FACTOS INSTRUMENTAIS
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
Sumário

I - A apreciação da impugnação da matéria de facto no recurso deve limitar-se aos pontos com interesse para a decisão da causa e do recurso, ficando prejudicada por inutilidade na parte restante.
II - É inútil e irrelevante, no recurso, a tarefa de averiguação específica sobre se estão ou não provados factos instrumentais que não desencadeiem a aplicação de qualquer presunção legal relevante, sem prejuízo da eventual contribuição que possam aportar, conjuntamente com a análise de toda a prova, para a apreciação sobre a comprovação dos factos essenciais.
III - Os factos conclusivos não podem integrar a matéria de facto quando estão diretamente relacionados com o thema decidendum, obnubilam a perceção da realidade concreta e/ou ditam por si mesmo a solução jurídica do caso.
IV - A teoria da causalidade adequada assume relevância na aferição do requisito da responsabilidade civil relacionado com o nexo causal entre o facto e o dano que é necessário para fundar o dever de indemnizar, nos termos do art. 563.º do Código Civil, e traduz a adopção pela nossa lei do princípio geral de que o facto, além de voluntário, ilícito e culposo, só será gerador de responsabilidade se tiver sido condição da verificação do dano, por um lado e, por outro, se em geral ou abstractamente tiver aptidão ou idoneidade para o produzir.
V - A falta ou a insuficiência da prova sobre a verificação de um facto posterior, ainda que de natureza semelhante ao anterior, não significa nem se confunde com a ausência de idoneidade em abstracto de qualquer um deles para a produção de determinado dano.
VI - Apesar da essencialidade do princípio do dispositivo no nosso processo civil, manifestada desde logo nos arts. 3.º/1 e 609.º do CPC, a doutrina e a jurisprudência têm salientado a importância de evitar entendimentos rígidos a esse respeito e que causem prejuízos injustificados para a tutela efectiva dos direitos das pessoas que aos tribunais cumpre garantir.
VII - A determinação do sentido dos articulados e dos pedidos deduzidos pelas partes deve obedecer aos princípios aplicáveis às declarações negociais, com prevalência da substância sobre a forma, visando garantir o princípio da efetiva tutela jurisdicional e tendo presente a prevalência das decisões de mérito.

Texto Integral

Processo: 3370/23.9T8PRT.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Carla Jesus Costa Fraga Torres
2.º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha

RELATÓRIO.
AA, titular do NIF ... e residente na Travessa ..., casa ..., em Vila Nova de Gaia, propôs acção declarativa, com processo comum, contra BB, portadora do NIF ... e com residência na Rua ..., ..., no Porto.
Pediu que, pela procedência da acção, seja: (i) declarado que a Autora é legitima dona e proprietária do prédio identificado no art.º 1 da Petição Inicial;
(ii) condenada a Ré a reconhecer a Autora legitima dona e proprietária do prédio identificado no art.º 1 da Petição Inicial; e
(iii) condenada a Ré a executar as obras de reparação dos danos por esta provocados, no prédio da Autora.
Subsidiariamente ao terceiro pedido, pediu a condenação da Ré no pagamento das obras de reparação dos danos por esta provocados no prédio da Autora, no valor que ascende a € 5.430,00, a que acresce IVA à taxa legal em vigor, e no pagamento da quantia de € 750,00 a título de honorários pagos para a execução de relatório pericial que acompanhou a petição inicial.
Para o efeito e em síntese, alegou que é proprietária do prédio sito na Rua ..., ..., no Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o art. ..., por si adquirido através de escritura pública de divisão de coisa comum e sobre o qual, por si e antepossuidores, mercê de válidas e sucessivas transmissões, exerce legítima posse desde há mais de 30 anos.
Já a R. é proprietária do prédio urbano sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial sob o art.º ..., que é contíguo com o prédio propriedade da A., com cota mais elevada, com ele confrontando com a empena oeste, e do qual se separa por uma parede meeira.
Sucede que o prédio da R. está em avançado estado de degradação e ruína, sem que desde a respectiva aquisição, em 2015, até à data presente, a R. tenha executado quaisquer obras de reabilitação ou conservação.
Assim, no telhado do prédio da R. encontra-se um anexo, construído sob toa à parede meeira, contíguo a leste, composto de paredes, telhado e chaminé, que está completamente degradado, coberto com telhas deslocadas e partidas, bem como remendos de tela de alumínio, rasgados e deslocados, o que deu origem a infiltração de água das chuvas, a partir de Novembro de 2022, com maior intensidade, pelo topo da parede de pedra, meeira do logradouro do prédio da A., ao apodrecimento do revestimento exterior (reboco pintado) do prédio da A. e à emissão de odores nauseabundos que se espalham por toda a fachada traseira desse edifício, mercê da infiltração de água proveniente do edifício da Ré pelo coroamento da parede de pedra meeira com o edifício a leste.
Para além disso, a parede interior dos quartos traseiros do prédio da A. está eivada de manchas de humidade, em resultado da infiltração de água proveniente da empena do prédio mais alto, o da R., que se mostra isolada em tela de alumínio em mau estado de conservação, mercê de emendas e remates deslocados, levando a que a água escorra pela parede contigua e afecte o prédio da A. na parede dos quartos traseiros de todos os 4 pisos.
E apesar de todos estes factos terem sido comunicados ao marido da R., que se apresentou como dono de obra e aceitou proceder à respectiva reparação, ate à presente data não o fez, mesmo depois de interpelada por escrito para a necessidade e urgência de reparação dos danos sofridos pela A. no seu prédio.
Concluiu que esses danos ocorreram por culpa exclusiva da R., a qual não conservou, nem procedeu a qualquer obra de manutenção do seu prédio, e invocou o disposto nos arts. 493.º/1, 483.º e 562.º do Código Civil, acrescentando ter suportado a quantia de € 750,00 pela realização do relatório técnico, custo pelo qual considerou dever ser ressarcida pela R.
Logo após a citação, a A. juntou requerimento para ampliação do pedido e da causa de pedir, no qual afirmou que a 7 e 8 de Março de 2023, ocorreu um novo sinistro, por causa do prédio propriedade da R., que determinou o surgimento de novas infiltrações de água no prédio da A., seja nas zonas anteriormente afectadas, onde as infiltrações aumentaram o seu grau de visibilidade, seja com o surgimento de outras, agora na parte da frente do edifício, nomeadamente, no acesso às escadas, rés do chão e no quarto n.º1.
Em ambos os casos ao longo de toda a parede e resultantes de o edifício da R. não possuir telhado, na zona da frente do edifício, deste modo permitindo a entrada das chuvas e a sua propagação ao prédio da A., causando infiltrações.
Finalizou o requerimento de 13/3/2023 nos seguintes termos: “ampliando-se assim, a causa de pedir e o pedido formulados nesta acção, de modo a acrescentar, ao pedido, a reparação destes novos danos”, devendo “ser admitida a ampliação de causa de pedir e pedido e como tal condenar a Ré a executar as obras de reparação dos danos por esta provocados, no prédio da Autora, decorrente a acrescer, das novas infiltrações supra-elencadas”.
Na sequência, foi decidida a notificação da A., “face à pretendida ampliação do pedido, para indicar nos autos o respetivo valor (ampliação do pedido) e para proceder ao complemento da taxa de justiça em conformidade”, ao que ela satisfez quanto à primeira parte, referindo “vem indicar o valor de ampliação, o qual cifra-se em 900,00€”.
A R. deduziu contestação, na qual, em resumo, impugnou parte da matéria invocada na petição inicial e referiu que adquiriu o edifício em causa com o intuito de o restaurar, tendo primeiro que fazer cessar os contratos de arrendamento em vigor, o que apenas conseguiu em Janeiro de 2020.
Entretanto, para aligeirar as necessárias obras no edifício, a Ré tinha já dado entrada do respectivo projecto de reabilitação, na Câmara Municipal ..., em 19 de Outubro de 2017, que culminou com a prorrogação do prazo para requerer a emissão de alvará até 30 de Janeiro de 2023 e que, tendo em conta a suspensão da actividade e toda a incerteza e limitações decorrentes da pandemia causada pela doença COVID-19, só conseguiu arrancar com as necessárias obras de reabilitação em Outubro de 2022, as quais estão ainda em curso.
Declarou ainda que os danos que a A. alega não serão recentes, mas resultado de um processo de vários anos, mesmo antes da aquisição do prédio por parte da R., que a entrada de água nas paredes dos quartos daquela resultou da existência de uma tela a rematar entre telhas, no telhado do prédio da A., que se encontrava descolada e levantada e que a situação em apreço nos presentes autos não se enquadra na disposição do artigo 493.º n.º 1 do Código Civil.
Por fim, suscitou a intervenção provocada de A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., para quem transferiu a responsabilidade civil por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões materiais causadas a terceiros, na qualidade de proprietária do imóvel.
A A. respondeu à contestação, reiterando o que concluiu na petição, o que mereceu oposição da R., que pugnou pela inadmissibilidade do requerimento.
O pedido de intervenção principal deduzido pela R. foi admitido e a chamada também apresentou contestação.
Designada a audiência prévia, veio a A. juntar articulado superveniente com a alegação de novas infiltrações ocorridas no seu prédio entre os dias 20 e 24 de Outubro de 2023.
E que imputou à intervenção que a R. realizava, sem qualquer protecção com rufo, ou outro instrumento de impermeabilização, no murete do prédio da A., determinando a entrada das águas das chuvas no seu prédio, sobretudo nas zonas interiores do corredor entre o quarto 5 e 6, quartos 5, 3, 1 e RC, bem como nos quartos 2 e 4, sendo que as infiltrações inicialmente surgiram pelo piso superior, propagando-se depois até ao rés-do-chão, criando manchas nos rodapés, bem como na moldura de madeira da porta do quarto 5 e levantamentos no pavimento.
Concluiu que a realização das obras de reparação destes danos implica o valor de 3.682,50 €, sem IVA, no qual pediu a condenação da R., adicionalmente ao pedido inicialmente formulado.
Naquela diligência, foi proferido despacho de saneamento da instância, que fixou o valor da causa em € 7.000,00, indicou o objecto do processo, seleccionou os temas da prova, admitiu liminarmente o articulado superveniente e decidiu sobre os meios probatórios, aqui incluindo a realização de perícia por perito único.
No exercício do contraditório, a R. respondeu ao articulado superveniente, impugnando os factos que ali foram vertidos pela contraparte.
Concluída a prova pericial e realizada a audiência de julgamento, em três sessões, foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, condenou a R.:
a) a reconhecer que o prédio id. em 1. dos factos provados é propriedade da Autora;
b) a pagar à Autora a quantia de € 6.330,00 (seis mil trezentos e trinta euros), quantia à qual acrescerá IVA com a apresentação da fatura respetiva.

*
E dessa sentença, inconformadas, R. e A. vieram interpor recurso.
O recurso da R. integrou as seguintes conclusões:
(…)
Já o recurso da A. estribou-se nas conclusões que se transcrevem:
(…)
A chamada ofereceu resposta ao recurso da A., mediante requerimento que incluiu as seguintes conclusões:
(…)
Finalmente, também a R. respondeu ao recurso da A., alinhando as conclusões que seguem:
(…)
*
OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) Se foi validamente deduzida, releva e procede a impugnação da matéria de facto a que respeita o recurso interposto pela R., quanto aos factos instrumentais que indicou nas conclusões 11, 15 e 27 e aos pontos 10, 15, 16, 17 e 40 dos factos julgados provados na sentença;
b) Se foi validamente deduzida, releva e procede a impugnação da matéria de facto a que respeita o recurso interposto pela A., referente à alínea b) da matéria julgada como não provada;
c) Em caso afirmativo a alguma das referidas questões, as consequências da modificação factual ao nível do direito e da decisão final;
d) Em qualquer caso, se a teoria da causalidade adequada adoptada no Cód. Civil afasta o dever de indemnizar imposto à R. (conclusões 29 a 47); e
e) Se ocorre nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, na parte que condenou a R. no pagamento da quantia de € 900,00 e, em caso afirmativo, os seus efeitos (conclusões 48 a 56).
*
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Sem prejuízo das consequências que poderão advir da impugnação à matéria de facto, sobre os pontos que vão destacados a itálico, e que cumpre apreciar adiante, importa primeiramente atender aos factos que foram julgados provados na decisão recorrida, e que são os seguintes:
1) A Autora é proprietária do prédio sito na Rua ..., ..., ..., Porto, descrito na Conservatória de Registo predial sob o n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana no artigo ..., da União de freguesias ... ..., ..., ... e ..., no concelho Porto.
2) A Ré é proprietária do prédio urbano, sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana no artigo ....
3) O prédio propriedade da Ré é contíguo com o prédio propriedade da Autora.
4) O prédio da Ré confronta com a empena oeste do prédio da Autora, existindo uma parede meeira na divisão destes dois edifícios.
5) O prédio da Autora foi reabilitado em 2018.
6) A Autora cedeu o gozo e fruição deste prédio, à sociedade B... LDA, que o explora como Estabelecimento de Hospedagem, ..., à qual à contrapartida paga a renda mensal de 4.080€.
7) O prédio da Ré encontrava-se degradado e parcialmente em ruina.
8) A Ré adquiriu este prédio no ano de 2015.
9) No telhado do prédio da Ré encontrava-se construído um anexo composto de paredes, telhado e chaminé, o qual estava degradado.
10) O estado de degradação do prédio e do anexo construído, determinou infiltração de água das chuvas, no inverno de 2022 pelo topo da parede de pedra, meeira do logradouro do prédio da Autora.
11) A empena do logradouro do prédio da Autora apresentava a existência de uma infiltração de água pelo coramento da parede de pedra que confronta com o prédio da Ré, resulta na presença de água no interior da parede que estava a originar o apodrecimento do reboco, e a sua consequente desagregação.
12) Originando um odor a humidade neste local.
13) Existe um anexo pertencente ao prédio da Ré, construído sob a parede meeira contíguo a leste.
14) Este anexo tinha uma cobertura com telhas deslocadas e partidas, bem como remendos de tela de alumínio, rasgados e deslocados, com vegetação a emergir do interior.
15) Este facto originou o apodrecimento do revestimento exterior do prédio da Autora provocando a emissão de odores.
16) Causando insalubridade dos quartos traseiros.
17) A parede interior dos quartos traseiros do prédio da Autora, estava eivada de manchas de humidade, resultado de infiltração de água proveniente do prédio da Ré, a qual escorre pela parede contigua, vinda do telhado da Ré.
18) Esta infiltração ocorre através da parede comum meeira, ao prédio da Ré.
19) A Autora solicitou à Ré a reparação dos danos sofridos no seu prédio.
20) A reparação dos danos no prédio da Autora implica a lavagem de paredes a jato de água incluindo aplicação de hipoclorito de sódio para desinfeção; a picagem de rebocos apodrecidos, incluindo remoção de entulhos a vazadouro; a execução de novos rebocos com massas hidrófugas; a pintura de paredes com tinta plástica antifungos, de primário Cinolite; a desmontagem e reposição do telhado da cobertura do alpendre (edifício contíguo) para garantir a estanquicidade das paredes da muralha; o fornecimento e colocação de capeamento dos muretes com chapa de alumínio anodizado, incluindo pingadeira; a desmontagem e montagem de plataforma de acesso às máquinas de ar condicionado, para execução destes trabalhos; a pintura de paredes dos quartos 2,4 e 6, incluindo preparação das superfícies e todos os trabalhos necessários; a colocação de 6m de rodapé, incluindo pintura.
21) O custo destas obras de reparação ascende a 5.430,00€.
22) Quando a Ré adquiriu o seu prédio, este encontrava-se já num estado de degradação acentuado.
23) No referido edifício existiam vários arrendatários, em cujos contratos a aqui Ré sucedeu, na posição de senhoria, aquando da transmissão da propriedade do imóvel.
24) A Ré adquiriu tal edifício, com o intuito de o restaurar, explorando nele uma atividade de cariz comercial, que não estava absolutamente definida.
25) O último espaço sujeito a arrendamento foi entregue à Ré em janeiro de 2020.
26) A Ré deu entrada do projeto de reabilitação do seu prédio na Câmara Municipal ... em 19 de outubro de 2017.
27) Relativamente ao qual obteve uma resposta favorável em 14 de setembro de 2020.
28) A Ré fez um pedido de prorrogação do prazo para requerer a emissão de alvará à Câmara Municipal ....
29) O que foi atendido, tendo tal prazo sido prorrogado até 30 de janeiro de 2023.
30) Aquando da instauração da presente ação em 17 de fevereiro de 2023 estavam já em curso obras de reabilitação no prédio da Ré.
31) Os trabalhadores que executavam obras no prédio da Ré colocaram provisoriamente, plásticos na cumeeira existente entre os dois prédios.
32) A Ré efetuou a participação à companhia de seguros em 16 de janeiro de 2023.
33) O perito da Seguradora deslocou-se ao prédio em março de 2023.
34) Tendo a seguradora concluído que os danos provocados não se enquadram na cobertura da apólice.
35) Em março de 2023, surgiram novas infiltrações de água no prédio da Autora, em virtude da degradação do telhado do prédio da Ré, originando danos nas paredes cuja reparação ascende à quantia de € 900,00.
36) Em outubro de 2023, o prédio da Autora sofreu infiltrações de água, surgindo danos que se propagaram aos vários pisos e cuja reparação orça em 3.682,50 €.
37) Entre a Ré e a Interveniente foi celebrado contrato de seguro multirriscos habitação, titulado pela apólice nº ....
38) O contrato contempla as seguintes coberturas: - Incêndio ação mecânica de raio ou explosão; - Furto ou roubo; - Responsabilidade civil proprietário, inquilino ou ocupante; - Queda de aeronaves; - Choque ou impacto de veículos terrestres ou animais; - Demolição e remoção de escombros; - Quebra de vidros; - Quebra ou queda de antenas; - Quebra ou queda de painéis solares; - Privação temporária da habitação; - Derrame acidental de óleo; - Danos em bens do senhorio; - Mudança temporária dos bens seguros; - Morte do segurado.
39) O contrato de seguro celebrado entre a interveniente e a ré teve o seu início no dia 6 de janeiro de 2020.
40) Os danos provocados pelas infiltrações ocorridas no inverno de 2022 e março de 2023, reportam-se a um processo de degradação contínua, persistente no tempo do prédio da Ré.
41) O processo de degradação do prédio da Ré que veio a motivar o aparecimento de infiltração de águas pluviais no prédio da Autora, já se verificava aquando da aquisição do prédio pela Ré em 2015.
42) No prédio da Autora foram, entretanto, realizadas obras de reparação.
*
Por outro lado, foram declarados como não provados:
a) A Autora suportou a quantia de 750€ pela realização dos relatórios técnicos.
b) As infiltrações ocorridas em outubro de 2023, tiveram como origem o murete do prédio do Autor, que a Ré intervencionou sem qualquer proteção, de forma descuidada e negligente.
c) Para que conseguisse proceder às indispensáveis obras de reabilitação do edifício, a Ré teve primeiro de conseguir cessar os contratos de arrendamento, uma vez que não era possível o alojamento temporário dos arrendatários em situação semelhante.
d) As obras no prédio da Ré iniciaram-se em outubro de 2022, tendo o telhado ficado concluído em maio de 2023.
e) As infiltrações do prédio da Autora eram provenientes de defeitos no telhado do seu próprio prédio.
*
SOBRE AS IMPUGNAÇÕES À MATÉRIA DE FACTO.
Como se sabe, a admissibilidade do recurso em matéria de facto depende do cumprimento de alguns ónus.
De acordo com o disposto no artigo 640.º/1 do Código de Processo Civil, é imposto ao recorrente que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Enquanto o nº2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Por outro lado, dispõe o art. 662º/1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Segundo entendemos, a análise dos recursos evidencia, considerando as conclusões e demais alegações, que as recorrentes cumpriram satisfatoriamente o regime legal previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil.
Com efeito, descreveram os concretos pontos de facto que, a seu ver, foram incorretamente julgados provados e não provados, acima identificados nas alíneas a) e b) do objecto do recurso.
Para além disso, indicaram de modo suficiente quais os meios probatórios que, na sua óptica, justificam outra decisão para a factualidade cuja resposta censurou.
Por fim, mencionaram claramente a resposta que consideram adequada, em face da forma como analisou a prova, para os factos impugnados.
Estão em causa, essencialmente, exigências que visam o cumprimento do dispositivo, do contraditório e do cabal esclarecimento da factualidade censurada, constituindo ainda manifestação da ideia de que a impugnação traduz um pedido de reapreciação dos factos que deve transmitir de imediato um nível mínimo de viabilidade, suficiente para justificar uma análise de mérito em segunda instância e que pode inclusivamente abranger toda a prova.
Em ordem a, desse modo, escapar a um juízo de indeferimento liminar ou, como refere a doutrina, permitir que a “impugnação da matéria de facto ultrapasse a fase liminar” (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., p. 202).
Assim sendo, e vistas as alegações e as respostas na sua globalidade, crê-se que estão presentes os requisitos formais e materiais necessários para que a impugnação ultrapasse a fase liminar e justifique apreciação de mérito.
Em consequência, passa a recair sobre este Tribunal da Relação o dever de, na apreciação dos factos, analisar criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais, bem assim, compatibilizar toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência (nº4 do art. 607.º do CPC).
Subordinando a sua actuação ao princípio da livre apreciação da prova segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sem prejuízo dos casos em que a lei submete a prova dos factos a exigências especiais e dos factos que estão já assentes (nº5 do art. 607.º do CPC).
No dizer da doutrina, observados os referidos ónus, do art. 662.º do CPC, nº1 e 2, als. a) e b), “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 334).
Ou, segundo a jurisprudência, “o reforço dos poderes conferidos ao Tribunal da Relação na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, tem a virtualidade de colocar os juízes desembargadores num plano decisório que, tanto quanto possível e pese embora a falta de imediação, é equivalente ao do juiz da 1ª instância”.
Desse modo, “em sede de reapreciação da prova, tratando-se de meios de prova sujeitos à livre apreciação, o que importa é que a Relação forme a sua própria convicção com base nos indicados pelas partes ou oficiosamente investigados (art. 640º, nº 1, al. b) e nº 2, al. b) do CPC), devendo fundamentar a decisão tomada” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/9/2019, tirado no processo 1555/17.6T8LSB.L1.S1, relatado por Ribeiro Cardoso e acessível no mesmo sítio).
*
Isso não significa, no entanto, que todos os pontos impugnados por A. e R. devam ser apreciados em segunda instância.
Na verdade, assente que está a essencial observância dos ónus estabelecidos no art. 640.º do CPC, no plano formal e material, importa ainda delimitar com precisão o âmbito que a reapreciação de facto deve merecer por parte deste Tribunal da Relação do Porto.
O que implica a necessidade de determinar se a impugnação da matéria de facto, além de ter sido validamente deduzida, assume relevância para a decisão do recurso e, na afirmativa, em que medida.
A tal propósito, importa previamente advertir que, atentas as regras gerais de gestão processual e de proibição da prática de actos inúteis, consagradas nos arts. 6.º e 130.º do CPC, a falta de interesse dos factos para a decisão final constitui circunstância impeditiva da tarefa de reapreciação da prova.
Como bem se compreende, se os factos impugnados, conjugados com aqueles que têm de manter-se inalterados, por falta de impugnação e não existir quanto a eles motivos para intervenção oficiosa, não tiverem a virtualidade de alterar o segmento decisório objecto de recurso, a sua reapreciação será inútil e nenhum proveito poderá trazer às pretensões essenciais das partes.
Neste sentido, tem sentenciado o Supremo Tribunal de Justiça que “nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto, por se tratar de ato inútil” (cfr. Acórdão de 09/02/2021, proc. 27069/18.3T8PRT.P1.S1, da autoria de Maria João Vaz Tomé e disponível em jurisprudencia.pt).
Entendimento que, aliás, tem sido repetido para destacar que “de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte”.
E por isso que “o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/2023, relatado por Mário Belo Morgado, no proc. 835/15.0T8LRA e acessível em www.dgsi.pt).
Da mesma forma, coerentemente com este princípio, a apreciação da impugnação factual deve limitar-se aos pontos com interesse para a decisão da causa e do recurso, ficando prejudicada por inutilidade na parte restante.
À luz deste critério de relevância e utilidade para a aplicação do direito, é forçoso afastar do âmbito da reapreciação da decisão de facto a empreender, desde logo, a impugnação que a R. dirige ao ponto 40 da matéria provada.
Com efeito, esse é um facto que resulta de resposta restritiva à alegação da R. na contestação, susceptível de, em rigor, traduzir impugnação motivada (assente na anterioridade da degradação do seu imóvel relativamente à data em que o adquiriu: arts. 18 e 25) e cuja inclusão na factualidade provada, não contendendo com a causa de pedir, é perfeitamente inócua para a decisão de mérito.
De nada adiantaria, em consequência, a tarefa de verificar se ele deve ser ou não excluído do elenco dos factos provados, pois o resultado seria igual, certo que a matéria de facto essencial, inerente aos requisitos materiais da responsabilidade civil, é outra e com essa exclusão nenhuma modificação sofreria.
Por outro lado, a R. faz incidir parte da sua impugnação sobre alguns factos que a própria, acertadamente, aliás, considerou instrumentais, plasmados nas conclusões 11, 15 e 27 do seu recurso.
Recorde-se que, segundo a doutrina, o art. 5.º do CPC “torna claro que o ónus de alegação se circunscreve aos factos essenciais, isto é, aqueles de cuja verificação depende a procedência das pretensões deduzidas”.
Para prosseguir que “o teor da al. b) do n.º 2 do art. 5.º revela que não há preclusão quanto a factos que, igualmente essenciais, sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados. Têm a categoria de factos complementares ou concretizadores os que, embora necessários para a procedência das pretensões deduzidas (daí serem essenciais), não cumprem uma função individualizadora do tipo legal” (cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, pp. 18-9).
O que significa que os factos essenciais a que alude o art. 5.º/1 do CPC são aqueles que, não apenas se revelam necessários para a procedência das pretensões deduzidas, como ainda integram a previsão normativa em que elas assentam.
Já os factos instrumentais, a que se referem os arts. 5.º/2, al. a), e 607.º/4 do CPC, pese embora alguma flutuação de terminologia, “são utilizados para realizar a prova indiciária dos factos principais, isto é, esses factos são aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos factos principais” (cfr. M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, p. 72).
E que, face a essa natureza, “só podem ser alegados em vez do facto principal (presumido) quando constituam a base duma presunção legal” (cfr. J. Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª ed., pp. 189-190).
Por isso, não existindo presunções legais com importância no caso dos autos e tendo os factos essenciais sido alegados e, subsequentemente, objecto de prova e decisão do tribunal, perde todo o sentido e utilidade a autonomização dos factos instrumentais para que, além dos primeiros, sejam especificamente respondidos e acrescentados na matéria de facto provada ou não provada.
Nessa situação, pois, os factos instrumentais não têm que ser incluídos na enunciação da factualidade relevante, tal como não merecem averiguação autónoma no recurso, devendo esta cingir-se aos factos essenciais respondidos que aqueles visavam ajudar a demostrar ou contrariar.
Como refere a jurisprudência, “um facto instrumental puramente probatório tem uma função transitória, servindo apenas para ser um elemento infirmador ou confirmador de um facto principal, provado ou não provado, não se justificando a autonomização de tal facto instrumental puramente probatório no elenco dos factos provados ou não provados” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/10/2016, relator L. Filipe Pires de Sousa, proc. 600/12.6TVLSB.L1-7, acessível na página electrónica do Diário da República).
É o que se passa no caso dos autos, onde está em causa a responsabilidade civil da R., para cuja verificação ou afastamento os factos indicados nas conclusões 11, 15 e 27 do recurso da R. não desencadeiam a aplicação de nenhum efeito ou de qualquer presunção legal, dependendo, diversamente e em exclusivo, dos pontos 10 e segs. que foram objecto de resposta pelo tribunal recorrido.
Evidenciando-se, assim, como irrelevante e inútil a tarefa de averiguar sobre se estão ou não provados tais factos instrumentais, sem prejuízo da eventual contribuição que possam aportar, conjuntamente com a análise de toda a prova, para a apreciação dos factos essenciais.
Acresce que carece de cabimento, seja em primeira instância, seja no recurso, a indagação e resposta sobre matéria conclusiva, ou seja, aquela que se socorre de conceitos ou conclusões, obnubilando ou não esclarecendo as circunstâncias de modo, tempo e lugar inerentes à autêntica factualidade.
Como refere a jurisprudência, “apesar de não conter norma legal igual à que constava do art. 646º/4 do anterior C.P.Civil, e ter sido uma opção legislativa maior liberdade na descrição da matéria de facto, por força do disposto no art. 607º/3 e 4 C.P.Civil de 2013, na fundamentação de facto da sentença apenas devem constar os factos julgados provados e não provados” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/11/2023, processo nº2275/14.9T8VN e disponível em texto integral na base de dados da Dgsi em linha).
Em consequência, dessa fundamentação devem “ser expurgados todos os [pontos] que constituem matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que engloba os juízos de valor ou conclusivos”.
Acrescentando ainda que “os factos conclusivos não podem integrar a matéria de facto quando estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem a perceção da realidade concreta, e/ou ditam por si mesmo a solução jurídica do caso, normalmente através da formulação de um juízo de valor” (cfr. citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/11/2023).
Trata-se, aliás, de uma regra de elaboração da decisão factual aplicável de forma idêntica à sentença de primeira instância e aos acórdãos dos tribunais superiores, como resulta das disposições conjugadas dos arts. 607.º/4, 663.º/2 e 679.º do Código de Processo Civil.
E cuja consagração expressa tem sido considerada desnecessária, pois a exclusão da matéria de direito ou dos juízos conclusivos da fundamentação de facto constitui “a única solução que fará sentido, pois não é certamente pelo facto de o tribunal indevidamente dar como provada ou não provada matéria de direito que a mesma passará a constituir factualidade” (cfr. Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, p. 114).
Traduzindo simultaneamente um poder-dever da Relação cujo exercício é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como este tem repetidamente sentenciado (cfr., por todos, o Acórdão de 24/1/2024, relatado por Ramalho Pinto no âmbito do processo n 22913/20.3T8LSB.L1.S1, disponível na referida base de dados, onde se decidiu que é sindicável pelo STJ a decisão da Relação que elimina, por os considerar desprovidos de conteúdo factual, determinados factos, por tal apreciação ser uma questão de direito).
Pode dizer-se, em suma, a este respeito, que quando o contexto retratado sob os enunciados de facto integra uma parte essencial do objeto de disputa entre as partes, não pode ser utilizado na enunciação dos factos, que devem ser considerados como não escritos, mesmo por decisão oficiosa da Relação.
Vertendo ao caso dos autos, é patente que a alínea b) da enunciação factual feita em primeira instância, e que a A. pretende comprovar no recurso, encerra de forma manifestamente conclusiva, como bem apontou a chamada na resposta ao recurso e resulta da citação da matéria em crise: as infiltrações ocorridas em outubro de 2023, tiveram como origem o murete do prédio do Autor, que a Ré intervencionou sem qualquer proteção, de forma descuidada e negligente.
Surgindo as expressões finais, relativas ao descuido e à negligência da R., como meros conceitos ou qualificações insusceptíveis de averiguação e resposta, porque desgarradas de qualquer circunstância factual ou realidade apreensível da vida que as possam justificar.
Donde resulta a necessidade de, verificando com atenção a alegação da A., nessa parte, centrar a indagação a realizar nesta instância à matéria que ali consta com natureza factual e que, atento o teor dos arts. 6 a 8 do articulado superveniente, se traduz em saber se as infiltrações ocorridas em Outubro de 2023 tiveram origem no murete da R. e em resultado da intervenção que ela ali realizou sem protecção com rufo ou qualquer outro instrumento de impermeabilização.
Identicamente, e desta feita como é salientado pela R., com razão, assume carácter conclusivo a resposta dada pelo tribunal a quo no ponto 10 da matéria provada, na qual consignou que o estado de degradação do prédio e do anexo construído, determinou infiltração de água das chuvas, no inverno de 2022 pelo topo da parede de pedra, meeira do logradouro do prédio da Autora.
Com a única diferença face à parte final da referida alínea b) de que, enquanto na anterior se socorreu de considerações de cariz conceitual, agora empregou uma fórmula vaga – o estado de degradação – que, além de carecer de concretização, é incapaz de explicar como seria possível ter espoletado o efeito que lhe é apontado – a infiltração de águas no prédio de que a A. é proprietária.
Nesta parte, aliás, a análise do processo demonstra que a decisão recorrida sustentou-se na alegação dos arts. 15 e 16 da petição inicial, a qual, porém, e salvo o devido respeito, não apenas padecia da referida vaguidade, como também, nos artigos seguintes, ofuscava as deficiências apontadas no relatório em que assentou, decorrentes do telhado e da empena, sugerindo pelo menos a ideia, errónea, da existência de dois anexos sobre o prédio da R. (cfr. arts. 15 e 19), quando em audiência apenas foi debatido sobre se um existia, embora alegadamente causador de duas patologias com diferentes origens.
Em todo o caso, constata-se que a imprescindível densificação do estado de degradação e da origem das infiltrações figura no elenco dos factos provados e, mais concretamente, nos pontos 13 e segs., alguns dos quais impugnados pela R. no seu recurso.
Daí que o ponto 10 deva ser excluído do referido elenco, por um lado e, por outro, que a matéria factual que ele realmente contém, tendo sido impugnada, deva ser analisada juntamente com a do ponto 15. Bem assim que, em conformidade com a alegação da A., ainda que na devida interpretação da petição inicial, conjugada com o referido relatório, em especial dos arts. 26 a 31, que a averiguação deve incluir a eventual infiltração decorrente do facto de o isolamento da empena do prédio da R. ter sido realizado com emendas e remates deslocados.
Em consequência, são os seguintes os temas, com relevância e natureza factual, que por força da impugnação das partes cumpre averiguar no âmbito do presente recurso:
A) Se, no inverno de 2022, a infiltração das águas pluviais, através do topo da parede de pedra, meeira do logradouro no prédio da A., e o apodrecimento do revestimento exterior dele resultaram em consequência da factualidade constante do ponto 14, não impugnado (cobertura do anexo com telhas deslocadas e partidas, bem como remendos de tela de alumínio, rasgados e deslocados);
B) Se esses factos (provados no ponto 14 e, se for o caso, no primeiro tema) causaram igualmente a emissão de odores e insalubridade dos quartos traseiros do prédio de que a A. é proprietária;
C) Se a parede interior dos quartos traseiros do prédio da A. estava eivada de manchas de humidade em resultado de infiltração de água proveniente do prédio da Ré, a qual escorre pela parede contigua, vinda da empena e do telhado deste prédio; e
D) Se as infiltrações ocorridas em Outubro de 2023 tiveram origem no murete do prédio da R. e em resultado da intervenção que ela ali realizou sem protecção com rufo ou qualquer outra instrumento de impermeabilização.
*
Por outro lado, atentas as indicações concretas constantes das alegações e das conclusões, a par do teor da matéria relevantemente sindicada, e sempre com apoio em máximas de experiência comum e de análise crítica da prova, mostrou-se pertinente proceder, respectivamente, à audição através do sistema media-studio e à avaliação da seguinte prova pessoal e documental:
● Esclarecimentos periciais prestados na primeira sessão da audiência de discussão e julgamento, a 17/10/2024;
● Depoimentos de (i) CC, (ii) DD, prestados na mesma sessão, (iii) EE, (iv) FF, (v) GG, ouvidos a 31/1/2025, (vi) HH e (vii) II, inquiridos na última sessão de produção de prova;
● Relatório pericial junto aos autos a 29/4/2024;
● O também designado relatório pericial apresentado pela A. com a petição inicial;
● Os demais documentos oferecidos com esse articulado;
● Os documentos que acompanharam o requerimento de ampliação da causa de pedir e do pedido, datado de 13/3/2023; e
● Os documentos juntos com o articulado superveniente (17/11/2023).
Analisados esses meios probatórios, importa sublinhar em primeiro lugar a credibilidade que o relatório e esclarecimentos periciais evidenciaram, quer por força da isenção que, em geral, deve ser creditada a essa prova, quer porque, no caso dos autos, se mostrou particularmente coerente e convincente.
Em patamar menos importante, mas ainda com relevo e esforço de apego à verdade, esteve o depoimento de CC, conhecedor dos factos por ter sido convocado pela A. para verificar a origem das infiltrações no seu prédio e que, depois de estudar a situação, elaborou o relatório de 6/1/2023 que acompanhou a petição inicial como o seu último documento e cujo teor explicitou.
Quanto às restantes testemunhas ouvidas, porém, especialmente aquelas que foram indicadas pela R., o valor probatório atribuído foi claramente inferior.
Desde logo porquanto a razão de ciência de DD, EE, GG, HH e II prendia-se, no essencial, com a participação nos trabalhos de reabilitação do prédio da R. e cuja qualidade, compreensivelmente, pretendiam defender.
Ao passo que FF revelou, como aliás reconheceu em audiência, interesse directo na causa, por na verdade ser tão dono do imóvel como a R. e em nome de quem o imóvel foi inscrito apenas por “razões familiares”.
Mais importante que isso, a pertinência dos seus depoimentos para o mérito das impugnações ficou fortemente esbatida na medida em que, em nossa convicção, tiveram por objecto a realidade do imóvel da R. em período muito diverso daquele a que respeitavam os factos essenciais da petição.
Ou seja, enquanto os factos relevantes dos autos ocorreram em Novembro de 2022 (petição inicial) e Março de 2023 (ampliação do pedido), ficamos convictos que as referidas testemunhas quiseram depor sobre os factos relativos a Agosto de 2023, quando foi concluída a recuperação do telhado do prédio da R.
Sendo especialmente sintomático desta constatação a parte do depoimento de II na qual garantiu em julgamento que “depois de Agosto de 2023 não era possível terem ocorrido mais infiltrações”, referindo-se naturalmente a entradas de água no prédio da A. provindas do imóvel da contraparte.
Para além de ter sido notório que a preocupação das referidas testemunhas estava sobretudo centrada em obter justificações com o intuito de alijar a R. da causa daquelas infiltrações, mesmo que para o efeito muito diversas tenham sido as explicações que apresentaram, fosse uma rachadela no telhado de prédio vizinho pertencente a terceiro (na visão de DD), fosse como consequência da proximidade à antiga muralha da cidade do Porto (na ideia de EE), fosse ainda pela existência de uma telha partida com tela picada pelas gaivotas no imóvel da A. (na perspectiva de HH e II, por coincidência as únicas testemunhas ouvidas na última sessão de julgamento).
Visto este quadro geral sobre a credibilidade dos meios de prova, estamos agora em condições de passar ao plano, mais detalhado, referente às respostas que eles justificam para cada facto ou tema questionado.
A) Se, no inverno de 2022, a infiltração das águas pluviais através do topo da parede de pedra, meeira do logradouro no prédio da A., e o apodrecimento do revestimento exterior dele resultaram em consequência da factualidade constante do ponto 14, não impugnado (cobertura do anexo com telhas deslocadas e partidas, bem como remendos de tela de alumínio, rasgados e deslocados)?
Em nossa convicção, este facto merece resposta afirmativa, em especial, por ter sido confirmado pelo Sr. perito, quer no seu relatório (respostas aos quesitos 7 a 10), quer igualmente nos esclarecimentos que prestou em audiência, onde referiu, entre o mais, ser perfeitamente natural que as infiltrações decorressem da entrada de água pelo telhado do prédio da R., face ao estado que ostentava à data em que foram obtidas as fotografias juntas com a petição e com o requerimento de ampliação do pedido.
No mesmo sentido, apontou o depoimento detalhado de CC, sem que as restantes testemunhas, pelos motivos acima expostos, tivessem sido capazes de infirmar a veracidade da referida factualidade.
Sendo precisamente os mesmos meios e juízos periciais que justificam a inclusão da factualidade do tema B no elenco dos factos provados.
C) Se a parede interior dos quartos traseiros do prédio da A. estava eivada de manchas de humidade em resultado de infiltração de água proveniente do prédio da Ré, a qual escorre pela parede contigua, vinda da empena e do telhado deste prédio?
A prova documental junta aos autos demonstra inequivocamente, a nosso ver, que a parede interior dos quartos traseiros do prédio da A. estava eivada de manchas de humidade em resultado de infiltração de água.
Por outro lado, considerando a apreciação crítica acima exposta da prova pericial e pessoal, também é facto verídico, na nossa leitura, que a água causadora de tais manchas provinha do prédio da R. e da zona do telhado.
De modo que, quanto a este tema, a única matéria susceptível de discussão residiu em apurar se a entrada de água provinha igualmente, como consta do relatório que acompanhou a petição inicial, da empena do prédio da R., em virtude de estar isolada com tela de alumínio descolada e rasgada.
Em nossa convicção, o depoimento de CC foi assertivo no referido sentido, ao referir a entrada de água através de uma empena que não estava impermeabilizada, e embora o relatório pericial não confirme expressamente o facto, nas respostas aos quesitos 22 e 23, a verdade é que a propósito deste último destacou a existência de remates que actualmente permanecem mal concluídos, o que, face a juízos de experiência comum, não infirmados por outras provas, foi bastante para alicerçar a nossa convicção de que tal já existia anteriormente.
E, dessa forma, para corroborar a veracidade daquele depoimento e justificar a resposta afirmativa à totalidade da factualidade relativa a este tema.
Ao passo que, pelas razões já expostas, a contraprova produzida pela R. foi incapaz de gerar a dúvida fundada sobre a veracidade desses factos.
D) Se as infiltrações ocorridas em Outubro de 2023 tiveram origem no murete do prédio da R. e em resultado da intervenção que ela ali realizou sem protecção com rufo ou qualquer outra instrumento de impermeabilização?
Sobre este facto, o relatório pericial nada esclareceu, como flui das respostas aos quesitos 33 e seguintes.
Identicamente, ele não foi afirmado nos esclarecimentos periciais, no âmbito dos quais nenhuma referência foi feita, em concreto, sobre o murete do prédio da R., por um lado e, por outro, sobre infiltrações especificamente ocorridas na mencionada data.
Da mesma forma, CC não revelou conhecimento da verificação do referido sinistro, que é claramente posterior à data em que finalizou a elaboração do relatório que acompanhou a petição inicial.
Por isso, há que concluir, como bem fez a primeira instância, pela ausência de prova bastante que justifique a demonstração do tema em questão.
Sem que essa prova, ao contrário do que defende a A., possa ser atribuída aos esclarecimentos periciais, em primeiro lugar, por sobre esses factos não se ter pronunciado, depois porque o respectivo sentido essencial foi o de confirmação do relatório anteriormente produzido, no qual inexiste alusão ao facto e, finalmente, porque a prova pericial no seu todo não poderia, manifestamente e sob pena de perda de credibilidade, ser interpretada no sentido de que qualquer infiltração no prédio da A. provenha necessariamente do edifício de que a R. é proprietária.
Em acréscimo, mereceu o devido crédito a afirmação da testemunha II no sentido, a que acima se fez referência, de que após Agosto de 2023 não era razoavelmente expectável a existência de mais infiltrações com a referida proveniência.
De todo o exposto, resulta que a matéria de facto impugnada deve ser corrigida nos termos seguintes, o que se decide, quanto aos pontos provados:
15) Em consequência do facto indicado no ponto 14, no inverno de 2022, resultou a infiltração das águas pluviais através do topo da parede de pedra, meeira do logradouro no prédio da A. e o apodrecimento do revestimento exterior deste.
16) Esses factos, indicados nos pontos 14 e 15, causaram igualmente a emissão de odores e insalubridade dos quartos traseiros do prédio de que a A. é proprietária.
17) A parede interior dos quartos traseiros do prédio da A. estava eivada de manchas de humidade em resultado de infiltração de água proveniente do prédio da Ré, a qual escorre pela parede contigua, vinda da empena e do telhado deste prédio.
Quanto à matéria não provada, a alínea b) para a seguinte redacção: As infiltrações ocorridas em Outubro de 2023 tiveram origem no murete da R. e em resultado da intervenção que ela ali realizou sem protecção com rufo ou qualquer outra instrumento de impermeabilização.
E com a eliminação do facto provado em primeira instância no ponto 10.
*
O DIREITO.
A despeito destas correcções, as respostas expostas denunciam que, no essencial, as impugnações à matéria de facto que ambas as partes apresentaram improcederam quanto ao seu mérito.
Algo que resolve imediatamente, e no sentido negativo, a terceira questão colocada no objecto do recurso, centrada em saber se as eventuais modificações à factualidade relevante produziam alguma consequência ao nível do direito aplicável e, especialmente, na medida da responsabilidade da R., pressupondo que ela existe, o que pertence já à questão colocada em quarto lugar.
Ao passo que a última, situada também no plano do direito, diz respeito a determinar se ocorre nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, na parte que condenou a R. no pagamento da quantia de € 900,00.
Relativamente à ordem de apreciação destas questões, tomou-se em atenção que, enquanto a anterior repousa na parte substantiva ou de mérito do pedido, exibindo idoneidade, ademais, para colocar em crise a totalidade da indemnização arbitrada em primeira instância, a seguinte assume natureza de vício processual e a sua eficácia restringe-se, limitadamente, a uma parcela da condenação.
Assim sendo, por respeito à prevalência da decisão de fundo, ínsita no art. 278.º/3 do CPC, e à própria ordem lógica das questões, a que alude o art. 608.º/1 do mesmo diploma, atenta a sua maior abrangência, optou-se por iniciar a apreciação pela primeira.
A teoria da causalidade adequada assume relevância na aferição do requisito da responsabilidade civil relacionado com o nexo causal entre o facto e o dano necessário para fundar o dever de indemnizar.
Dispondo o art. 563.º do Código Civil a esse respeito que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
O que traduz a adopção pela nossa lei do princípio geral de que o facto, para além de voluntário, ilícito e culposo, apenas será gerador de responsabilidade civil se tiver sido condição da verificação do dano, por um lado e, por outro, se em geral ou abstractamente tiver aptidão ou idoneidade para o produzir.
Ou, no dizer da doutrina, “o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem verificado” (cfr. J. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., p. 899).
Em atenção a estas breves orientações e à sua aplicação no caso dos autos, é patente, se bem pensamos, que a existência de uma instalação cuja cobertura e empena ostenta telhas deslocadas e partidas, além de tela de alumínio rasgada e deslocada, em contacto com um muro meeiro ou mesmo construída sobre ele, é previsivelmente idónea a causar os estragos comprovados no prédio vizinho.
Para além disso, semelhante idoneidade não é afastada ou minimamente colocada em crise pela circunstância de não ter ficado provado que as infiltrações ocorridas em Outubro de 2023 tivessem origem no murete do imóvel da R. e em resultado da intervenção que ela ali realizou sem protecção com rufo ou qualquer outra instrumento de impermeabilização.
Desde logo, porque a falta ou a insuficiência da prova sobre um facto, ainda que de natureza semelhante a outro anterior, não significa nem se confunde com a ausência de idoneidade em abstracto deles para a produção de um dano.
Para além disso, importa considerar a diversidade do local apontado como génese do dano, posto que os estragos comprovadamente causados pelo prédio da R., emergiram da cobertura e da empena, e na matéria não provada do murete.
Finalmente, afigura-se evidente que o entendimento exposto pela R. no seu recurso olvida um facto que, embora instrumental, atinente à intervenção realizada no seu prédio e concluída em Agosto de 2023, altera o quadro de previsibilidade para a criação do dano do primeiro para o segundo momento: ali era altamente previsível que o prédio em ruínas causasse os estragos verificados e aqui menos típico que um imóvel restaurado produzisse a mesma consequência.
Todavia, a R. inverte o tratamento a este facto com o raciocínio de que, como as infiltrações no prédio da A. ocorreram mesmo depois dessa intervenção e não lhe são imputáveis, assim se demonstra que os danos anteriores, verificados no inverno de 2022, antes dessa intervenção, muito provavelmente têm outra causa, diversa da degradação do imóvel de que é proprietária.
Parece-nos, porém, que esta construção é totalmente alheia à causalidade adequada entre o estado do imóvel da R. no Inverno de 2022 e os danos que então foram produzidos no prédio vizinho de que a A. é proprietário.
E que a falta de prova de que esses estragos de 2023 foram causados pelo prédio da R. está longe de equivaler à comprovação do contrário, de que eles foram provocados por causa diversa ou de que os anteriores tenham a mesma origem.
Em suma, crê-se que o raciocínio da R. poderia relevar, diversamente, como regra de lógica e coerência em sede de prova, no sentido de que, tendo existido danos posteriores cuja responsabilidade não lhe foi atribuída, suscitar a dúvida fundada sobre essa atribuição quanto aos estragos anteriores.
Sucede, simplesmente, que essa máxima, além de desgarrada das concretas circunstâncias do caso e do verdeiro significado da falta de prova de um facto, é ainda contrariada por todos os meios e restantes juízos probatórios previamente expostos, que sobre ela prevalecem e justificam as respostas dadas à factualidade referente à causa dos estragos ocorridos no inverno de 2022.
Improcedem, pois, as conclusões 29 a 47 do recurso da R.
Donde decorre a necessidade de analisar a última questão por ela suscitada e, portanto, determinar se na parte que condenou a R. no pagamento da quantia de € 900,00, a sentença recorrida padece de nulidade, por excesso de pronúncia, e as consequências desse vício, caso realmente esteja verificado.
A esse respeito, cumpre antes do mais afirmar que, efectivamente, o requerimento de ampliação da causa de pedir e do pedido não contém expressa referência à pretensão de reparação pecuniária.
Referindo apenas, no seu final, “ampliando-se assim, a causa de pedir e o pedido formulados nesta acção, de modo a acrescentar, ao pedido, a reparação destes novos danos” e a indicação de que “deve ser admitida a ampliação de causa de pedir e pedido e como tal condenar a Ré a executar as obras de reparação dos danos por esta provocados, no prédio da Autora, decorrente a acrescer, das novas infiltrações supra-elencadas”.
Todavia, apesar da essencialidade do princípio do dispositivo no nosso processo civil, manifestada desde logo nos arts. 3.º/1 e 609.º do CPC, a verdade é que a doutrina e a jurisprudência têm salientado a importância e necessidade de evitar, a esse respeito, entendimentos rígidos e perniciosos para a tutela efectiva dos direitos das pessoas que aos tribunais cumpre garantir.
O que tem manifestado por variadas formas, seja pela necessidade de atender sobretudo ao efeito prático-jurídico do pedido, ainda que mediante reconfiguração normativa levada a efeito pelo tribunal (cfr. C. Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, pp. 792ss), seja através da admissibilidade do pedido implícito, “aquele que, com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado expressis verbis, ou seja, o pedido apresentado na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia” (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 29/9/2022, relator Fernando Baptista, proc. 605/17.0T8PVZ.P1.S1, disponível na base de dados de jurisprudência do STJ em linha).
Ora, idêntico intuito de evitar a rigidez da consideração do referido princípio de modo demasiado apegado à sua letra tem presidido à orientação para a qual “a interpretação dos articulados das partes deve ser efetuada com base nos princípios interpretativos aplicáveis às declarações negociais, valendo com o sentido que um declaratário normal lhes atribuiria, prevalecendo a substância sobre a forma, visando aproveitar ao máximo os atos praticados pelas partes, por forma a garantir o princípio da efetiva tutela jurisdicional, consagrado no artigo 20º da CRP, bem como a justa composição do litígio” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/5/2024, relatora Rute Sobral, proc. 616/22.4T8CLD.L1-2, in dgsi.pt).
E, segundo pensamos, esta orientação é decisiva no caso dos autos para concluir pela validade da decisão recorrida na parte que condenou a R. no pagamento da quantia de € 900,00.
Na verdade, importa considerar que, configurando mera ampliação do pedido e da causa de pedir originais, o requerimento de 13/3/2023 trás consigo, de modo implícito mas evidente para o normal declaratário, o sentido de remissão para as pretensões apresentadas na petição inicial.
De modo que, sendo adicionado aos pedidos principais que ali constam um outro, é lógico e coerente entender que também ele passa a sujeitar-se à pretensão subsidiária, deduzida para ser considerada no insucesso das demais.
No mesmo sentido, segundo pensamos, deve ser interpretada a referência expressa feita no requerimento de ampliação do pedido à “reparação destes novos danos” e cujo efeito é convocar, no plano jurídico, ambas as formas possíveis de reconstituição que o art. 566.º/1 do CC concede, in natura ou pecuniária.
Premissa a partir da qual, para o normal declaratário, a indicação do valor de € 900,00 no requerimento subsequente representa, pelo menos possivelmente, a tradução pecuniária da reparação natural e a considerar, tal como no pedido inicial, em caso de improcedência da primeira pretensão.
E, assim, sem implicar qualquer quebra do contraditório, tanto mais que no articulado superveniente a A. novamente se referiu à indemnização em dinheiro, o que constitui respaldo bastante para que a contraparte tenha compreendido que o litígio conhecia semelhante propósito em todo o seu objecto.
Improcedem, por isso, as demais conclusões do recurso que a R. interpôs.
*
DECISÃO:
Pelo exposto, sem prejuízo da correcção da matéria de facto acima decidida, nega-se provimento às apelações e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas de cada um dos recursos pela parte que o interpôs, atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC).
*
SUMÁRIO
………………………………
………………………………
………………………………

(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, d. s. (10/11/2025)
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Carla Fraga Torres
Eugénia Cunha