ESCUSA
JUIZ
PARTE ACESSÓRIA
CONVIVÊNCIA
CONTACTO FREQUENTE
IMPARCIALIDADE
Sumário

Invocando a Sra. Juíza requerente que mantém com uma das partes acessórias do processo, convivência frequente em períodos de férias, participação comum em festas e encontros familiares, bem como contacto frequente entre os respetivos filhos, cujas idades semelhantes promovem um relacionamento entre os dois agregados familiares, deriva um objetivo risco de, mantendo-se a Sra. Juíza requerente a tramitar os autos, poder ser, fundadamente, posta em causa, a imparcialidade devida pela mesma para com todos os interessados dos autos.

Texto Integral

Pedido de escusa
Pº 1656/25.7YRLSB
2.ª Secção
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I. A Sra. Juíza de Direito A …, a exercer funções no Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz …, veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119.º do CPC, seja dispensada de intervir no processo n.º …/…-…TVLSB (ação de processo ordinário).
Para tanto, invocou, em suma, que:
- Na referida ação é autora LIMINORQUE — SGPS, S.A. e ré DELLOITTE Associados, Sroc, S.A.;
- A autora peticiona a condenação da ré no pagamento da quantia de 54.378.430,30€ a título de indemnização, alegando, em suma, que efetuou um depósito bancário nesse montante no Banco Privado Português (BPP), em 2008, altura em que não existia ainda qualquer suspeita sobre a solvabilidade do BPP;
- Alega ainda que a ré, nas certificações por si emitidas até essa data, sempre apresentou pareceres favoráveis, declarando que as contas do BPP e da Privado Holding cumpriam as normas contabilísticas em vigor e exprimiam de forma verdadeira e apropriada as situações patrimoniais e financeiras da empresa, o que terá induzido em erro a autora;
- Sustenta que a ré violou os deveres de cuidado e diligência a que estava obrigada, prestando, de forma negligente, informação falsa e incorreta, o que determinou o comportamento da autora que de outro modo, não teria realizado o depósito em causa;
- A ré contestou impugnou a factualidade invocada na Petição Inicial, tendo sido admitida, a seu requerimento, a intervenção acessória dos sete Administradores do BPP, da Privado Holding SGPS, S.A. bem como do seu administrador e foi ainda admitida a intervenção principal das seguradoras Tranquilidade e Açoreana e a intervenção acessória da seguradora AIG EUROPE, LIMITED - Sucursal em Portugal;
- O processo encontra-se, actualmente, em fase de agendamento de audiência final, dependendo, apenas, da junção aos autos de documentos por parte de terceiros e do exercício do direito de resposta à admissão da inquirição de doze testemunhas por indicadas pela ré;
- Entende que se verificam circunstâncias ponderosas que podem levar a suspeitar da sua imparcialidade no julgamento em causa, sendo que, o Sr. Paulo da Conceição Pedreiro Lopes, um dos administradores do BPP, encontra-se casado com uma prima do marido da requerente;
- Existe relação de proximidade pessoal e familiar que não pode ser ignorada, evidenciada por convivência frequente em períodos de férias, participação comum em festas e encontros familiares, bem como pelo contacto frequente entre os respectivos filhos, cujas idades semelhantes promovem um relacionamento entre os dois agregados familiares;
- Trata-se de relação familiar indirecta, mas substancial e relevante, no contexto da necessária imagem de imparcialidade do julgador;
- O referido interveniente irá prestar depoimento de parte nos autos, sendo directamente interessado na improcedência da acção na medida em que a Ré Delloite, pretende, caso venha a ser condenada, exercer direito de regresso contra os administradores do BPP, incluindo o mencionado Senhor;
- A proximidade pessoal e familiar com um interveniente com interesse directo no resultado do processo poderá levantar sérias suspeitas sobre a sua imparcialidade, isenção e independência, sendo certo que a confiança do cidadão na Justiça exige, não apenas a efectiva neutralidade do julgador, mas também a percepção pública dessa neutralidade e a mera possibilidade de tais suspeitas se colocarem, numa acção em que face à qualidade dos intervenientes e ao valor em discussão, se antevê repercussões mediáticas, põe em causa a acção e imagem da justiça; e
- A par de uma cautela subjectiva, exige-se a constatação objectiva de que existe uma relação pessoal e familiar com um dos intervenientes, que prestará depoimento de parte e contra o qual poderá ser exercido direito de regresso, situação que compromete a aparência de imparcialidade exigida pelo princípio da tutela da confiança e da dignidade da função judicial.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz mantém, ou não, a sua imparcialidade, mas visa-se, preventivamente, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a decisão do julgador recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, de uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
“O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007, Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO).
Na realidade, o deferimento de uma escusa (ou recusa) “têm como consequência a modificação de regras essenciais do processo, máxime do princípio do juiz natural” (assim, Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, Almedina, 2022, p. 510), pelo que, a “abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)” (cfr., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2023, Pº 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, rel. ORLANDO GONÇALVES).
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. No caso em apreço, a Sra. Juíza requerente vem invocar, entre o mais, que, no âmbito do processo em questão –  uma ação de processo civil comum onde a autora sustenta que a ré violou deveres de cuidado e de diligência e em que figura como parte acessória, nomeadamente, um dos administradores do BPP, a intervenção acessória dos sete Administradores do BPP, da Privado Holding SGPS, S.A. bem como do seu administrador – tem uma relação de proximidade pessoal e familiar com um dos administradores do BPP, Paulo da Conceição Pedreiro Lopes, o qual se encontra casado com uma prima do marido da Juíza requerente.
Mais invocou que, por via dessa relação, mantém convivência frequente em períodos de férias, participação comum em festas e encontros familiares, bem como contacto frequente entre os respectivos filhos, cujas idades semelhantes promovem um relacionamento entre os dois agregados familiares.
Carateriza a Juíza requerente a referida relação como “relação familiar indirecta, mas substancial e relevante, no contexto da necessária imagem de imparcialidade do julgador”.
Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz, sempre, a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas, atentas as circunstâncias referenciadas, mostra-se objetivamente evidente o não distanciamento da Sra. Juíza requerente relativamente ao processo em questão, uma vez que está em causa uma relação proximidade pessoal e familiar com uma das partes – ainda que acessória – do processo em questão.
Não se coloca somente a questão do contacto funcional, ou mesmo de cortesia ou social entre a Sra. Juíza e a referida parte – familiar com a ligação que refere - , pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade e relacionar-se, inclusivamente, com partes ou intervenientes processuais.
No caso em apreço releva, em concreto, a relação de convivência pessoal e familiar com um interveniente nos autos, que mantém uma relação de convivência frequente, caraterizada nos termos elencados pela requerente da escusa.
Deste aspeto deriva um objetivo risco de, mantendo-se a Sra. Juíza requerente a tramitar os autos, poder ser, fundadamente, posta em causa, a imparcialidade devida pela mesma para com todos os interessados dos autos.
De facto, não seria só a imparcialidade subjetiva da Sra. Juíza que ficaria em causa, caso a mesma prosseguisse a tramitação dos autos, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais, ou seja, o poder, objetivamente, gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo, quer objetivo, a situação narrada – pela sua natureza, consistência e atualidade -, é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza de Direito requerente seja dispensada de intervir no processo.
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza de Direito A …, no âmbito do processo n.º …/…-…TVLSB (ação de processo ordinário).
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 28-05-2025,
Carlos Castelo Branco.