RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CÔNJUGE
FRIEZA DE ÂNIMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IN DUBIO PRO REO
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Sumário

I - A determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo esta vista enquanto juízo de censura em face do desvalor da ação praticada (arts. 40.º e 71.º, ambos do CP).
II - Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objetivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do CP).
III - Porém, tudo isto deve ser harmonizado com as normas constitucionais referidas nos arts. 27.º, n.º 2 e 18.º, n.os 2 e 3, da CRP, que estipulam que a determinação e escolha da pena privativa da liberdade guia-se pelo princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso e pelos respetivos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos; adequação, que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins; e da proporcionalidade em sentido estrito, de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.
IV - A intervenção corretiva do tribunal superior, no que diz respeito à medida e espécie da pena concretamente aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação feito pelo tribunal “ a quo”, revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada, sendo que se tal não ocorrer, as penas fixadas deverão ficar inalteradas.
V - No caso concreto, o facto de o arguido ter pedido ajuda de imediato, permanecido no local, confessando que matou a esposa e tentado o suicídio de forma credível, atenta a gravidade dos golpes e, aliado ao demais circunstancialismo, tal comportamento não pode deixar de ser visto como um sinal de arrependimento.
VI - O princípio in dúbio pro reo, sendo alegação referente a matéria de facto podemos dizer, quando analisado o princípio nesta perspetiva, isto é, a de saber se a valoração da prova foi ou não de acordo com este princípio, tal não se integra no âmbito da competência deste STJ. Porém, se virmos a questão como sendo uma alegação em matéria de direito, pode o STJ analisar da eventual violação do princípio apenas através do texto da decisão recorrida e dando-lhe o mesmo regime dos vícios do 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. Figueiredo Dias, em 1974, in DPP, edição de 1974, p. 217-218 (§ 6, ponto 4).

Texto Integral

Relatório

Nos presentes autos, por acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, a 8 de maio de 2025, foi decidido condenar o arguido AA pela prática em autoria material de:

Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, nºs.1 e 2, al. b) ambos do Código Penal na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

Declarar a indignidade sucessória de AA nos termos e para os efeitos da al. a) do artº 2034º do Código Civil.

Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Unidade Local de Saúde de Coimbra, E.P.E, e em consequência condenar o demandado a pagar aquele a quantia de 74.106,17€ (setenta e quatro mil cento e seis euros e dezasseis cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Unidade Local de Saúde da Região de Leiria, E.P.E, e em consequência condenar o demandado a pagar aquele a quantia de 105.31€ (cento e cinco euros e trinta e um cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado pelos demandantes BB e CC, e em consequência condenar aquele a pagar-lhes a quantia de 30.000,00 pelo perceção da morte e de 100.000,00€ pelo dano morte acrescidas de juros de mora contados à taxa legal desde a data da notificação do pedido, contando-se os mesmos até ao integral pagamento.

Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado pelos demandantes BB e CC, e em consequência condenar aquele a pagar a cada um deles a quantia de 35.000,00 (o que perfaz o total de 70.000,00) pelo dano moral próprio de cada um deles acrescidas de juros de mora contados à taxa legal desde a data da notificação do pedido, contando-se os mesmos até ao integral pagamento.

Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado pelos demandantes BB e CC a titulo de perdas de rendimento no montante mensal de 316.17€ para cada demandante, contados desde o mê de maio de 2024, ate ao mês em que cada um deles perfizer 25 anos, o que até ao momento da dedução do pedido de indemnização civil perfaz a quantia de 5.058,72€.

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Inconformado com esta decisão, dela veio interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, o arguido AA, cujas conclusões se passam a transcrever:

«Conclusões

1ª)

O presente recurso vai interposto do acórdão proferido, que condenou o arguido, num crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, nºs.1 e 2, al. b) ambos do Código Penal na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

2ª)

Tem o presente recurso como único objeto de apreciação por V. Exªs., da bondade da medida da pena aplicada no que tange ao crime praticado e consequentemente a sua possível redução de pena próximo dos mínimos legais ou do quantum pedido pela ilustre procuradora (que pediu que a pena de prisão se situa-se entre os 19 a 22 anos).

3ª)

A aplicação das penas e das medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - art. 40º do Código Penal.

4ª)

O art. 71º do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências da prevenção.

5ª)

É nosso entendimento que a pena a aplicar ao recorrente poder-se-á situar mais próximo do mínimo legalmente estabelecido ou pedido pelo MP.

6ª)

Terá o ilustre tribunal considerado apenas como circunstâncias atenuantes o CRC do arguido por ser primário cfr. decisão:

“Por outro lado, a primodelinquência do arguido, é a única circunstância a ponderar em favor do arguido, permitindo a formulação de um juízo de prognose favorável ao mesmo, no que se reporta à prevenção de futuras delinquências.”

Contudo poderia o ilustre tribunal ter ido mais longe e considerado todo o percurso de vida do arguido. Nomeadamente enquanto “pai de família.”

7ª)

Acresce que resulta de forma inequívoca que a confissão do facto “morte” feita pelo arguido, teve um papel determinante na descoberta dos fatos ainda que tenha invocando legitima defesa em excesso.

8ª)

O que poderia ter sido mais valorado pelo ilustre tribunal a quo, repercutindo-se de forma mais expressiva na medida da pena de prisão.

9ª)

Atenta a condição de preso preventivamente por crime de sangue e da sua postura adotada em sede de audiência de discussão e julgamento, justificava-se a cominação de uma pena talvez mais branda.

10ª)

Sendo poucos os pontos do douto acórdão que nos merecem alguma crítica, contudo não podemos deixar de referir que não era de todo possível ao arguido adotar alguma outra conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências do crime que praticou, até porque é pessoa muito reservada, pelo que também não poderia demonstrar sincero arrependimento facial e visível.

11º)

Atentas as especificidades do ilícito perpetrado, não vislumbramos que condutas poderia o arguido ter adotado a fim de reparar as consequências dos crimes que praticou, ou porque motivo pode considerar o Tribunal que o mesmo não demonstrou arrependimento nem interiorizou a gravidade da sua conduta.

12º)

A confissão integral dos factos, feita no início da produção de prova permitirá certamente firmar uma conclusão que certamente terá reflexos mais brandos na medida da pena.

13ª)

Destarte pugnamos pela correção do douto acórdão no que à pena concerne, fazendo coincidir a pena em concreto a aplicar ao arguido com o mínimo legal ou ligeiramente acima deste mínimo.

14ª)

O que justifica a alteração da pena aplicada ao arguido á talvez a opção por um quantum penal mais brando, considerando que era um pai presente na vida dos filhos, era conjuntamente com seus pais o suporte financeiro do estudo de seus filhos. Bom cidadão, trabalhador, não havendo notícias de desacatos no casal ou família.

Algo de muito grave se passou entre o casal… Desconhecendo-se as razões (ficou por apurar) no EP de Leira tem mantido comportamento de acordo com as normas institucionais, sem registo de infrações disciplinares.

Pelo que poderia o Ilustre Tribunal em homenagem ao princípio in dúbio pro reo poderia ser fixado a pena mais próximo dos mínimos legais ou do mínimo pedido pela ilustre procuradora.

Ficaram fatos por apurar, dúvidas, do arguido que “pensamos” que valorados. aspetos da vida poderiam ser.

Arguido primário, o percurso de vida familiar, bom pai de familiar e interessado até ao dia fatídico é irrepreensível.

Sempre presente e interessado poderia ter sido mais considerado e valorado pelo ilustre tribunal, “O pai não era uma pessoa de demonstração de afetos, mas foi sempre um pai preocupado e presente na vida dos filhos. Segundo BB…”

15ª)

Com a decisão proferida pode não se ter dado total cumprimento ao disposto no art. 40º e 71º do Código Penal. Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso de acordo com o exposto em sede de motivação, aplicando-se um quantum mais brando, assim sendo feita, JUSTIÇA».

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Respondeu ao recurso o MP em 1.ª instância, passando-se a transcrever as conclusões da resposta:

« – Conclusões:

1. O presente recurso visa apenas a pena de 22 anos de prisão em que o arguido foi condenado, pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, nºs.1 e 2, al. b) ambos do Código Penal.

2. «Quanto à medida da pena entende-se que a intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida e espécie da pena concretamente aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação feito pelo Tribunal “ a quo”, revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada, sendo que se tal não ocorrer a/ as penas fixadas na 1º instância deverão ficar inalteradas.»

3. O Recorrente não alegou qualquer factor que o Tribunal a quo tenha violado na determinação da medida da pena, limitando-se a afirmar a sua discordância da mesma.

4. Limitou-se a alegar motivos gerais, sem que tenha indicado em concreto os pressupostos mal avaliados pelo Tribunal a quo e onde, na determinação da pena concreta, incorreu o em violação do disposto no artigo 70 e 71.º, do Código Penal.

5. Na impossibilidade de se perceber ou intuir, salvo o respeito por opinião diversa, onde errou o Tribunal a quo na aplicação dos critérios para a determinação da pena concreta ou, na indicação por parte da recorrente de quais são os factos subjacentes a tais critérios, a argumentação aduzida não poderá conduzir ao efeito jurídico pretendido com o recurso, o que configura uma situação de manifesta improcedência.

6. O princípio in dubio pro reu é «exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos».

7. A pretensão do recorrente de alegar a violação do princípio in dubio pro reu não tem sentido no âmbito da determinação da medida da pena, porquanto já não se trata de responder à pergunta de saber se o agente é responsável pelo crime que lhe foi imputado, mas determinar a pena que lhe será aplicada pela prática do facto ilício que se julgou ser sua responsabilidade.

8. O recorrente praticou um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, nºs. 1 e 2, al. b) ambos do Código Penal, punido com pena de prisão entre os 16 e os 25 anos.

9. A não assunção dos factos - e do acórdão emerge à saciedade que o recorrente não confessou os factos - que aqui entronca no imputar à vítima a responsabilidade do acontecido, é reveladora de uma atitude muitíssimo desvaliosa por parte do Recorrente.

10. Perante a violência do ataque, a motivação deste, a conduta posterior aos factos, a pena de 22 anos de prisão não é exagerada ou ultrapassa a culpa do agente e deverá manter-se.

Por tudo o exposto entendemos dever improceder, na totalidade, o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se na íntegra o douto acórdão, assim farão V. Ex.as a costumada Justiça!

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BB e CC, Assistentes nos Autos, notificados da interposição do recurso pelo Arguido vêm, nos termos do disposto no nº 1 do artº 413º do C.P.P., exercer o seu direito de resposta, o que fazem apresentando as seguintes conclusões:

1- O douto acórdão recorrido não padece de nenhum dos vícios que lhe são apontados pelo Recorrente, devendo manter-se na íntegra.

2- O Arguido não fez uma confissão integral e sem reserva do crime, pelo que não poderá beneficiar de nenhuma atenuação da pena daí advinda.

3- Também não mostrou arrependimento.

4- O seu comportamento anterior ao crime não foi suficiente a que o Arguido adquirisse de forma suficiente os princípios e valores jurídicos protegidos pela norma violada.

5- Não se verifica nenhuma situação de “in dúbio pro reo”: o Tribunal não demonstrou qualquer dúvida na factualidade dada como provada nem na imputação do crime ao Arguido.

6- Ao invocar o relatório médico-legal particular por si junto aos autos, o Arguido não extrai qualquer conclusão de mesmo quanto à indicação concreta dos factos que pretende ver alterados; pelo que o Arguido não recorre propriamente de facto.

7- A alusão que faz à possibilidade de uma discussão (com a vítima) prévia à agressão é contrariada pelo próprio depoimento do Arguido que a nega.

8- Motivos pelos quais deverá o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o douto acórdão proferido.

Termos em que, improcedendo o recurso interposto pelo Arguido far-se-á Justiça!».

***

No seu parecer, o Sr. PGA, alega o seguinte:

« Compulsados:

a) o acórdão recorrido e os respetivos fundamentos (de facto e de direito);

b) o teor do recurso apresentado pelo arguido;

c) e as respostas apresentadas pelo Ministério Público e pelos Assistentes;

somos de parecer que o recurso deverá ser julgado improcedente, sem necessidade de repetir os mui esclarecidos argumentos aduzidos no sentido dessa improcedência - e em sustentação da decisão recorrida -, por razões de economia processual.

Enfatiza-se, apenas, que, em medida significativa, as pretensões do arguido implicariam uma alteração da matéria de facto assente, o que não tem qualquer viabilidade, uma vez que o mesmo não a impugnou pela forma legal – impugnação ampla/erro de julgamento – incumprindo, de todo, o disposto no artº. 412º nº 3 do CPP, sendo certo que no acórdão recorrido não se vislumbra a existência de qualquer um dos vícios decisórios previstos no artº. 410º nº 2 do CPP (de conhecimento oficioso).».

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Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Sr. PGA, emitiu parecer que aqui se sintetiza, nos seguintes termos:

«…Acompanha-se, no presente parecer o referido na bem estruturada e fundamentada resposta apresentada pelo Ministério Público, nomeadamente quando ali se faz o resumo (que transcrevemos em seguida) do que -- na verdade e não na tentativa de desculpabilização ora apresentada pelo arguido/recorrente --, ocorreu:

1. - O recorrente praticou um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, nºs. 1 e 2, al. b) ambos do Código Penal.

2. - O crime é punido com uma pena de 16 a 25 anos de prisão.

3. - O recorrente matou a sua esposa.

4. - O recorrente matou a esposa com recurso a uma maceta.

5. - O recorrente desferiu um número não inferior a doze pancadas na cabeça da vítima, em consequência das quais esta morreu.

6. - O recorrente continuou a desferir pancadas na cabeça da vítima mesmo depois desta já estar caída no chão e sem qualquer resposta de defesa.

7. - Em julgamento, o recorrente afirmou que agiu em defesa de uma agressão perpetrada pela vítima.

8. - Perante a prova produzida, perante os esclarecimentos prestados pelo perito médico-legal, perante a descrição feita pelas testemunhas presenciais, perante a audição da gravação da chamada para o 112, o recorrente manteve uma postura autocentrada, culpabilizando a vítima pela suposta agressão e tentando justificar o seu comportamento como defesa.

9. - O recorrente justificou o seu comportamento transferindo para a vítima a responsabilidade da sua conduta.

10. - O crime de homicídio qualificado, tem um imenso impacto na comunidade, quer pelo bem jurídico violado e o modo como foi, quer pelas consequências para terceiros daquela conduta.

11. - A não assunção dos factos - e do acórdão emerge à saciedade que o recorrente não confessou os factos - que aqui entronca no imputar à vítima a responsabilidade do acontecido, é reveladora de uma atitude muitíssimo desvaliosa por parte do Recorrente.

12. - Perante a violência do ataque, a motivação deste, a conduta posterior aos factos, a pena de 22 anos de prisão não é exagerada ou ultrapassa a culpa do agente e deverá manter-se.

O acabado de transcrever demonstra bem a falta de razão do recorrente quando baseia o seu pedido de redução da pena em diversos elementos que, ou não ocorreram, sendo falsos, -- como sejam os de ter confessado os factos com relevo para a descoberta da verdade (antes os negou, arranjando uma história fantasiosa acerca do ocorrido), estar arrependido (admitimos que o arrependimento exista, mas referir-se-á certamente apenas à circunstância de ter sido condenado, pois que a falta de confissão dos factos e tentativa de desculpar a sua atitude aponta em sentido oposto ao arrependimento), -- ou por si inventados, como quando alega matéria não provada, nomeadamente a existência de uma legítima defesa, querendo, no fundo, responsabilizar a vítima pelo ocorrido.

Aliás, atenta a matéria de facto provada, a atividade levada a cabo pelo arguido/recorrente, permitimo-nos qualificar como mero delírio (e, permita-se-nos também, muito desrespeitoso para com a vítima e para os filhos) o escrever-se, como na motivação de recurso, que estamos perante um:

«Filho, pai e marido extremoso e zeloso, cuidador da sua família».

-- Tendo em conta tudo o acabado de referir, aliado aos elementos utilizados na decisão recorrida para escolha da medida da pena, termos em que, sem necessidade de maiores considerações, é parecer do Ministério Público neste Supremo Tribunal que o acórdão recorrido deverá ser mantido, julgando-se totalmente improcedente o recurso do arguido AA.».

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Observado o disposto no art. 417º n.º 2 do CPP, nada foi acrescentado.

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

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Objeto do Recurso:

O recurso, necessariamente circunscrito à reapreciação do direito aplicado no caso (art. 434º do CPP), confina-se à questão jurídico-penal claramente delimitada pelo recorrente nas conclusões da respetiva peça recursória:

«Tem o presente recurso como único objeto de apreciação por V. Exªs., da bondade da medida da pena aplicada no que tange ao crime praticado e consequentemente a sua possível redução de pena próximo dos mínimos legais ou do quantum pedido pela ilustre procuradora (que pediu que a pena de prisão se situa-se entre os 19 a 22 anos).».

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Fundamentação

Factos provados:

Produzida a prova e discutida a causa, com interesse para a decisão provaram-se os seguintes factos:

1. AA casou com DD no dia 26 de dezembro de 1998.

2. O casal estabeleceu a sua residência na Rua 1, Porto de Mós.

3. Deste relacionamento nasceram BB, no dia DM2000, e CC, no dia DM2004.

4. Em data não concretamente apurada, mas por volta do início do mês de maio de 2024, AA falou com a esposa, DD, sobre um rumor que ouvira no café, de acordo com o qual um homem da aldeia iria comprar uma casa para ali ir viver com uma mulher casada.

5. Após esta confrontação em dia não determinado, mas em meados do mês de maio de 2024, DD transmitiu a AA que pretendia separar-se do mesmo.

6. Perante tal manifestação de vontade, houve uma conversa com os filhos, tendo-lhes sido comunicada tal intenção.

7. AA disse aos filhos que não era capaz de viver sem a mãe destes e, em dia não apurado, enviou uma mensagem a dizer “Sejam felizes”.

8. No dia 25 de maio de 2024, cerca das 16h30m, AA e DD encontravam-se num anexo da residência, local onde aquele tinha diversas ferramentas, nomeadamente uma maceta de ferro, com o cabo em madeira.

9. Ali, AA, munido da referida maceta de ferro, desferiu várias pancadas na cabeça de DD, sendo que esta tentou defender-se com as mãos e os braços, no entanto aquele continuou a bater-lhe com a maceta na cabeça, atingindo-a, também, no tórax, nos braços e nas mãos.

10. Em consequência das pancadas que AA lhe desferiu, DD caiu no chão, junto de uma bancada existente no interior do aludido anexo da habitação, ficando prostrada, posicionada em decúbito dorsal e com a cabeça apoiada na referida bancada.

11. Vendo DD caída no chão, com diversos ferimentos na cabeça e impossibilitada de se defender, AA desferiu-lhe mais pancadas com a maceta, atingindo-a na cabeça.

12. AA desferiu doze pancadas na cabeça de DD, em número não determinado, mas não inferior a doze.

13. Depois de se certificar de que DD estava morta, AA telefonou, através do n.º .......12, para o 112, solicitando a comparência da Polícia, pois tinha matado a mulher, falando de forma perceptível e audível.

14. Após, munido de uma faca infligiu a si próprio dois cortes, um deles no tórax do lado esquerdo e um no pescoço.

15. Em resultado de tais cortes, o arguido causou a si mesmo, uma ferida transversal com cerca de 15-20cm, com secção da laringe e da faringe no nível entre o osso hioide e a cartilagem tiróide à esquerda e duas feridas perfurantes ao nível do hemitórax esquerdo, com pneumotorax.

16. Em consequência de tais golpes, o arguido não conseguia verbalizar, expressando-se apenas por gestos, uma vez que apresentava ferida aberta cervical, com abertura da faringe e exposição da laringe ao nível da membrana tirohiodeia com secção da epiglote.

17. O arguido permaneceu prostrado no chão, em decúbito ventral até à chegada das autoridades policiais.

18. O arguido é destro.

19. Em consequência da actuação de AA, DD sofreu:

a. Na cabeça: múltiplas feridas contusas/esfacelos na cabeça, abaixo indicadas por letras de A a L e descritas da frente para trás:

i. A- Exuberante esfacelo, com exposição do periósteo e da calote craniana, a esse nível deprimida e fracturada, de aspecto aproximadamente “estrelado”, de bordos irregulares, escoriados e esmagados, com várias língulas/pontes de tecido nos bordos, rodeado por equimose arroxeada, interessando maioritariamente as regiões supraciliares e a região frontoparietal, a nível da linha média e da região paramediana direita, medindo 12,5x18cm de maiores eixos, sugestivo de vários traumatismos na referida localização;

ii. B- Lateralmente (à direita) ao exuberante esfacelo previamente descrito (separada deste por ponte de tecido de pele medindo 0,5cm de largura), ferida contusa com visualização dos tecidos moles subjacentes e do músculo temporal direito, de formato aproximadamente “estrelado” de bordos irregulares, escoriados e esmagados, com várias língulas/pontes de tecido nos bordos, rodeada de equimose arroxeada, na região temporal direita, medindo 11,4x6,6cm de maiores eixos, sugestiva de mais do que um traumatismo na referida localização;

iii. C- Lateralmente (à esquerda) ao exuberante esfacelo primeiramente descrito, ferida contusa disposta verticalmente, de formato ligeiramente arciforme e de abertura lateral, com visualização óssea e dos tecidos moles subjacentes, de bordos irregulares, escoriados e esmagados, com halo equimótico arroxeado, na metade esquerda da região frontal, medindo 7x1cm;

iv. D- Ferida contusa, em formato aproximadamente de “T” (lateralmente à ferida contusa C), com visualização óssea e dos tecidos moles subjacentes, de bordos irregulares, escoriados e esmagados, com halo equimótico arroxeado, na região frontotemporal esquerda, apresentando-se o ramo superior paralelo ao terço lateral da sobrancelha esquerda, medindo 8,1x1,5cm de maiores eixos;

v. E- Ferida contusa, em formato aproximadamente de “1” (localizada látero-posteriormente à ferida contusa D e distando desta 0,4cm), com base posterior, visualizando-se os tecidos moles subjacentes e o músculo temporal esquerdo, de bordos irregulares, escoriados e esmagados, com ligeiro halo equimótico arroxeado-rosado, na região frontotemporal esquerda, medindo 6,6x3cm de maiores eixos;

vi. F- Ferida contusa, de formato arciforme e de abertura ligeiramente ínfero-medial, rodeada de equimose arroxeada, na extremidade lateral da região peri-orbitária esquerda, medindo 3x0,1cm;

vii. G- Ferida contusa, de aspeto aproximadamente “estrelado”, com exposição do periósteo, de osso e de tecidos moles subjacentes, de bordos irregulares, escoriados e esmagados, rodeados de halo equimótico arroxeado, com pontes de tecido entre os bordos, na região parieto-occipital esquerda, medindo 8,4x4,3cm de maiores eixos, sugestivo de mais do que um traumatismo na referida localização;

viii. H- Lateral e paralelamente (à esquerda) à ferida contusa previamente descrita, outra ferida contusa, com visualização dos tecidos moles subjacentes e rodeada de equimose arroxeada, na região parietal posterior (junto à transição para a região occipital), medindo 2,3x0,4cm;

ix. I- Látero-superiormente (à direita) à ferida contusa G descrita acima, outra ferida contusa, de formato arciforme e de abertura lateral esquerda, com visualização dos tecidos moles subjacentes, de bordos irregulares e escoriados, rodeada de halo equimótico rosado, aproximadamente na linha média da vertente posterior da região interparietal, medindo 8,4x4,3cm;

x. J- Ferida contusa, látero-superiormente (à direita) à ferida contusa I previamente descrita, orientada ínferolateralmente, com visualização dos tecidos moles subjacentes, de bordos irregulares e escoriados, rodeada de halo equimótico rosado, na região parietal posterior direita, medindo 3,6x0,3cm;

xi. K- Ferida contusa, inferior e posteriormente às feridas contusas G, H, I e J anteriormente descritas, disposta transversalmente, com visualização dos tecidos moles subjacentes, de bordos irregulares e escoriados, rodeada de halo equimótico rosado, na linha média e paramediana direita da região occipital, medindo 4,3x0,5cm;

xii. L- Ínfero-lateralmente à ferida contusa K, outra ferida contusa de características idênticas à ferida contusa K, na metade direita da região occipital, medindo 3,3x0,2cm.

xiii. Equimose arroxeada bipalpebral direita, medindo 4,3x2,2cm;

xiv. Equimose arroxeada, na face mucosa da pálpebra inferior direita, medindo 1x0,8cm;

xv. Petéquias em todas as conjuntivas palpebrais;

xvi. Palidez subconjuntival bilateral;

xvii. Hemorragia subconjuntival nos quadrantes temporais do globo ocular esquerdo;

xviii. Equimose arroxeada, na região malar direita, medindo 1x0,6cm;

xix. Pequena escoriação, na asa esquerda do nariz, medindo 0,6x0,2cm;

xx. Equimose arroxeada, na metade esquerda da face mucosa do lábio inferior, medindo 1x0,5cm;

xxi. Escoriação transversal, na região submentoniana à direita, medindo 1x0,3cm;

xxii. Equimose arroxeada, na extremidade posterior da região mandibular esquerda, medindo 3x1,5cm;

xxiii. Duas pequenas equimoses arroxeadas, no terço anterior da região submandibular mandibular esquerda, a maior medindo 0,5cm de diâmetro.

b. No tórax:

i. Equimose azulada-arroxeada, difusa e disposta verticalmente, ao longo da metade esquerda da região esternal, paramediana, medindo 12x2cm;

ii. Escoriação no terço superior da região dorsal, paramediana direita, medindo 2,8x3cm;

iii. Escoriação na região em correspondência com o acrómio à direita, medindo 2,5x1,5cm;

iv. Escoriação na região em correspondência com o terço médio da espinha da escápula direita, medindo 2,5x2,5cm;

v. Súpero-lateralmente à escoriação previamente descrita, outra escoriação, medindo 0,7x0,5cm;

vi. Área escoriada, com estigmas de arrastamento dispostos em várias direções, na região infraescapular direita, medindo 4x5cm.

c. No membro superior direito:

i. Área contendo três escoriações, interessando a face posterior do terço distal do braço, a face lateral do cotovelo e a face lateral do terço proximal do antebraço, medindo 10,5x3cm, a maior, no antebraço, com estigmas de arrastamento, medindo 2,1x1,9cm;

ii. Equimose arroxeada, no terço médio da face medial do braço, medindo 1,3x1,2cm;

iii. Equimose arroxeada, no terço proximal da face póstero-medial do antebraço, medindo 1,5x1cm;

iv. Equimose arroxeada, no dorso da mão, interessando a região em correspondência com o metacárpico do 2º dedo, todas as falanges do 2º e 3º dedos e as falanges proximal e média do 4º dedo, medindo 13,2x7cm de maiores eixos, com edema do 2º e 3º dedos;

v. Equimose arroxeada, na face dorsal da região em correspondência com o metacárpico e falange proximal do 1º dedo, medindo 5x2cm;

vi. Equimose arroxeada, na face palmar da região em correspondência com articulação metacarpofalângica do 1º dedo, medindo 1x0,7cm;

vii. Equimose arroxeada, na face palmar da falange distal do 2º dedo, medindo 1,3x0,8cm;

viii. Pequena escoriação, na face dorsal da região em correspondência com a articulação metacarpofalângica do 3º dedo, medindo 0,2x0,2cm;

ix. Ferida incisa, aproximadamente vertical e linear, na face palmar da região em correspondência da articulação interfalângica distal do 3º dedo, medindo 0,8cm, rodeada de halo equimótico arroxeado - sugestiva de lesão de defesa.

d. No membro superior esquerdo:

i. Área escoriada, com estigmas de arrastamento, no terço médio do bordo ulnar do antebraço, medindo 3,5x3,2cm;

ii. Equimose arroxeada, na face dorsal da falange distal do 5º dedo, medindo 1,1x1cm;

iii. Duas equimoses arroxeadas, na face dorsal da região em correspondência com a articulação interfalângica distal e falange média do 4º dedo, a maior na articulação, medindo 2x1,1cm;

iv. Equimose arroxeada, interessando a face dorsal da região em correspondência com articulação interfalângica proximal e falange proximal do 3º dedo, medindo 3,5x1,7cm;

v. Duas equimoses arroxeadas, na face dorsal da região em correspondência com as articulações metacarpofalângicas do 2º e 3º dedos, no 2º dedo medindo 1,2x0,8cm e no 3º dedo medindo 1,5x1,1cm;

vi. Equimose arroxeada, na face palmar da falange média do 3º dedo, medindo 1x0,8cm;

e. No membro inferior esquerdo:

Equimose arroxeada, na transição do terço médio para o distal da face lateral da coxa, medindo 3x1,5cm.

20. Ainda em consequência da actuação de AA, DD sofreu, internamente, as seguintes lesões:

a. Na cabeça:

Nas partes moles:

Intensa infiltração sanguínea epicraniana generalizada; múltiplas soluções de continuidade epicranianas, em correspondência com feridas contusas acima descritas; intensa infiltração sanguínea dos músculos temporais;

Nos ossos da Cabeça - Abóbada:

Fractura deprimida e com diástase, de formato arciforme e abertura anterior, na linha média e metade esquerda do osso frontal, que se continuava na metade esquerda do referido osso, superiormente por dois pequenos traços de fractura e inferiormente por traço de fractura, também com diástase, pela arcada supraciliar esquerda até à superfície orbitária do osso frontal ipsilateral;

Discreto traço de fractura proveniente da superfície orbitária direita do osso frontal, que se continuava pela arcada supraciliar direita, terminando cerca de 2cm acima desta;

Nos ossos da Cabeça - Base:

Traços de fracturas continuadas das descrita na abóboda, que seguiam pelas superfícies orbitárias do osso frontal, bilateralmente, até à lâmina crivada do osso etmóide, onde se uniam, continuando-se até à sela túrcica, onde se separavam novamente, para cada um dos lados, terminando entre a pequena e grande asa do esfenóide bilateralmente, nas fossas cerebrais médias.

Nas meninges:

Fina lâmina de hemorragia subdural generalizada;

Hemorragia subaracnóide generalizada, mais acentuada a nível do lobo parietal esquerdo, dos lobos temporais, do lobo occipital direito e da face superior do cerebelo.

No encéfalo: Cérebro: edema ligeiro encefálico, traduzido por sinais de ligeiro estreitamento dos sulcos e achatamento das circunvalações cerebrais; focos de contusão no córtex e substância branca na base do lobo frontal esquerdo, dos lobos temporais e do lobo occipital direito; ventrículos laterais, simétricos, não dilatados, com vestígios hemáticos; 3º e 4º ventrículos com vestígios hemáticos.

Nos ossos da Face: Fractura do processo frontal do osso zigomático esquerdo, com infiltração sanguínea dos bordos.

Nas cavidades orbitarias e globos oculares: Fractura das superfícies orbitárias do osso frontal, bilateralmente, continuadas das fracturas do osso frontal descritas na abóboda, com infiltração sanguínea dos bordos.

Na cavidade oral e língua: Focos de infiltração sanguínea dispersos pelos músculos intrínsecos da língua.

b. No Pescoço, mais concretamente nas estruturas cartilagíneas:

Fractura do corno superior direito da cartilagem tiroideia rodeada de ligeira infiltração sanguínea.

c. No tórax, mais concretamente na clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: Fracturas pelos arcos anteriores da 5ª à 7ª costelas e pelos posteriores da 6ª à 8ª costelas, todas rodeadas de infiltração sanguínea.

21. Estas lesões traumáticas crânio-meningo-endefálicas e torácicas acima descritas foram causa adequada, directa e necessária da morte de DD.

22. Ao actuar da forma descrita, AA, munindo-se de uma maceta de ferro atingindo DD com a mencionada maceta na cabeça, local onde se alojam órgãos que constituem estruturas essenciais à vida, como é o caso do cérebro, agiu com o propósito concretizado de colocar termo à vida desta, sabendo daquela essencialidade e querendo atingir especificamente essa área, para assim conseguir a sua morte, o que conseguiu.

23. AA sabia que DD era sua esposa e, apesar disso, quis agir conforme o descrito, revelando desprezo e total desrespeito pela vida desta, querendo retirar-lhe a vida, atingindo-a com a maceta de ferro, o que conseguiu.

24. AA sabia, ainda, que, depois ter desferido várias pancadas com a maceta na cabeça da esposa e de lhe causar a queda no chão, a impossibilitou de se defender e, ainda, assim, desferiu-lhe mais pancadas na cabeça, querendo retirar-lhe a vida, o que logrou.

25. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

26. Do relatório social do arguido consta o seguinte:

“À data dos factos que deram origem ao presente processo, AA e DD mantinham uma união conjugal há 24 anos, (desde dezembro de 1998).

Da relação conjugal nasceram os dois filhos do casal, BB e CC, estes atualmente com 20 e 24 anos de idade, integravam o agregado familiar dos progenitores, pese embora se encontrassem ausentes da residência semanalmente, por consequência da sua condição de estudantes do ensino superior, regressando a casa aos fins de semana.

A família beneficiou sempre de casa própria; inicialmente viveram num apartamento em Fátima, doado pelos pais do arguido e posteriormente o casal, com recurso a crédito bancário, adquiriram uma vivenda de dois pisos, de construção moderna, inserida num condomínio privado, na localidade e morada indicada pelo arguido.

AA caraterizou a dinâmica do seu trajeto de vida conjugal e das relações com a família nuclear, como funcional e mutuamente gratificante. No entanto, foi referido pelo mesmo, que nos dois anos que precederam aos factos dos autos, DD passou a demonstrar uma atitude de indiferença e distanciamento nas sua vivencia conjugal e adotou frequentes rotinas de lazer, situação que AA diz ter associado a alterações fisiológicas relacionadas com a idade e que, refere, numa fase inicial, ter desvalorizado. Ainda de acordo com o arguido, o distanciamento entre o casal foi aumentando progressivamente, tendo DD em diversas ocasiões, transmitido ao arguido que a relação entre ambos se encontrava desgastada e queria viver sozinha, pensando mais em si própria. No inicio do mês a que respeitam os incidentes que deram origem aos presentes autos, AA refere ter tido uma conversa com DD, relacionada com conversas que havia ouvido fora do núcleo familiar sobre ela. Nessa ocasião, DD ter-lhe-á transmitido que queria a separação, temática que logrou dar conhecimento aos filhos, numa reunião de família. Esta informação do arguido foi corroborada pela filha do casal BB. Segundo a informação de ambos, de então em diante, o arguido passou a sentir-se desolado, e em diferentes momentos, terá transmitido à família intenção de se suicidar. BB aconselhou então o pai a procurar ajuda psicológica, o que segundo esta, foi recusado. Ainda segundo a mesma fonte, ao longo dos anos, a relação entre os pais foi funcional, mas num passado mais recente, passou a ser notório o distanciamento cada vez mais vincado na convivência familiar, e também social, situação que emocionalmente afetava ambos os progenitores. O pai não era uma pessoa de demonstração de afetos, mas foi sempre um pai preocupado e presente na vida dos filhos. Segundo BB e outras fontes contactadas, familiares e conhecidos, o casal tinha caraterísticas de personalidade amplamente distintas. O arguido era uma pessoa reservada à vida privada e sem ligação ao convívio social, enquanto DD era uma pessoa mais extrovertida aberta a convívios e associativismo. Na comunidade era um casal de boas referencias, não se observando comportamentos que merecessem ser assinalados ou que suscitassem o desfecho dos autos. AA habilitou-se com o 12º ano de escolaridade e passou a ajudar os pais nas atividades que estes desenvolviam, nomeadamente a exploração de uma residencial e de uma loja de artigos religiosos, sita em Fátima. Do que nos foi reportado pelas fontes contactadas, em jovem adulto, AA apresentou durante um período de tempo, comportamentos socialmente desajustados, alegadamente relacionados com consumos de drogas, que o expuseram a confrontos com o sistema da justiça. Aos 30 anos de idade contraiu matrimónio com DD, e tomou a independência do negócio da loja, junto do cônjuge, atividade que mantiveram juntos cerca de 10 anos. Findo esse período, por alegado culminar de divergências no entendimento familiar - entre o cônjuge e EE, sua mãe, alteraram a residência para a ..., passando o arguido a trabalhar para a empresa “... - Mármores SA” na atividade de montador de mármores (cabouqueiro), e o cônjuge num quiosque de artigos de papelaria, atividades que mantinham à data dos factos. A situação económica da família foi descrita pelo arguido como sustentável, tendo mencionado como despesas mais relevantes, as responsabilidades financeiras relacionadas com o crédito à habitação e o crédito automóvel que totalizam cerca de 640 € mensais. Ainda no contexto económico, o arguido salientou o apoio dos pais, como alavanca no seu orçamento familiar, nomeadamente no apoio aos custos académicos dois filhos. Decorrente dos factos que deram origem ao presente processo, AA está preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Leiria, desde 07 de junho de 2024. Questionado sobre a sua situação jurídica penal, omitiu anteriores contactos com o sistema da justiça. No entanto da sua ficha biográfica constam registos de dois anteriores períodos de privação de liberdade, o primeiro entre janeiro e julho de 1990 e o segundo entre dezembro de 1993 e maio de 1994. Decorrente da atual situação jurídica, para além da privação de liberdade, não salientou outros impactos. Contudo, quando questionado sobre a sua atual relação com os filhos, referiu a existência de uma rotura total na ligação com aqueles. No estabelecimento, a mãe é a única pessoa que o visita e apoia quer afetiva, quer economicamente, assumindo o pagamento das responsabilidades financeiras do filho. AA demonstrou um comportamento de serenidade e expectativas de um desfecho favorável dos presentes autos. Salientou consciência e empatia, em abstrato, por facos similares aqueles pelos quais responde, adotando um discurso de total convicção de defesa pessoal, relacionada com a atitude danosa da perda de vida, reforçando “eu é que fui a vitima” SIC. No Estabelecimento Prisional apresenta um comportamento ajustado às normas institucionais.”

27. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

Dos pedidos de indemnização civil:

28. Os encargos com a assistência prestada pela Unidade Local de Saúde de Coimbra EPE a AA importaram na quantia de 74.106,17€.

29. Os encargos com a assistência prestada pela Unidade Local de Saúde da Região de Leiria EPE a AA importaram na quantia de 105,31€.

30. A falecida DD tinha 49 anos à data da sua morte.

31. Era pessoa saudável, alegre, dinâmica e muito querida por todos os que a rodeavam.

32. Era uma pessoa muito sociável, de fácil trato, simpática, empática.

33. A DD apercebeu-se do momento em que o arguido avançou para ela e lhe começou a desferir os primeiros golpes.

34. A DD, com a violência das primeiras pancadas e com o efeito que as mesmas lhe provocaram, quebra de forças, início de perda de sentidos, perda de equilíbrio, para além de ficar impedida de reagir ou defender-se, apercebeu-se que atenta a violência das agressões estas iriam causar-lhe a morte,

35. Tendo sofrido, até morrer, dores fortíssimas.

36. Tendo-se apercebido que iria morrer.

37. A falecida, preparava-se para iniciar uma nova fase da sua vida após divórcio, tinha uma excelente relação com os seus filhos, e tinha o apoio de familiares e amigos para esta nova fase.

38. Tinha a expectativa de vir a viver muitos anos e a melhorar a sua condição diária de vida.

39. À data da morte de DD os seus filhos apresentavam a seguinte idade:

a) BB, nascida a DM2000, tinha 23 anos;

b) CC, nascido a DM2004, tinha 20 anos;

40. À data dos factos a BB era estudante.

41. O CC é estudante.

42. A DD trabalhava enquanto funcionária do quiosque sito na Rua 2, em Porto de Mós, para a entidade patronal denominada de “P...Unipessoal Lda.” – NIF ... ... .20, auferindo mensalmente a quantia de líquida de (11.130,50 – 186,00 – 1224,41 + 2083,56): 14 = 843,11€/mês.

43.Os filhos amavam a sua mãe.

44. A sua mãe era o seu suporte familiar e anímico.

45. O cuidado e a preocupação entre os três era constante e simultânea, ainda que saudável e garantido o espaço de desenvolvimento de cada um.

*

Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:

1. A relação de AA e DD começou a ser pautada pelo distanciamento, uma vez que aquele era pouco sociável e não gostava de sair com amigos e esta era uma pessoa bastante sociável.

2. AA desconfiou que a “mulher casada” era DD, pois esta era amiga pessoal do mencionado homem da aldeia que ia comprar uma casa.

3. O arguido disse, várias vezes, a DD que se o deixasse se iria suicidar, pretendendo, assim, que esta desistisse da separação.

4. O arguido foi movido por ciúmes, uma vez que suspeitava que a DD mantinha uma relação extraconjugal.

5. Em momento não apurado, com as mãos, o arguido apertou o pescoço de DD, tentando estrangulá-la.

6. O arguido infligiu a si próprio três cortes, dois deles no tórax.

7. Encontrando-se o arguido a trabalhar nas bricolages numa bancada de rua quando pelas ou de costas é atingido de lado por uma faca e abordado pela sua falecida esposa.

8. O arguido socorreu-se do que “tinha à mão” para se defender, envolvendo-se ambos em agressões mutuas e com discussão de palavreado e contacto físico.

9. O arguido sofreu no seu corpo 4 facadas desferidas pela falecida, uma frontal e 3 laterais (do lado esquerdo do arguido).

10. A DD gastava cerca de ¼ consigo própria destinando os demais ¾ do seu salário ao agregado familiar o que correspondia a 632,33€/mês.

11. Os seus filhos, ainda que maiores, mas ainda dependentes daquela em termos patrimoniais, tinham a legítima expetativa de continuar a receber ajuda pelo menos até completarem a idade de 25 anos, correspondente ao términus da sua formação pessoal e profissional.

Motivação da decisão de facto:

Para a descoberta da verdade material foram relevadas e ponderadas criticamente as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, o qual efectuou um relato parcial sobre a materialidade dos factos, assumiu a prática das pancadas na cabeça da DD e negou ter-se auto-infligido.

Em julgamento declarou que não confrontou a mulher com a situação do rumor que ouvira, mas fez uma chamada de atenção; confirmou que a mulher lhe transmitiu a intenção de se separar e falaram com os filhos; disse aos filhos que “a minha vida não fazia sentido sem ela”; mandou uma mensagem a dizer “sejam felizes” aos filhos mas não era intenção dele suicidar-se; nunca disse à mulher que se ela o deixasse se iria suicidar; estava disposto a tentar lutar pelo casamento mas não poria entraves à separação; negou que se tivessem encontrado no anexo mas sim, que a mulher foi trabalhar e depois veio almoçar e voltou a sair e quando chegou a casa, passou por ele , e que estava à espera que ela chegasse para ir buscar a filha a Fátima ao expresso; ele estava a limpar o lixo do resto do jardim que andava a cortar e encontrava-se na zona exterior do anexo – casa das ferramentas - onde foi buscar um saco do lixo e quando se virou sentiu um impacto no peito e viu uma faca cravada na zona do coração e recuou, para trás, olhou e retirou a faca de cozinha de cortar carne e atirou-a para o chão e ao levantar a cabeça sentiu um movimento rápido em direção ao pescoço com uma outra faca (não sabe as características), e levou um corte frontal, ao recuar encontra-se logo dentro da divisão das ferramentas e ai se encontrava uma “macetazita” e foi o que estava à mão foi o que agarrou; projetou-se para fora para se defender do que quer que fosse; a segunda faca ficou na mão da esposa; a partir do momento em que se projetou para fora com a maceta não se recorda de mais nada ; não tem memória do envolvimento e da luta; não se lembra de tentar estrangular a mulher com as mão no pescoço; depois telefonou para o 112 e disse “venham que eu matei a minha mulher” mas não sabe as palavras especificas; tem quatro golpes no peito e vários no pescoço, mas não se lembra dos golpes; tinha sangue por todo lado e protegeu o pescoço com um saco de plástico do lixo preto e com a camisola avermelhada de manga comprida, tipo polo, sem gola, que tinha tirado porque estava calor; só tinha dores no peito, no pescoço não sentia dores; teve que ser feita a reconstrução no pescoço; não tem noção de quanto tempo esteve à espera para falar com o 112; negou ter-se auto-infligido com uma faca e nunca disse que o tivesse feito; sempre falou e deitou-se no chão de barriga para baixo para proteger os cortes do peito; teve noção de ouvir a ambulância e as pessoas a tocarem à campainha na zona frontal da casa; não tem noção se telefonou do telefone fixo ou do telemóvel porque tinha ambos ao pé dele; aproximaram-se dele não sabe quantas pessoas e ouviu um homem dizer “está aqui alguém vivo”; tem noção de estar na ambulância e perguntaram-lhe pela documentação e disse que estava na carteira no quarto; afirmou ser destro; e que quando ligou para o 112, já tinha o plástico no pescoço, tinha dificuldade em respirar e estava cansado; até altura em que a esposa decidiu separarem-se continuaram a dormir juntos; quando foi atingido pela faca estava a desenrolar um saco e a olhar para o saco; acrescentou que a mulher veio de dentro de casa e do lado esquerdo dele e ele está virado para a bancada de madeira e vira-se para o sitio de onde ela vem, mas não se apercebe que ela chega; e quando ela lhe espeta a faca ele está a desenrolar o saco e não olha para ela, mas olha para a faca; atinge-o com a segunda faca no pescoço da esquerda dele para a direita; afirmou recordar-se que a mulher terá dito ”se não és capaz eu ajudo-te”;

No decurso da audiência de discussão e julgamento foi ainda ouvida a reprodução das declarações prestadas pelo arguido perante o JIC, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, e que não coincide, totalmente, com a versão dos factos pelo mesmo relatada em audiência.

Perante o Juiz de Instrução Criminal declarou que o que se passou foi que a vítima foi ele, ele é que foi atacado com dois golpes (uma faca cravada no peito) o pescoço dilacerado; referiu que a mulher foi trabalhar, veio almoçar e disse que ia a casa do irmão, quando ela regressou ele estava a limpar o jardim e, sem dar por nada, ela cravou-lhe a faca no peito e munida de outra faca dilacerou-lhe o pescoço; ela trouxe as duas facas da cozinha e primeiro deu-lhe um golpe no peito acima do mamilo no lado esquerdo, do lado do coração, sendo que a faca tinha cerca de 15 cm de cumprimento e 5 cm de largura e ficou com o cutelo espetado no peito; levou outro golpe dado pela esposa por cima da maçã de Adão; no momento em que tira uma faca é espetado com outra. E recua do exterior para dentro do anexo a cerca de 1 m onde tem as ferramentas para ir buscar algo para se defender; avançou com a maceta para a frente, deu dois passos e estava ali mesmo à mão; levantou a maceta e nisto leva uma segunda facada no pescoço (ou seja uma terceira facada) ao mesmo tempo; aí envolveram-se e levou outra facada ao mesmo tempo ele dava com a maceta e ela esfaqueava-o; ao mandar a maceta para a frente ela caiu no chão; ele tentou com uma mão agarrá-la e ela de costas no chão, continuava a dar-lhe facadas; aí não sabia bem se estava a acertar ou não; quando teve noção que “a coisa tinha parado”; nessa altura viu que ela estava morta; a primeira coisa que se lembrou foi “ai a minha filha” e era ele que a ia buscar a Fátima; ainda ligou à mãe para ela ir buscar a BB; ligou para o 112 uma vez, mas ninguém atendeu e ligou uma segunda vez e disse “venham aqui que eu acabei de matar a minha esposa” e sentiu que se podia “apagar”; tinha uma camisola ao pescoço e uns plásticos; desligou o telefone e ali ficou, deitado no chão sem forças; não disse que estava mal porque tinha que dar muitas explicações e podia-se apagar; na altura a expressão que utilizou foi “matei a minha mulher”; sobre a relação extraconjugal, o que diz na acusação não é a realidade; foi pedido para ler o escrito de fls. 212 e 213, o que fez e confirmou ser a sua letra e referiu que o escreveu na medicina intensiva; passa-se a transcrever: “Eu e a minha esposa estávamos para nos separar já tínhamos falado com os filhos e eu disse que antes queria morrer do que viver sem ela, e ela pediu-me para não o fazer logo, pois tinha falado nisso e no sábado era para ir buscar a filha e ela chegou e foi levar qualquer coisa ao irmão e quando chegou não sei porquê virou-se para mim e disse-me que se era para eu morrer me ajudava” (não se percebe bem), mas é a descrição dos eventos; ela atacou-me no pescoço e eu com a maceta que tinha na mão dei-lhe, várias vezes, e depois fui buscar o telefone e liguei para o 112 e disse logo que a tinha matado e só queria pedir desculpa aos meus filhos pelo que fiz à mãe; matei-a; acrescentou que confrontou a esposa uma semana antes com a situação do homem que comprou uma casa e ela disse que não era nada com ela; resolveram separar-se, porque ela queria viver sozinha, e ela disse que não tinha que ser uma “coisa” imediata, não tinha que ser já e pediu-lhe para não demonstrar isso publicamente; esclareceu ainda que quando recebeu o primeiro golpe estava a olhar para baixo não olhava de frente porque estava concentrado na faca e quando levou o segundo golpe no pescoço já viu quem era e já estava munido da maceta; talvez tenha dado cinco pancadas porque algumas poderiam não ter acertado e ela continuava a tentar agredi-lo com a faca; como estava fraco e a perder bastante sangue os golpes devem ter sido fracos e até ela podia estar em convulsões; esclareceu ainda que estava de pé , de volta de uma “bancadazita” pequena de madeira e a preparar peças para ir para o jardim e de costas para o que se passou e estava no topo da bancada; a esposa veio do lado esquerdo dele e na primeira vez ele estava a olhar para a bancada e a outra facada foi com a mão direita e ela trazia duas facas; ele estava a preparar peças para ir cortar as sebes; não tem consciência de ter apertado o pescoço à mulher; por ultimo esclareceu que a maceta teria um cabo de 40 cm de cumprimento e era pesada e estava a desfalecer. Sopesado o depoimento das testemunhas de acusação: BB, filha do arguido e da DD, descreveu a forma como teve conhecimento da situação uma vez que vinha do Porto, onde estava a estudar, para Fátima e aí chegaria pelas 17 horas e ficou combinado que era o pai que a ia buscar; quando chegou foi a avó que a foi buscar e só após teve conhecimento do que se passou; referiu que vinha passar os fins de semana de 15 em 15 dias a casa dos pais e que estes já tinham falado sobre a decisão de se separarem, sendo que a mãe é que tinha decidido e o pai teve dificuldade em aceitar; desde essa altura o pai enviou mensagens para ela e para o irmão em jeito de despedida - “sejam felizes” – e tem ideia de uma das mensagens dizer “adeus” e a mãe contou que ele já tinha ameaçado que se suicidaria se ela o deixasse e tinha dito que se conhecia a si mesmo e sabia o que podia vir a fazer se a mãe o deixasse; o pai dizia que não conseguia viver sem a mãe; nunca se apercebeu de comportamentos violentos entre os pais, nem ofensas físicas; não acredita que a mãe tenha atacado o pai; no âmbito do pedido de indemnização civil descreveu que teve conhecimento da situação através do primo que lhe ligou e lhe disse o que tinha acontecido e a forma como se sentiu, com descontrole de emoções a chorar e stressada; a mãe era alegre e sociável, gostava de fazer exercício físico e de se divertir; tinha uma boa relação com ela e com o irmão e era a ela a quem recorria quando tinha algum problema; tenta controlar as situações pela falta da mãe e não sabe como é que se vive sem a mãe e o irmão também tinha uma relação muito próxima com a mãe; desconhece os planos concretos que a mãe tinha após a separação, crê que iria viver para casa da avó materna; descreveu a forma como era preocupada com ela e com o irmão; era a mãe que fazia transferências de dinheiro para ela e para o irmão quando era necessário; eram os pais que geriam o dinheiro; o pai ajudava nas tarefas domésticas e era trabalhador; não era de sair de casa; FF, militar da GNR, descreveu o que encontrou quando chegou ao local, entrou pelas traseiras e viu duas vitimas - um casal - deitadas no chão; a vitima feminina de (decúbito dorsal) de barriga para cima e o masculino de lado (decúbito frontal) e este tinha um lenço ensanguentado à volta do pescoço; o homem não conseguia falar e quando fizeram a remoção do corpo para ir para a maca a zona do pescoço caiu para fora (traqueia, cordas vocais, maça de adão), era impossível falar apenas emitia uma espécie de grunhidos; quando chegou desviou as armas: um maço metálico e duas facas que afastou com os pés para o lado; o arguido estava vivo e o rosto tinha muito sangue e não se percebia se estava consciente; tinha um lenço (ou uma camisola, não consegue precisar) de cor escura no pescoço e não se recorda de ter visto nenhum saco de plástico; o sangue na zona do pescoço já estava, numa grande parte, coalhado; as facas e a maceta estavam a centímetros perto dos corpos; a maceta estava na parte dos pés da mulher e as facas do lado do homem mas não consegue precisar se perto das mãos se dos pais; descreveu a forma como se encontravam os corpos ambos dentro do anexo, a DD com os pés mais junto da porta e o arguido entre a bancada e a parede da habitação; GG, inspector da Polícia Judiciária, da brigada de homicídios, que se deslocou ao local e referiu que o arguido já tinha sido retirado pelo INEM e verteu em auto tudo o que observou; deslocou-se ao CHU de Coimbra para perceber o estado de saúde do arguido e recolha de ADN; tinham passado três ou quatro dias e o arguido já tinha sido intervencionado e estava consciente mas não conseguia verbalizar e comunicava por gestos; o arguido pediu uma caneta e uma folha e escreveu o bilhete onde faz a narrativa dos factos; as conclusões da investigação é que as lesões tinham sido auto infligidas; exibido o manuscrito de fls. 212 e 213 confirmou-o; HH, perito médico responsável pela perícia médico legal efetuada ao arguido e que concluiu que as lesões que verificou naquele, na zona do pescoço, tâm maior probabilidade de ter sido auto-infligidas; a avaliação foi feita com base nos elementos clínicos do atendimento que foi prestado e no examinando; o atingimento foi acima das cordas vocais, o que implica que não é possível que a pessoa possa falar normalmente; foi ouvido o CD de fls 208, ou seja o telefonema efetuado pelo arguido já após as lesões, onde chama a policia e refere que matou a mulher; foi peremptório a dizer que com as lesões que o arguido apresentava não era possível ter este discurso, porque era uma voz alta e o discurso era normal aquando do telefonema; sendo destro tinha mais facilidade de infligir da esquerda para a direita e se fosse outra pessoa seria o contrário; se fosse um agressor seria tipo “mata leão”, seria muito difícil produzir lesões destas; quanto ao pedido de indemnização civil foram relevantes os depoimentos das testemunhas: II, patroa da vitima que referiu que esta recebia um ordenado acima da média, ligeiramente, e descreveu como era uma pessoa simples e confiável, alegre e sempre pronta a ajudar, trabalhadora, honesta e leal; dava tudo pelos filhos e estava sempre presente; têm apoio da família da mãe, tios e primos uma vez que “sempre puxaram” mais para o lado materno, sendo que do lado da família paterna não existia grande apoio; JJ, KK, LL e MM, todos familiares próximos da vitima descreveram de forma credível a personalidade desta e a expetativa que tinha perante a vida; os depoentes tinham conhecimento directo e pessoal acerca dos factos sobre os quais depuseram, e efectuaram relatos claros e coerentes, que mereceram credibilidade por parte do Tribunal Colectivo.

Conjuntamente com tais depoimentos, concatenados com as declarações do arguido, e a demais prova produzida, assumiu especial relevo a prova pericial produzida nos autos, com reporte ao teor dos respectivos relatórios periciais, e elementos clínicos; assumiram particular importância a audição do CD de fls 208 e os esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito Médico em sede de audiência de discussão e julgamento, e que, salvo melhor entendimento, permitem concluir “in casu” que não era possível o arguido fazer a chamada para o 112 com a clareza com que o fez caso tivesse , já nessa altura, as lesões apresentadas;

Assim sendo, e uma vez que, nos termos do disposto no artº 163º nºs 1 e 2 do C.P.P., o “juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”, podendo o juiz “divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”, mas com apelo aos conhecimentos materiais supostos na perícia; e inexistindo, no caso, motivos para divergir do juízo pericial, aceita-se o mesmo.

Tudo ponderado, concluem as Juízas que integram este Tribunal Colectivo em formar um juízo fáctico nos precisos termos supra escalpelizados e fixados.

Concretizando:

Quanto à versão dos factos apresentada em audiência de discussão e julgamento pelo arguido, de que terá sido a mulher quem o esfaqueou e ele apenas se defendeu com o que “tinha à mão”, a mesma não logrou convencer, de todo, o Tribunal, por inverosímil e não credível.

Se não, vejamos:

O arguido referiu que apesar de o casal estar em situação de divorcio continuaram a dormir juntos e a manter uma relação cordial, sendo que até no dia da prática dos factos o arguido preparou o almoço para a DD; também o arguido negou que tenha confrontado a mulher com o boato que ouvira no café, pelo que não se vislumbra qualquer razão para, que a DD tenha ido trabalhar, vindo a casa almoçar, voltar a sair para ir a casa do irmão e ao regressar a casa, sabendo que o arguido tinha o compromisso de ir buscar a filha que vinha do Porto, sem quê, nem para quê , sair de casa, empunhando, não uma, mas sim duas facas de cozinha, dirigir-se ao arguido e esfaqueá-lo; depois também não colhe a versão do arguido de que não deu pela chegada da DD , mesmo que estivesse, como referiu em audiência, a olhar para o saco do lixo que estava a desenrolar , ainda assim teria um ângulo de visão que lhe permitia ver a sua chegada, em contradição com a versão que deu ao JIC ou seja, onde referiu que estava de pé , de volta de uma “bancadazita” pequena de madeira e a preparar peças para ir para o jardim e de costas para o que se passou e estava no topo da bancada; a esposa veio do lado esquerdo dele e na primeira vez ele estava a olhar para a bancada; depois a memória seletiva do arguido que se recorda de umas coisas – obviamente, as que não pode, de todo, negar – mas não recorda as outras, ou seja, recorda o que a DD lhe fez, mas não recorda o que fez à DD, mormente o que se passou após esta o esfaquear (na sua versão dos factos), escudando-se em várias respostas onde refere “não ter a noção” , mas pelo meio, recorda que a DD lhe terá dito que “se ele não conseguia ela o ajudava”, recorda que aquela estava já no chão agredida por ele com a maceta e o continuava a esfaquear.

Nada disto convenceu o Tribunal, porque nada disto faz sentido.

Depois, temos a gravação da chamada efetuada pelo arguido para o 112- através do numero .......12 - audível, perceptível, clara, com projeção de voz, serena e sem hesitações, completamente incompatível com a voz de alguém que tinha acabado de ser esfaqueado na zona do coração e do pescoço e que conforme o arguido referiu, estava cansado e tinha dificuldade em respirar; e mais, se assim era, porque não referiu o arguido quando telefonou para o 112 que além da mulher estar morta ele estaria ferido e em risco de vida? Não aceitamos esta versão; o militar da GNR foi peremptório em afirmar que quando chegou o arguido não falava (o arguido afirma que sim, até falou ainda na ambulância) e a zona do pescoço caiu para fora (abertura de faringe e exposição da laringe fls. 318).

E mais, se foi a DD que esfaqueou o arguido como podemos entender que o mesmo, fraco, e a desfalecer a qualquer momento (com referiu) tenha tido força para empunhar uma maceta com as características que descreveu, pesada?

Continua a não fazer sentido.

Além disso, se bem se atentar, concluímos que em cima da bancada estão as chaves do carro, os óculos de sol e a carteira da DD, o que leva o Tribunal a concluir que esta terá ido ter com o marido ao anexo e aí foi por ele agredida mortalmente.

Mas há mais, conforme as declarações credíveis do inspetor da PJ GG que se deslocou ao serviço de medicina intensiva do CHU de Coimbra no dia 29.5.2024 e o arguido ainda não conseguia produzir qualquer som, nem verbalizar e pediu uma caneta e papel para escrever e de livre e espontânea vontade escreveu as duas folhas que se mostram juntas aos autos a fls 212 e 213, onde assume a autoria dos factos e refere “maceta que tinha a mão e deilhe com ela várias vezes na cabeça”

Outrossim, a forma como o arguido descreve a forma como foi esfaqueado pela esposa, diverge em ambas as versões que apresenta ao Tribunal (em sede de julgamento e perante o JIC).

Dos relatórios de exame pericial da criminalística biológica de fls. 440 e ss e 477 e ss também é possível concluir que, nas zonas exteriores do anexo não existem vestígios hemáticos com o perfil genético do arguido, mas tão só da DD, pelo que, não é coerente que o arguido apenas tenha começado a desferir golpes com a maceta na DD, como defesa, e após ter sido ferido por esta com as facas, uma vez que, se assim fosse, o seu perfil genético teria, necessariamente, de existir no espaço exterior ao anexo.

Com efeito, o Tribunal não tem duvidas que os factos se passaram conforme descrito nos factos provados: a DD chegou a casa, foi ter com o arguido ao anexo e este munido da maceta de ferro desferiu pancadas (doze) na cabeça daquela que, de imediato, ou pelo menos com a segunda pancada caiu ao chão e lhe provocou a morte; note-se que a vitima tem o crânio desfeito; o arguido telefonou depois para o 112 e segundo a sua versão terá telefonado à mãe para lhe pedir que fosse buscar a filha ( e a filha corroborou que foi avó que a foi buscar a Fátima) e de seguida, se auto infligiu; não colhe, assim a tentativa de o arguido se ter defendido ou de ter agido em legitima defesa.

Com efeito, se é certo que o dolo, pela sua própria natureza subjectiva, é um fenómeno da vida interior do indivíduo e, por isso, insusceptível de apreensão directa, só sendo possível captar a sua existência, na falta de confissão integral e sem reservas, através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir; no caso concreto em apreço, atentas as circunstâncias de facto, designadamente a zona do corpo visada, as características do instrumento utilizado e o número de pancadas, consideram as juízas que integram este Tribunal Colectivo que a prova produzida em audiência, nos termos, com os esclarecimentos e precisão com que o foi, supra descritos, e, por reporte às regras da experiência, e às circunstâncias verificadas, em concreto, aquando da ocorrência dos factos, supra descriminadas e escalpelizadas, foi segura, no sentido de o arguido ter previsto e querido, de forma directa e consciente, que daquela sua conduta sobreviesse, como sobreveio, a morte da sua esposa DD, permitindo a este Tribunal Colectivo concluir com segurança, e “para além de qualquer dúvida razoável”, pela formulação de um juízo positivo acerca da intenção de matar a ofendida por parte do arguido , nos termos em que o foi – a título de dolo directo - , o que apenas pode conduzir, de acordo com as regras da experiência e o princípio da livre apreciação da prova, à cristalização factual nos termos em que “supra” foi julgada provada.

Do mesmo modo, não se tendo apurado da discussão da causa a alegada agressão ao arguido por parte da ofendida ( por manifesta falta de credibilidade da versão dos factos apresentada pelo arguido, que não é corroborada por qualquer outro elemento de prova carreado para os autos ) não colhe a versão apontada pelo arguido, no sentido de que teria agido em legítima defesa / excesso de legítima defesa, ou sequer de putativa legítima defesa, com alegado erro desculpável / não censurável sobre a ilicitude.

Na análise da prova pericial, mormente: relatórios periciais de Criminalística Biológica de fls.349 a 357, 440 a 444, 475 a 477 (que confirma a natureza do material biológico e ADN Autossómico); relatório pericial de avaliação do dano corporal em Direito Penal de fls.401 a 406 (relativo ao arguido de onde decorre a probabilidade que as lesões possam ter sido auto infligidas); relatório de autópsia médico-legal e relatório de química e toxicologia forenses de fls. 564V a 571.

Na análise da prova documental, nomeadamente: Auto de notícia e Anexo 1 de fls.3 a 8; Certificado de óbito de fls.11 e 12; Relatório fotográfico de fls.16 a 18; Certidões de assentos de nascimento de fls. 36 (da vitima), 230 (BB) e 231 (CC); Auto de inspecção judiciária de fls.53 a 66 (com as conclusões preliminares); Auto de apreensão de fls.67 e 68; Autos de diligência de fls. 69, 145, 210 e 211; Relatório n.º........86-ELELC de fls.71 a 137 e Relatório n.º........87-ELELC de fls.146 a 192; Cotas de fls.197 (contacto estabelecido com o CHUC para percepção do estado de saúde do arguido) e 198 (contacto telefónico com a mãe do arguido para percepção do telefonema que este fez aquela no dia dos factos pelas 16h30m); Registos de atendimento da linha de emergência de fls.205 a 207; Gravação de chamada para a linha de emergência constante do CD de fls.208; Auto de transcrição de fls.209; Manuscrito de fls.212 e 213; Certidão do assento de óbito de fls.232; Elementos clínicos ULS Coimbra de fls.244, 245, 261, 294, 310 a 313, 318, 323 a 336, 424 a 428, 433 a 436; Relatório n.º........68-ELELC de fls. 338 (recolha de amostra bucal através de zaragatoa); certificado de registo criminal sob referência ......34, relatório social de fls. 976 e ss; documentos juntos com os pedidos de indemnização civil a fls. 809, 980 vº e sob referência ......15 e fls. 989 e ss.

Os factos dados como não provados resultaram da circunstância de da discussão em audiência se terem apurado os factos contrários / opostos, ou de não se ter produzido prova directa e bastante sobre os mesmos.

*

Enquadramento jurídico-penal:

O arguido encontra-se acusado nos autos da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 131º e 132º nºs 1 e 2 als. b), c) e e) do Código Penal.

Nos termos do disposto no artigo 131º do Código Penal: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

E o artigo 132º do mesmo diploma legal que:

“1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade e perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (….)

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;

c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; (…)

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

(…).”

Considerando que a integração dos factos no tipo qualificado exige, previamente, numa perspectiva lógico-substantiva, a operação de enquadramento da conduta no tipo simples ou tipo-base, importa analisar a previsão normativa típica do crime de homicídio (simples).

Através da incriminação constante do citado artº 131º do Código Penal pretende-se salvaguardar a protecção do bem jurídico supremo, a vida humana, de outra pessoa, preenchendo-se o mesmo com o causar ou provocar a morte de pessoa diferente do próprio agente (ainda que moribunda ou com doença irreversível), através de um tipo subjectivo de ilícito necessariamente doloso. Consubstancia, assim, o mesmo a protecção jurídico-penal da vida das pessoas, ou seja, do seu bem jurídico mais valioso, cuja defesa merece inclusive lógica consagração constitucional _ cfr. o artº. 24° da Constituição da República Portuguesa.

Analisando sumariamente os elementos do tipo de crime de homicídio simples, refira-se que:

- quanto ao sujeito da acção típica, não é ao mesmo exigida nenhuma qualidade em especial ( é um crime comum );

- quanto ao resultado da acção típica, o mesmo consiste em tirar a vida a outra pessoa ( pessoa já nascida, ou que se encontra no acto do nascimento; e pessoa que ainda se encontra viva, ainda que moribunda, desde que não esteja verificada a morte cerebral ), podendo tal acto de “matar” ser perpetrado pelas mais diversas formas, quer por acção, quer por omissão; sendo, todavia, que o meio utilizado deve ser causalmente adequado a provocar a falência das funções vitais da vítima, e o consequente decesso da mesma.

-quanto ao objecto material da acção típica _ o mesmo consiste em outra pessoa que não o próprio agente, já nascida ou no acto do nascimento, ainda que padecendo de doença irreversível ou possuindo deficiência que determine a falência, ainda que a curto prazo, das funções vitais; pessoa essa que deve estar viva (isto é, a quem não tenha sido verificada a morte cerebral). Neste sentido cfr. Figueiredo Dias in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, pag. 5 e seguintes.

Relativamente aos elementos subjectivos do tipo, o dolo, como elemento geral do tipo, é constituído pelo conhecimento e vontade de realização dos elementos objectivos do tipo de crime, nos termo gerais ( artº 14º do Código Penal), abarcando concretamente, no crime de homicídio simples, o conhecimento de que a conduta é perpetrada contra outra pessoa, que se encontra viva, e que, em termos de causalidade adequada, e de acordo com o conhecimento de um “bonnus pater familiae”, colocado na mesma situação do agente, e com os mesmos conhecimentos concretos deste, tal conduta é adequada a provocar-lhe a morte; e a vontade de proceder de acordo com essa representação, em qualquer das modalidades previstas (dolo directo, necessário ou eventual ).

Operando a subsunção da factualidade provada nos presentes autos à previsão típica do crime de homicídio, concluímos pelo preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo (este na modalidade de dolo directo – artº 14º nº 1 do Código Penal), uma vez que resultou provado que o arguido desferiu 12 pancadas na cabeça da DD, e tinha consciência que tais agressões eram adequadas a provocar-lhe a morte; e que o mesmo conhecia o tipo e as características da maceta utilizada, bem sabendo que tal instrumento era adequado a provocar-lhe a morte, o que conseguiu; agindo o arguido de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida.

Perfectibilizados se mostram, pois, todos os elementos constitutivos do crime de homicídio simples.

Importa agora averiguar do preenchimento da conduta do arguido de alguma das circunstâncias qualificativas do tipo (exemplos -“padrão”), reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade, designadamente das previstas nas imputadas alíneas b), c) e e) do nº 2 do artº 132º do Código Penal.

De acordo com a doutrina e jurisprudência maioritárias, os diversos “exemplos-padrão” previstos no nº 2 do artº 132º do Código Penal são meramente exemplificativos da especial censurabilidade e/ou perversidade, mas, uma vez preenchidos pela factualidade apurada, a sua aplicabilidade (e consequente qualificação da conduta do agente) apenas pode ser afastada por circunstâncias atenuantes excepcionais.

No que tange à circunstância qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do artº 132º do Código Penal, desde logo a mesma mostra-se verificada porquanto a DD era cônjuge do arguido;

Já quanto à qualificativa da alínea c) “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa”, não vislumbramos razão de molde a revelar a especial censurabilidade ou perversidade do arguido.

Termos em que se conclui pelo não preenchimento, “in casu” desse exemplo-padrão.

Da mesma forma, relativamente à circunstância qualificativa prevista na alínea e) do nº 2 do artº 132º do Código Penal, a imputada avidez, prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil, este Tribunal Colectivo considera igualmente que, da matéria de facto provada, não resultou preenchido este exemplo-padrão, que implica preparação calma, cautelosa, lenta e fria no modo de matar alguém, o que, manifestamente, não se verificou no caso e também não se provou que o arguido tenha sido movido por ciúmes, motivo torpe ou fútil.

Termos em que, e sem necessidade de mais considerações, se conclui no sentido de que a conduta do arguido é integradora do crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. nos artºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. b) do Código Penal, uma vez que estão preenchidos os respectivos elementos objectivo e subjectivo do tipo, e dado que não se verificam, in casu, quaisquer causas de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa.

*

Escolha e determinação da medida da pena:

Conforme “supra” referenciado, o crime de homicídio qualificado na forma consumada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. b) do Código Penal é punível com pena de 12 a 25 anos de prisão.

Em sede de determinação da medida concreta da pena a aplicar, há que lançar mão dos critérios dosimétricos constantes do artº 71º do Código Penal, tendo como limite mínimo da moldura penal a aplicar as exigências de prevenção geral que o caso requer, como limite máximo a culpa do arguido, e encontrando-se a respectiva pena concreta a aplicar dentro da moldura penal assim estabelecida, de acordo com as exigências de prevenção especial.

A ilicitude da conduta é elevada, sendo igualmente elevada a censura social que os factos merecem.

São ainda de ponderar as elevadas razões de prevenção geral, pois que os crimes de homicídio são dos crimes que causam mais alarme e intranquilidade no tecido social, com repulsa e indignação na comunidade.

Por outro lado, a primodelinquência do arguido, é a única circunstancia a ponderar em favor do arguido, permitindo a formulação de um juízo de prognose favorável ao mesmo, no que se reporta à prevenção de futuras delinquências.

Na aplicação da pena em concreto, o fim primordial reside na prevenção geral, ou seja, que a pena deve ser encontrada de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime, no caso concreto, indo de encontro às expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada. Neste sentido cfr. Ac. STJ de 13/07/2005, relatado por Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt, onde se refere: “a exigências de prevenção têm uma finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos” ).

Reportando-nos em concreto ao caso em apreço nos autos, temos que:

Contra o arguido:

- o grau de culpa manifestado pela conduta do arguido é elevado;

- são elevadas as exigências de prevenção geral (face ao alarme social provocado);

- são elevadas as exigências de prevenção especial, não obstante a inexistência de antecedentes criminais do arguido, atento o contexto concreto em que ocorreram os factos;

- a ilicitude da conduta do arguido é elevada,

- a intensidade da conduta criminosa do arguido;

- a gravidade do bem jurídico violado;

- o dolo foi directo e intenso;

- as consequências da conduta do arguido foram de gravidade máxima;

- a falta de arrependimento e de juízo de censurado arguido;

- a versão totalmente irrealista que apresentou;

A favor do arguido:

- a primodelinquência.

Tudo ponderado, afigura-se-nos adequado aos factos e à personalidade do agente a aplicação ao arguido da pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

Encontrando-se, ainda, incurso na pena acessória de declaração de indignidade sucessória, prevista no artigo 69.º-A do Código Penal.

Preceitua o artº 69º-A do Código Penal, sob a epigrafe “Declaração de indignidade sucessória” que: “A sentença que condenar autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, (…) pode declarar a indignidade sucessória do condenado nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artº 2034º e no artº 2037º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artº 2036º do mesmo Código”.

O Tribunal Coletivo declara a indignidade sucessória de AA nos termos e para os efeitos da al. a) do artº 2034º do Código Civil.

…..

Objectos apreendidos nos autos:

Determina-se a perda a favor do Estado e a consequente destruição da maceta, das facas, das peças de vestuário, calçado, dos sacos do lixo, dada a sua natureza e por configurarem instrumento do crime (artigo 109.º, n.º1, do Código Penal, e artigo 185.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);

Determina-se a restituição, a final, do telemóvel e da mochila de senhora pertencentes à vítima aos assistentes (herdeiros desta) e o telemóvel do arguido ao mesmo, nos termos do artigo 186.º, nº 1, do Código de Processo Penal, devendo ser notificados nos termos e com a advertência ínsita no n.º 3 do mesmo normativo.

Recolha de perfis de ADN

Nos termos do disposto no artº 8º nº 2 da Lei nº 5/2008, impõe-se determinar a recolha, por parte do LPC-PJ, de amostras de ADN do arguido e respectiva inserção dos perfis resultantes na base de dados de perfis de ADN.

Estatuto coactivo do arguido:

No que concerne às medidas de coacção aplicadas, determina-se que o arguido continue a aguardar o trânsito em julgado do presente acórdão em prisão preventiva, única medida de coacção necessária e suficiente para satisfazer as exigências cautelares que o caso requer.

*

III - DECISÃO:

Nos termos expostos, acordam as Juízas que constituem este Tribunal Colectivo em julgar a acusação procedente e provada e, consequentemente, condenam o arguido AA pela prática em autoria material de:

Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, nºs.1 e 2, al. b) ambos do Código Penal na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

Declaram a indignidade sucessória de AA nos termos e para os efeitos da al. a) do artº 2034º do Código Civil.

Julgam totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Unidade Local de Saúde de Coimbra, E.P.E, e em consequência condenar o demandado a pagar aquele a quantia de 74.106,17€ (setenta e quatro mil cento e seis euros e dezasseis cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Julgam totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Unidade Local de Saúde da Região de Leiria, E.P.E, e em consequência condenar o demandado a pagar aquele a quantia de 105.31€ (cento e cinco euros e trinta e um cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Julgam parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado pelos demandantes BB e CC, e em consequência condenar aquele a pagar-lhes a quantia de 30.000,00 pelo percepção da morte e de 100.000,00€ pelo dano morte acrescidas de juros de mora contados à taxa legal desde a data da notificação do pedido, contando-se os mesmos até ao integral pagamento.

Julgam parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado pelos demandantes BB e CC, e em consequência condenar aquele a pagar a cada um deles a quantia de 35.000,00 (o que perfaz o total de 70.000,00) pelo dano moral próprio de cada um deles acrescidas de juros de mora contados à taxa legal desde a data da notificação do pedido, contando-se os mesmos até ao integral pagamento.

Julgam totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado pelos demandantes BB e CC a titulo de perdas de rendimento no montante mensal de 316.17€ para cada demandante, contados desde o mê de maio de 2024, ate ao mês em que cada um deles perfizer 25 anos, o que até ao momento da dedução do pedido de indemnização civil perfaz a quantia de 5.058,72€.«

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Direito

Cumpre decidir.

Sabemos que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do Cod. Penal), sendo que as exigências de prevenção geral constituem uma finalidade de primordial importância nos casos dos crimes de homicídio.

Com efeito, a vida humana é o bem supremo, o valor fundamental, e inviolável, conforme resulta do art. 24º, nº 1, da Constituição da República.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira “o direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, Vol. I, pág. 446-447).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo esta vista enquanto juízo de censura em face do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

Na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que, no caso, se façam sentir, incluindo-se tanto as exigências de prevenção geral como as exigências de prevenção especial.

As exigências de prevenção geral cingem-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime e que deverão corresponder ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, as exigências de prevenção especial visam a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e dissuadi-lo da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa).

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias, (In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Notícias, pág., 241-244), a propósito do critério da prevenção geral positiva, “A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penal”.

Como se escreve no Ac. STJ de 20/05/2020, in Proc. nº 404/17.0GBMFR.S1, acessível em www.dgsi.pt, a propósito da prevenção especial, citando o Prof. Figueiredo Dias: “Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização”.

Assim, ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objetivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).

Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) “pede-se que imponha um limite às exigências de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências”.

Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto ótimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).

Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites ótimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstrata, correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão atuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).

Ora, os fatores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infração do princípio da proibição da dupla valoração.

A este propósito, refere MARIA JOÃO ANTUNES, «[s]e a medida da pena é a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP), então a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens» (Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44).

Assim, repetimos, o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal manda atender, na determinação concreta da pena, «a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele».

Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.

Continuando a citar Figueiredo Dias, insistimos que a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida. “O sistema sancionatório do Direito Penal Português”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, p. 815).

Porém, tudo isto deve ser harmonizado com as normas constitucionais referidas nos artigos 27.º, n.º 2 e 18.º, n.ºs 2 e 3, que estipulam que a determinação e escolha da pena privativa da liberdade guiam-se pelo princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso e pelos respetivos subprincípios da (i) necessidade ou indispensabilidade, segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos; (ii) adequação, que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins; e (iii) da proporcionalidade em sentido estrito, de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.

Continuando a seguir FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121), realça-se que:

“Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”

Ora, o já citado artº 40º nº 2 do Código Penal estabelece que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, o que pressupõe que, em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa, sendo a culpa condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena.

A função da culpa no sistema punitivo assume-se “numa incondicional proibição de excesso” constituindo o limite inultrapassável: de quaisquer exigências preventivas

(- v. FIGUEIREDO DIAS, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.).

Por outro lado, os Estados que fazem parte da Convenção Europeia dos Direitos Humanos vincularam-se a cumprir com o estabelecido no art. seu 49º n.º 3, no qual se consagra que “as penas não devem ser desproporcionadas em relação à infração”. Quer isto dizer que o Estado, na «confeção» do direito sancionatório, está obrigado a fixar molduras penais abstratas que se contenham numa evidente relação de proporcionalidade com a gravidade (maior ou menor) do crime.

Proporcionalidade que se projeta também na pena judicialmente fixada, não tanto por referência à gravidade do crime, uma vez que a natureza e importância do bem jurídico, e a gravidade da sua violação já foram necessariamente consideradas pelo legislador quando estabeleceu a moldura abstrata da punição, mas principalmente por referência à censurabilidade da conduta concreta do agente, patenteada, designadamente, pelas particularidades que envolveram o crime, o modo de execução deste, os sentimentos revelados, a modalidade e grau de culpa do agente, a maior ou menor reprovação ou, numa formula mais generalizante, pelo desvalor da ação e/ou pelo desvalor do resultado. Parâmetros que, atendendo aos fins da punição evidenciam e justificam a medida adequada da pena que deverá contemplar também a ressocialização do agente, exigindo-se que o tribunal motive o critério adotado de modo a evitar qualquer reparo de arbitrariedade e assim satisfazer o direito do condenado a compreender a justa medida da pena judicialmente fixada.

Por outro lado, no atual Código Penal, ao princípio da vinculação à defesa de bens jurídicos aqui consagrado, subjaz “a ideia de limitar o poder punitivo do Estado, na linha, também, do n.°2 do artigo 12.º da Constituição, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades e garantias se limitarão «ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»”.

A Assembleia da República autorizou – Lei de autorização legislativa n.º 35/94 de 15 de setembro -, o Governo a alterar o Código Penal de 1982 de modo a, além do mais, “introduzir como finalidades da aplicação das penas e medidas de segurança a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, bem como estabelecer, quanto à medida de segurança, a proporcionalidade à gravidade do facto e subordinar a sua aplicação à perigosidade do agente; e, quanto à pena, consagrar o critério de que, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa”.

Na verdade, o legislador, na exposição de motivos do DL n.º 48/95 de 15 de março, plasmou que: «Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental». Assim, introduziu-se como finalidades da aplicação das penas e medidas de segurança a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, bem como estabelecer, quanto à medida de segurança, a proporcionalidade à gravidade do facto e subordinar a sua aplicação à perigosidade do agente; e, quanto à pena, consagrar o critério de que, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa.

Assim, a pena pode ficar aquém da culpa, o que não pode é ultrapassá-la, até porque esta, constitui um «axioma antropológico» da ordem jurídico-constitucional portuguesa. Tem de valer como limite, como barreira à instrumentalização do homem, em nome de fins próprios da sociedade.

Desde logo proíbe, nesta sede, a valoração de quaisquer circunstâncias que façam parte do tipo de crime cometido pelo agente (proibição da dupla valoração). O que não obsta a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento do tipo (cfr. Figueiredo Dias, Direito, Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, pag. 235).

Tudo isto, voltamos a repetir, encontra os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A restrição (ou privação temporária) do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao genericamente designado princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

Concluindo, a projeção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal).

A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2).

Na determinação da medida da pena, nos termos do citado artigo 71.º, de enumeração não taxativa, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado “tipo complexivo total” (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele.

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto – nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo (cfr. Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357).

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Dito isto, e regressando ao caso concreto, começamos por realçar que, como refere Souto de Moura “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”, (in A Jurisprudência do S.T.J. Sobre Fundamentação e Critério da Escolha e Medida da Pena, pág.. 6.).

Na verdade, quanto à medida da pena, a intervenção corretiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida e espécie da pena concretamente aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação feito pelo Tribunal “ a quo”, revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada, sendo que se tal não ocorrer, as penas fixadas na 1ª instância deverão ficar inalteradas.

Assim, a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.

Por isso, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, 1.ª parte, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei, tratando-se essencialmente de um direito a não ser privado da vida, um direito a não ser morto.

São, pois, evidentes e prementes as exigências de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de crimes já que põem em causa valores nucleares da sociedade.

Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal – definindo a necessidade desta proteção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio – a vida humana inviolável.

***

No caso concreto, vimos que o arguido apresentou contestação, alegando em síntese que no essencial confessa os factos, mas que, no entanto, os mesmos não são inteiramente corretos e apresenta a sua versão.

Olhando para os factos dados como provados, na parte que aqui nos interessa, constatamos que foi no início do mês de maio de 2024, que AA falou com a esposa, DD, sobre um rumor que ouvira no café, de acordo com o qual um homem da aldeia iria comprar uma casa para ali ir viver com uma mulher casada.

Um pouco depois, em meados do mês de maio de 2024, DD transmitiu a AA que pretendia separar-se do mesmo.

Perante tal manifestação de vontade, houve uma conversa com os filhos, tendo-lhes sido comunicada tal intenção, dizendo então o arguido AA aos filhos que não era capaz de viver sem a mãe destes e, em dia não apurado, enviou uma mensagem a dizer “Sejam felizes”.

Pouco depois, no dia 25 de maio de 2024, cerca das 16h30m, AA e DD encontravam-se num anexo da residência, local onde aquele tinha diversas ferramentas, nomeadamente uma maceta de ferro, com o cabo em madeira, com a qual desferiu várias pancadas na cabeça de DD, em número não determinado, mas não inferior a doze.

Ao constatar que DD estava morta, AA telefonou, através do n.º .......12, para o 112, solicitando a comparência da Polícia, alegando que tinha matado a mulher.

Após, munido de uma faca, infligiu a si próprio dois cortes, um deles no tórax do lado esquerdo e um no pescoço.

Em consequência de tais golpes, o arguido deixou de conseguir verbalizar, expressando-se apenas por gestos, uma vez que apresentava ferida aberta cervical, com abertura da faringe e exposição da laringe ao nível da membrana tirohiodeia com secção da epiglote.

O arguido permaneceu prostrado no chão, em decúbito ventral até à chegada das autoridades policiais.

Do relatório social do arguido, referenciado na decisão recorrida, consta o seguinte:

À data dos factos que deram origem ao presente processo, AA e DD mantinham uma união conjugal há 24 anos, (desde dezembro de 1998).

Da relação conjugal nasceram os dois filhos do casal, BB e CC, estes atualmente com 20 e 24 anos de idade, integravam o agregado familiar dos progenitores, pese embora se encontrassem ausentes da residência semanalmente, por consequência da sua condição de estudantes do ensino superior, regressando a casa aos fins de semana.

A família beneficiou sempre de casa própria; inicialmente viveram num apartamento em Fátima, doado pelos pais do arguido.

O arguido AA referiu que nos dois anos que precederam aos factos dos autos, DD passou a demonstrar uma atitude de indiferença e distanciamento nas sua vivencia conjugal e adotou frequentes rotinas de lazer.

A partir do momento em que a vítima disse ao arguido que pretendia o divórcio, o arguido passou a sentir-se desolado, e em diferentes momentos, terá transmitido à família intenção de se suicidar. BB aconselhou então o pai a procurar ajuda psicológica, o que segundo esta, foi recusado.

Ainda segundo a filha do casal, ao longo dos anos, a relação entre os pais foi funcional, mas num passado mais recente, passou a ser notório o distanciamento cada vez mais vincado na convivência familiar, e também social, situação que emocionalmente afetava ambos os progenitores.

O pai não era uma pessoa de demonstração de afetos, mas foi sempre um pai preocupado e presente na vida dos filhos. Segundo BB e outras fontes contactadas, familiares e conhecidos, o casal tinha caraterísticas de personalidade amplamente distintas. O arguido era uma pessoa reservada à vida privada e sem ligação ao convívio social, enquanto DD era uma pessoa mais extrovertida aberta a convívios e associativismo. Na comunidade era um casal de boas referências, não se observando comportamentos que merecessem ser assinalados ou que suscitassem o desfecho dos autos.

No estabelecimento prisional, a mãe é a única pessoa que visita e apoia quer afetiva, quer economicamente, o arguido, assumindo o pagamento das responsabilidades financeiras do filho.

No Estabelecimento Prisional apresenta um comportamento ajustado às normas institucionais.

Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

***

Na motivação de facto, a decisão recorrida refere que o arguido efetuou um relato parcial sobre a materialidade dos factos, assumiu a prática das pancadas na cabeça da DD, dizendo aos filhos que “a minha vida não faz sentido sem ela”; mandando uma mensagem a dizer “sejam felizes” aos filhos.

BB, disse que o pai dizia que não conseguia viver sem a mãe; nunca se apercebeu de comportamentos violentos entre os pais, nem ofensas físicas.

O seu pai ajudava nas tarefas domésticas e era trabalhador; não era de sair de casa.

Lê-se ainda na mesma motivação que o arguido referiu que apesar de o casal estar em situação de divorcio continuaram a viver na mesma casa e a manter uma relação cordial, e até no dia da prática dos factos o arguido preparou o almoço para a DD; veio a casa almoçar, voltou a sair e regressou a casa, já sabendo que o arguido tinha o compromisso de ir buscar a filha a Fátima, pois vinha do Porto, passar o fim de semana a casa.

Na bancada do anexo da casa, encontravam-se as chaves do carro, os óculos de sol e a carteira da DD, o que leva o Tribunal a concluir que esta terá ido ter com o marido ao anexo e aí foi por ele agredida mortalmente, desconhecendo-se o que provocou nesse momento, a agressão.

No serviço de medicina intensiva do CHU de Coimbra no dia 29.5.2024, segundo o inspetor da PJ referenciado nos autos, o arguido ainda não conseguia produzir qualquer som, nem verbalizar palavras, e pediu uma caneta e papel para escrever e de livre e espontânea vontade escreveu as duas folhas que se mostram juntas aos autos a fls. 212 e 213, onde assume a autoria dos factos e refere “maceta que tinha a mão e dei-lhe com ela várias vezes na cabeça”.

Entretanto, sabemos que logo após a agressão, o arguido telefonou para o 112 e segundo a sua versão terá telefonado à mãe para lhe pedir que fosse buscar a filha ( o que a filha corroborou, dizendo que foi avó que a foi buscar a Fátima) e de seguida, se auto infligiu.

*

Na sentença recorrida, constam os pontos que a mesma indica a desfavor do arguido:

«- o grau de culpa manifestado pela conduta do arguido é elevado;

- são elevadas as exigências de prevenção geral (face ao alarme social provocado);

- são elevadas as exigências de prevenção especial, não obstante a inexistência de antecedentes criminais do arguido, atento o contexto concreto em que ocorreram os factos;

- a ilicitude da conduta do arguido é elevada,

- a intensidade da conduta criminosa do arguido;

- a gravidade do bem jurídico violado;

- o dolo foi directo e intenso;

- as consequências da conduta do arguido foram de gravidade máxima;

- a falta de arrependimento e de juízo de censurado arguido;

- a versão totalmente irrealista que apresentou;

A favor do arguido, apenas a primodelinquência.»

***

Como dissemos, o arguido apenas pretende questionar o quantum da pena.

Começamos por realçar que o arguido e a vítima estavam casados há vários anos, que tinham personalidades diferentes, um mais reservado (arguido) e a vítima mais extrovertida, mas que nos últimos dois anos se havia acentuado o distanciamento entre ambos.

Contudo, a comunidade onde se inseriam nada lhes tinha a apontar, nem os próprios filhos presenciaram qualquer comportamento violento por parte do arguido para com a vítima.

A própria filha, disse que o pai era uma pessoa presente a nível familiar.

Mesmo depois da vítima ter dito ao arguido que pretendia divorciar-se dele, este não teve qualquer comportamento agressivo para com a mesma, apenas disse que não conseguia viver sem ela, tendo sido aconselhado pela filha a procurar ajuda num psicólogo, o que este recusou.

Ora, no próprio dia do trágico homicídio, vimos que ambos continuaram a viver na mesma casa, sozinhos, pois os filhos só os visitavam de vez em quando, aos fins de semana, e, como se diz na fundamentação da decisão recorrida, nesse dia o arguido terá preparado o almoço, vindo a vitima almoçar a casa, e voltou a sair.

Quando regressou à tarde, procurou-o, indo ao anexo, e foi aí que os factos descritos nos autos ocorreram.

Sabemos que nessa tarde o arguido tinha ficado de ir esperar a filha à saída do autocarro a Fátima, o que acabou por não acontecer, tendo aquele telefonado à sua mãe para ir buscar a neta.

O arguido ao ver a esposa morta, telefonou à polícia e confessou que a tinha acabado de matar, permanecendo no mesmo local e, munido de uma faca, infligiu a si próprio dois cortes, um deles no tórax do lado esquerdo e um no pescoço.

Assim, o facto de o arguido ter logo pedido ajuda, confessando que matou a esposa e tentado o suicídio de forma credível, atenta a gravidade dos golpes e, tendo em conta todo o demais circunstancialismo, este comportamento não pode deixar de ser visto como um sinal de arrependimento (por vezes a verbalização de arrependimento, desacompanhado de factos demonstrativos disso mesmo, pode ser uma mera teatralização), factos estes que o tribunal recorrido não valorizou como tal ( cfr. Ac. STJ de Ac. STJ de 26 de Junho de 2019, Proc. n.º 763/17.4JALRA.C1.S1,in www.dgsi.pt, onde se diz: «… a tentativa de suicídio empreendida pelo arguido não foi interpretada pelo tribunal colectivo como expressão de «arrependimento relevante».

No entanto, perante o contexto em que essa tentativa de suicídio ocorreu, afigura-se-nos que lhe deve ser atribuído algum relevo em sede de arrependimento ou, como se entendeu no acórdão deste Supremo Tribunal de 02-04-2008 (proc. n.º 07P4730), como «um índice de uma certa interiorização da culpa pelo sucedido»).

Aliado a tudo isto, vimos que na comunidade local, arguido e vítima, eram um casal de boas referências, não se observando comportamentos que merecessem ser assinalados ou que suscitassem o desfecho dos autos.

O casamento, repetimos, nunca foi pautado por qualquer tipo de violência, embora tivesse “perdido o interesse de parte a parte”, nem haveria qualquer intimidade entre o casal.

Ora, pelos relatórios médicos juntos aos autos, constata-se que se não tivesse sido prontamente socorrido e estabilizado, o arguido poderia ter vindo a falecer por choque hipovolémico, pelo que esteve em perigo concreto para a vida devido a essas lesões.

Por isso, associado aos telefonemas que fez, pode e deve ser interpretado como manifestação de um juízo crítico e negativo, de demonstração de consciência crítica relativamente ao desvalor da sua conduta.

Foram realçados hábitos de trabalho do arguido, mesmo em tarefas domesticas, e continua a beneficiar do apoio da mãe que o visita no estabelecimento prisional e apoia financeiramente.

De igual modo, no seu meio comunitário, os habitantes, não obstante o choque, consternação e incompreensão pela situação, continuam a deter uma imagem positiva do arguido, não sendo expectáveis quaisquer reações negativas ao seu regresso ao meio livre.

O arguido mantém um comportamento adequado no seio prisional.

Do seu CRC não constam quaisquer condenações.

Ponderando todas estas circunstâncias, e num juízo de proporcionalidade decorrente do sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto às penas concretas aplicadas por crimes de homicídio qualificados, em situações com alguma similitude com a aqui presente (Cfr. Acs. do STJ de 10-10-2018 Proc. n.º 144/09.3JABRG.G1.S1, 12-12-2018, Proc. n.º 3202/17.7T8GMG.G1.S1, 15-01-2019 Proc. n.º 4123/16.6JAPRT.G1.S1, 20-02-2019 Proc. n.º 1104/17.6JAPRT.P1.S1, de 4-11-2015, Proc. 122/14.0GABNV.E1.S1, de 9-10-2019, proc. n.º 24/17.9JAPTM.E1.S1, de 15/02/23, Proc. 1964/21.6JAPRT.P1.S1, Proc. n.º 138/22.3PLLRS.L1.S1 de 25/06/2025, Proc. n.º 212/24.1SFLSB.L1.S1de 25/06/2025, Proc. n.º 1140/22.0PFSXL.L1.S1 de 28/05/2025, Proc. n.º 3289/22.0JAPRT.G1.S1 de 28/05/2025), diremos que:

À luz dos critérios que se enunciaram, reafirma-se que as exigências de prevenção geral assumem aqui uma especial intensidade e deve ter-se em devida atenção a intensidade da culpa do arguido manifestada na execução do crime, revelando uma personalidade particularmente desvaliosa na execução do crime de homicídio.

Contudo, ponderando todas as circunstâncias do caso e tendo em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes, justifica-se uma correção quanto à pena aplicada ao arguido, reduzindo-se a pena de 22 anos de prisão em que foi condenado, para a pena de 20 anos de prisão que entendemos adequada, justa e proporcional, ao mesmo tempo suficiente para satisfazer as exigências de prevenção, respeitando a medida da culpa.

***

Finalmente, quanto ao princípio in dúbio pro reo invocado pelo recorrente, sendo esta alegação referente a matéria de facto podemos dizer, quando analisado o princípio nesta perspetiva, isto é, a de saber se a valoração da prova foi ou não de acordo com este princípio, tal não se integra no âmbito da competência deste STJ.

Porém, se virmos a questão como sendo uma alegação em matéria de direito, então já somos competentes (nesta perspetiva de se integrar na questão-de-direito, já Figueiredo Dias, em 1974, no seu DPP; assim o dizia, na edição de 1974, p. 217-218 (§ 6, ponto 4).

Ou seja, o STJ tem analisado da eventual violação do princípio apenas através do texto da decisão recorrida e dando-lhe o mesmo regime dos vícios do 410/2.

Concluindo, quanto à alegada violação do princípio in dubio pro reo, enquanto questão-de-direito, pode este STJ conhecer e verificar, somente através do texto da decisão recorrida, se ocorre ou não a sua violação. Ora, da decisão recorrida não se vislumbra qualquer dúvida quanto aos factos praticados, modo de os praticar e autoria, pelo que, conhecendo oficiosamente, se entende não ocorrer tal violação.

Improcede, pois, este ponto do recurso.

***

Decisão

Face ao exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, condenando-se o mesmo na pena de 20 (vinte) anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), do Código Penal.

Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, do CPP)

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de novembro de 2025

Pedro Donas Botto (Relator)

Ernesto Nascimento ( 1.º adjunto)

Adelina Barradas de Oliveira (2.ª adjunta)