ocorrência

11. Contrariamente ao que consta da participação (fls. 1070 e 1074 do processo eletrónico), a ocorrência não teve lugar no Caminho Municipal …, nº …; essa será a morada da Arguida/Assistente CC.

12. A ocorrência teve lugar na Rua da …, em frente a uma igreja, no Bairro …, em …, a cerca de 300 metros do Caminho Municipal …, tal como as duas testemunhas oculares - FF e II - poderão confirmar.

13. Tal como a foto do Google Earth exemplifica, o Caminho Municipal nº … confronta na extremidade oposta com o local da ocorrência.

14. De salientar ainda que o local da ocorrência é patrulhado exclusivamente pela GNR e está longe da área patrulhada pela PSP.

15. Junta-se em anexo: foto do Google Earth com a sinalização do local da ocorrência e da morada da testemunha HH, vizinha da CC.»

Visto o teor destes requerimentos, temos de concluir que não assiste razão ao Tribunal recorrido, quando considera que os mesmos são legalmente inadmissíveis, desde logo por tal juízo ter sido fundado na apreciação do mérito das razões em que os recorrentes fundaram as respetivas pretensões de não submissão a julgamento.

Em qualquer um dos requerimentos, vem invocada pelos recorrentes causa de exclusão da ilicitude, com a qual sustentam a pretensão de não ser submetidos a julgamento, a que acresce a invocação de desacerto na alegação factual e na valoração de certos meios de prova no RAI do recorrente BB, não se limitando o mesmo a uma mera confirmação/negação da factualidade imputada, mas adiantando uma versão alternativa, justificando-se o exercício jurisdicional de avaliação. Pode acontecer que, realizado o debate instrutório, o juiz de instrução conclua pela não verificação das invocadas causas de exclusão. Este é um dos desfechos possíveis para a fase instrutória do processo, mas a previsibilidade do mesmo, ante os argumentos invocados, não constitui entrave legal à discussão e avaliação judicial das razões invocadas (podendo, quanto muito, refletir-se na avaliação das diligências solicitadas). A tal conclusão só pode chegar-se, contudo, no termo da instrução e não antes da respetiva abertura.

O mérito ou demérito das razões invocadas, que em abstrato podem obstar à submissão da causa a julgamento, deve ser apreciado na decisão que encerra esta fase processual e não, como aconteceu na decisão recorrida, no despacho que aprecia o requerimento da abertura de instrução.

Como bem se refere no Ac. do STJ de 11/10/20235 “…o despacho de abertura da instrução há de limitar-se a julgar da admissibilidade ou não do RAI. Não pode entrar a apreciar antecipadamente o mérito da questão. O despacho de abertura ou rejeição do RAI limita-se a isso mesmo, ou abrir ou rejeitar. O mérito da questão há de ser apreciado a final da instrução. Natureza e tempos processuais distintos têm o despacho que defere ou rejeita o RAI e o despacho de pronúncia ou não pronúncia.(…)

Primo, defere-se ou rejeita-se o RAI, secundo, pronuncia-se ou não o arguido. Por esta ordem, em despachos finalisticamente diferentes e em tempos cronológicos e processuais distintos. Só depois de admitido o RAI é que sobrevem a apreciação de mérito.”.

Na fase processual em que nos encontramos, apenas cumpre analisar os requisitos para abertura da instrução, não sendo o momento para se verificar da plausibilidade dos argumentos da defesa, num juízo antecipatório da (in)suficiência indiciária.

Ainda que possamos entender que a atuação de uma causa de exclusão de ilicitude reveste uma necessidade demonstrativa pouco compatível com a suficiência indiciária com que se basta a fase de instrução, não vemos como tal propósito demonstrativo deixe de ser compatível com a comprovação da decisão de submeter os arguidos a julgamento.

A apreciação do mérito das razões invocadas tem o seu lugar na decisão instrutória, após discussão em debate contraditório.

Assim, porque a atividade pedida ao Tribunal cabe dentro das finalidades suscetíveis de justificar a abertura da instrução, sendo o requerido, em abstrato, idóneo a obstar a que o processo, no que diz respeito a estes arguidos, prossiga para a fase de julgamento, tendo aptidão para cumprir a sua função processual, não é possível concluir pela inadmissibilidade legal da instrução requerida.

Procedem, pois, os recursos.

*

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação em conceder provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB, revogando a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que admita os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelos recorrentes (na parte não prejudicada pelo trânsito no que diz respeito ao recorrente BB e ao crime de natureza particular que lhe havia sido imputado), declarando aberta essa fase processual e seguindo-se os ulteriores termos do processo, caso não ocorra motivo diferente de rejeição.

Sem custas.

Notifique.

*

Évora, 28 de outubro de 2025

Mafalda Sequinho dos Santos

Beatriz Marques Borges

Laura Goulart Maurício

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1 O Tribunal Constitucional tem entendido que o nosso texto fundamental não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação (Nomeadamente nos Acs. 31/87, 474/94, 551/98, 459/00, 79/05 e 242/05).

2Relator Gonçalo de Almeida Ribeiro.

3 Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., Almedina, págs. 1255.

4 Ainda que não vejamos obstáculo a que se antecipem razões que podem sustentar uma futura contestação a apresentar na fase de julgamento, ato processual para o qual o legislador foi menos exigente quanto ao respetivo conteúdo.

5 Relator ERNESTO VAZ PEREIRA, http://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:15.22.8TRLSB.S1.F0