I - A legitimidade processual, prevista no artigo 30.º do Código de Processo Civil, constitui um pressuposto processual de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa, aferindo-se, na falta de indicação da lei em contrário, pela relação entre as partes e o objeto do processo tal como configurada pelo autor na petição inicial, não exigindo a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade. Trata-se de questão de natureza processual, constituindo a sua falta uma exceção dilatória (artigo 577º, alínea e), do Código de Processo Civil) que determina a absolvição da instância (artigo 576º, nº2, do Código de Processo Civil).
II - A legitimidade substantiva respeita ao mérito da causa, à efetiva titularidade da relação jurídica material controvertida, sendo requisito de procedência da ação e determinando, quando inexistente, a absolvição do pedido por improcedência da pretensão do autor, configurando uma exceção perentória inominada.
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra
Recorrente: AA
Recorrida: Banco 1...
Relatora: Juíza Desembargadora Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Juiz Desembargador António Mendes Coelho
2º Adjunto: Juiz Desembargador Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
I – RELATÓRIO
AA, intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Banco 1... (Sucursal da S.A. francesa Banco 1...), pessoa coletiva n.º ..., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização no valor de €2500 (dois mil e quinhentos euros) a título de danos patrimoniais e de €15.000 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais, num total de €17.500 (dezassete mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que celebrou com a Ré, em 22 de novembro de 2021, um contrato de crédito, existindo, associado ao mesmo, um seguro de proteção de riscos contra todas as eventualidades a que o segurado, ora Autor, estivesse sujeito, incluindo morte, doença ou acidente, incapacidade para o trabalho, invalidez absoluta ou relativa, necessidade de apoio de outrem para as tarefas do dia a dia como alimentar-se, vestir-se e deslocar-se e em todas as situações de ausência ou diminuição de rendimentos, tendo a cobertura dos riscos início na data de celebração do contrato, e um período de vigência de 3 anos, ou seja, até Novembro de 2024.
Sucede que, na vigência do contrato, o Autor ficou doente, incapacitado para o trabalho e a necessitar do apoio de uma terceira pessoa para realizar as tarefas no dia a dia, tendo efetuado participação de sinistro nos serviços da Ré e requerido as prestações a que tinha direito nos termos do contrato celebrado.
Sucede que a Ré nunca procedeu ao pagamento de qualquer quantia ao Autor ou o isentou de prestações, que este teve de pagar, não tendo cumprido o contrato que com ele celebrou, incumprimento que lhe provocou danos patrimoniais e não patrimoniais, cuja indemnização reclama da Ré através da presente ação.
Em 22 de junho de 2024, a Ré contestou a ação, por exceção e por impugnação, tendo excecionado a ineptidão da apetição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, bem como a ilegitimidade passiva (por si só da Ré e/ou por preterição do litisconsórcio necessário), porquanto o contrato de seguro de proteção ao crédito foi celebrado entre o Autor e as Companhias de Seguros A..., S.A. e B..., S.A., sendo a Ré tomadora e beneficiária do mesmo e não a entidade seguradora, pertencendo a legitimidade passiva unicamente às Seguradoras. Impugnou ainda parte dos factos alegados pelo Autor, concluindo pela procedência das exceções dilatórias invocadas, pugnando pela sua absolvição da instância, e caso assim se não entenda, pela improcedência da ação, por não provada, com a sua consequente absolvição dos pedidos.
Na sequência de despacho a determinar a notificação do Autor para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciar quanto à matéria de exceção invocada pela Ré na sua contestação, veio aquele, em 22 de setembro de 2024, pugnar pela improcedência das exceções invocadas. Mais alegou que, caso o Tribunal não conclua pela improcedência da exceção de ilegitimidade da Ré, então estar-se-á perante um caso de litisconsórcio necessário passivo, devendo o Tribunal proferir despacho vinculado a convidar o Autor ao suprimento da preterição desse litisconsórcio, terminando o seu requerimento nos seguintes termos: “Assim caso o tribunal entenda que da relação jurídica controvertida resulte que ação para produzir o efeito útil normal devem ser chamados a juízo as companhias de seguros A..., S.A. e B... S.A. deve o tribunal ao abrigo do artigo 6, nº 2 e 590, nº 1 do CPC, proferir despacho vinculado a convidar o autor ao suprimento da preterição do litisconsórcio necessário passivo.
Com efeito, o CPC prevê o chamamento de terceiro em falta para assegurar a legitimidade de alguma das partes (artigo 262º do CPC).
Em que esse terceiro, as seguradoras, devem ser chamadas para ocupar na lide uma posição de parte principal, ou seja, na mesma posição da parte a que se associa e fazer valor um direito próprio (artigo 312º e ss do CPC).
O que expressamente se requer caso venha a ser este o entendimento do tribunal.
Concluindo, o autor vem requer que sejam julgadas improcedentes as exceções invocadas pela ré.”
Por despacho de 26 de novembro de 2024, o Tribunal a quo julgou improcedente a exceção dilatória da ineptidão da petição inicial, e, em 14 de janeiro de 2024, veio a proferir despacho saneador-sentença, no qual fixou o valor da causa em €17.500,00, julgou improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade da Ré, concluindo pela sua legitimidade para a presente ação, e decidiu, a final, nos seguintes termos:
«VII – DISPOSITIVO
Pelo exposto e com os fundamentos supra expostos, julga-se a ação totalmente improcedente e, em consequência, decide-se absolver a Ré das quantias peticionadas pelo Autor.
Valor: o já fixado.
Custas pelo Autor, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.»
(…)
(…)
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
1ª Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas nas alíneas c), d), e e), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
2ª Da impugnação da decisão da matéria de facto
3ª Se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo quanto ao mérito
Fundamentação de facto
É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto constante do despacho saneador- sentença recorrido (transcrição):
Expurgados os factos conclusivos e irrelevantes, bem como alegações meramente jurídicas, consideram-se provados, com relevância para a decisão de mérito da causa, os seguintes:
1. A Ré é uma instituição financeira, que concede crédito, mediante o pagamento de uma contrapartida pecuniária.
2. Em 22.11.2021, o Autor, mediante assinatura eletrónica através da plataforma Logalty, subscreveu um documento intitulado “contrato de crédito”, com a Ré, donde constava, designadamente, o seguinte:
“Montante Total do Crédito: € 3.000,00
Montante Total Imputado ao Consumidor: €3.534,48€
Duração do contrato (nº prestações mensais) 36
Dia de vencimento da prestação: 5
(…) CONDIÇÕES GERAIS | CONTRATO DE CRÉDITO PESSOAL Banco 1...
1. Objeto
A presente proposta/contrato tem em vista a celebração entre o Cliente (“CLT”) e a Instituição de Crédito (“IC”), de um contrato de crédito pessoal pelo montante fixado nas Condições Particulares – montante total do crédito – e é regido pelo disposto no Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho (“DL 133/2009”), e pelas Condições Particulares (“CP”) e Condições Gerais que o integram e pode ser celebrado com intervenção de Intermediário de Crédito, quando este esteja identificado nas Condições Particulares acima referidas.
(…)
SEGURO FACULTATIVO DE PROTEÇÃO DE CRÉDITO
X OPÇÃO VIDA MAIS”.
3. Mais subscreveu, também mediante assinatura eletrónica através da plataforma Logalty, documento intitulado “PROPOSTA DE ADESÃO AO SEGURO DE GRUPO FACULTATIVO DE PROTEÇÃO DE CRÉDITO”, onde consta o seguinte:
“Contrato de Seguro de Grupo subscrito pela Banco 1..., na qualidade de Tomadora do Seguro, junto da A... SA e da B... SA, na qualidade de Seguradoras.
(…)
Entende-se, para efeitos do presente contrato:
Seguradoras: A... SA – Sociedade Anónima de direito francês, com sede social em rue ... ... ... – França, como capital social de €778.371.392, registada no ... sob o número ... (Seguradora do ramo Vida); e B... SA - Sociedade Anónima de direito francês, com sede social em rue ... ... ... - França, com o capital social de €201.596.720, registada no ... sob o número ... (Seguradora do ramo Não Vida), ambas regidas pela legislação francesa aplicável e submetidas ao controlo da L’Autorité de Contrôle Prudentiel et de Résolution (ACPR), 4 ... ... Paris Cedex ... (France) e endereço eletrónico www.acpr.banque-france.fr, e ambas autorizadas pela ACPR para atuar em Portugal, em regime de liberdade de prestação de serviços, com registo na ASF, respetivamente, sob os números ... e ....
Tomadora do Seguro: Banco 1... – Sociedade Anónima de direito francês, com sede social em ..., avenue ... ... Cédex – France, com o capital social de €67.500.000, registada no ... sob o número ..., ..., .... e. Instituição de crédito submetida ao controlo e supervisão do “Comité des Etablissements de Crédit et des Entreprises d’Investissements, Banque de France”, ... “Direction des Etablissements de Crédit et des Entreprises d’Investissements” – ... Paris cedex ....
A Banco 1... exerce a sua atividade em Portugal através de uma Sucursal, registada na Conservatória de Registo Comercial de Lisboa com o número de pessoa coletiva e de matrícula ..., e com local de representação na Av.ª ..., ... Lisboa, devidamente registada como Sucursal de Instituição de Crédito junto do Banco de Portugal, através do código de ....
Distribuidora: A Banco 1... na sua qualidade de DISTRIBUIDORA de Seguros desta Apólice estabelecida em exclusividade relativamente às Seguradoras, promove a adesão à referida Apólice de seguro junto dos Mutuários, procede à cobrança das prestações correspondentes ao Prémio, e a toda a assistência posterior, aí incluindo tratamento de reclamações e a gestão de sinistros e de indemnizações.
Beneficiária: Este contrato destina-se a garantir, nas condições convencionadas que sejam aplicáveis, quer o pagamento do crédito contraído no âmbito do Contrato de crédito celebrado com a Banco 1..., em caso de Falecimento ou de Invalidez Absoluta e Definitiva (IAD) do Segurado (Opção VIDA, VIDA PROTEGIDA ou VIDA MAIS), quer o pagamento das prestações de reembolso previstas para o Contrato de crédito, em caso de Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) ou de Desemprego (Opção VIDA PROTEGIDA ou VIDA MAIS). Ao aderir a esta Apólice o Segurado consentirá expressamente na cobertura do risco da sua Vida e estará a designar a Sucursal da Banco 1... em Portugal como Beneficiária do seguro, no limite do seu interesse legítimo, dando-se então por aceite, nas condições legais aplicáveis, tal designação, assim renunciando expressamente ao direito de alterar ou revogar esta designação.
Segurado/ Pessoa Segura: Pessoa singular que seja qualquer um dos Mutuários e que declare aderir ao seguro segundo a Opção do seguro assinalada expressamente indicada nas Condições Particulares da Proposta de Contrato de Crédito ou que venha a escolher em adesão posterior à subscrição do contrato de crédito e na sua vigência.”
1ª Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas nas alíneas c), d), e e), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil
Com interesse para o conhecimento desta questão convém ter presente que as nulidades da sentença tipificadas no artigo 615º, do Código de Processo Civil, são vícios formais, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites da decisão.
Não podem ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes ao mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade.
Diferentemente, as nulidades previstas no artigo 615º, do Código de Processo Civil, são aquelas que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer por essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional, em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[1] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo.
Os referidos vícios respeitam, por conseguinte, à “estrutura ou aos limites da sentença.
Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação) e c) (oposição entre os fundamentos e a decisão).
Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[2].
No caso concreto, o Recorrente invoca as nulidades da sentença previstas nas alíneas c), d) e e) do nº1 do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
Nos termos da alínea c), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A contradição a que alude esta alínea c) verifica-se quando a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto; pretendendo o legislador que o juiz justifique a sua decisão, esta não poderá considerar-se justificada quando colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia.[3]
Por seu lado segundo o disposto na alínea d), do nº1, do citado artigo 615º, do Código de Processo Civil, a sentença é nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
O disposto nesta norma está diretamente relacionado com o artigo 608°, n° 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
A dificuldade está em saber o que deve entender-se por questões jurídicas neste contexto. E quanto a esta matéria, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que essas questões que o Tribunal pode conhecer, para além daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe, identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir e com as exceções invocadas. Não serão todos os argumentos, todos os factos, todas as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções[4].
Importa ainda ter presente que na primeira parte da alínea d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil mostra-se contemplada a nulidade da decisão por omissão de pronúncia, enquanto na segunda parte se prevê a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Já na alínea e), do citado artigo 615º, do Código de Processo Civil, prevê-se a nulidade da sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Este preceito deve ser articulado com o art.º 609.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que “1. A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir. (…)”
Deste modo, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objeto, sob pena de a sentença ficar afetada de nulidade.
Partindo deste enquadramento jurídico, e revertendo ao caso concreto, o Recorrente começa por sustentar que a sentença recorrida padece de nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, apresentando segmentos confusos e ininteligíveis.
Em concreto, alega que a questão da legitimidade passiva da Ré (ou da falta dela) não foi objeto de um despacho autónomo que decidisse a questão da legitimidade processual das partes e estabilizasse os elementos da instância.
Mais sustenta que a decisão sobre a legitimidade das partes foi proferida em sede de sentença final, que considerou que a Ré era parte legítima, mas, não obstante, veio a absolver a Ré do pedido por considerar que esta era parte ilegítima.
Alega ainda que sentença enuncia como questão a decidir “Deve a Ré à Autora a quantia peticionada?”, mas toda a retórica argumentativa no que se refere às questões de direito vai no sentido de demonstrar a existência de uma ilegitimidade substantiva da Ré que conduziu à sua absolvição do pedido.
Desta forma, considera que a sentença apresenta contradições insanáveis que determinam a sua nulidade.
Entendemos que a questão não merece acolhimento, não se divisando qualquer contradição insanável.
A sentença recorrida distinguiu, com clareza, entre legitimidade processual (ou adjetiva) e legitimidade substantiva (ou material), conceitos autónomos e que têm âmbitos de aplicação distintos e que o Recorrente claramente confunde.
A legitimidade processual, prevista no artigo 30.º do Código de Processo Civil, constitui um pressuposto processual de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa, aferindo-se, na falta de indicação da lei em contrário, pela relação entre as partes e o objeto do processo tal como configurada pelo autor na petição inicial. A parte (Autor ou Réu) é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida desenhada pelo Autor na petição inicial, ela for titular dessa relação.
Ou seja, a legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo Autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade.
Trata-se de questão de natureza processual, constituindo a sua falta - ilegitimidade processual - uma exceção dilatória (artigo 577º, alínea e), do Código de Processo Civil) que determina a absolvição da instância (artigo 576º, nº2, do citado diploma fundamental).
Já a legitimidade substantiva respeita ao mérito da causa, à efetiva titularidade da relação jurídica material controvertida, sendo requisito de procedência da ação e determinando, quando inexistente, a absolvição do pedido por improcedência da pretensão do autor, configurando uma exceção perentória inominada.
Dito de outro modo, a ilegitimidade substantiva traduz-se na verificação de que o autor não é titular do direito invocado ou de que o réu não é o sujeito passivo da relação jurídica material controvertida. Trata-se de questão de mérito, que determina a improcedência da ação.
Por conseguinte, uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada para efeitos do pressuposto processual da legitimidade, em que apenas se impõe, em regra, atender à relação material controvertida desenhada pelo autor em sede de petição inicial, e outra, bem diversa, é apurar se a pretensão que o autor vem exercer nos autos existe efetivamente, ou seja, se o autor é o efetivo titular do direito que pretende exercer contra o réu e se a violação do mesmo lhe confere efetivamente a pretensão que formula contra o último, o que já nada tem a ver com o pressuposto processual da legitimidade, isto é, com a exceção dilatória da legitimidade ativa ou passiva, mas única e exclusivamente, com o mérito da ação, isto é, com a legitimidade substantiva, por estar dependente da verificação dos requisitos de facto e de direito que condicionam o nascimento dessa obrigação, o seu objeto e a sua perduração – neste sentido, cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manuel de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 104, pág. 134.
No caso sub judice, o Tribunal a quo começou por apreciar a exceção dilatória de ilegitimidade processual invocada pela Ré, concluindo pela sua improcedência, considerando que, à luz da configuração dada pelo Autor à relação controvertida, a Ré seria parte legítima (artigo 30.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Posteriormente, ao conhecer do mérito da causa, concluiu o Tribunal recorrido que, face à matéria de facto provada – designadamente a celebração do contrato de seguro entre o Autor e as seguradoras A... SA e B... SA, sendo a Ré tomadora, distribuidora e beneficiária do mesmo –, a Ré não era titular da relação jurídica material invocada pelo Autor, verificando-se, por conseguinte, ilegitimidade substantiva, que determinou a absolvição do pedido.
Não existe, pois, qualquer contradição.
A sentença distingue, de forma tecnicamente correta, dois planos diversos: o plano processual (legitimidade adjetiva) e o plano substantivo (legitimidade material).
A conclusão pela existência de legitimidade processual não é incompatível com a posterior verificação de ilegitimidade substantiva, sendo antes conceitos que se situam em momentos lógicos e distintos da análise judicial.
Improcede, por conseguinte, a invocada nulidade da sentença prevista no artigo 615º, nº1, alínea c), do Código de Processo Civil.
O Recorrente sustenta também que a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia, prevista na primeira parte, da alínea d), do nº1, do citado artigo 615º, alicerçando essa nulidade na circunstância de o Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre a questão do litisconsórcio necessário (artigo 33.º do CPC) e sobre o chamamento de terceiros.
Quanto a esta questão, importa desde logo salientar que o Autor se limitou, no seu requerimento de 22 de setembro de 2024, a pugnar pela improcedência da exceção da ilegitimidade passiva da Ré (aqui estávamos no âmbito da ilegitimidade processual) ou, caso o Tribunal assim não o entendesse, que fosse formulado convite ao Autor no sentido de este fazer intervir as seguradoras mediante a dedução do correspondente incidente.
Ora, uma vez que o Tribunal a quo julgou a Ré parte legítima processualmente, a exceção dilatória da ilegitimidade foi afastada.
Tendo a questão do litisconsórcio necessário sido levantada subsidiariamente, como forma de suprir uma falta de legitimidade (processual) da Ré, caso viesse a ser esse o entendimento do Tribunal, e essa falta não foi verificada, o pressuposto para uma intervenção provocada de terceiros com o fim de suprir a ilegitimidade caiu por terra. Aliás, essa intervenção de terceiros nem sequer chegou a ser deduzida pelo Autor, tendo este requerido apenas que o Tribunal o convidasse a deduzir tal intervenção se viesse a concluir pela ilegitimidade passiva da Ré por preterição de litisconsórcio necessário, o que não ocorreu.
O conhecimento dessas questões estava, por conseguinte, prejudicado, não tendo o Tribunal a quo de se pronunciar quanto às mesmas.
Tal conclusão deriva da circunstância de o disposto no artigo 615º, nº1, al. d), do Código de Processo Civil dever ser articulado com o nº2, do artigo 608º, do citado diploma, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Por conseguinte, não se impunha ao Tribunal a quo apreciar a questão do litisconsórcio necessário nem do despacho de convite ao Autor para deduzir a intervenção de terceiros se entretanto concluiu que a Ré era parte legítima para a presente ação, porquanto se tratava de questões cujo conhecimento estava prejudicado pelo reconhecimento da legitimidade (processual) da Ré.
Por fim, quanto à nulidade prevista na alínea e), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, o Recorrente limita-se, na conclusão 1ª do recurso, a indicar aquela alínea, mas depois, lida a motivação do recurso, em lado algum alega o que quer que seja para fundamentar aquela nulidade, sendo certo que, lida a decisão recorrida, este Tribunal não descortina qualquer motivo para concluir pela verificação daquela nulidade, não tendo o Tribunal a quo excedido nos limites da pronúncia ou condenado em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Concluímos, assim, que o que o Recorrente vem manifestar, em concreto, é a sua discordância quanto ao decidido na sentença apelada, mas esse inconformismo não conduz à sua nulidade.
A arguição das nulidades invocadas revela-se, assim, infundada e, por via disso, o recurso improcede nesta parte.
Sob o título “Recurso da matéria de facto”, nas conclusões 8ª a 12ª, o Recorrente sustenta que a matéria de facto considerada provada é manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão proferida, e que a fundamentação referente à decisão da matéria de facto não permite ao Autor, em sede de recurso, indicar os pontos que considera incorretamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos do artigo 640º, nº1, alínea a) e b), do Código de Processo Civil.
Mais defende que há uma deficiente alusão aos factos provados e não provados que compromete o direito do Autor ao recurso quanto à matéria de facto, que limita o direito de acesso do Autor à justiça e à tutela efetiva, consagrado como direito fundamental no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que conclui pela existência de erro de julgamento na matéria de facto.
Tais conclusões não merecem a nossa aquiescência.
Nos termos do artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto deve indicar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, especificando os meios de prova que serviram para julgar provados ou não provados os factos.
No caso vertente, a sentença recorrida identifica os factos provados (pontos 1 a 3), indica os meios de prova que sustentaram tal decisão (documentos juntos aos autos, designadamente o contrato de crédito e a proposta de adesão ao seguro de grupo) e explicita os critérios de valoração probatória adotados, designadamente no que respeita à genuinidade das assinaturas eletrónicas certificadas pela plataforma Logalty.
A matéria de facto provada é suficiente para fundamentar a decisão de mérito, como adiante se demonstrará, sendo certo que não vislumbramos em que medida o Recorrente estava impedido de impugnar a decisão do Tribunal a quo quanto à matéria de facto.
Diferentemente, entendemos que o Recorrente, perante a sentença proferida pelo Tribunal a quo, apesar de alegar que recorre da matéria de facto, chegando a sustentar que “existe erro de julgamento da matéria de facto”, não identifica, concretamente, quais os factos que pretenderia ver julgados de forma diversa ou que pretenderia ver aditados aos factos provados, nem indica os meios de prova que imporiam decisão diferente, como exige o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Com efeito, esse artigo 640º impõe ao Recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, especificação que também deve ser feita nas conclusões do recurso, indicando clara e inequivocamente os segmentos da decisão da matéria de facto que pretende impugnar. Essa indicação tem que ser de molde a não implicar uma atividade de interpretação e integração das alegações da Recorrente, tendo o Tribunal que encontrar na matéria de facto provada e não provada aquela que o mesmo pretenderia impugnar, o que, aliás, está vedado ao Tribunal, face ao princípio do dispositivo.
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que sustentem a sua pretensão de alteração da decisão da matéria de facto quanto aos pontos impugnados diversa da recorrida, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, especificação que não tem de constar das conclusões do recurso.
c) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados deve indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
d) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, especificação que se vem entendendo, dominantemente, que não tem que constar das conclusões das alegações.
O citado artigo 640.º impõe ao Recorrente, por conseguinte, um conjunto de rigorosos ónus processuais, que o mesmo claramente não respeitou.
Apreciadas as alegações de recurso à luz de um critério de rigor imposto pela decorrência dos princípios da autorresponsabilidade das partes e do dispositivo, que necessariamente têm de nortear o julgador na aplicação do artigo 640º, do Código de Processo Civil, e que impedem que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de indistinto e inconsequente inconformismo, determinando, ao invés, que seja rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, é patente que o Recorrente:
- Não indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
- As concretas provas que impõem decisão diversa.
- A decisão alternativa que deveria ter sido proferida.
- Sustentou, de forma vaga e abstrata, insuficiência da matéria de facto, sem especificar que factos concretos deveriam ter sido julgados provados ou não provados e porquê.
O ónus imposto à Recorrente na alínea a) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, antes exige que se afirme e especifique nas conclusões do recurso quais os concretos pontos de facto que se impugnam, o que o Apelante manifestamente não fez, razão pela qual se entende ser de rejeitar o recurso atinente à impugnação da decisão da matéria de facto.
Acresce que a factualidade considerada provada é suficiente para fundamentar a decisão de mérito que veio a ser proferida.
Pelo exposto, conclui-se que o Recorrente não observou os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, pelo que se rejeita a impugnação da decisão da matéria de facto.
Sustenta o Recorrente que, verificando-se a ilegitimidade da Ré, o Tribunal a quo apenas poderia absolver a Ré da instância (artigo 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), e não do pedido, argumentação que demonstra, mais uma vez, que o recorrente confunde a legitimidade processual (ou adjetiva) com a legitimidade substantiva (ou material).
Como já tivemos oportunidade de salientar, a legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade.
Trata-se de questão de natureza processual, constituindo a sua falta - ilegitimidade processual - uma exceção dilatória (artigo 577º, alínea e), do Código de Processo Civil) que determina a absolvição da instância (artigo 576º, nº2, do citado diploma fundamental).
Já a legitimidade substantiva respeita ao mérito da causa, à efetiva titularidade da relação jurídica material controvertida, sendo requisito de procedência da ação e determinando, quando inexistente, a absolvição do pedido por improcedência da pretensão do autor, configurando uma exceção perentória inominada.
Ou seja, a falta de legitimidade em sentido material não constitui exceção dilatória: traduz-se na verificação de que o autor não é titular do direito invocado ou de que o réu não é o sujeito passivo da relação jurídica material controvertida. Constitui questão de mérito que conduz à improcedência da ação, por ausência de um pressuposto da procedência do pedido, e não à absolvição da instância.
Aplicando estes princípios ao caso vertente, verifica-se que:
- O Autor fundamentou a sua pretensão na alegada violação de um contrato de seguro de proteção de crédito, que lhe garantiria cobertura em caso de incapacidade temporária para o trabalho. A causa de pedir invocada pelo Autor na petição inicial é, por conseguinte, o incumprimento de um contrato de seguro de proteção de crédito.
- Ficou provado que o contrato de seguro foi celebrado entre o Autor e as seguradoras A... SA e B... SA, constando expressamente da proposta de adesão subscrita pelo Autor que estas entidades assumem a qualidade de “Seguradoras” e, nessa qualidade, foram elas que se vincularam a suportar o risco e a realizar as prestações convencionadas.
- A Ré Banco 1... é uma instituição financeira/de crédito e não uma seguradora, surgindo no contrato de seguro como “Tomadora do Seguro”, “Distribuidora” e “Beneficiária”, não assumindo a qualidade de seguradora.
Deste modo, resulta demonstrado que a Ré não é parte na relação jurídica material invocada pelo Autor como causa de pedir.
O contrato de seguro foi celebrado com outras entidades (as seguradoras A... SA e B... SA), não tendo a Ré, no âmbito desse contrato, formal, assumido qualquer obrigação de indemnizar o Autor em caso de sinistro.
A Ré contratou o seguro no seu interesse (para garantir o reembolso do crédito concedido ao Autor), mas não é a entidade responsável pelo pagamento das indemnizações ao segurado, pelo que tendo presente a causa de pedir constante da petição inicial, nunca os pedidos formulados nesta ação contra a Ré poderiam proceder. Sem prejuízo, naturalmente, de o Autor poder vir a fazer valer os seus alegados direitos contra as entidades com quem efetivamente celebrou o contrato de seguro em ação a intentar, se assim o entender.
Verifica-se, pois, uma situação de ilegitimidade substantiva da Ré que determina a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.
O Tribunal a quo, no despacho saneador-sentença recorrido fez, por conseguinte, correta aplicação do direito, ao absolver a Ré do pedido por ilegitimidade substantiva, devendo, por isso, ser mantido.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade do Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Pelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto, em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.