DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
CONTRADITÓRIO
NULIDADE
Sumário

I - Apesar do poder discricionário que lhe é concedido a respeito da convocação ou não da audiência prévia nas ações de valor inferior a metade da alçada da Relação (cf. artigo 597.º do CPCivil), não pode o juiz deixar de assegurar o exercício do contraditório quanto ao mérito da causa nos mesmos termos em que o tem de fazer nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, visto que tal constitui uma derivação do direito fundamental à jurisdição.
II - Nessas ações, dispensando-se a convocação da audiência prévia, a decisão de conhecer imediatamente do mérito da causa no despacho saneador deverá ser precedida do convite expresso e prévio às partes para se pronunciarem sobre a oportunidade dessa decisão final e para alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência prévia se esta tivesse lugar.
III - A preterição do princípio do contraditório, traduzido na prolação de uma decisão surpresa, configura uma violação da lei processual e determina a nulidade da decisão, por se tratar de uma atuação jurisdicional ilegal.

Texto Integral

Processo nº 658/24.5T8LOU-A.P1-Apelação
Origem-Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo de Execução de Lousada-J1
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. António Mendes Coelho
2º Adjunto Des. Dr. Carlos Gil
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
Por apenso à execução comum que A..., S.A. com sede na Avenida ..., ..., ..., Lisboa lhe moveu, veio a executada AA, residente Rua ..., ..., ..., deduzir os presentes embargos.
Alega para o efeito quer a inexistência de título executivo quer a prescrição do crédito exequendo.
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Admitidos liminarmente, foi a exequente notificada para os contestar, o que fez pugnando pela sua improcedência.
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Porque o processo já continha todos os elementos necessários para uma decisão de mérito, foi proferido despacho saneador sentença que julgou procedentes, por provados os embargos e, por consequência, julgou extinta a execução.
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Não se conformando com o assim decidido, veio a exequente interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
1- A Sentença recorrida foi proferida sem que o Tribunal a quo observasse previamente uma formalidade de cumprimento obrigatório, in casu, a convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório (artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do C.P.C.
2- Nem tampouco as partes foram notificadas pelo Tribunal a quo, informando-as da sua intenção em prescindir da audiência prévia e assegurando-lhes o direito ao contraditório, fundamentando uma eventual exigência de realização de audiência prévia.
3- A lei é clara ao afirmar que nestes casos o juiz não goza de tal discricionariedade, devendo assegurar o exercício do direito ao contraditório quanto às exceções dilatórias e ao mérito da causa.
4- Tanto mais que a Apelante alegou no seu articulado de contestação factos relevantes que obstam ao conhecimento do mérito da ação, por via da exceção perentória de prescrição, obrigando à produção de prova em audiência de julgamento.
5- Esta omissão do Tribunal a quo de não convocação das partes para audiência prévia consubstancia “uma nulidade traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve” (art.º 195.º, n.º 1, do C.P.C.) e, em último termo, violador do direito constitucional do direito à jurisdição (artigo 20.º da CRP).
6- Ao fazê-lo, com desconsideração da sua função de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC) sobre uma questão essencial, aliás a única tomada em conta na sentença, conduziu-o a uma errada e incompleta fundamentação de facto e de direito (artigo 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC).
7- Para além disso, também se verifica omissão de pronúncia quanto à factualidade carreada para os presentes autos, em que o facto do tribunal a quo não se ter pronunciado nem ter conhecido o circunstancialismo do caso em concreto em discussão, o qual foi alegado em sede de contestação e dado como provado na sentença a quo, verificando-se uma e a ausência inequívoca de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC) repercutindo-se esta omissão na total ausência de fundamentação por parte do tribunal no qua esta questão diz respeito, que, a ter sido feita, reverteria na íntegra a decisão de que agora se recorre!
8- Nesse sentido, o facto do tribunal não se ter pronunciado devidamente sobre a matéria supra descrita, impediu-o de se pronunciar devidamente, pois o seu conhecimento é oficioso, sobre o comportamento abusivo por parte dos Embargantes, atentatório dos mais elementares princípios de boa-fé processual, devendo a sua conduta integrar o instituto do Abuso de Direito na modalidade de venire contra factum proprium nos termos do artigo 334.º do Código Civil, verificando-se a ausência inequívoca de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC) sobre uma questão essencial que permitiria conhecer e concluir pela inexistência de qualquer exceção perentória extintiva de prescrição da dívida, repercutindo-se esta omissão na fundamentação errada e incompleta (artigo 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC), de facto e de direito, aduzida pelo tribunal a quo.
9- No âmbito dos presentes autos, o título executivo sub judice é uma livrança prescrita que, nos termos do artigo 703.º do CPC é considerado título executivo bastante enquanto documento quirógrafo/particular bastando ao credor que, para o efeito, alegue no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, se os mesmos não constarem já do próprio título, facto que já demostrou ter sido feito e dado como provado.
10- E, tendo em conta a natureza do contrato, o que foi peticionado nos presentes autos foi o pagamento do valor em dívida à data do incumprimento do contrato, sendo que não se poderá considerar que se está perante quotas de amortização do capital, pois que apesar do pagamento das quantias devidas pelo incumprimento estar diferido no tempo, o que se trata no presente caso é tão só a liquidação do valor em dívida nesse momento. (sublinhado nosso).
11- Portanto trata-se de um único contrato, celebrado com a Embargante, em que existe uma dívida previamente fixada, dívida esta que irá ser paga parcialmente, fraccionadamente, em diversas prestações previamente estipuladas.
12- As prestações fracionadas transmutaram-se numa única obrigação sujeita ao prazo prescricional ordinário, ou seja, foram destruídas pelo vencimento antecipado, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.
13- Tratando-se de uma única obrigação pecuniária, por consequência não se poderá aplicar o disposto no artigo 310. º do CC, mas sim a regra geral, prevista no artigo 309.º do CC.
14- O crédito peticionado e que aqui se exige nos presentes autos não se reporta individualmente às quotas de amortização convencionadas, mas sim a todo o capital global da dívida, decorrente do vencimento das prestações, por força do disposto no artigo 781.º do CPC.
15- Não se enquadrando o capital no prazo de prescrição da alínea e), do art.º 310º C.C.
16- Aplicar ao presente contrato o prazo quinquenal com os pressupostos dos aludidos Acórdãos da Douta Sentença recorrida viola, além do princípio da segurança jurídica, os princípios basilares constitucionais previstos nos art.º 2°, 12°, n° 2, 18°, n°s 1, 2 e 3 todos da Constituição da República Portuguesa.
17- Se assim não for entendido, isto representaria uma clara desproteção do credor que nem sequer vê o valor do capital mutuado e já vencido passível de ressarcimento constituído, tal facto, uma desproporcional aplicação do direito do devedor em detrimento do credor o que ataca o princípio da segurança jurídica, violando até basilares princípios constitucionais previstos nos art.º 2°, 12°, n° 2, 18°, n°s 1, 2 e 3 todos da Constituição da República Portuguesa.
18- Sendo excessiva, inadequada e desnecessária face ao princípio já consagrado no art.º 310.º, n.º 1 al. d) C.C. e a proteção que o mesmo dá aos devedores.
19- Enferma para tal de inconstitucionalidade a norma presente no artigo 310º, alínea a e) do CPC, por violação dos princípios constitucionais, da proporcionalidade, segurança jurídica e proteção jurídica, assim como de igualdade de armas num Estado de Direito.
20- Por todo o exposto, deverá aplicar-se ao caso sub Júdice o prazo de 20 anos previsto no artigo 309.º do Código Civil no que concerne ao prazo de prescrição.
21- No que concerne à interrupção do prazo de prescrição terá de se considerar como ato interruptivo o dia 19/07/2003, o recomeço desse prazo de prescrição que inicia com o trânsito em julgado da decisão de extinção da execução anterior (a 17.03.2014), ou seja, a obrigação exequenda não se encontra prescrita, pois apenas ocorre o terminus do prazo a 17.03.2034.
22- Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência deverá ser o mesmo declarado nulo e realizada a devida audiência prévia; no caso de assim não se entender, deverá a sentença a quo ser revogada e substituída por uma que julgue totalmente improcedente os Embargos apresentados e o respetivo prosseguimento da Execução, com o que se fará inteira e acostumada JUSTIÇA!
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. arts. 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são apenas duas as questões a decidir no presente recurso:
a)- saber foi ou não cometida a nulidade decorrente da não convocação da audiência prévia e do exercício do contraditório;
b)- saber a decisão recorrida padece das nulidades que lhe vêm assacadas;
c)- saber se ocorreu ou não a exceção perentória da prescrição do crédito exequendo.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria factual que o tribunal recorrido deu como provada:
1. Por Contrato de Cessão de Créditos assinado no dia 18 de maio de 2012, em Lisboa, o Banco 1..., S.A., cedeu à sociedade B..., S.Á.R.L., os créditos que detinha sobre os ora Executados, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias, conforme documento n.º 1 e n.º 2 que juntos com o req. executivo e que aqui se dão por integralmente por reproduzidos.
2. Posteriormente, em 16 de março de 2021, foi celebrado um contrato de cessão de créditos, entre B..., S.À.R.L, na qualidade de cedente e, A..., S.A., na qualidade de cessionária, contrato pelo qual foram transmitidos os créditos e as garantias que a cedente detinha sobre os Executados, conforme documento n.º 4 e 5 juntos com o req. executivo e que aqui se dão por integralmente por reproduzidos.
3. A Cedente primária, no âmbito da sua atividade, celebrou a 01.02.2001 com a Executada, ao qual foi atribuído o n.º ... um contrato de mútuo sendo o valor concedido à executada de € 9.804,60 (nove mil oitocentos e quatro euros e sessenta cêntimos), a ser liquidado em 36 (trinta e seis) prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de € 376,28 cada, perfazendo o valor total das prestações de € 13.546,37 conforme doc. Nº 7 junto com o req. executivo e que aqui se dá por integralmente por reproduzidos.
4. Face ao incumprimento reiterado dos aqui Executados, foi resolvido o contrato e preenchida a livrança pelo valor de € 9.587,10, com data de vencimento de 01.01.2003.
5. O cedente primário interpôs a 14.07.2003 ação executiva proposta contra a executada com o nº …, Juízo de Execução do Porto–Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto
6. Tendo sido extinta a 17/03/2014, por deserção.
10. A presente ação executiva foi instaurada a 15.02.2024.
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III- O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que vem colocada no recurso prende-se com:
a)- saber foi ou não cometida a nulidade decorrente da não convocação da audiência prévia e do exercício do contraditório.
Alega a exequente/apelante que a sentença recorrida foi proferida sem que o tribunal a quo observasse previamente uma formalidade de cumprimento obrigatório, in casu, a convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório [artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do C.P.C], para além de que também as partes nunca foram notificadas pelo tribunal recorrido da sua intenção em prescindir da audiência prévia e assegurando-lhes o direito ao contraditório, fundamentando uma eventual exigência de realização de audiência prévia.
Como se evidencia do histórico processual por consulta ao sistema citius, o tribunal recorrido, antes de proferir o saneador sentença nos termos suprarreferidos apenas exarou despacho do seguinte teor:
“A fim de apreciar a exceção de prescrição o Tribunal carece de saber a data em que foi julgada extinta a execução que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízos Cíveis do Porto, 4.º Juízo, 2.ª Secção, sob o n.º ...
Assim, solicite ao Proc. ... que informe em que data foi declarada a extinção da execução”.
Recolhida tal informação veio, na decisão recorrida, exarar o seguinte trecho:
“O processo já contém todos os elementos necessários para ser proferida decisão de mérito, o que faremos de seguida, ao abrigo do disposto no artigo 510.º, nº 1, al. b), do C.P.Civil, uma vez que os autos são de valor inferior a 15.000,00 €.”
Quanto a este último segmento, torna-se evidente, desde logo, a citação errada da disposição legal, pois que, tendo os presentes sido introduzidos em juízo em 19/09/2024 e atento o disposto no artigo 6.º, nº 4 da Lei 41/2013 de 26/06, o normativo a que o tribunal recorrido se quereria referir seria, certamente, ao artigo 595.º, nº 1 al. b) do atual CPCivil.
Feita esta pequena correção, com interesse para o conhecimento da questão supra enunciada, diremos que no âmbito do processo comum de declaração-cujo regime é aplicável aos embargos de executado, após o termo dos articulados, por força do disposto no artigo 732.º, nº 2, do Código de Processo Civil-, se instituiu, como regra, a obrigatoriedade de realização da audiência prévia-cf. artigo 591.º do mesmo diploma-, nomeadamente quando o “juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” [cf. alínea b), do n.º 1, do citado preceito legal].
Nos artigos 592.º e 593.º do CPCivil estipulam-se as exceções à regra acima prevista, dispondo o artigo 592.º sobre os casos em que a audiência prévia não tem lugar e definindo o artigo 593.º os casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.

Além disso, nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, o juiz marcará ou não audiência prévia tendo em conta a natureza e a complexidade da ação (cf. artigo 597.º do Código de Processo Civil).[1]
Ora, aos presentes embargos de executado foi fixado o valor de € 14.851,30[2], ou seja, estamos perante uma ação de valor inferior a metade da alçada da Relação [atualmente, de € 30.000-cf. art.º 44.º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário)-sendo, por isso, metade de tal valor € 15.000,00].
Nestas ações, findos os articulados, é ao juiz, conforme referem Abrantes Geraldes e outros[3], “que cabe definir quais os trâmites processuais que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e a complexidade da ação e a necessidade e a adequação dos atos ao seu julgamento”.
Deste modo, o juiz pode, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo, designar audiência prévia ou, desde logo, proferir despacho, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, incluindo a decisão de mérito da causa, ou proferir despacho de adequação formal do processo, nos termos previstos nos artigos 6.º, n.º 1, e 547.º[4], do mesmo diploma, prosseguindo de imediato para a audiência final.
Ou seja, nas causas de valor não superior a metade da alçada do Tribunal da Relação, face ao disposto no citado artigo 597.º, compete ao juiz decidir sobre a convocação/realização da audiência prévia, não sendo obrigatória a sua realização.[5]
Dúvidas não existem de que o tribunal recorrido, como decorre do trecho atrás transcrito, inserido na decisão recorrida, foi esse o caminho que trilhou, ou seja, porque a ação tinha um valor inferior à metade da alçada do tribunal da Relação procedeu, de forma implícita, à dispensa da audiência prévia.
A questão que agora importa dilucidar é esta: mas subsumindo-se o caso concreto à factie species do citado artigo 597.º, ou seja, em que o tribunal recorrido estava investido, em princípio, do poder discricionário de convocar ou dispensar a audiência prévia, não estava obrigado a acautelar o exercício do contraditório?
Em anotação ao preceito, explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[6] “(…) que o artigo 597.º é essencialmente tributário de um dos princípios integrantes do princípio da gestão processual (artigo 6.º)-o princípio da adequação formal (artigo 547.º)–, que orienta todos os processos, mas que nas causas de menor valor exige maior atenção do juiz”. Esclarecem despois os mesmos autores[7] o seguinte: “Ao juiz compete então, nestas ações, decidir sobre a prática de certos atos que a lei insere na tramitação do processo comum de declaração; mas não se pode dizer que a regra é a de que os mesmos não sejam praticados (por exemplo, não se pode depreender do artigo 597.º que nas ações de valor mais baixo não tem normalmente lugar o despacho saneador, a menos que o juiz decida proferi-lo). O poder do juiz é, em princípio, discricionário quanto à prática desses atos. Relativamente ao despacho pré-saneador, e por força da remissão do corpo do artigo para o artigo 590.º-2, o juiz não goza de tal poder, devendo proferi-lo quando estejam verificados os seus pressupostos. Não pode tão-pouco o juiz, não obstante a redação da alínea a), deixar de assegurar o exercício do contraditório quanto às exceções dilatórias e ao mérito da causa, nos mesmos termos em que o tem de fazer nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, visto que tal constitui uma derivação do direito fundamental à jurisdição (artigo 20.º da CRP) (…)” (negrito e sublinhados nossos).
Conforme nos parece decorrer do excerto transcrito, ainda que se trate de ação de valor não superior a metade da alçada da Relação, tencionando o juiz conhecer do mérito da causa no despacho saneador, não pode deixar de o comunicar às partes e de lhes facultar, previamente à prolação de tal decisão, a discussão de facto e de direito, seja através da convocação da audiência prévia ou, com o acordo das partes, por outra via, sob pena de violação do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPCivil) e independentemente da avaliação do tribunal quanto à desnecessidade de as ouvir para poder decidir.
Como se lê no acórdão de 22/06/2021 da Relação de Lisboa[8]o princípio do contraditório não se alcança através do juízo formulado pelo tribunal quanto à necessidade de ouvir as partes, nomeadamente por considerar que elas ainda têm algo a dizer-lhe com relevo para o que tem a decidir. Implica outrossim, que as partes têm o direito de dizerem ao juiz aquilo que naquele momento ainda entendem ser relevante para a decisão de mérito anunciada. Essa é, pelo menos, uma oportunidade relevante cerceada, não devendo antever-se que, mesmo sendo exercida, a decisão seria a mesma”(negrito e sublinhado nossos).
É que se assim não se entender, refere o mesmo aresto, “(…) podem as partes ficar impedidas de carrear novos factos para os autos, ainda que tenham já abordado todas as questões a apreciar (…), e podem ainda, na perspetiva de uma decisão imediata, pretender consubstanciar e debater algumas questões, ou, mais relevante, podem querer infirmar a conclusão a que o juiz chegou de que lhe era possível decidir”.
Ora, no caso em apreço, o tribunal recorrido, sem antes consultar as partes (v.g., convocando a audiência prévia ou notificando-as para exercerem o contraditório) proferiu decisão final de mérito em sede de despacho saneador.
Portanto, às partes não foi dada a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões a decidir, bem como sobre a oportunidade de conhecimento do mérito findos os articulados, sendo que, a referida decisão nem sequer foi precedida de qualquer afirmação quanto à desnecessidade de assegurar o exercício do contraditório, não obstante, a exceção da prescrição que conduziu à procedência dos embargos, tenha sido debatida nos articulados.
Na verdade, mesmo tratando-se de exceções já debatidas nos articulados, entendemos que a decisão de conhecer imediatamente do mérito da causa deverá ser precedida do convite expresso e prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade desse conhecimento no despacho saneador e da permissão de alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência prévia se esta tivesse lugar, porquanto a discussão da causa não se limita à abordagem das partes relativamente às exceções deduzidas, devendo também abranger a discussão efetiva sobre a decisão a tomar.
Enfim, não tendo sido facultado às partes o direito ao exercício do contraditório, isto é, de se pronunciarem sobre o conhecimento do mérito da causa, por o tribunal a quo entender que os autos ofereciam os elementos necessários à prolação de decisão final, findos que estavam os articulados, foi proferida uma decisão-surpresa.
Por outras palavras, foi vedada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a oportunidade da decisão final no despacho saneador e, sobretudo, de produzirem alegações (por escrito) sobre o mérito da causa, violou-se o princípio do contraditório-cf. artigo 3.º, nº 3, do Código de Processo Civil-, que visa prevenir as decisões-surpresa.
De facto, como já noutro se referiu, apesar do poder discricionário que lhe é concedido a respeito da convocação ou não da audiência prévia nas ações de valor inferior a metade da alçada da relação, não pode o juiz deixar de assegurar o exercício do contraditório quanto ao mérito da causa, nos mesmos termos em que o tem de fazer nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, visto que tal constitui uma derivação do direito fundamental à jurisdição.
O princípio do contraditório, que é hoje entendido como um direito de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, envolve a proibição da prolação de decisões-surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
No caso, o tribunal a quo, ao julgar do mérito da causa no despacho saneador, sem primeiro ter assegurado o exercício do contraditório, omitiu um ato prescrito por lei (omissão da audição das partes, como estatuído no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil).
E quais as consequências dessa omissão?
Não tem sido pacífica a discussão jurisprudencial e doutrinal sobre as consequências decorrentes da omissão de concessão de contraditório prévio havendo quem configure a invalidade daí decorrente como uma nulidade autónoma e quem a trate como uma nulidade derivada.
Sintetizando, há quem defenda que as decisões assim preferidas são, elas mesmas, feridas de nulidade, bem como há quem trate a questão como uma nulidade do processado. Neste segundo entendimento encontra-se quem defenda que a nulidade processual deve ser arguida em sede de recurso e quem propugne a sua arguição perante o juiz da causa nos termos previstos no artigo 199.º, número 1 do Código de Processo Civil.[9]
A opção por uma ou outra das soluções é, em muitos casos, deveras relevante já que, neste segundo caso, para quem defenda que nulidade terá de ser alegada autonomamente, a sua arguição está sujeita a prazo mais apertado do que o fixado para o recurso da decisão. Também as consequências de tal nulidade poderão ser diversas caso se opte por situá-la ao nível da decisão ou do processado prévio à mesma (ainda que essa anterioridade não seja, na maioria das vezes, decorrente de dois distintos momentos de decisão).
Sem quebra do devido respeito pelas demais posições doutrinais e jurisprudenciais acima sumariadas, entendemos que a violação do citado princípio se traduz numa ilegalidade, isto é, corresponde a violação da lei (que impõe o contraditório) o que torna a decisão ilegal.
A este propósito escrevem Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge[10] o seguinte “Se, fruto do contexto processual em que é praticado o ato decisório, a sua prolação contender com norma imperativa, tal prática constitui, obviamente, “a prática de um ato que a lei não admite”. E assim é, mesmo que ela ocorra no momento abstrata e paradigmaticamente previsto para o desenvolvimento de tal atividade decisória com um conteúdo típico. Na fatispécie do n.º 1 do art.º 195.º, a “vontade da lei” dirige-se à conformidade da prática do ato com o rito processual que deve ser adotado (de modo a assegurar um processo equitativo), e não ao rito-padrão, pelo que se coloca aqui um problema de incumprimento da lei.
Daqui decorre que o ato decisório praticado em violação do disposto na segunda parte do n.º 3 do art.º 3.º, é um ato ilegal, em si mesmo (e não apenas por contaminação ou arrastamento), ainda que, aparentemente, esteja bem inserido na sequência processual prevista na lei. Embora se recorra à falha patogénica para caracterizar a viciação–decisão proferida sem contraditório prévio devido–, é a própria decisão que não devia ter existido (naquelas condições).
É certo que a atividade processual encontra a razão do seu desenvolvimento, exclusivamente, na sua utilidade preparatória da prática do último ato da sequência, aquele que deverá produzir o resultado (fim) processual típico. No entanto, na complexa sequência de atos tipificados, ordenados à prolação de uma decisão que concretiza a justa composição do litígio, os atos preparatórios não se confundem nem são incorporados no ato decisório final. Pertencendo o processo à categoria de “ato-procedimento”, e não à categoria de “ato complexo”, o ato decisório final, repisa-se, não se confunde nem incorpora os atos que o antecedem, não ficando, pois, intrinsecamente contaminado pelos vícios destes nem pelas omissões verificadas.
Repisa-se, o ato decisório praticado em violação do disposto na segunda parte do n.º 3 do art.º 3.º, é um ato que a lei não admite, em si mesmo. Podendo esta viciação influir no exame ou na decisão da causa, a sua subsunção à fatispécie do n.º 1 do art. 195.º não deve merecer grandes reservas, como tem merecido” (negrito e sublinhados nossos).
Este entendimento, não obsta, contudo, a que tal vício seja invocado em sede de recurso, pois a omissão de contraditório consuma-se e revela-se apenas na decisão viciada, no caso na decisão de mérito proferida.
Como ensinava Manuel de Andrade estando a nulidade “(…) coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.[11]
Ou seja, não se estando perante um dos casos de nulidade da sentença (que são apenas os tipificados no artigo 615.º do Código de Processo Civil) ou do despacho (por força da remissão do artigo 613.º, nº 3 do Código de Processo Civil), estaremos, nos casos de decisões-surpresa, perante uma nulidade cometida com a sua prolação pelo que tal vício pode ser arguido como fundamento do recurso.
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Daqui resulta que, no caso em apreço, a violação das normas processuais que impõem o contraditório, tornando a decisão ilegal, determinam a revogação e substituição desta pela determinação do cumprimento do procedimento omitido, com prejuízo dos demais atos incompatíveis praticados em primeira instância.[12]
Procedem, assim as conclusões 1ª a 5ª formuladas pela apelante e, com elas o restivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em revogar a decisão impugnada, devendo o tribunal recorrido, caso mantenha a opção de dispensar a audiência prévia e tencione ainda proferir decisão final de mérito no despacho saneador, assegurar o exercício do contraditório quanto ao mérito da causa, de forma a possibilitar a efetiva audição das partes nos termos supra expostos.
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Custas pela apelante que do recurso tirou proveito (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 10 de novembro de 2025.
Manuel Domingos Fernandes
Mendes Coelho
Carlos Gil
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[1] Este preceito sob a epigrafe “Termos posteriores aos articulados nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação”, tem a seguinte redação:
Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo:
a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados;
b) Convoca audiência prévia;
c) Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do artigo 595.º;
d) Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
f) Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas;
g) Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no artigo 151.º
[2] Despacho esse que transitou em julgado.
[3] In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, Almedina, 3.ª edição, página 755.
[4] Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 6º do Código de Processo Civil, “[c]umpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
Por outro lado, de acordo com o previsto no artigo 547º do Código de Processo Civil, “[o] juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.
[5]Cf., entre outros, acórdãos de 28/04/2022 da Relação de Lisboa, de 27/09/2022 e de 26/09/2024 desta Relação e de 06/02/2024 da Relação de Coimbra, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[6] In Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 673.
[7] Ibidem págs. 673-674.
[8] Consultável em www.dgsi.pt..
[9] No primeiro dos sentidos, entre outros, Rui Pinto em artigo de maio de 2020, intitulado “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º)” disponível na Revista Julgar Online, pág. 31 (https://julgar.pt/os-meios-reclamatorios-comuns-da-decisao-civil-artigos-613-o-a-617-o-do-cpc/), afirma que “como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378). A decisão não pode deixar de ser nula.” (…) “Porém, o juiz não pode conhecer da arguição da nulidade de decisão surpresa, pois esta é atinente ao objeto da causa, salvos os casos em que esta também constitua excesso de pronúncia. Efetivamente, quando isto não suceda – nomeadamente por a “surpresa” se situar em matérias de conhecimento oficioso, como, por ex., factos instrumentais e a qualificação jurídica (cf. artigo 5.º, n.ºs 2 e 3)–trata-se de nulidade inominada do artigo 195.º, por violação do princípio do contraditório do artigo 3.º, n.º 3. Identicamente, o juiz não pode conhecer da nulidade da decisão que ordenou a citação em procedimento de restituição provisória da posse pois diz respeito à validade do objeto desse mesmo despacho de citação. Nestas segundas eventualidades, a nulidade apenas poderá ser invocada como fundamento de recurso, nos termos gerais, caso ele seja admissível.”.
No segundo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, em comentário a Acórdão desta Relação, de 2.3.2015 onde afirma que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afeta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual)”; Segundo tal autor, até à prolação da decisão, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”. É entendimento do mesmo que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria”. Disponível em publicação de 23/03/2015, https://blogippc.blogspot.com/2015/03/jurisprudencia-105.html.
[10] “As outras nulidades da sentença cível” in Revista Julgar Online.
[11] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora,1993, pág. 183. No mesmo sentido, lê-se no Manual de Processo Civil de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Coimbra Editora, 2ª edição, página 393, que: “Se entretanto, o ato afetado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão.
[12] Cf. neste sentido Ac. desta Relação de 24/03/2025, Processo nº 2329/20.2T8MTS-A.P1, relatado pelo Ex.º Desembargador Dr. José Eusébio Almeida e o Ac. do STJ de 30/04/2025 Processo nº 31078/22.5T8LSB.L1.S1, relatado pelo Ex.º Conselheiro Rui Machado e Moura ambos consultáveis em www.dgsi.pt..