ESCUSA
JUIZ
RELAÇÃO
CONHECIMENTO
GRANDE AMIZADE
Sumário

Invocando o juiz requerente que, no âmbito do processo em questão –  um processo de inventário por óbito de pessoa com quem manteve relação de conhecimento e de grande amizade – mantém, na atualidade, relação com o cabeça-de-casal (por via da convivência de proximidade que o requerente e sua família estabeleceram entre 2007 e 2011 e da relação social, regular, posterior, que carateriza como de “grande amizade”, que se estabeleceu), sendo que, o cabeça-de-casal já fez comentário extrajudicial ao juiz sobre o tempo da tramitação do processo e seus efeitos, existe o objetivo risco de, mantendo-se o juiz requerente a tramitar os autos, poder ser, fundadamente, posta em causa, a imparcialidade devida pelo mesmo para com todos os interessados dos autos.

Texto Integral

Pedido de escusa
Pº 1611/25.7YRLSB
6.ª Secção
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I. O Sr. Juiz de Direito A …, a exercer funções no Juízo Cível de Almada – Juiz …, veio requerer, ao abrigo do estabelecido nos artigos 119.º, n.º 1 e 120.º, n.º 1, al. g), do CPC, seja dispensado de intervir no processo n.º …/…-…T8ALM (processo de inventário).
Para tanto, invocou, em suma, que:
- Por despacho de 01-04-2025 do Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura foi incumbido de assegurar a tramitação de todo o expediente distribuído ao referido Juízo;
- O processo em questão visa a partilha da herança aberta por óbito de B …, ocorrido em 2018, sendo interessados diretos, o cônjuge, C … e os filhos D … e E …;
- Manteve uma relação de grande amizade com o falecido desde 2007 até 2018, com C … desde 2007 até ao presente e com os filhos de ambos – D … e E … - desde que foram adotados;
- Em 2007 celebrou o requerente – e sua família – com B … um contrato de arrendamento do R/C do prédio n.º …, da Rua de … …, Costa da Caparica, e aí viveram, de forma permanente, até 2011;
- De 2007 a 2011, o requerente e sua família relacionaram-se socialmente, de forma contínua, com B … e C …, residentes no 1.º andar do mesmo prédio, desenvolvendo uma relação de amizade muito grande (contactos telefónicos regulares, visitas às reciprocas casas, desde 2007, presença do requerente e família no casamento daqueles e na festa dos 50 anos de B …; C … foi padrinho de baptismo do filho do requerente, nascido em 2012; e representação forense inicial de C …, por F …, familiar da cônjuge do requerente, que a sugeriu);
- Por duas vezes, o requerente ensaiou despachar no processo de inventário, determinando a forma da partilha, concordante com a proposta das partes e dispensando a avaliação de bens requerida pelo Ministério Público, com fundamento na antevisão se acordo na partilha em sede de conferência de interessados;
- Confrontou-se com 2 dúvidas, a saber:
1ª – se o indeferimento da avaliação não foi influenciado pela vontade do requerente imprimir celeridade ao processo para corresponder à vontade do cabeça-de-casa C …, que lhe tem transmitido, extrajudicialmente, a incompreensão da falta de andamento processual;
2ª – se a amizade para com as partes não potencia o risco de poder ser comentada por alguém a parcialidade ou o favorecimento aparente do andamento célere do processo pelo requerente.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz mantém, ou não, a sua imparcialidade, mas visa-se, preventivamente, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a decisão do julgador recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, de uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
“O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007, Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO).
Na realidade, o deferimento de uma escusa (ou recusa) “têm como consequência a modificação de regras essenciais do processo, máxime do princípio do juiz natural” (assim, Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, Almedina, 2022, p. 510), pelo que, a “abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)” (cfr., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2023, Pº 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, rel. ORLANDO GONÇALVES).
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. No caso em apreço, o Sr. Juiz requerente vem invocar, entre o mais, que, no âmbito do processo em questão –  um processo de inventário por óbito de pessoa com quem manteve relação de conhecimento e de grande amizade – mantém, na atualidade, relação com o cabeça-de-casal (por via da convivência de proximidade que o requerente e sua família estabeleceram entre 2007 e 2011 e da relação social, regular, posterior, que carateriza como de “grande amizade”, que se estabeleceu.
Mais invocou o Sr. Juiz requerente que, perante a necessidade de proferir decisão, o assolaram as dúvidas acima enunciadas, razão pela qual pediu a escusa requerida.
Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz sempre a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas, atentas as circunstâncias referenciadas, mostra-se objetivamente evidente o não distanciamento do Sr. Juiz requerente relativamente ao processo em questão, uma vez que está em causa uma relação proximidade pessoal que ocorre desde há mais de duas décadas, entre a Sra. Juíza e o cabeça-de-casal (e, “por arrastamento” – como refere – com os filhos deste, também interessados no inventário em questão).
Não se coloca somente a questão do contacto funcional, ou mesmo de cortesia ou social, pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade e relacionar-se, inclusivamente, com partes ou intervenientes processuais.
No caso em apreço releva, em concreto, a relação de convivência pessoal, de amizade estreita e de grande proximidade estabelecida entre o Sr. Juiz requerente e os interessados do processo, por força da relação caraterizada e identificada pelo requerente.
Mas, certo é que, perante as dúvidas suscitadas pelo Sr. Juiz requerente, resulta a evidência da preocupação “especial” sobre o tempo da tramitação do processo e seus efeitos, bem como, a circunstância de, sobre isso, o cabeça-de-casal já ter feito comentário, extrajudicial, ao Sr. Juiz, colocando em causa o Sr. Juiz requerente a sua isenção relativamente ao próprio conteúdo da decisão a proferir (em face do deferimento/indeferimento da avaliação de bens requerida pelo Ministério Público).
Deste aspeto deriva um objetivo risco de, mantendo-se o Sr. Juiz requerente a tramitar os autos, poder ser, fundadamente, posta em causa, a imparcialidade devida pelo mesmo para com todos os interessados dos autos.
De facto, não seria só a imparcialidade subjetiva do Sr. Juiz que ficaria em causa, caso o mesmo tramitasse os autos, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais, ou seja, o poder, objetivamente, gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo, quer objetivo, a situação narrada – pela sua longevidade, consistência, natureza e atualidade, é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza de Direito requerente seja dispensada de intervir no processo.
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção do Sr. Juiz de Direito A …, no âmbito do processo n.º …/…-…ALM (processo de inventário).
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 23-05-2025,
Carlos Castelo Branco.