I. Não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância (artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP), pena que tanto é a parcelar, cominada para cada um dos crimes, como a pena única/conjunta, aferindo-se a irrecorribilidade separadamente, por referência a cada uma destas situações, conforme o disposto no artigo 432.º, n.º1, b), do CPP;
II.Por outro lado, estando em causa penas – parcelares ou resultantes de cúmulo jurídico – principais ou/e acessórias superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão, está vedado o recurso para o STJ de acórdão da Relação que haja confirmado – dupla conforme - a decisão da 1.ª instância. Nestes casos apenas é admissível recurso para o STJ de decisão confirmatória da Relação – casos de “dupla conforme”, incluindo a confirmação in mellius –, quando a pena aplicada, seja parcelar ou pena única resultante de cúmulo jurídico, for superior a oito anos de prisão;
III.Considera-se que há confirmação da Relação «quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado. É a chamada condenação in mellius» (acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 10 de julho de 2013, processo 52/06.0JASTB.L1.S2, relatado pelo conselheiro Maia Costa, www.dgsi.pt), com aval de constitucionalidade, designadamente, no acórdão 125/2010, do TC» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de setembro de 2018, processo 422/14.JAPRT.G2.S1, relatado pelo conselheiro Manuel Braz, www.dgsi.pt);
IV. Acresce que a irrecorribilidade para o STJ de acórdão proferido em recurso pelo tribunal da Relação, nos termos supra referidos, abrange todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, respetivas nulidades (artigos 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP) e aspectos relacionados com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões atinentes à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e com a determinação das penas parcelares ou única, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo, nesta determinação, a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como, questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito (cfr. a jurisprudência citada no acórdão de 12.01.2022, Proc. 9/14.5T9LOU.P1.S1);
V. Pelas mesmas razões, não é admissível o recurso relativo às penas acessórias que foram aplicadas pelo tribunal de 1.ª Instância e inteiramente confirmadas pelo Tribunal da Relação. A pena acessória, que depende da pena principal e cuja aplicação está condicionada por uma pluralidade de fatores, não integra, enquanto tal, os critérios legais da recorribilidade dos acórdãos da Relação, proferidos em recurso.
Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório.
1. Por acórdão de 20.09.2024, do Juízo Central Criminal do Porto (Juiz 4), o arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso efetivo e real, de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (praticados entre Fevereiro de 2017 e final de 2019), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 30.º, nºs 1 e 3, 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b), 69.º-B, nº2, e 69.º-C, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal nos seguintes termos :
- nas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- nas penas acessórias parcelares de proibição do exercício de funções pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2 do artigo 69.º-B, do Código Penal;
- nas penas acessórias parcelares de proibição de confiança de menores pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2 do artigo 69.º-C, do Código Penal; e
nas penas acessórias parcelares de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº3 do artigo 69.º-C, do Código Penal;
E, condenado, ainda, em autoria material e em concurso efetivo e real, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada (praticado entre Junho e meados de Novembro de 2020), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 172.º, nº1, al. b), 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b), 69.º-B, nº2, e 69.º-C, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal:
- na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- na pena acessória de proibição do exercício de funções pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2, do artigo 69.º-B, do Código Penal;
- na pena acessória de proibição de confiança de menores pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2 do artigo 69.º-C, do Código Penal; e
- na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº3 do artigo 69.º-C do Código Penal;
Em cúmulo jurídico, ao abrigo dos artigos 30.º, nºs 1 e 3, e 77.º, nºs 1 a 4, do Código Penal, foi o arguido condenado:
- na pena (principal) única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- na pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-B, nº2, do Código Penal;
- na pena acessória única de proibição de confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, nºs 2 e 4, do Código Penal; e
- na pena acessória única de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, nº3, do Código Penal.
- Mais foi condenado a pagar à demandante civil BB, a título de indemnização, pelos danos não patrimoniais que a esta causou, a quantia total de 25.000 € (vinte e cinco mil euros).
2. Não se conformando com essa decisão, o arguido dela interpôs recurso de facto e de direito, para o Tribunal da Relação do Porto, afirmando, em síntese:
a) Erro na apreciação da prova, entendendo não ser possível apurar o número de vezes exactas nem, tão pouco, as circunstâncias de tempo, modo e lugar do cometimento dos crimes;
b) Nulidade do acórdão por falta de fundamentação;
c) Errada subsunção jurídica por não ter o acórdão recorrido considerado a verificação de uma única resolução criminosa e pela prática de um único crime de trato sucessivo;
d) Serem desproporcionais e excessivas as penas parcelares e única aplicadas;
e) Inconstitucionalidade dos artigos 69.º B e 69.ºC, do C. Penal, ao fixarem um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores.
3. Por acórdão de 26.03.2025, o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, na íntegra.
4. Discordando do acórdão do Tribunal da Relação do Porto dele recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, retirando da motivação do seu recurso as seguintes conclusões (transcrição):
«A. Da prova produzida e constante dos autos não se vislumbra como foi possível ao tribunal concluir que o arguido praticou 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (praticados entre Fevereiro de 2017 e final de 2019) e 1 crime de abuso sexual de menor dependente agravado.
B. O raciocínio desenvolvido pelo Tribunal a quo, não está assente em prova constante dos autos ou produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pois não existem factos que lhe permitam percorrer este raciocínio lógico.
C. Na verdade, o Tribunal pega em factos conhecidos (as declarações da ofendida) e opera uma presunção legal, qual seja, a de tentar adivinhar, apontar e dar como provadas as vezes e os dias dos alegados abusos sexuais, que a própria vítima não conseguiu descrever.
D. O tribunal a quo faz um juízo de probabilidade matemática para considerar factos como provados, assente em datas e horas para os quais não existem, elementos de prova, porquanto das declarações da ofendida não se consegue retirar as datas/ número de vezes que o tribunal vem a indicar e dar como provados.
E. No acórdão ora recorrido foram dados como provados os factos 4,5,6,7,8 e 9, no entanto, entende o recorrente que a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada, porquanto os elementos de prova colhidos não permitem dar tais factos como provados, pelo que devem os mesmos ser julgados como não provados.
F. Ora, no que concerne às declarações para memoria futura que constam dos autos sendo prova testemunhal/documental estas impõem decisão diversa à perfilhada no acórdão.
G. Face às declarações da ofendida (única prova no que a este conspecto diz respeito), resulta cristalino que o Tribunal não se baseou em provas concretas para dar como provado o número de vezes que os abusos teriam ocorrido, pois que a própria ofendida não consegue minimamente precisar, apesar de inquirida de forma insistente e de diversas formas para lá chegar.
H. Com efeito, a vítima afirma que “aconteceu várias vezes”, mas que não é capaz de ter ideia ao certo das vezes que aconteceu.
I. Impõe também decisão diversa quanto aos aludidos factos impugnados as declarações prestadas pela mãe da ofendida (que o tribunal reconhece ter prestado um depoimento que evidenciou animosidade em relação ao arguido), refere que a mesma nunca lhe disse o número de vezes em que terão acontecido os abusos, depoimento prestado em audiência – Ata de 28.02.204 – constantes do ficheiro _1749-22.2JAPRT_2024-02-28_15-38-02.mp3).
J. Tal depoimento demonstra que a mãe da vítima também não consegui trazer á liça factos que permitam afirmar quantas vezes é que aconteceram os abusos em crise nos presentes autos, muito menos no número de vezes dada como provado na decisão ora recorrida e de igual modo, impõe decisão diversa quantos aos factos ora impugnados, o depoimento da testemunha CC, amiga da ofendida, prestados em audiência – Ata de 28.02.204 – constantes do ficheiro _ 1749-22.2JAPRT_2023-02-28_15-38.02.mp3.
K. Da conjugação da globalidade da prova testemunhal e analisado o depoimento da vítima, apenas é seguro afirmar que a mesma foi objeto de abusos mais do que uma vez, não sendo possível retirar das suas declarações o número de vezes exata, nem tão pouco as circunstâncias de tempo, modo e lugar do seu cometimento.
L. Enquanto dos depoimentos das supramencionadas testemunhas, que de forma indirecta tiveram conhecimento da situação, e relataram o que a ofendida lhes contou, resultam cristalinas duas conclusões: não se sabe quando ocorreram os alegados abusos, nem quantas vezes.
M. Concatenada a prova testemunhal apontada anteriormente, não há suporte probatório que permita dar como provados os factos que determinaram a condenação do recorrente pelos 13 crimes, uma vez que essa conclusão não deriva de nenhuma prova colhida e/ou produzida em audiência, mas sim de um raciocínio hipotético, que extravasa os limites da livre apreciação da prova. Estão assim erradamente dados como provados os factos 4,5,6,7,8 e 9 do acórdão.
Da qualificação jurídica
N. O recorrente vinha acusado da prática de 1 crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 1, 2 e 177º, n.º 1, al. b) do Código Penal e com a pena acessória p. pelo artigo 69º-C, n.º 2 e 3 do mesmo diploma legal e de um crime de abuso sexual de menor dependente agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 1 e 2 e 172º, n.º 1, al. b) e 177º, n.º 1, al. b) do Código Penal e com a pena acessória p. pelo artigo 69º-C, n.º 2 e 3 do mesmo diploma legal; foi, porém, condenado pela prática de 12 crimes de abuso sexual de criança agravado e 1 crime de abuso sexual de menor dependente agravado.
O. Afastada que está a aplicação da figura do crime continuado nos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, (n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal), importa ponderar se o recorrente praticou 1 crime de abuso sexual de criança agravado tal como constava da acusação e da pronúncia, ou os 12 crimes referidos no acórdão.
P. Diz-nos o Código Penal, no artigo 30.º n.º 1 que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efetivamente cometido (o chamado concurso heterogéneo) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo). Assim, a regra é, no concurso homogéneo, que o arguido comete tantos crimes quantas as vezes que o pratica.
Q. No entanto, é possível que a prática de diversas vezes o mesmo crime pode constituir um só crime, se ao longo de todo o tempo da realização, persistir o mesmo dolo e a mesma resolução inicial.
R. Nos crimes sexuais sobre menores que se prolongam no tempo torna-se muitas vezes (ou quase sempre) impossível determinar com exatidão o número de vezes que os mesmos ocorreram.
S. A jurisprudência e a doutrina referem-se nestes casos, ao crime de trato sucessivo ou crime prolongado no tempo, em que se entende que só existe um crime, apesar da atuação do arguido se desdobrar em várias condutas, que isoladamente constituem cada uma delas um crime.
T. Falamos de situações em apesar de se verificar uma multiplicidade de condutas por parte do arguido e da sua reiteração ao longo do tempo, como é o caso dos autos, o certo é que o seu cometimento obedeceu a um desígnio comum (resolução criminosa única), inserindo-se cada um dos actos singulares na sua conduta globalmente considerada.
U. Estamos assim perante um “crime, de trato sucessivo, o qual se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime (in casu, o crime previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 2 do código Penal).
V. Descendo ao caso em apreço, desde logo existe uma unidade resolutiva na conduta do recorrente, patente no facto n.º 4 dado como provado, onde se afirma que “O arguido, aproveitando-se do facto de a ofendida BB se encontrar sozinha e a dormir ou a dormitar no sofá da sala, da relação de confiança que com ela mantinha, por força da coabitação e do ascendente que tinha enquanto companheiro da sua mãe, sendo por ela tido como sua figura paternal, decidiu actuar sobre a mesma com o propósito de satisfazer os seus ímpetos libidinosos”.
W. Existe claramente uma conexão temporal entre os factos, tal como referida no acórdão.
X. Quanto à homogeneidade na conduta, ela é total, uma vez que além de ser sempre a mesma vítima, o local, a forma de atuar e o momento eram sempre os mesmos: veja-se factos provados 6, 7, 8 e 9 (no facto 6 descreve-se a forma como praticava o crime e nos restantes remete-se para esse facto).
Y. Pelo que devia o recorrente ter sido condenado pela prática de 1 crime de abuso sexual de menores agravado, ao invés dos 12, uma vez que nos crimes de trato sucessivo é aplicada a moldura penal mais severa.
Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação
Z. Na sequência do que vem sendo exposto, é forçoso concluir que o acórdão enferma do vicio de falta de fundamentação, o que, nos termos do artigo 120.º n.º 1 alínea xxx importa a sua nulidade.
AA. No caso, o recorrente, em face da motivação da matéria de facto não pode deixar de apontar a omissão do exame crítico da prova, na medida em que o tribunal a quo decide com base em presunções, ou seja, presume que aconteceram determinados crimes, com base na presunção temporal da ocorrência dos mesmos, como é sabido e consabido o nosso ordenamento penal e processual penal não permite operar presunções a partir de presunções.
BB. A fundamentação apresentada para justificar o número de crimes imputados ao recorrente, é, no mínimo, obscura e imprecisa, constituindo uma tarefa impossível seguir o raciocínio que o tribunal efetuou, que não seja a de uma mera operação matemática de “comportamentos médios”, sem qualquer base de sustentação.
Da medida da pena
Das penas principais
CC. O tribunal condenou o recorrente pela prática do crime de abuso sexual de menores agravado na pena de 4 anos e 6 meses e ainda pela prática do crime de abuso sexual de menor dependente na pena de 2 anos. Ora, o crime de abuso sexual de menores, na sua forma agravada tem uma moldura penal que vai de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.
DD. O limite superior da pena deverá ser o da culpa do agente e o limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.
EE. A pena justifica-se, portanto, dentro do limite imposto pela culpa do agente, considerando as necessidades de reinserção social reveladas por este, mas também, no que respeita às exigências de prevenção geral positiva, auscultando as expectativas comunitárias de reacção a certo crime.
FF. Descendo aos autos: No que concerne ao grau de ilicitude dos factos, apresenta-se como de grau médio, no caso do crime de abuso sexual de criança, uma vez que a sua gravidade já se mostra contemplada, pela respetiva agravação e, tendo em conta esta, trata-se de atos que não vão além daquilo que é o normal neste tipo de ilícitos.
GG. Em relação às necessidades de prevenção especial, temos de atender ao facto recorrente contar com 42 anos de idade, sem quaisquer antecedentes criminais, se encontrar social e laboralmente inserido, tal como consta do seu relatório social e dos factos dados como provados n.º 16, 17 e 33.
HH. Por outro lado, há já mais de um ano que o recorrente não tem qualquer contacto com a ofendida, nem com ninguém ligada a esta. O recorrente refez a sua vida, tem uma companheira com quem reside.
II. As necessidades de prevenção especial situam-se assim, claramente num patamar moderado/baixo. (o próprio acórdão considera que são moderadas).
JJ. Por tudo isto, e tendo também em conta as decisões que outros tribunais vêm tomando, entende-se como justa, adequada e proporcional à culpa do corrente, a pena de 4 anos e 10 meses e quanto à forma de cumprimento desta pena, tendo em conta o acima exposto, em especial o facto de não existir qualquer contacto com a ofendida e tendo em conta a ausência de antecedentes e a inserção social e laboral, deverá a mesma ser suspensa por igual período com regime de prova.
Penas acessórias
KK. Da inconstitucionalidade das normas dos artigos 69.º B e 69.ºC, relativamente ao estipular um limite minino de 5 anos.
LL. No dia 25 de setembro de 2024 foi proferido pelo Tribunal Constitucional o Acórdão 642/2024, onde se declara “julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 69.º B do Código Penal, na redação conferida pela Lei 103/2015, de 24 de agosto, na parte que fixa um período mínimo de 5 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades publicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime de importunação sexual previsto no artigo 170.º do Código Penal, quando a vitima é menor”.
MM. Em causa estava a condenação pelo crime previsto no artigo 170.º do CP, mas os argumentos aduzidos por esse Douto Tribunal têm total aplicação no caso dos crimes aqui em apreço.
NN. A origem dos artigos 69B e 69C é o revogado artigo 179º do CP, bem como o artigo 10º da Diretiva 2011/93/EU do Parlamento europeu e do conselho de 13/12/2011 e ainda a Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, assinada em Lanzarote, em 25 de outubro de 2007.
OO. Nenhum dos referidos instrumentos normativos internacionais impõe a fixação de limites – mínimos e máximos – no tocante à previsão das penas acessórias enquanto modalidades de medidas tendentes a reforçar a proteção das crianças de práticas abusivas contra a sua integridade, liberdade e autodeterminação sexual.
PP. Ou seja, a introdução dos limites da pena acessória do artigo 69.º-B do Código Penal é da inteira e exclusiva responsabilidade do legislador nacional.
QQ. O artigo 179º previa a aplicação, a quem fosse condenado por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser a) inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela, ou b) proibido de exercer profissão, função ou atividade que implique ter menores sob a sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância, por um período de dois a quinze anos.
RR. Ora, como bem se refere no acórdão do TC, “uma correta economia de previsão de penas acessórias deve, por força, enquadrar-se numa sistemática coerente do sistema penal. Assim, uma pena acessória não deve ser desproporcionada ao facto e à culpa demonstrados no processo, mas deve, igualmente, ser concordante com a pena principal aplicada ou aplicável. Os limites de umas e de outras devem compreender-se entre pontos de distanciamento coerentes e concordantes. Portanto, a sua previsão legal – em termos de moldura penal abstrata – deve permitir ao decisor, aplicar uma pena acessória não desproporcional relativamente à pena principal aplicada, sob pena de a injustificada impossibilidade de aplicação de uma pena acessória proporcional e adequada ao caso concreto, colocar em causa o princípio constitucional da proporcionalidade”.
SS. Já há algum tempo que, além da jurisprudência, também a doutrina vinha criticando este aspecto.
TT. Basta uma simples comparação entre os limites mínimos das penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B, n.º 2 e 69.º-C do Código Penal e os limites mínimos das penas previstas nos artigos 163.º a 176.º-A, para constatar que existe uma disparidade e incoerências enormes.
UU. Em relação ao crime de abuso sexual de menor dependente, pº e pº pelo artigo 172.º, mesmo na sua forma agravada, o limite mínimo da pena é de 1 ano e 4 meses; já no caso do abuso sexual de crianças agravado, o seu limite mínimo é de 4 anos.
VV. Sabemos que a fixação de um limite mínimo de cinco anos – previsto para as penas acessórias previstas no artigo 69.º-B, n.º 2 Código Penal – cabe na liberdade de decisão do legislador, pois, o artigo 18.º n.º 2, da CRP, não impõe uma correspondência exata entre a moldura penal abstrata e os limites mínimos e máximos das penas acessórias.
WW. Mas parece-nos logico que o legislador ao estipular a moldura abstracta da sanção acessória, deve fazê-lo dentro de um quadro de coerência, mesmo não existindo obrigação de correspondência entre penas principais e acessórias.
XX. Se assim não for, ficam completamente desvirtuadas as finalidades de punição e as próprias exigências de proteção dos bens jurídicos, para além da ressocialização do agente (art. 40.º do Código Penal).
YY. O exagero desproporcionado de impor um limite mínimo de 5 anos nas sanções acessórias dos artigos em causa, “tão dissemelhante dos limites mínimos das penas principais abstratamente previstas para os crimes a que se aplicam – os crimes previstos nos artigos 163.º a 176.º-A do Cód. Penal –, e mesmo idênticas ou superiores aos limites máximos de algumas penas aos mesmos aplicáveis, não nos parece justificada, não só por estipular uma duração excessivamente prolongada da pena, como pela incoerência sistémica que implica e pelos efeitos contraproducentes em termos de prevenção especial e reintegração social do agente”.
ZZ. Além de eventualmente violarem o princípio constitucional da proporcionalidade, estas normas podem ainda configurar uma violação do direito ao exercício de profissão (previsto no artigo 47.º da Constituição) e ao direito de constituir família (artigo 36.º da Constituição, que abrange outras relações familiares para além da filiação, como a adoção, o acolhimento familiar e o apadrinhamento civil).
AAA. Veja-se que no caso dos autos, o arguido tem uma filha de 6 anos e foi-lhe aplicada uma sanção acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais durante 8 anos!!!!
BBB. Na prática priva-se uma criança do convívio com o seu pai durante toda a sua infância, com as consequências nefastas que tal facto terá na formação e constituição da sua personalidade.
CCC. Assim, a adequação, necessidade e proporcionalidade das penas acessórias em causa – que restringem a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º da Constituição) e o direito a constituir família (artigo 36.º da Constituição) – depende da demonstração de que os eventuais efeitos de tutela do interesse público perseguidos se ligam aos crimes cuja prática determina a aplicação das penas acessórias em causa. Ou dito de outro modo: ainda que certo comportamento seja digno de tutela criminal, vedado é ao legislador prever a sua punição para casos em que a pena não surja como consequência jurídica necessária e proporcional.
DDD. Ora, ao estabelecer um limite mínimo tão elevado (5 anos) para um conjunto alargado de comportamentos – nem todos indiciando a necessidade de punição por tal período –, o legislador violou a obrigação que se lhe impunha de proceder a uma avaliação diferenciada, estabelecendo a sua aplicação por um mínimo de 5 anos para casos em que a necessidade dessa pena pode não existir.
EEE. Ainda que a Constituição não imponha uma igualdade entre os limites penais das penas acessórias e das penas principais (cfr. Acórdão n.º 289/1995), há uma «flagrante desproporcionalidade e excesso na reação sancionatória», uma vez que «considerando os limites mínimos das mesmas – 5 anos –, colide com os princípios da proporcionalidade e da culpa» (MOURAZ LOPES e TIAGO MILHEIRO, Crimes Sexuais…, cit., p. 344).
FFF. Esta manifesta desproporcionalidade demonstra-se também por comparação com outras penas acessórias previstas no CP: a proibição de exercício de funções públicas é fixada entre 2 e 5 anos (artigo 66.º); a proibição de conduzir veículos a motor é fixada entre 3 meses e 3 anos (artigo 69.º); a proibição de contacto com a vítima de violência doméstica é determinada entre 6 meses e 5 anos (artigo 152.º); a proibição de contacto com a vítima de perseguição é determinada entre 6 meses e 3 anos (artigo 154.º-A); a pena acessória de inelegibilidade é fixada entre 2 anos e 10 anos (artigo 346.º); a privação do direito a deter animais de companhia não tem limite mínimo e tem um limite máximo de 3 anos (artigo 388.º-A).
GGG. Resulta fácil concluir que o limite mínimo de 5 anos das normas constitui reação sancionatória manifestamente excessiva, pois pode situar-se muito acima do limite da culpa e sem proporção à gravidade da infração.
HHH. Resta concluir, pois, que as normas fiscalizadas, ao estatuírem um período mínimo de 5 anos para as penas acessórias, são violadoras do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, na restrição que operam à liberdade de escolha da profissão (artigo 47.º da Constituição) e ao direito a constituir família (artigo 36.º da Constituição)».
III. Assim, vem o recorrente expressamente invocar a inconstitucionalidade das normas que lhe foram aplicadas a título de sanção acessória – artigos 69.º-B n.º 2 e 69.º-C n.º 2 e 3, na parte em que estabelecem um limite mínimo da sanção em 5 anos, por violação do princípio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, na restrição que operam à liberdade de escolha da profissão (artigo 47.º da Constituição) e ao direito a constituir família (artigo 36.º da Constituição).
Sem prescindir,
JJJ. Por mero dever de patrocínio, e na hipótese académica dos argumentos acima deduzidos não terem procedência e ser mantida a condenação nos termos exarados no acórdão objecto de recurso, as penas aplicadas são manifestamente exageradas.
KKK. Dando por reproduzido tudo o que acima se disse sobre os critérios de fixação das penas unitárias, entende-se que relativamente ao crime de abuso sexual de menor agravado, deveria ser aplicada uma pena mais próxima do mínimo resultante da agravação, ou seja, dos 4 anos.
LLL. Destarte, a discordância do arguido é maior relativamente à pena única aplicada:
8 anos e 6 meses de prisão.
MMM.A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77.º, n.º 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.
NNN. Exige-se uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
OOO. Confessa o recorrente não ser capaz de descortinar o significado da expressão contida no Acórdão condenatório de “por referência a cerca de 1/5 de todas as penas situadas abaixo do limite mínimo (coincidente com a pena parcelar mais elevada) da moldura da pena única a aplicar” pois realizadas todas as operações matemáticas possíveis, não chega nunca o resultado a que o Tribunal chegou.
PPP. De todas as formas, atendendo especialmente ao facto de terem decorrido mais de 4 anos sobre a prática do crime, ao facto de o recorrente nunca mais ter tido qualquer contacto com a ofendida; ao facto de o recorrente não possuir quaisquer antecedentes penais e ainda estar inserido profissional e pessoalmente, a pena justa adequada e necessária deverá ser de 5 anos.
Princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas:
artigo 171.º, n.º 1 e 2, 177º, n.º 1, al. b) do Código Penal;
*Artigo 69.º B e 69.º C do Código Penal;
*Artigo 30.º, n.º 1 e 3 do Código Penal;
*Artigo 120.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal;
* Artigos 40.º, 43.º, 50.º, 52.º, 53.º, 54.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º e 77.ºdo Código Penal;
* Artigo 18.º, 36.º e 47.º da Constituição da República Portuguesa;
*Artigo 374.º do Código de Processo Penal;
* Artigo 410.º n.º 1 e 2 alínea c) do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. Doutamente melhor suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser alterada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas, tudo com as legais consequências.
O recorrente mais requer, nos termos do disposto no número 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, a realização de audiência no Tribunal Superior, com vista a debater a matéria de facto que infra se impugna.
Decidindo deste modo, farão V. Exas., aliás como sempre um ato de INTEIRA E SÃ JUSTIÇA».
5. O recurso foi admitido.
6. Respondeu ao recurso a Exma. Srª Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação do Porto defendendo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, afirmando, em síntese:
«(…) Entendemos que não assiste qualquer razão ao recorrente.
Mais entendemos, na esteirado decidido pelo Acórdão do STJ de 29/0272024, proferido no processo n.º 864/20.1JABRG.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt que nem caberá conhecer da grande maioria das questões colocadas pelo recorrente, uma vez que nos achamos ante uma situação de dupla conforme.
Com efeito, e tal como decidido no acórdão atrás referido:
“II- No caso, não estando em causa nem uma situação de recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância (alínea a) n.º1 do art.432.º do CPP ), nem uma situação de recurso direto, per saltum, de decisão proferida por tribunal do júri ou do coletivo de 1.ª instância (alínea c) n.º1 do art.432.º do CPP, mas uma situação de recurso de acórdão da Relação, que conheceu de recurso interposto de acórdão proferido em 1.ª instância e havendo uma situação de dupla conforme relativamente às penas parcelares atribuídas ao arguido (uma de 5 anos e as restantes inferiores a esse limite) assim como no que toca à pena única cumulatória fixada a final ao recorrente, confirmativa in mellius mas, ainda assim acima de 8 anos de prisão, caímos no âmbito de aplicação do artigo 432.º, número 1, alínea b), em conjugação com o disposto no número 1, alínea f), ambos do Código de Processo Penal.
III- Tendo em conta o quadro processual desenhado, fica arredada a competência deste Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à análise e ponderação críticas da forma da determinação e fixação das penas parcelares concretas iguais e inferiores a 5 anos em que o recorrente foi condenado, de acordo com os critérios legais constantes dos artigos 40.º, números 1 e 2, 70.º e 71.º do Código Penal, conforme decidido pelas instâncias. Assim, o Supremo Tribunal de Justiça apenas é competente para conhecer a matéria relativa à medida da pena única de 8 anos e 6 meses, sendo certo que a aludida irrecorribilidade abrange assim, em geral, todas as questões processuais ou de substância que tenham sido objecto da decisão, nomeadamente as questões relacionadas com a apreciação da prova, com a qualificação jurídica dos factos, o concurso (natureza) efectivo de crimes e a determinação das penas parcelares”.
Contudo, ainda assim, sempre iremos tecer breves considerações sobre as questões suscitadas pelo recorrente.
1. Da discordância face à decisão quanto à matéria de facto
Vem o arguido invocar que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento porquanto “foram dados como provados os factos 4,5,6,7,8 e 9, no entanto, entende o recorrente que a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada, porquanto os elementos de prova colhidos não permitem dar tais factos como provados, pelo que devem os mesmos ser julgados como não provados”.
De toda a argumentação expendida pelo recorrente sobre tal questão, constata-se que o que está em causa é a sua discordância face ao modo como a prova fora apreciada, e não a ocorrência de um qualquer erro notório na apreciação da mesma, gerador da nulidade prevista na alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP.
Ora, face ao disposto no artigo 434.º do CPP, e estando em causa decisão proferida por Tribunal da Relação, o recurso para o STJ “visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”.
Deste modo, no âmbito do presente recurso, não cabe já conhecer de questões suscitadas que se prendam com a discordância do recorrente quanto à matéria de facto dada como provada, com fundamento em erro de julgamento.
(…)
2. Da invocada falta de fundamentação do acórdão
Como referimos anteriormente, o recorrente veio invocar fundamentos neste seu recurso, idênticos aos que invocara aquando do recurso que interpusera do acórdão do tribunal colectivo.
E, muito claramente fê-lo sem atender ao facto de que a decisão da qual recorria não era, nem podia ser, idêntica à que a antecedera, e sobre tivera de debruçar-se.
Ora os argumentos esgrimidos pelo recorrente não fazem têm qualquer aplicação ao acórdão do qual diz recorrer, desde logo por que neste acórdão, do que se cuidou, foi de fundamentar por que razão se entendia que a decisão do tribunal colectivo não merecia censura, nomeadamente no tocante à decisão relativa à matéria de facto.
E, quanto a tal matéria, refere o acórdão recorrido:
“9. Contrariamente ao propugnado pelo recorrente, a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida mostra-se corretamente fixada.
10. O recorrente não coloca em causa, nesta instância, a autoria dos factos que lhe são imputados nos autos, nem nega que eles sejam suscetíveis de integrar os crimes pelos quais foi condenado, limitando-se a impugnar o raciocínio seguido pelo Tribunal recorrido para determinar o número de atos (e, por aí, de delitos) pelos quais deve responder aqui à luz do artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, pugnando pela redução das suas condutas a um tratamento unitário. Sem razão, no entanto.
11. Para balizar temporalmente o comportamento do recorrente, o Tribunal recorrido atendeu –a nosso ver, corretamente –a vários marcos temporais inequívocos, com os quais relacionou as declarações adrede prestadas pela ofendida nos autos, o que lhe permitiu determinar, com um mínimo de segurança, as situações que acabou por enumerar: a circunstância de os atos praticados pelo recorrente terem ocorrido em duas habitações distintas (uma situada em Vila Nova de Gaia, e outra em Fânzeres, Gondomar, para onde a família se mudou em novembro de 2018); a ausência ou presença da mãe da ofendida na habitação onde os factos ocorreram, expressamente referida pela ofendida; o nascimento da irmã mais nova (filha do recorrente e da mãe) da aqui ofendida (verificado em 22/04/2024), e que se refletiu na (diminuição da) prática dos factos aqui em apreço; a data em que a ofendida perfez os 14 anos de idade (18/02/2020), após o que foi vítima de pelo menos mais um ato sexual contra a sua vontade (o último ato dessa natureza de que foi vítima), bem como a data em que a mãe da ofendida e o recorrente se separaram definitivamente (novembro de 2020), após o que nenhum ato mais se verificou.
12. Lidas as respetivas declarações, conclui-se, de facto, que a ofendida nos autos se recorda perfeitamente do primeiro e do último ato de abuso sexual de que foi vítima (ainda que não saiba situá-los exatamente no tempo, mas apenas aproximadamente, como é natural que aconteça, dadas as circunstâncias). Mas a ofendida refere, ainda, de forma clara, que tais situações não foram as únicas em que teve de suportar as investidas do recorrente: como se retira das suas declarações, antes do nascimento da sua irmã mais nova, o recorrente forçou-a repetidamente a contactos de natureza sexual, tanto quando a sua mãe se encontrava fora, no trabalho, como quando estava em casa, o que aponta para mais do que uma agressão sexual em cada contexto (cf. fls. 17-19 da transcrição das declarações para memória futura prestadas pela ofendida, doravante apenas «transcrição»).
13. Assim sendo, a conclusão a que chega o Tribunal recorrido, de que entre janeiro e abril de 2018 o arguido terá abusado da ofendida pelo menos quatro vezes, sendo que pelo menos uma vez por mês (dando a ofendida a entender que a frequência da ocorrência das agressões de que foi vítima era variável), afigura-se fundada, podendo mesmo considerar-se que, a pecar, só poderá ser por defeito, nunca por excesso.
14. A ofendida refere, ainda, que após o nascimento da sua irmã mais nova, «houve esse período que as coisas acalmaram e parou durante um período e depois voltou a acontecer» (cf. fls. 23 da transcrição); assim, durante um período cuja duração não soube especificar, a ofendida não foi vítima de qualquer abuso, mas depois o recorrente voltou aos seus desmandos, e isto quando ainda se encontravam na habitação que partilhavam em Vila Nova de Gaia. Nesta sequência, a conclusão de que entre maio e novembro de 2018 a ofendida foi vítima de abusos por parte do recorrente pelo menos mais uma vez mostra-se perfeitamente justificada.
15. Antes do último ato de abuso de que a ofendida foi vítima às mãos do recorrente, que terá tido lugar quando tinha já completado os seus 14 anos, refere ela repetidos atos de abuso no interior da habitação que passaram a partilhar, sita em Fânzeres (cf. fls. 23 da transcrição: «nós primeiro fizemos uma casa e nessa casa não aconteceu nada. Depois mudamos de casa, de… para Gaia e depois de Gaia, fomos para Fânzeres» e, respondendo à questão colocada pelo Magistrado Judicial que presidia à diligência se «em Fânzeres também aconteceu?», respondeu que «[s]im»). Mais: relativamente a esse período (situado entre novembro de 2018 e 18/02/2020, embora na decisão recorrida se aluda a dezembro de 2019), em que ocorreram repetidos atos de abuso, refere também a ofendida que «[h]avia vezes que acontecia mais que uma vez numa semana (?), semana que não acontecia nada»(cf. fls. 24 da transcrição). Concluir, destarte, que num período de quase 16 meses a ofendida foi vítima de, pelo menos, 6 atos de abuso sexual, de novo, só pode pecar por defeito, jamais por excesso.
16. Em suma, pois, contra o que refere o recorrente, não é verdade que o Tribunal recorrido se tenha lançado a «adivinhar, apontar e dar como provadas as vezes e os dias dos alegados abusos sexuais, que a própria vítima não conseguiu descrever»; pelo contrário, a 1.ª instância efetuou um raciocínio perfeitamente lógico, que encontra nas declarações da ofendida nos autos pleno arrimo, ainda que o resultado a que assim se chega não seja, naturalmente, do agrado do recorrente. Sendo assim, pois, e a nosso ver, não merece a decisão recorrida, nesta parte, qualquer censura, designadamente por vício de fundamentação, ex-vi do preceituado no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, como pretende o recorrente.”
Ora, atentos os argumentos expendidos, resultam devida, e claramente expostos os motivos pelos quais o Tribunal da Relação entendeu que a prova produzida foi de molde a que o tribunal colectivo pudesse concluir, como concluiu, que o arguido praticara os crimes em causa, nem como pelo número mínimo de vezes em que os mesmos foram por aquele praticados.
Deste modo, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida se mostra devidamente fundamentada.
3. Da discordância quanto ao número de crimes pelo qual foi condenado
Pretende o recorrente que deveria ter sido condenado pela prática de um único crime de abuso sexual de menores agravado, e não por doze, invocando que estamos ante um crime de trato sucessivo.
Ora, desde logo não vemos como seja possível afirmar, como o afirma o recorrente, que de cada uma das vezes em que agiu sobre a menor, o fez no quadro duma única intenção.
Com efeito, e tal como se refere no acórdão recorrido, “No caso vertente, a conduta do recorrente prolongou-se durante meses, por vezes com semanas de intervalo, o que significa ser impossível que, durante todo esse período de tempo, não tenha tido ele oportunidade de refletir sobre o seu comportamento, e a necessidade de renovar a sua resolução criminosa inicial, não sendo de todo de aceitar, precisamente porque contrária às regras da « experiência e as leis da psicologia», que foi ainda essa resolução que, em cada situação que protagonizou, guiou o seu comportamento.”
Por outro lado, também não vemos que seja permitido ao aplicador da lei proceder à unificação de diversos comportamentos, tendo subjacentes resoluções criminais distintas, quando o legislador claramente não procedeu a essa unificação, e muito menos a quis.
4. Da invocada excessividade das penas principais parcelares e unitária
Como atrás referimos, e sendo certo que nenhuma das penas principais parcelares excede os cinco anos de prisão, não cabe ao STJ apreciar do recurso relativo às mesmas.
Assim, caberá apenas aquilatar se a pena unitária de 8 anos e 6 meses aplicada ao arguido, é merecedora de censura.
A actuação do arguido assume grande gravidade, dados os abusos sexuais terem sido praticados sobre a sua enteada menor, durante um período temporal alargado e quando sobre ele impedia um especial dever de zelar pela mesma, tendo aquele agido aproveitando-se da confiança que em si era depositada mercê, justamente, da relação familiar existente.
Por outro lado, o arguido não revelou qualquer arrependimento, ou interiorização do desvalor dos seus actos, antes optando por negar a prática dos mesmos.
Temos, assim, que as penas parcelares fixadas, a pena unitária imposta pela 1.ª instância e sufragada pelo Tribunal da Relação do Porto, se mostra ser a adequada às exigências de prevenção geral e especial que aqui se revelam com especial intensidade, bem como à personalidade revelada pelo arguido, quer aquando da prática dos actos, quer após a mesma, tudo nos termos dos artigos 30.º, nºs 1 e 3, e 77.º, nºs 1 a 4 do Código Penal.
5. Da invocada excessividade das penas acessórias e inconstitucionalidade dos artigos 69.º B e 69.ºC do Código Penal
Como se refere no acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional veio já a decidir, no seu acórdão n.º 117/2025, que não é de julgar inconstitucional: «a norma do n.º 2 do artigo 69.º B do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pela condenação pelo crime previsto nos n.º s 1 e 2 do artigo 171.º do Código Penal quando a vítima seja menor», bem como, «a norma do n.º 2 do artigo 69.º C do Código Penal (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de a gosto), na parte em que fixa a moldura de 5 anos a 20 anos para a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores, pela condenação pelo crime previsto nos n.º s 1 e 2 do artigo 171.º do Código Penal, quando a vítima seja menor».
Ora, cabe referir que, no caso dos autos, não se constata qualquer assimetria entre os oito anos e seis meses de prisão que correspondem à pena principal única aplicada ao arguido, e os oito anos aplicados unitariamente quanto a cada uma das penas acessórias, as quais se mostram conformes às exigências que foram já aludidas, pelo que as reputamos bem doseadas.
Acrescerá ainda referir que, ao contrário do que invoca o arguido, nenhuma das penas acessórias aplicadas implica que fique impedido de conviver com a sua filha menor, mas apenas que não possa, relativamente a esta, exercer as responsabilidades parentais, o que é coisa substancialmente diversa».
7 . Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, no qual afirma, em síntese, o seguinte:
« (…) previamente, há que apreciar o pedido de realização de audiência.
O recorrente, a final da sua motivação – e tal como atrás referido já – escreve a frase «O recorrente mais requer, nos termos do disposto no número 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, a realização de audiência no Tribunal Superior, com vista a debater a matéria de facto que infra se impugna.»
Ora, mesmo admitindo-se que existiu lapso na utilização da palavra ‘infra’, pretendendo escrever-se ‘supra’, certo é que, em nosso entender, não se mostram reunidos os necessários elementos para poder ser deferido o pedido de audiência, e por duas razões:
a) Em primeiro lugar, por não haver discussão a manter agora relativamente à matéria de facto.
Na verdade, tal como referido na resposta do MºPº, este Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto no artº 434º do CPP, apenas aprecia de direito, não de facto (sendo que a exceção referenciada na parte final daquele preceito, para além de não aplicável num caso como o presente de recurso de uma decisão já proferida em sede de recurso, nem sequer vem invocada pelo recorrente).
Ou seja, o pedido de audiência para debater o que não pode ser debatido terá, necessariamente, de ser indeferido.
b) Em segundo lugar, nem se mostram preenchidas as exigências contidas no artº 411º, nº 5, que é invocado pelo recorrente.
Mesmo a aceitar-se (o que, como acabou de ser referido, não pode suceder) discussão acerca de matéria de facto (admitindo-se que sob este título a ideia do recorrente fosse mais ampla, querendo, por exemplo, discutir o número de crimes praticados perante a matéria de facto fixada), também não se mostra, a nosso ver, admissível pedido de audiência.
Com efeito, estabelece o artigo 411, nº 5, do Código de Processo Penal, que, no requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos. Ora, como resulta da própria literalidade do seu requerimento o arguido não especificou quaisquer pontos da motivação, antes remeteu para um aspeto vago constante naquele recurso (a «matéria de facto»).
Assim, como referido em 23.01.2025 no acórdão por este Supremo Tribunal (no processo 150/23.5GACDV.L1.S1 – Relator – Celso Manata): «I - O disposto no n.º 5 do art. 411.º do CPP impõe ao recorrente que especifique “os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos na audiência”. II - Não satisfaz esse requisito o pedido de audiência com a seguinte formulação: “Requer, atenta a importância das questões de direito suscitadas a discussão das mesmas em audiência”, tendo neste acórdão sido entendido que «não é ao Tribunal que compete descortinar quais são as “questões de direito” que o recorrente pretende discutir, sendo a este que cabia o ónus de as indicar especificadamente.»
Donde que, pelos dois motivos acabados de referir, é parecer do Ministério Público que não deverá ser deferido o pedido de audiência formulado pelo arguido/recorrente.
Mas não apenas quanto a isto deverá, a nosso ver, ser rejeitado o pedido pelo recorrente, na esmagadora maioria das questões que levanta no recurso.
Isto porque, como já atrás se referiu, estamos perante uma situação de chamada ‘dupla conforme’ porquanto o Tribunal da Relação confirmou na totalidade a decisão de 1ª instância.
Assim sendo, lembrando o que se escreveu no Acórdão deste STJ de 14.03.2018, no processo 22/08.3JALRA.E1.S1 (Relator – Lopes da Mota):
«Dispõe o artigo 400.º, n.º 1, al. f), inserido no Capítulo do CPP sobre “princípios gerais” dos “recursos ordinários”, que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. Nos termos da alínea e) do mesmo preceito também não é admissível recurso de acórdãos proferidos pelas Relações que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos.
Por sua vez, o artigo 432.º do CPP, incluído no Capítulo sobre o “recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça” estabelece que se recorre para este tribunal de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400º.
Como tem sido insistentemente afirmado na jurisprudência deste tribunal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal estão, assim, nestes casos, delimitados negativamente pela medida das penas aplicadas pelo tribunal da Relação. No caso da alínea e) do artigo 400.º, se a pena aplicada não for superior a 5 anos de prisão, não é admissível recurso. No caso da alínea f) do mesmo preceito, não é admissível recurso se ocorrer uma situação de verificação de dupla conforme, isto é, se as penas aplicadas, em confirmação de decisão de 1.ª instância, não forem superiores a 8 anos de prisão. Da conjugação destas disposições resulta, como tem sido sublinhado, que só é admissível recurso de acórdãos das Relações que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso. No sentido do que se afirma, podem ver-se, por todos, os acórdãos de 13.1.2016. no Proc.174/11.5GDGDM.L1.S1- 3.º Secção, relator Cons. João Miguel, de 18-02-2016, no Proc. 68/11.4JBLSB.L1-A.S1 – 3.ª Secção, relator Cons. Armindo Monteiro, de 17-03-2016, no Proc. 177/12.2TDPRT.P1.S1 – 5.ª Secção, relatora Cons. Pais Martins, de 20-10-2016, no Proc. 597/14.8PCAMD.L1.S1 – 5.ª Secção, relator Cons. Francisco Caetano, de 23-11-2016, no Proc. 736/03.4TOPRT.P2.S1 – 3.ª secção, relator Cons. Sousa Fonte.
No sentido da conformidade constitucional desta interpretação da norma da al. f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP pode ver-se o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 186/2013, de 4.4.2013, DR, 2.ª Série, de 09.05.2013, que decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do nº 1, do artigo 400º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que, havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão”. Ainda a este propósito pode ver-se, entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/2011 que decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido em recurso pela relação que confirme a decisão da 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão”.
E, tendo em conta este entendimento, resulta também – veja-se o Acórdão deste Tribunal, de 07.12.2022 [Relator – Orlando Gonçalves], no processo 406/21.1JAPDL.L1.S1 – que todas as questões referentes aos diversos crimes já não podem igualmente ser analisadas:
«Constitui jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, que o recurso não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões com elas (e com os respetivos crimes) conexas.
Tem sido enfatizado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que estando este, “por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito (cfr., por exemplo, os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, e de 6.10.2016, no Proc. 535/13.5JACBR.C1.S1, bem como, quanto à atenuação especial da pena, os acórdãos de 5.12.2012, no Proc. 1213/09.SPBOER.S1, e de 23.6.2016, no Proc. 162/11.1JAGRD.C1.S1)» [acórdão do STJ de 14.03.2018, processo 22/08.3JALRA.E1.S1, LOPES DA MOTA (relator), em www.dgsi.pt, tal como sucederá com os demais acórdãos citados neste parecer sem menção expressa a outra fonte].”
Cumpre ainda referir que – como, aliás, vincado em muitos dos acórdãos que têm apreciado a matéria – tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional ser o entendimento em causa conforme à Constituição. Na verdade, este Tribunal tem vindo a entender que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (Cfr., entre outros, os acórdãos n.º 189/2001, 451/03, 495/03, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006, 682/2006, 645/09 e 174/2010), sendo que, concretamente sobre a conformidade constitucional da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, mesmo na redação anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na perspetiva da violação do direito ao recurso, tem igualmente entendido no sentido da não inconstitucionalidade da limitação do acesso a um duplo grau de recurso ou triplo grau de jurisdição (v.g. os Acórdãos n.º 49/2003, 255/2005, 2/2006, 32/2006, 64/2006 487/2006, 682/06, 20/2007 424/2009 e 385/2011).
É o caso dos autos, levando a que as questões acerca das quais existiu já decisão concordante da Relação não possam ser reanalisadas, aqui se englobando, deste modo, as respeitantes à pretendida alteração da qualificação jurídica dos factos (especificamente a redução para 1 crime dos diversos praticados), a alegada falta de fundamentação (que, aliás, o recorrente não parece apontar sequer à decisão recorrida, mas sim à anteriormente proferida em 1ª instância), às medidas das penas parcelares e às alegadas inconstitucionalidades.
Todos esses aspetos mostram-se fixados por força da dupla conforme.
Subsiste, assim, como passível de ser apreciada no presente recurso, a matéria respeitante à pena única aplicada em cúmulo jurídico, por superior a 8 anos de prisão.
Quanto a esta questão, certamente por lapso, o recorrente ora pede a redução para 4 anos e 10 meses (conclusões CC. a JJ.) ou para 5 anos de prisão (conclusão JJJ.)…
Sendo ainda que no texto da motivação pede a suspensão da execução da pena (ponto 72.) e nas conclusões (conclusão JJ.), embora apenas quando se refere à pena de 5 anos
Quanto ao pedido de redução, o recorrente invoca o facto de terem decorrido mais de 4 anos sobre a prática do crime, o facto de nunca mais ter tido qualquer contacto com a ofendida e ainda a circunstância de não possuir quaisquer antecedentes penais e estar inserido profissional e pessoalmente.
Ora, mantendo-se as penas parcelares pelos motivos atrás referidos, e atenta a soma das mesmas, atento o que é referido quanto à escolha da única, parece-nos evidente que o pedido do recorrente de redução não poderá ser atendido (o que acarreta até a desnecessidade de analisar uma possível suspensão da sua execução, por legalmente inadmissível).
Com efeito, sendo desde logo o mínimo admissível de 4 anos e 6 meses, dificilmente seria (ou mesmo impossível, dir-se-á) que a pena final conseguisse, com um mínimo de normalidade, apenas alcançar os 4 anos e 10 meses, ou mesmo os 5 anos de prisão, quando a soma aritmética das penas alcança os 56 anos de prisão.
Aditando-se a isto tudo o que, quer na decisão de 1ª instância, quer na de 2ª instância ficou referido quanto à personalidade demonstrada pelo arguido na prática dos factos (fazendo-se notar que as circunstâncias que aponta agora como favoráveis já existirem à data da pática dos factos, não o tendo demovido de os praticar), não se vê que a este STJ deva ter qualquer função corretiva da pena única aplicada, nos moldes em que, como é referido no acórdão deste STJ de 29.02.2024 no processo 122/20.1PAVPV.L1.S1 – Relator – Jorge Reis Bravo – esta intervenção deve ocorrer: «Na operação de escrutínio sobre o processo de apreciação da escolha e da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume um carácter essencial de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis, por parte da instância recorrida. Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida – designadamente, neste caso, a do tribunal de primeira instância –, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos hermenêuticos e aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da(s) pena(s) aplicada(s).».
Pelo que, quanto a esta parte (única que entendemos dever ser analisada por este Supremo Tribunal de Justiça, pelos motivos atrás referidos), deverá ser julgado improcedente o recurso, sendo mantida, na íntegra, a decisão recorrida».
8. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer.
9. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO.
1. Questão prévia:
Na parte final do seu recurso, o recorrente veio requerer «nos termos do disposto no número 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, a realização de audiência no Tribunal Superior, com vista a debater a matéria de facto que infra se impugna».
Ora, como afirma o Exm.º Sr. Procurador- geral adjunto, no seu parecer e admitindo-se que existiu lapso na utilização no recurso da palavra ‘infra’, pretendendo escrever-se ‘supra’, certo é que não se mostra legalmente admissível a realização da audiência no Supremo Tribunal de Justiça, porquanto, não há lugar à discussão sobre a matéria de facto no STJ .
Na verdade, conforme dispõe o artigo 434.º do CPP o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito e não de facto, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º, sendo certo que nenhuma destas situações excepcionais referenciada na parte final deste preceito são aplicáveis no caso dos autos por se tratar de uma decisão já proferida em sede de recurso para o tribunal da Relação.
Acresce que ainda que se viesse a admitir que o recorrente pretendia a realização da audiência para discutir matéria direito (que não foi o que afirmou), designadamente, o número de crimes que se podem imputar ao arguido face à matéria de facto fixada, também o pedido de audiência não poderia ser admitido.
Conforme dispões o artigo 411, nº 5, do Código de Processo Penal, no requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos.
Isto significa que o recorrente tem de indicar, expressamente, quais são as questões de direito que pretende ver apreciadas e em que pontos entende que a decisão recorrida violou a lei.
Ora, como resulta do teor do requerimento do seu recurso o arguido não especificou quaisquer pontos da motivação que pretendia ver discutida remetendo antes para toda uma generalidade de questões que suscita no recurso e que se consubstanciam em «matéria de facto» da qual o STJ não conhece- neste sentido, ver o acórdão deste Supremo Tribunal de 23.01.2025 (no processo 150/23.5GACDV.L1.S1 – em que foi relator o Exm.º Sr. Conselheiro Celso Manata supra citado pelo M.P. - «I - O disposto no n.º 5 do art. 411.º do CPP impõe ao recorrente que especifique “os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos na audiência”. II - Não satisfaz esse requisito o pedido de audiência com a seguinte formulação: “Requer, atenta a importância das questões de direito suscitadas a discussão das mesmas em audiência”, tendo neste acórdão sido entendido que «não é ao Tribunal que compete descortinar quais são as “questões de direito” que o recorrente pretende discutir, sendo a este que cabia o ónus de as indicar especificadamente».
Deste modo, por legalmente, inadmissível, infere-se a realização da audiência neste S.T.J, requerida pelo recorrente.
II. Do âmbito do recurso
1. Os poderes de cognição do tribunal de recurso delimitam-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 434.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de Jurisprudência STJ n.º 7/95, DR-I.ª Série, de 28-12-1995), que devem resultar diretamente do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), os quais, analisado o acórdão recorrido, não se verificam.
Atentas as conclusões de recurso , as questões que o recorrente suscita são as seguintes:
a) Erro de julgamento por o tribunal ter dado como provados os factos elencados em 4, 5, 6, 7, 8 e 9, quando deveria apenas ter sido dado como provado que a ofendida BB foi objeto de abusos sexuais mais do que uma vez, inexistindo prova do número de vezes exactos e das circunstâncias de tempo, modo e lugar do seu cometimento;
b) Nulidade do acórdão por falta de fundamentação;
c) Errada qualificação jurídica dos factos pois que, no caso dos autos, a prática por diversas vezes do mesmo crime constitui um só crime por ter existido uma única unidade resolutiva (um só dolo) na conduta do recorrente, patente no facto n.º 4, dado como provado, verificando-se uma conexão temporal entre os factos provados em 6, 7, 8 e 9;
d) Condenação nas penas parcelares principais e condenação das penas acessórias parcelares e única e inconstitucionalidade das penas acessórias;
e) A pena única de prisão aplicada é desproporcional e excessiva;
2. Do acórdão recorrido.
2.1. O tribunal «a quo» considerou provados e com interesse para a justa decisão, a seguinte matéria de facto:
a) Da acusação (para a qual remete o despacho de pronúncia) e do pedido de indemnização civil:
1. O arguido viveu em comunhão de mesa, cama e habitação com DD, desde, pelo menos, 2017 até Novembro de 2020, inicialmente na Rua 1, em Vila Nova de Gaia, e, desde finais de 2018 até 2020, na Rua 2º, em Fânzeres, Gondomar.
2. Quando iniciaram aquela coabitação, DD tinha uma filha de um relacionamento anterior, a ofendida BB, nascida em D.M.2006.
3. Até finais de 2017, a progenitora da ofendida BB trabalhava durante o período nocturno, sendo habitual a menor aguardar a sua chegada, deitada no sofá da sala da residência, onde, normalmente, acabava por adormecer.
4. O arguido, aproveitando-se do facto de a ofendida BB se encontrar sozinha e a dormir ou a dormitar no sofá da sala, da relação de confiança que com ela mantinha, por força da coabitação e do ascendente que tinha enquanto companheiro da sua mãe, sendo por ela tido como sua figura paternal, decidiu actuar sobre a mesma com o propósito de satisfazer os seus ímpetos libidinosos, o que ocorreu, pelo menos, em treze ocasiões distintas, no período compreendido entre finais de Fevereiro de 2017 e meados de Novembro de 2020, momento em que o casal composto pelo arguido e a progenitora da ofendida se separou e esta última saiu da residência comum, levando os seus filhos, entre os quais a ofendida BB.
5. Uma das situações indicadas em 4) ocorreu em data que não foi possível apurar em concreto, mas situada entre finais de Fevereiro e finais de Dezembro de 2017, na residência sita na Rua 3, em Vila Nova de Gaia, ao início da noite, após o jantar, quando o arguido se apercebeu de que a ofendida BB, então com 11 anos de idade, dormia no sofá da sala.
6. Nesse momento, o arguido abeirou-se da ofendida BB, baixou até aos joelhos as calças do pijama e as cuecas que a ofendida vestia e deitou-se na sua retaguarda, ficando ambos deitados lado a lado, após o que o arguido introduziu o seu pénis, erecto, na vagina da menor, passando a fazer movimentos de vai-vem.
7. No período compreendido entre Janeiro e o início de Abril de 2018, em quatro das ocasiões mencionadas em 4), o arguido, na residência identificada em 5) e aproveitando-se da circunstância de se encontrar somente com a ofendida na sala, actuou conforme descrito em 6).
8. No período compreendido entre Maio de 2018 e meados de Novembro de 2020, em sete das ocasiões mencionadas em 4), uma das quais ocorrida na residência identificada em 5), até Novembro de 2018, e outras seis ocorridas na residência situada na Rua 4, Fânzeres, Gondomar, a partir de Novembro de 2018 até ao final de 2019, o arguido, aproveitando-se da circunstância de se encontrar somente com a ofendida na sala da correspondente habitação, actuou conforme descrito em 6).
9. Na última das ocasiões mencionadas em 4), no período compreendido entre Junho e meados de Novembro de 2020, na residência sita na Rua 5, em Fânzeres, Gondomar, a ofendida, então com 14 anos de idade, encontrava-se sozinha, a dormir, deitada de lado, no sofá da sala, quando o arguido se deitou de lado, na retaguarda da mesma, baixou-lhe até aos joelhos as calças e as cuecas, apalpou-lhe as mamas pelo interior da camisola e introduziu-lhe o seu pénis, erecto, na vagina, passando a fazer movimentos de vai-vem.
10. Em todas as ocasiões supra descritas, o arguido tinha conhecimento da idade da ofendida e que actuava aproveitando-se desse facto, da relação de confiança que criara com a menor, do ascendente que detinha sobre a mesma, por ser o companheiro da sua mãe e por ela ser visto como sua figura paternal, bem como da circunstância de coabitar com a menor, para constrangê-la àqueles contactos, os quais o arguido sabia serem gravemente violadores da consciência, decência e pudor sexuais da ofendida, atendendo à sua idade e correspondente período de formação, tudo para satisfazer os seus próprios impulsos libidinosos.
11. O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
12. Em consequência das condutas do demandado civil supra descritas, a demandante civil sentiu tristeza, angústia, ansiedade e desmotivação para os conteúdos escolares.
b) Da contestação:
13. O arguido nasceu no dia D.M.1981.
14. O arguido frequentou o ensino até ao 10º ano de escolaridade, o qual não concluiu.
15. O arguido fez um curso de joalharia, não tendo exercido a correspondente profissão.
16. O arguido começou a trabalhar com 16 anos de idade, como fresador, numa fábrica, onde laborou cerca de 1 ano; após, trabalhou como pasteleiro, por mais um ano, actividade que suspendeu, por 8 meses, para cumprimento do serviço militar obrigatório; após cumprimento do S.M.O., retomou actividade laboral, numa fábrica.
17. Desde 2005, o arguido trabalha na empresa “...”, mediante contrato de trabalho e auferindo o vencimento mensal líquido de cerca de 1.000 €.
18. O arguido e a mãe da ofendida conheceram-se na passagem do ano de 2010 para 2011 e namoraram cerca de 6 anos, sem coabitação.
19. Durante a relação de namoro entre o arguido e a mãe da ofendida, aquela vivia com esta e com o seu filho EE.
20. Em 2017, o arguido residia com a mãe da ofendida, a ofendida e os outros dois filhos daquela, EE e FF, sendo que esta última, até então, havia residido com a sua avó materna.
21. O arguido trabalhava na empresa identificada em 17) das 8.30 até às 17.30 horas e, habitualmente, regressava a casa entre as 18.00 e as 19.00 horas.
22. Em 2017, a mãe da ofendida trabalhava no snack-bar “...”, sito em Vila Nova de Gaia.
23. GG, filha do arguido e da mãe da ofendida, nasceu no dia D.M.2018.
24. Entre Maio e Junho de 2018, a mãe da ofendida pediu ao arguido para este assinar um documento relativo ao exercício das responsabilidades parentais em relação à filha GG, nos termos do qual a menor residiria somente com a mãe, o arguido teria o direito de estar com a filha um fim-de-semana, de 15 em 15 dias, e ficava obrigado a pagar a pensão de alimentos, no valor mensal de 100 €.
25. O arguido, a mãe da ofendida e a filha GG sempre residiram juntos, desde o nascimento da menor até à separação do casal.
26. Em 2019, a mãe da ofendida trabalhava no restaurante “...”, no Porto, entre as 9.00 e as 19.00 horas, regressando a casa cerca das 20.00 horas.
27. O arguido comprou a habitação sita na Rua 2, em Fânzeres, Gondomar.
28. Em 2021, o referido EE residiu com o arguido durante determinado período.
29. No período de tempo indicado em 28), a ofendida deslocou-se à residência do arguido, para aí visitar o seu irmão EE.
30. A ofendida não sofreu qualquer retenção na escola.
31. No dia 6 de Abril de 2022, a mãe da ofendida deslocou-se à residência do arguido e denunciou à GNR os factos imputados ao arguido nestes autos.
c) Mais se provou que:
32. O arguido tem a seu cargo as seguintes despesas mensais: duas prestações atinentes a dois créditos bancários que contraiu, nos montantes de cerca de 340 € e 225 €, respectivamente; as correspondentes aos consumos domésticos de água (no valor de 60 €) e energia eléctrica (no valor de 90 €); as atinentes a telecomunicações, no montante de 60 €; a prestação de alimentos à sua filha, no valor de 100 €.
33. O arguido continua a residir na habitação identificada em 27), onde vive, presentemente, com a sua actual companheira e o filho mais novo desta, com 13 anos de idade; esta dinâmica intrafamiliar pauta-se pela entreajuda e vinculação afectiva.
34. A denúncia efectuada em 6.04.2022, conforme auto de notícia a fls. 4-5, conduziu à instauração de processo de promoção e protecção na CPCJ de Gondomar, em relação à menor GG, o qual, por falta de consentimento dos pais, prosseguiu sob o nº3798/22.1T8GDM-A, do Juízo de Família e Menores de Gondomar - Juiz 2.
35. Na sequência da intervenção da EMAT de Gondomar, a equipa do CAFAP (Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental) da Pasteleira interveio junto da família.
36. Desde Dezembro de 2023, o arguido não mantém contactos com a sua filha GG.
37. O arguido não apresenta actividade alucinatória nem delirante, actual ou prévia; as suas funções cognitivas e intelectuais encontram-se dentro dos limites da normalidade clínica; tem juízo crítico; apresenta humor normal e afectos congruentes.
38. O arguido não padece de anomalia psíquica, nem tem traços disfuncionais de personalidade que configurem diagnóstico de Perturbação de Personalidade; é dotado de capacidades cognitivas e intelectuais que lhe permitem, de forma suficiente, entender e avaliar a ilicitude dos factos em discussão nos autos e determinar-se de acordo com essa avaliação.
39. O arguido evidencia elevada desejabilidade social, grande preocupação com a imagem que dá de si próprio; apresenta dificuldades em avaliar as suas limitações e em colocar-se em causa; revela propensão a atribuir, frequentemente, a responsabilidade das suas acções ao comportamento dos outros e a circunstâncias externas, desresponsabilizando-se pelas mesmas.
40. Ao nível de desenvolvimento sociomoral, o arguido demonstra um nível situado no estádio convencional que assenta na consciência de que a regra existe, sendo esta percebida como interiormente imposta, o que implica ter capacidade de fazer julgamentos morais das suas acções, tendo consciência do significado das mesmas dentro do conjunto das normas estabelecidas; o arguido parece apresentar dissonâncias cognitivas, na tentativa de desculpabilizar o seu comportamento, destacando-se o locus de controlo externo e a desresponsabilização e defensividade como padrão de resposta predominante; o arguido denota, particularmente, desvalorização de algumas das situações disruptivas em que esteve envolvido (nomeadamente, os consumos de substâncias psicoactivas).
41. O arguido apresenta um modo de organização e funcionamento psicológico com algumas características que podem ser desadaptativas, nomeadamente: imaturidade, tendência à impulsividade e leviandade.
42. No plano do desenvolvimento psicossexual e da forma como encara a sua sexualidade, o arguido não apresenta indicadores de desvios.
43. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta».
2.2. E considerou como não provados:
«II.2. Factos não provados
Não se provaram outros factos com interesse para a justa decisão da causa, designadamente:
Da acusação (para a qual remete o despacho de pronúncia) e do pedido de indemnização civil:
a. Desde 2018 até 2020, a progenitora da ofendida BB trabalhou durante o período nocturno.
b) O arguido actuou conforme descrito em 4) em mais de 20 (vinte) ocasiões, habitualmente com uma semana de intervalo, sendo que, por vezes, mais do que uma vez na mesma semana.
c) Em consequência das condutas do arguido supra descritas, a demandante civil tem manifestações suicidas e vive em sobressalto.
d) A demandante civil ainda vive angustiada.
e) A demandante civil perdeu disponibilidade para a prática de quaisquer actividades físicas, de lazer e de convívio com a família, amigos, colegas de trabalho e/ou colegas de escola.
f) Em consequência das condutas do arguido supra descritas, a demandante civil não voltará a sentir tranquilidade e paz.
Da contestação:
g) Quando a mãe da ofendida trabalhava no sobredito snack-bar “...”, o respectivo horário de trabalho era, em regra, das 10.00 até às 19.00 horas, chegando a mesma a casa cerca das 20.30 horas e, quando era necessário trabalhar até mais tarde, cerca das 22.00 horas.
h) Quando a mãe da ofendida engravidou de GG, foi despedida do seu emprego no sobredito snack-bar “...”, o que levou a que a mesma ficasse em casa desde, pelo menos, Novembro de 2017.
i) FF, EE e a ofendida regressavam a casa, provenientes da escola, nunca após as 18.30 horas.
j) Após a separação do casal e quando o seu irmão EE deixou de residir com o arguido, a ofendida deslocou-se à residência deste unicamente somente para o visitar, tendo ali tomado refeições e pernoitado, várias vezes.
k) O arguido não actuou conforme descrito em 4) a 11).
l) A mãe da ofendida deu início ao presente processo para impedir o arguido de obter a residência alternada em relação à filha de ambos.
m) Quaisquer outros factos, designadamente constantes da acusação (por remissão do despacho de pronúncia), do pedido de indemnização civil e da contestação, que não se encontrem descritos como provados ou que sejam contraditórios em relação aos mesmos, sendo a demais matéria alegada irrelevante, conclusiva ou de direito.
3. Apreciando.
3.1. Das questões colocadas no recurso no seu confronto com a delimitação legal da recorribilidade para o STJ, designadamente:
O recorrente invoca no seu recurso a existência de a) Erro de julgamento por se terem dado como provados os factos elencados em 4, 5, 6, 7, 8 e 9, entendendo que apenas se provou que a ofendida BB foi objeto de abusos sexuais mais do que uma vez, inexistindo prova do número de vezes exactos e das circunstâncias de tempo, modo e lugar do seu cometimento e b) Nulidade do acórdão por falta de fundamentação
Afirma a c) Errada qualificação jurídica dos factos, por entender que, no caso dos autos, a prática por diversas vezes do mesmo crime constitui um só crime por ter existido uma única unidade resolutiva (um só dolo) na conduta do recorrente, patente no facto n.º 4, dado como provado, verificando-se uma conexão temporal entre os factos provados em 6, 7, 8 e 9.
E questiona (c) «o quantum» das penas parcelares principais e das penas parcelares e única acessórias, bem como a inconstitucionalidade destas últimas.
Estabelece o artigo 400.º, n.º1, alíneas e) e f), do CPP:
«1 - Não é admissível recurso:
(…)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
(…).»
O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que para o caso não importa.
Por sua vez, dispõe o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:
« 1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».
Finalmente, o artigo 434.º, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, preceitua que «O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redacção dada pela Lei n.º 94/2021.
Da conjugação destas disposições resulta que só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos dos Tribunais das Relações, proferidos em recurso, que apliquem:
- penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme e,
- penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.
Deste modo, só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão e isto, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico - neste sentido entre outros, cfr. os acórdãos do STJ: de 10.10.2018, Proc. 144/09.3JABRG.G1.S1; 9.10.2019 Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1; 10.3.2021, Proc. 330/19.8GBPVL.G1.S1; 11.03.2021, Proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1; 02.12.2021, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; 12.01.2022, Proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1; 20.10.2022, Proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; 30.11.2022,~Proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Na verdade, tem sido entendimento deste Supremo Tribunal, que não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância (artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP), pena que tanto é a parcelar, cominada para cada um dos crimes, como a pena única/conjunta, pelo que, aferindo-se a irrecorribilidade separadamente, por referência a cada uma destas situações, os segmentos dos acórdãos proferidos em recurso pela Relação, atinentes a crimes punidos com penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão, são insuscetíveis de recurso para o STJ, nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º1, b), do CPP (cf., entre outros, acórdão de 4.07.2019, Proc. 461/17.9GABRR.L1.S1).
Por outro lado, estando em causa penas – parcelares ou resultantes de cúmulo jurídico - superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão, está vedado o recurso para o STJ de acórdão da Relação que haja confirmado – dupla conforme - a decisão da 1.ª instância.
Quer isto dizer que apenas é admissível recurso para o STJ de decisão confirmatória da Relação – casos de “dupla conforme”, incluindo a confirmação in mellius –, quando a pena aplicada, seja parcelar ou pena única resultante de cúmulo jurídico, for superior a oito anos de prisão (neste sentido, comentário de Pereira Madeira ao artigo 400.º - Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, para além da jurisprudência supra citada).
Na verdade, e ainda a propósito da hipótese do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) [irrecorribilidade de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos], importa destacar que, de acordo com a jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, haverá confirmação «quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado. É a chamada condenação in mellius» (acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 10 de julho de 2013, processo 52/06.0JASTB.L1.S2, relatado pelo conselheiro Maia Costa, www.dgsi.pt). «Se o arguido, no caso de ser condenado em 1.ª instância em pena de prisão não superior a 8 anos, com manutenção dessa pena por acórdão da relação, não pode recorrer desta última decisão, mal se compreenderia que, à luz do apontado fundamento do direito de recorrer, lhe fosse permitido interpor recurso numa situação que lhe é mais favorável, como é a de o acórdão da relação que, mantendo inalterados os respectivos pressupostos, reduz a pena aplicada pelo tribunal de 1.ª instância, «confirmação in mellius», com aval de constitucionalidade, designadamente, no acórdão 125/2010, do TC» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2018, processo 422/14.JAPRT.G2.S1, relatado pelo conselheiro Manuel Braz, www.dgsi.pt).
Acresce que a irrecorribilidade para o STJ de acórdão proferido em recurso pelo tribunal da Relação, nos termos supra referidos, abrange todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, respetivas nulidades (artigos 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP) e aspetos relacionados com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões atinentes à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos à determinação das penas parcelares ou única, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo, nesta determinação, a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como, questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito (cfr. a jurisprudência citada no acórdão de 12.01.2022, Proc. 9/14.5T9LOU.P1.S1 e, ainda, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Setembro de 2023, processo nº 440/20.9PBBRR.L1.S1, de 10 de Janeiro de 2023, processo nº 4153/16.8JAPRT.G3.S1, de 20 de Outubro de 2021, processo nº 528/19.9GCFAR.E1.S1, de 6 de Maio de 2021, processo nº 588/15.1T9STR.E1.S1, de 14 de Outubro de 2020, processo nº 74/17.5JACBR.C1.S1 de 19 de Junho de 2019 e processo nº 881/16.6JAPRT-A.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Na verdade, estando o Supremo Tribunal impedido de sindicar o acórdão recorrido, por força da dupla conforme, no que tange à condenação, por todos os crimes em concurso, em penas de prisão parcelares inferiores a 8 anos, obviamente que está impedido, também, de exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do recorrente por cada um desses crimes. A verdade é que relativamente a todos os crimes em concurso o acórdão recorrido transitou em julgado, razão pela qual no que a eles se refere, se formou caso julgado material, tornando definitiva e intangível a respectiva decisão em toda a sua dimensão, estando pois a coberto do caso julgado todas as decisões que antecederam e conduziram à condenação do recorrente pelos crimes em concurso, ou seja, que a montante da condenação se situam. De outra forma, estar-se-ia a violar o princípio constitucional non bis in idem, concretamente na sua dimensão objectiva, que garante a segurança e a certeza da decisão judicial, através da imutabilidade do definitivamente decidido- neste sentido - Acs do STJ de 11-06-2014, processo n.º 54/12.7SVLSB.L1.S1-3.ª Secção (recorribilidade restrita à pena única); de 19-06-2014, processo n.º 1402/12.5JAPRT.P1.S1-5.ª Secção; de 26-06-2014, processo n.º 160/11.5JAPRT:C1.S1-5.ª Secção. Toda a decisão referente a crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, incluindo questões conexas como a violação do princípio in dubio pro reo, invalidade das provas, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, violação do n.º 2 do art. 30.º do CP, qualificação jurídica dos factos, consumpção entre os crimes em concurso, violação do princípio da proibição da dupla valoração, reincidência e medida das penas parcelares, já conhecidas pela Relação, não são susceptíveis de recurso para o STJ, por força dos arts. 400.º, n.º 1, als. c) e f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP); de 10-09-2014, processo n.º 223/10.4SMPRT.P1.S1-3.ª Secção; de 10-09-2014, processo n.º 1027/11.2PCOER.L1.S1-3.ª Secção.
Em suma, resultando da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP, não ser recorrível acórdão da Relação que confirme decisão condenatória da 1.ª instância e aplique pena de prisão (parcelar ou única) não superior a 8 anos, o STJ não pode conhecer de qualquer questão referente aos crimes parcelarmente punidos com pena de prisão inferior a 8 anos, apenas podendo conhecer do respeitante aos crimes que concretamente tenham sido punidos com pena de prisão superior a 8 anos, e bem assim da matéria relativa ao concurso de crimes, em caso de condenação em pena única superior àquele limite.
De salientar que as garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem o duplo grau de recurso, bastando-se a Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 32.º, com o duplo grau de jurisdição, já concretizado no presente processo através do recurso para a Relação.
Neste sentido decidiu o Tribunal Constitucional, em Plenário, no acórdão n.º 186/2013, «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».
Tal orientação foi reafirmada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n.ºs 212/2017, 599/2018.
No caso concreto dos autos, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso direto de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de primeira instância, não se tratando de um recurso de primeiro grau. Trata-se, sim, de um recurso interposto de acórdão da Relação que decidiu recurso anterior, o que determina a impossibilidade de o recurso poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP.
Assim, e em síntese, o recurso terá de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP, no que concerne às diversas condenações em penas principais parcelares, estando arredada, nomeadamente, a possibilidade de sindicar a quantificação do número de crimes praticados.
Pelas mesmas razões, não é admissível o recurso relativo às penas acessórias (parcelares e única) que foram aplicadas pelo tribunal de 1.ª Instância e inteiramente confirmadas pelo Tribunal da Relação.
Com efeito, como se refere no acórdão deste STJ de 09.04.2025, proferido no processo n.º 83/23.5GBOBR.P1.S1 em que foi relator o Conselheiro António Augusto Manso, publicado in www.dgsi.pt/jstj.:
«A pena acessória, cuja autonomia se manifesta por (i) a sua aplicação depender da alegação e prova de pressupostos autónomos, relacionados com a prática do crime, (ii) a sua aplicação depender da valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa, e (iii) a pena ser graduada no âmbito de uma moldura autónoma fixada na lei, é também, a pena acessória, “a consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal”, isto é, acompanha ou pode acompanhar, cumulativamente, a pena principal- v. M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, Almedina Coimbra, p. 356.
Penas acessórias são as que só podem ser aplicadas como acompanhantes de uma pena principal (art.º 66º a 69º do CP).
São as que o juiz pode aplicar na sentença condenatória, conjuntamente com uma pena principal e destinadas a reforçar o efeito desta, dependem da aplicação de uma pena principal e devem ser aplicadas na sentença, tudo dependendo de a sua aplicação se revelar ou não, necessária face ao caso concreto.
(…)
E, sendo aplicada cumulativamente com a pena principal depende da aplicação desta.
Não sendo a pena acessória critério definidor de admissão ou não de recurso.
Na verdade, a este propósito refere a lei apenas a pena de prisão, penas não privativas da liberdade (onde inclui a suspensão de execução da pena), medidas de coação e de garantia patrimonial (art.º 400º), sem que se refira a pena acessória.
Como pode ler-se na Decisão Sumária de Reclamação, nos termos do art.º 405º do Código de Processo Penal, de 14.02.20257 (Decisão Sumárias de Reclamação, nos termos do art.º 405º do CPP, do Exmo. Vice-Presidente do STJ, Conselheiro Nuno Gonçalves, de 14.02.2025, proferida no processo n.º 6482/16.1T9PRT.P1-A.S1 (…), face ao disposto nas mencionadas alíneas f) e e), o acórdão questionado é insuscetível de recurso, não assumindo, para este efeito, qualquer autonomia o acessório da condenação (de proibição do exercício de funções de administrador de insolvência pelo período de 2 anos e 6 meses), que o reclamante pretende igualmente impugnar em recurso ordinário em 2.º grau.
Com efeito, a pena acessória, que depende da pena principal e cuja aplicação está condicionada por uma pluralidade de fatores, não integra, enquanto tal, os critérios legais da recorribilidade dos acórdãos da Relação, proferidos em recurso.
Aqui tem aplicação o disposto no artigo 427.º, 2.ª parte, do CPP, ou seja, da decisão da 1.ª instância apenas cabia recurso para a Relação. Direito que o reclamante já exerceu.»
Este é também o nosso entendimento, o que exclui a recorribilidade, in casu, quanto às penas acessórias, aplicadas pela 1.ª instância e confirmadas pela Relação.
Como decorre dos autos o arguido AA por acórdão de 20.09.2024 do Juízo Central Criminal do Porto (Juiz 4) foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso efetivo e real, de:
- 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (praticados entre Fevereiro de 2017 e final de 2019), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 30.º, nºs 1 e 3, 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b), 69.º-B, nº2, e 69.º-C, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal:
- nas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- nas penas acessórias parcelares de proibição do exercício de funções pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2 do artigo 69.º-B do Código Penal;
- nas penas acessórias parcelares de proibição de confiança de menores pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2 do artigo 69.º-C do Código Penal; e
- nas penas acessórias parcelares de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº3 do artigo 69.º-C do Código Penal.
- 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada (praticado entre Junho e meados de Novembro de 2020), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 172.º, nº1, al. b), 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b), 69.º-B, nº2, e 69.º-C, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal:
- na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- na pena acessória de proibição do exercício de funções pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2 do artigo 69.º-B do Código Penal;
- na pena acessória de proibição de confiança de menores pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº2 do artigo 69.º-C do Código Penal; e
- na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do nº3 do artigo 69.º-C do Código Penal;
- Em cúmulo jurídico, ao abrigo dos artigos 30.º, nºs 1 e 3, e 77.º, nºs 1 a 4, do Código Penal, foi o arguido condenado nas penas únicas principais e acessórias:
- na pena (principal) única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- na pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-B, nº2, do Código Penal;
- na pena acessória única de proibição de confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, nºs 2 e 4, do Código Penal; e
- na pena acessória única de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, nº3, do Código Penal.
Mais foi condenado a pagar à demandante civil BB, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que a esta causou, a quantia total de 25.000 € (vinte e cinco mil euros).
Interposto recurso deste acórdão de facto e de direito para o tribunal da Relação do Porto veio este tribunal, por acórdão de 26.03.2025, a julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, na íntegra. Verifica-se, assim uma situação de dupla conforme, por ter havido duplo grau de jurisdição ao terem sido apreciadas, decididas e mantidas todas as questões de facto e de - direito sobre os crimes e medida das penas principais e acessórias aplicadas não sendo admissível um segundo grau de recurso, atenta a medida concreta de cada uma das penas parcelares principais em que o arguido foi condenado, não superiores a 8 anos de prisão e das penas acessórias parcelares e única que não excedem aquele «quantum».
Assim, e em síntese, o recurso terá de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP, no que concerne às diversas condenações em penas parcelares principais e às penas acessórias parcelares e única.
O conhecimento do presente recurso terá, assim, como objecto a pena única principal de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, fixada em cúmulo jurídico impondo-se a rejeição do recurso, porque inadmissível, no que concerne às demais questões nele suscitadas.
Ainda assim, em ordem à eventual deteção oficiosa de vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, não deixou de se proceder à leitura integral do acórdão recorrido, consignando-se não se evidenciar a presença de tais vícios, o que significa que a correcta decisão de direito não se mostra impossibilitada pela presença de vício decisório que este Supremo Tribunal possa e deva conhecer oficiosamente.
A matéria de facto provada está, assim, definitivamente fixada (cfr. art. 434º, do CPP).
Quanto à medida da pena única.
Como supra se deixou exposto o arguido foi condenado em cúmulo jurídicos das penas parcelares aplicadas aos vários crimes numa pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Como pressuposto do pedido de redução da pena única em que foi condenado encontrava-se, em primeira linha, a requerida alteração da qualificação jurídica dos crimes cometidos pelo arguido, isto é, a prática em concurso real de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (praticados entre Fevereiro de 2017 e final de 2019), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 30.º, nºs 1 e 3, 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b) do CP e de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada (praticado entre Junho e meados de Novembro de 2020), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 172.º, nº1, al. b), 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b), 69.º-B, nº2, e 69.º-C, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal, para a prática de um único crime (crime de trato sucessivo) de abuso sexual de criança agravado.
Pelos motivos supra expostos, não pode este Supremo Tribunal de Justiça conhecer da matéria de facto e da alteração da qualificação jurídica, nos termos requeridos pelo recorrente, pelo que, mantem nos seus precisos termos, a acertada condenação do arguido pela prática em concurso efectivo de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada e por 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada, nas penas parcelares principais fixadas no acórdão recorrido.
Defende o recorrente que a pena em que foi condenado é excessiva entendendo como justa, adequada e proporcional à sua culpa a condenação numa pena de 4 anos e 10 meses de prisão, a qual deverá ser declarada suspensa na sua execução por igual período com regime de prova, tendo em conta o facto de já não existir qualquer contacto com a ofendida, a ausência de antecedentes e a sua inserção social e laboral
A insurgência do recorrente no seu recurso relativamente à medida da pena tem sempre como pressuposto que deveria proceder a sua posição relativamente à não verificação de um concurso efetivo de crimes e de que os factos deveriam ser qualificados como a prática de um único crime um só dolo que perdurou por toda a sua actuação
Como já supra deixamos a sua posição não mereceu provimento.
Cabe-nos tão só apreciar o «quantum» da pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão em que o arguido foi condenados de
Como vem sendo jurisprudência firme e reiterada deste Supremo Tribunal de Justiça, o exame, em sede de recurso, da adequação ou correção da medida concreta da pena só é justificado em casos de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou em situações de manifesta violação da racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) nas operações de determinação previstas por lei, como a indicação e consideração dos factores de determinação e medida da pena.
Apenas nestas situações é que se justifica uma intervenção do tribunal de recurso para alterar a escolha e a determinação da espécie e da medida concreta da pena. Este sentido e método jurisprudencial é válido tanto para a determinação das medidas das penas parcelares quanto para a pena única.
Nessa medida, “a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração de factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.10.2023, proferido no processo n.º 944/16.8GEALM-A.S1.
No caso dos autos, o arguido foi condenado pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (praticados entre Fevereiro de 2017 e final de 2019), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 30.º, nºs 1 e 3, 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b do Código Penal, nas penas parcelares principais de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada (praticado entre Junho e meados de Novembro de 2020), p. e p. pelos artigos 14.º, nº1, 26.º, 172.º, nº1, al. b), 171.º, nºs 1 e 2, 177.º, nº1, al. b), 69.º-B, nº2, e 69.º-C, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal, na pena principal de 2 (dois) anos de prisão.
O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, recorrido, depois de ter confirmado as medidas das penas parcelares principais aplicadas em 1ª instância afirmou, a respeito da condenação do arguido na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão o seguinte:
«(2) Quanto à pena única fixada, se ela impressiona em valor absoluto – 8 anos e 6 meses de prisão – a verdade é que foi encontrada numa moldura abstrata que vai de 4 anos e 6 meses a 56 anos de prisão, não chegando, bem vistas as coisas, a corresponder à soma de duas das penas parcelares aplicadas pelos crimes de abuso sexual de criança praticados pelo recorrente, e ficando abaixo do limite máximo da moldura aplicável a cada crime (que é, como se viu, de 13 anos e 4 meses de prisão).
51. Ela responde – adequadamente, a nosso ver – à comissão de múltiplas agressões sexuais que se espraiaram por um período de cerca de 3 anos (pois que se iniciaram quando a ofendida nos autos tinha apenas 11 anos e prolongaram-se mesmo para lá do seu 14.º aniversário), durante, pois, todo um fundamental período formativo da futura personalidade e sexualidade adultas da ofendida, e que foram perpetradas por quem, na dinâmica familiar desta, dela devia cuidar e protegê-la (sendo assim significativo o grau de violação dos deveres a que estava sujeito o recorrente); para além disso, ocorreram no interior da habitação familiar (por vezes quando nela se encontravam presentes outras pessoas, o que mostra bem a pertinácia da vontade criminosa do recorrente), espaço que deveria representar um ambiente seguro para um sadio desenvolvimento afetivo, socioemocional e sexual da ofendida, tudo com as consequências assinaladas na matéria de facto dada por assente na decisão recorrida (e que não deixarão, nos anos vindouros, de continuar a fazer-se sentir, como salienta a literatura especializada nesta matéria).
52. A culpa que a conduta do recorrente reclama é, pois, muito elevada, cobrindo seguramente a pena que lhe foi aplicada.
53. Perante o que da personalidade do recorrente revelam os factos que praticou, as exigências de prevenção especial são elevadíssimas, não sendo obtemperadas pelos fatores favoráveis que lhe são reconhecidos na decisão recorrida, já que eles se verificaram durante todo o período em que se manteve o seu comportamento criminoso e em nada contribuíram para pôr cobro à sua atuação.
54. Também as exigências de prevenção geral são muito elevadas, pois que a atuação do recorrente exige uma reação que permita reconstituir expectativas comunitárias na validade das normas por ele violadas com a sua conduta, necessariamente postas em causa em níveis significativos perante uma tão prolongada prática criminosa (…).
59. (c) Sendo assim as coisas, portanto, não ocorrem razões bastantes que justifiquem que nos substituamos ao Tribunal recorrido na determinação da medida das penas – principais e acessórias – a impor ao recorrente, sendo que as razões por ele avançadas em arrimo da sua pretensão de as ver reduzidas não justificam solução diversa».
Apreciando,
Prescreve o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, quanto às regras de punição do concurso de crimes, que:
«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
De acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, a moldura penal aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
No caso em apreço, a moldura da punição do concurso vai de um mínimo de 4 anos e 6 meses a 56 anos de prisão, não podendo, porém, o ultrapassar 25 anos de prisão (nº.2 do art. 77 do CP).
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §§ 420 e 421, págs. 290/2, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 71.º, n.º 1, um critério especial: o do artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte.
Explicita o autor que, na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”.
E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Teremos assim de considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente para determinar a pena única - cf. artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal, que, de resto, corresponde quase integralmente ao disposto no § 54 do Código Penal alemão, cf. GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal – Parte General, trad. Espanhola, Madrid, 1997, pág. 1112.
Na formulação de EDUARDO CORREIA, Direito Criminal II, col. de Figueiredo Dias, reimpressão, Coimbra, 1993, pág. 212, “a soma jurídica das penas dos diversos factos tem de funcionar sempre, apenas, como moldura dentro da qual esses factos e a personalidade do respetivo agente devem ser avaliados como um todo”.
A pena única tem de socorrer-se dos parâmetros da fixação das penas parcelares, podendo funcionar como “guias” na fixação da pena do concurso.
A sua fixação – tal como resulta da lei – não se determina com a soma dos crimes cometidos e das penas respetivas, mas da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do arguido, pois tem de ser considerado e ponderado um conjunto de factos e a sua personalidade “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado” – cf. Figueiredo Dias, supra citado.
Significa isto que os factores gerais do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal devem, também, ser tomados em linha de conta nesta determinação da medida da pena, mas apenas referidos ao conspecto global dos crimes e da personalidade do arguido e não em relação a cada um dos crimes individualmente considerados pelos quais o arguido já foi condenado, sob pena de se violar o princípio ne bis in idem (cf. artigo 71.º, n.º 3, do mesmo diploma legal).
Atento tudo o que se deixou dito, é óbvio que na pena única a aplicar, terá de relevar a medida de cada uma das penas concretas aplicadas por cada um dos crimes cometidos pelo arguido.
Acresce que na pena conjunta, impõe-se, atender igualmente aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso” (Ac. STJ de 10-12-2014, processo n.º 659/12.6JDLSB.L1.S1, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, Ano de 2014), impregnados da sua dimensão constitucional, pois que «[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta – dos factos e da personalidade do agente, importando, para tanto, saber se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido», sem esquecer, que «[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)» (assim, Ac. STJ de 27-06-2012, processo n.º 70/07.0JBLSB-D.S1).
Posto isto e revertendo ao caso concreto dos autos, verificamos que a ilicitude dos factos é muito elevada no contexto dos crimes cometidos, já de si graves, atendendo o número de crimes praticados pelo arguido, num total de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada (praticados entre Fevereiro de 2017 e final de 2019 e 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, na forma consumada (praticado entre Junho e meados de Novembro de 2020), ao dolo com que o arguido agiu directo, intenso e com prolongamento no tempo.
Acrescem, ainda as naturais consequências psicológicas para a ofendida resultantes da conduta do arguido que, como é consabido, de acordo com os estudos das áreas da Psiquiátrica e da Psicologia sobre agressores sexuais e vítimas de abusos sexuais, são graves afectando de forma considerável o seu normal e são desenvolvimento psicológico, com sequelas que se prolongam no tempo ao nível da auto estima, da segurança, da confiança e proteção, sobretudo quando a agressão é cometida por familiares próximos ou pessoas que conviviam com a vítima, como no caso dos autos, em que o arguido, companheiro da mãe da ofendida e vivendo todos na mesma casa, tinha o especial dever de proteger a vitima e de lhe proporcionar um clima de segurança, tendo acuado de forma a abusar dela sexualmente e de forma repetida, no tempo, sem qualquer respeito pela saúde física, psicológica e pelo bem estar de uma criança.
As exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização do arguido apresentam-se, igualmente, elevadas pois, apesar de não ter quaisquer antecedentes criminais, o elevado número de situações em que satisfez ou procurou satisfazer os seus intentos libidinosos e desejo sexual com a participação de uma menor durante a infância e a adolescência desta (a vítima BB, que sofreu os crimes desde os 11 até aos 14 anos de idade) revela uma inequívoca distorção da personalidade do arguido, um adulto, quanto à sua realização pessoal no plano da sexualidade revelando uma total indiferença face a fragilidade de um a criança de que se aproveita e uma forte determinação para a prática de actos desta natureza que perpétua no tempo.
As exigências de prevenção geral, traduzidas na necessidade de reafirmar a validade da norma violada aos olhos da comunidade, são muito elevadas, dada a natureza e gravidade dos crimes em causa nos autos, crimes de natureza sexual praticados contra uma menor durante a sua infância e adolescência no interior da residência/casa de morada de família da própria vítima, ferem os valores mais elementares de protecção das crianças e a moral pública causando um fortíssimo alarme social, impondo-se uma forte sensibilização da população em geral, sobretudo em contexto familiar (esfera em que a criança e o jovem procuram e esperam protecção a todos os níveis), para a necessidade de respeitar em absoluto o direito de autodeterminação sexual das crianças e jovens.
Acentuando, ainda, as necessidades de prevenção geral acresce, a elevada frequência com que crimes desta natureza se vem verificando na nossa sociedade, o que é causador de grande instabilidade social. A generalidade dos relatórios que têm analisado o tema [Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente a 2024; Instituto Nacional de Estatística; Estatísticas APAV – Relatório anual 2024] apontam uma subida dos crimes de violência sexual, com predominância para os crimes que incidem sobre criança e jovens.
Há, pois, que concluir que a globalidade dos factos, o número de crimes cometidos pelo arguido e o lapso temporal em que perdurou a sua actuação gera uma perspectiva de conjunto, uma imagem global da sua actuação que se projecta nas exigências de prevenção especial de forma acentuada.
Na ponderação de todo o exposto, verifica-se que os factos cometidos pelo arguido não foram acidentais no seu percurso de vida, revelando antes uma forte inclinação do mesmo para a prática deste tipo de crimes.
Deste modo, considerando a globalidade dos factos e a personalidade do arguido de que a sua actuação delituosa é demonstrativa, atentas as exigências de prevenção geral e especial, mostra-se adequada a pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, em que o arguido foi condenado, pena esta que se mostra equilibrada e ajustada, revelando até uma grande dose de benevolência, tudo em conformidade com os critérios e princípios estabelecidos nos artigos 18.º, n.º 2, da Constituição, e 71.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.º 1, do Código Penal.
Por sua vez, ao contrário do que pretende, é de reduzida importância a circunstância de o arguido se encontrar social e laboralmente inserido, condições que já existiam à data da pática dos factos, não o tendo demovido de os praticar.
Em conclusão, na determinação da pena única em que o arguido foi condenado, foram respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis, bem como, o limite da sua culpa, não havendo lugar à alteração da dosimetria da pena. Na avaliação do ilícito global perpetrado mostra-se ter sido ponderada a conexão entre os factos concorrentes, a sua relação com a personalidade do arguido, e um ilícito global desvalioso
Termos em que se entende ser de manter a pena única aplicada ao arguido.
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:
A. Indeferir a realização da audiência neste STJ requerida pelo recorrente por inadmissibilidade legal.
B. Rejeitar, por legalmente inadmissível, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP o recurso do arguido AA na parte referente as questões relacionadas com as nulidades do acórdão, por falta de fundamentação, erro de julgamento, à qualificação jurídica dos factos e à determinação das penas principais parcelares e às penas acessórias (abrangendo todas as questões conexas, de natureza substantiva ou processual a elas respeitantes).
C. No mais, quanto à determinação da pena única conjunta – única questão de que é admissível conhecer -, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 9 UC`s,
Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Novembro de 2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pela relatora e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Ana Costa Paramés (Relatora)
Ernesto Nascimento (1º adjunto)
Jorge Gonçalves (2.º Adjunto)