RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
INADMISSIBILIDADE
INDEMNIZAÇÃO
DUPLA CONFORME
DANO NÃO PATRIMONIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
ABUSO SEXUAL
CRIANÇA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I - A decisão confirmativa in mellius, ainda que constituindo confirmação meramente parcial de decisão anterior proferida em recurso, cabe no conceito de dupla conforme.
II - O recurso relativo à indemnização civil oficiosamente arbitrada rege-se pelas regras do recurso referente ao pedido cível.
III - No caso da indemnização civil, a dupla conforme não opera por via das regras do processo penal, que a não contemplam, mas por via da convocação do disposto no art. 617.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP, na medida em que existe uma lacuna no CPP quanto a essa matéria.
IV - A admissibilidade de recurso interposto de acórdão do Tribunal da Relação quanto à indemnização civil decretada tem que superar cumulativamente os requisitos de admissibilidade em função da alçada, nos termos do art. 400.º, n.º 2, do CPP, e os requisitos de admissibilidade decorrentes da inexistência de identidade do julgado, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC.
V - Na sindicância da medida da pena o STJ tem entendido que com ressalva dos casos de ostensiva violação dos critérios legais, o tribunal ad quem não deve imiscuir-se no quantum exacto de pena. A margem de intervenção do tribunal superior contém-se essencialmente na verificação da observância dos critérios legais e na adequação da dosimetria encontrada, de tal forma que se a pena encontrada pelas instâncias se contiver no âmbito da faixa penal que o próprio tribunal superior teria utilizado, a pena estará correctamente doseada e não deverá sofrer alteração. Trata-se, afinal, da recuperação, também aqui, do paradigma da intervenção determinada pela congruência das normas e princípios legais, à luz dos ensinamentos da jurisprudência, com a decisão sindicada. Se, de acordo com esses princípios, normas e critérios a pena estiver fundamentada e se oferecer como justa, deverá ser mantida. Apenas será alterada se assim não suceder.

Texto Integral

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório:

AA foi julgado em tribunal colectivo no Juízo Central Criminal de Setúbal – Juiz 4, que proferiu acórdão decidindo nos seguintes termos:

(…)

A. Condenar o arguido AA, como autor material, pela prática de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171º nº 1 e nº 2 e 177º nº 1, alínea a) ambos do Código Penal, por cada um dos crimes, na pena parcelar de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

B. Absolver o arguido dos demais crimes pelo qual se encontrava acusado.

C. Condenar o referido arguido, na pena única de 13 (treze) anos de prisão.

D. Condenar o referido arguido nas penas acessórias de:

i) Proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 13 anos;

ii) Proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, nos termos dos artigos 69º-B e 69º-C do Código Penal, pelo período de 13 anos.

iii) Inibição do exercício das responsabilidades parentais relativamente ofendida até à maioridade da mesma (artigo 69º-C do Código Penal).

E. Atribuir, a título de reparação pelos prejuízos causados à ofendida BB, vítima especialmente vulnerável, representada pela assistente, sua mãe, a quantia de global de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros).

(…)

Desta decisão o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, julgando-o parcialmente procedente, revogou a medida das penas parcelares, reduzindo-as para 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, assim como reduziu a pena única para 10 (dez) anos de prisão, tendo ainda reduzido a duração das penas acessórias aplicadas para o período de 10 (dez) anos, confirmando em tudo mais o acórdão recorrido.

Novamente inconformado, recorre o arguido AA para este Supremo Tribunal de Justiça formulando as seguintes conclusões:

A. Interpõe-se Recurso do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, que condenou em súmula, na pena única de 10 (dez) anos de prisão e a duração das penas acessórias aplicadas para o período de 10 (dez) anos, bem como no pagamento de 25.000,00€, a título de indemnização à Ofendida, pela prática de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171º nº 1 e nº 2 e 177º nº 1, alínea a) ambos do Código Penal

B. As razões de discordância com a Douta decisão, sob Recurso, prendem-se com o entendimento de que as penas parcelares e única aplicadas são excepcionalmente severas, por um lado; e que os montantes a liquidar a título de compensação de danos não patrimoniais são consideravelmente elevados e desproporcionados, por outro.

C. Uma melhor apreciação dos factos dados como provados e uma correta interpretação das normas legais aplicáveis, impõe uma condenação do Recorrente numa pena mais próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável, bem como uma redução considerável da quantia a indemnizar.

D. Na determinação da Medida de Pena, o Tribunal não valorou convenientemente e segundo o melhor critério, as circunstâncias suscetíveis de depor a favor do Arguido/ Recorrente, designadamente, a ausência de antecedentes criminais, a idade, o acompanhamento/ inserção familiar, junto dos Pais e ainda o pedido de perdão efetuado em plena Audiência de Discussão e Julgamento.

E. De resto, nunca o Arguido negou a prática dos factos e crime em apreço nestes autos: seja em fase de inquérito, seja na Contestação, seja em Julgamento.

F. Aliás, ao invés, o Arguido assumiu a prática dos factos em apreço nos autos, manifestando em simultâneo sentimentos de angústia e de perdão para com a Filha vítima. Assume seriamente essa circunstância mesmo perante o Tribunal – o que foi plenamente desconsiderado e erroneamente interpretado pelo Tribunal a quo.

G. O recorrente está consciente da forte necessidade de se punir com rigor e uniformidade os ilícitos em causa. No entanto, a pena concreta tem como finalidade principal ser um remédio que, não pondo entre parêntesis a censura do facto, potencie a ressocialização do delinquente.

H. A aplicabilidade ou manutenção de uma pena visa a protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, cfr. nos refere o art. 40º do Código Penal.

I. O art. 70º do Código Penal fornece ao Juiz o critério geral que deve presidir à escolha das penas. De acordo com a referida disposição legal o Tribunal deve ter em atenção no momento da aplicação da pena, aquela que seja adequada e suficiente às finalidades da punição, ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. (art. 40 nº 1 do C.P.).

J. Por sua vez, a definição da medida da pena concreta, e de que forma se devem relacionar a culpa e as finalidades de prevenção geral e especial, encontra-se vertido no art. 71º do CPenal.

K. A fixação da pena dentro dos limites do marco punitivo é um ato de discricionariedade judicial.

L. Contudo, tal discricionariedade não é livre, mas sim vinculada aos princípios individualizadores que, em parte, não estão escritos, mas que radicam na própria finalidade da pena.

M. Por consequência, a pena deve ponderar, igualmente, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido, ao invés de prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável.

N. Todas as doutrinas sobre prevenção têm como fim último a reinserção social do agente (ressocialização), para o que se deve ter em conta os seus antecedentes criminais e a sua personalidade no conjunto dos factos.

O. Analisada a fundamentação, verifica-se que foram sopesadas em demasia as circunstâncias agravantes. Por seu turno, desvalorizou aquelas que poderiam depor a favor do Recorrente, a inexistência de antecedentes criminais, a inserção familiar e social, a idade e saúde do Recorrente.

P. Parece-nos assim que, salvo o devido respeito por melhor opinião, o Tribunal “a quo” na determinação da medida da pena, NOMEADAMENTE DAS PENAS PARCELARES não apreciou devidamente as circunstâncias que depõe a favor do Recorrente, violando os artigos 70º, 71º nº 1 e nº 2 al. e) e 72º nºs 1 e 2 al. c) do Código Penal.

Q. Face às necessidades de prevenção especial, atendendo à personalidade do agente e ao facto de ser a sua única condenação, as penas parcelares deveriam ser fixadas no mínimo legal de 4 anos e 6 meses e, consequentemente a aplicação de uma pena única nunca superior aos 6 anos e 6 meses de prisão, reajustando-se também a medida das penas acessórias a que foi condenado.

R. CONSIDERAMOS, PORTANTO, ǪUE ǪUALǪUER PENA ÚNICA APLICADA SUPERIOR A 6 ANOS e 6 MESES DE PRISÃO NÃO SATISFAZ OS FINS DA PENA DE PREVENÇÃO GERAL E ESPECIAL.

ACRESCE:

S. A indemnização a que foi condenado liquidar a título de danos não patrimoniais, nos termos do art. 82.º-A do CPP, entende-se por excessiva e desprovida.

T. De harmonia com o disposto no artigo 129º do Código Penal a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

U. Nestes termos, o normativo legal vertido no artigo 483º n.º 1 do Código Civil, por seu turno, impõe a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos, àquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.

V. CONTUDO, em sede dos danos não patrimoniais preceitua o artigo 496.º/1 do Código Civil que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Estabelece, ainda, o n.º 3 do mesmo artigo que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.ºdo CCivil.

W. O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, entre outros.

X. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

Y. Salvo o devido respeito por melhor opinião, o Tribunal “a quo” ao determinar a quantia indemnizatória a título de danos não patrimoniais, violou os artigos 82.º-A do CPPenal, 129.º do CPenal e ainda os arts. 483.º e 496.º do CCivil.

Z. Face ao descrito supra, à idade do Arguido, às condições sociais e económicas do Arguido, e todos os demais parâmetros atinentes à obrigação de indemnizar, entendemos ser de Fixar-se a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos por CC a quantia de 15 000,00 €.

Nestes Termos,

Nos Melhores de Direito,

E Sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Ex.ª,

Deve ser revogada a decisão recorrida, reduzindo-se as penas parcelares aplicadas ao mínimo legal de 4 anos e 6 meses de prisão, sendo o Arguido/Recorrente condenado em pena única não superior a 6 anos e 6 meses de prisão, e no pagamento de uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos nunca superior a 15 000,00 €.

O M.P. respondeu, pronunciando-se pela manutenção do decidido no acórdão impugnado, com total improcedência do recurso dele interposto.

O Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, para além do mais, refere o seguinte:

“(…)

Como vem sendo entendimento constante do STJ, a irrecorribilidade de uma decisão resultante da dupla conforme, “(…) impede este tribunal de conhecer de todas as questões conexas, adjectivas e substantivas, que lhe digam respeito, designadamente, as respectivas nulidades, os vícios decisórios, as invalidades e proibições de prova, a livre apreciação da prova, o pro reo, a qualificação jurídica dos factos, a determinação da medida da pena singular e inconstitucionalidades suscitadas neste âmbito.

Tendo o acórdão da Relação, confirmado, quanto aos factos e sua qualificação, a decisão da 1.ª instância, bem como as penas parcelares – de 3 anos e 6 meses de prisão e 7 anos e 6 meses de prisão – e a pena única – de 9 anos de prisão – aplicadas ao recorrente, a verificação da dupla conforme determina, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), todos do CPP, que os poderes de cognição do STJ, no recurso interposto, estão limitados ao cúmulo jurídico, e à medida da pena única” 1.

Ora, ficando o objeto do recurso limitado à medida da pena única, já que, como se viu, são irrecorríveis as penas parcelares, importa referir que é hoje consensual – e constitui, aliás, jurisprudência constante deste STJ - que a determinação concreta da pena não está dependente de critérios de índole aritmética, nem pretende alcançar uma “precisão matemática”.

A escolha e a determinação da medida da pena resulta de uma operação de natureza puramente judicial que exige ponderação e adequada valoração das finalidades de prevenção das penas e dos critérios da sua escolha e dosimetria, sempre por referência à culpa do agente, como seu necessário pressuposto e limite inultrapassável, em conformidade com o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do CP 2.

Como ensina Fernanda Palma, “a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial” 3.

No caso dos autos, as exigências de prevenção geral mostram-se particularmente elevadas, atenta a dignidade que assume o bem jurídico aqui em causa, o extraordinário impacto negativo que estes crimes têm na saúde física e psicológica das vítimas e, como tantas vezes acontece, na coesão familiar e social.

Para além disso, a culpa do recorrente é elevadíssima, o grau de ilicitude dos factos e o extremo e prolongado desvio aos valores impostos pela ordem jurídica que os mesmos implicaram, bem como a intensidade do dolo, que foi sempre direto, exigem uma pena elevada.

Como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, Editorial Notícias, pp. 231, § 310), “Tudo o que o aplicador tem de perguntar-se é qual o mínimo de pena capaz de, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, se mostrar ainda comunitariamente suportável à luz da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada”.

É exatamente esta ponderação, esta procura de equilíbrio que, a nosso ver, está patente na decisão recorrida.

Assim, importará aqui ao STJ verificar apenas a fundamentação do acórdão recorrido e se dela emerge ou não alguma dúvida sobre a observância dos princípios e critérios que regem a determinação da medida da pena 4.

Não havendo dúvidas, como se nos afigura não haver, e sendo adequada e proporcional – em suma, justa – a pena única aplicada ao recorrente, cremos que o tribunal de recurso deverá abster-se de qualquer modificação, pois como tem sido jurisprudência constante do STJ “Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” 5.

5. Assim, examinados os fundamentos do recurso, emite-se parecer no sentido de que deve, o mesmo, ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.

Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões formuladas, as questões a apreciar são as seguintes:

- Medida das penas parcelares;

- Medida da pena única resultante do cúmulo jurídico de penas;

- Montante arbitrado a título de indemnização por danos não patrimoniais.

II – Fundamentação:

Os factos provados, tal como foram considerados em 1ª instância e acolhidos pelo Tribunal da Relação de Évora, são os seguintes:

1. A ofendida BB nasceu a .../.../2010 e é filha do arguido, AA, e de DD.

2. O arguido AA, a ofendida e o respectivo agregado familiar, composto pela mãe e pelos três irmãos da ofendida, menores de idade, vieram viver para Portugal no dia 31 de Março de 2022, tendo passado, a partir de então, a residir com a avó paterna da ofendida, em casa desta, sita naRua 1, em Setúbal.

3. A mãe da ofendida passou algum tempo depois a trabalhar num lar de idosos, o que aconteceu durante cerca de 15 dias, e a partir de data não apurada, mas ocorrida no mês de Abril/Maio de 2022, passou a trabalhar, aos fins-de-semana, como cuidadora de uma idosa, tendo passado, a partir desta data, a pernoitar na habitação da pessoa de quem cuidava, nas noites de sexta-feira, de sábado e de domingo.

4. O arguido AA, técnico de informática, não trabalhava, por regra, aos fins-de-semana e era ele quem cuidava da ofendida e dos seus irmãos, na ausência da mãe da ofendida.

5. Assim, e na ausência da mãe da ofendida, o arguido AA passou a dormir sozinho, com alguma regularidade.

6. Pelo que, em algumas vezes, o arguido dormiu com os filhos, concretamente, com a ofendida, para que este não se sentisse tão sozinho.

7. Na primeira ocasião em que a ofendida dormiu com o arguido AA, numa sexta-feira próxima da Páscoa do ano de 2022, quando ambos se encontravam deitados, encontrando-se a ofendida deitada de costas para o arguido, este abraçou a ofendida.

8. Em acto contínuo, o arguido AA colocou uma das suas mãos na barriga da ofendida, por dentro da camisa de dormir que esta vestia, e acariciou-lhe a barriga.

9. Ao cabo de algum tempo, o arguido AA tocou nos seios da ofendida, que apalpou e acariciou, e tocou-lhe, também, no rabo e na vagina, zonas corporais da ofendida que também apalpou e acariciou, ao mesmo tempo que roçava o seu corpo no corpo da ofendida.

10. E, o arguido AA beijou a ofendida, pelo menos, uma vez na boca.

11. Passado algum tempo, o arguido AA introduziu, pelo menos, um dedo no interior da vagina da ofendida e, posteriormente, no ânus da ofendida, o que lhe causou dores.

12. O arguido AA só cessou o seu comportamento quando a ofendida pediu para ir à casa de banho e se levantou com essa finalidade.

13. Em data não apurada, mas ocorrida, na semana seguinte, no período da tarde, quando a ofendida se encontrava em casa apenas com o arguido AA e com o seu irmão mais novo, e enquanto os três viam desenhos animados na televisão, no quarto do arguido, a dada altura, o arguido pediu ao irmão mais novo da ofendida que fosse para o seu quarto, para, assim, poder ficar a sós com a ofendida.

14. Passado algum tempo, encontrando-se o arguido AA e a ofendida deitados na cama, a ver televisão, o arguido abraçou a ofendida.

15. Em acto contínuo, o arguido AA colocou uma das suas mãos por dentro dos calções e das cuecas que a ofendida trajava e tocou-lhe na vagina, que apalpou e acariciou.

16. Depois disso, o arguido AA introduziu, pelo menos, um dos seus dedos no interior da vagina da ofendida e, posteriormente, no ânus da ofendida.

17. O arguido AA só cessou o seu comportamento quando os outros irmãos da ofendida chegaram.

18. Em data não apurada, mas ocorrida, seguramente, alguns meses depois, ainda no decurso do ano de 2022, quando a ofendida se encontrava em casa apenas com o arguido AA e com o seu irmão mais novo, encontrando-se o arguido e a ofendida, ambos vestidos, a verem televisão, sentados, no sofá da sala, a dada altura, o arguido puxou a ofendida para o seu colo.

19. Passado pouco tempo, o arguido AA deitou-se no sofá da sala, após o que colocou a cabeça da ofendida no seu colo, na zona do baixo ventre.

20. Em data não apurada, mas ocorrida, seguramente, entre os meses de Julho e de Outubro de 2022, o arguido AA, a ofendida e o respectivo agregado familiar mudaram de casa, passando a viver na residência sita na Rua 2, em Setúbal.

22. Em data não apurada, mas ocorrida no início do mês de Março do ano de 2023, a mãe da ofendida separou-se do arguido AA, com quem deixou de viver, e mudou-se para a cidade do Porto, onde passou a viver e a trabalhar, nos dias úteis da semana, deslocando-se a Setúbal, aos fins-de-semana, para laborar em casa da idosa de quem cuidava e para privar e conviver com os seus filhos, que passavam os fins-de-semana consigo, na residência desta última.

23. A partir de então, isto é, a partir de data não apurada do mês de Março do ano de 2023, e porque os irmãos mais novos da ofendida se sentiam tristes, pela ausência da mãe, decidiram, de comum acordo entre eles, que eles e a ofendida passariam a dormir, à vez, com o arguido na sua cama.

24. Uma vez que a ofendida não queria que a sua irmã passasse pelo mesmo e que não queria, também, que os seus irmãos suspeitassem do que se passava entre ela e o seu pai, a ofendida acedeu à pretensão dos seus irmãos e voltou a dormir com o arguido AA, na cama deste.

25. A partir de então, isto é, a partir de data não apurada do mês de Março do ano de 2023 até data não apurada do mês de Setembro de 2023, mas anterior a 22 de Setembro sempre que a ofendida dormia com o arguido AA, o arguido, colocava uma das suas mãos por dentro do pijama ou da camisa de dormir que a ofendida trajava e tocava-lhe na vagina e no rabo, que apalpava e acariciava, e em algumas vezes beijava a ofendida no pescoço e roçava o seu corpo no corpo da ofendida.

26. Ademais, nessas ocasiões, em cada uma delas, o arguido AA introduzia, pelo menos, um dedo no interior da vagina da ofendida e no ânus da ofendida, o que lhe causava dores.

27. Além disso, no lapso temporal acima indicado no ponto 25., era frequente o arguido AA dormir uma sesta, durante a tarde, depois de almoço.

28. Por vezes, o arguido AA pedia à ofendida que lhe fizesse companhia e que se deitasse junto dele, para dormirem, no quarto do arguido.

29. Em algumas ocasiões, o arguido AA pedia à ofendida que lhe acariciasse as costas e que lhe beijasse a zona da nuca, pretensão a que nem sempre a ofendida acedia.

30. Quanto a ofendida não acedia às pretensões do arguido AA, referidas em 29., o arguido em algumas vezes, em número não concretamente apurado, beijava a ofendida no pescoço, e colocava, sempre, uma das suas mãos por dentro das cuecas que a ofendida trajava e tocava-lhe na vagina e no rabo, que apalpava e acariciava.

31. Ademais, nessas ocasiões, em cada uma delas, o arguido AA introduzia, pelo menos, um dedo no interior da vagina da ofendida e no ânus da ofendida, o que lhe causava dores.

32. Em simultâneo, nalgumas daquelas ocasiões, o arguido AA roçava o seu corpo no corpo da ofendida.

33. A factualidade descrita em 25. a 32. ocorreu, pelo menos, em 10 ocasiões distintas.

34. No dia 22 de Setembro de 2023, a ofendida, relatou o sucedido à sua psicóloga, que, por seu turno, participou os factos de que tomara conhecimento às autoridades.

35. Nesta decorrência, a ofendida e os seus irmãos foram acolhidos primeiro em unidade hospital e posteriormente em estrutura residencial para crianças, onde residiram até ao dia 10 de Novembro de 2023, data em que passaram a viver com a sua mãe.

36. A ofendida contava, nas circunstâncias de tempo acima indicadas, com idades compreendidas entre os 12 (doze) e os 13 (treze) anos de idade, o que a tornava particularmente indefesa perante as investidas do arguido AA, circunstâncias que eram do conhecimento deste, porquanto o arguido é pai da ofendida e vivia com ela e com o respectivo agregado familiar na mesma residência, convivendo diariamente com aquela.

37. O arguido AA agiu conforme anteriormente descrito, tirando partido da circunstância de viver na mesma residência em que habitava a ofendida, sua filha, , bem como, ainda, da relação de parentesco existente entre o arguido e a ofendida, sua filha, usando sempre, para o efeito, do ascendente que tinha sobre a mesma, por ser seu pai.

38. Além disso, o arguido AA agiu, ainda, conforme anteriormente descrito, tirando proveito da situação de especial vulnerabilidade da ofendida, em razão da sua tenra idade.

39. O arguido AA agiu com o propósito, concretizado, de satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente às consequências que tal actuação provocava na ofendida, bem sabendo que a ofendida era menor de 14 (catorze) anos de idade, e bem sabendo, também, que a ofendida não tinha, em razão da sua idade, a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, no que concerne à sua sexualidade.

40. Mais sabia o arguido AA que a sua actuação era idónea para produzir dano no desenvolvimento psicológico da ofendida, o que, efectivamente, sucedeu, e que, ao actuar da forma descrita, punha em crise, como se verificou, a livre formação da sua personalidade, o sentimento de pudor e de vergonha desta, além do sentimento de decência inato à generalidade das pessoas, e, não obstante, não se absteve de proceder nos moldes supra apontados.

41. O arguido AA agiu sempre e em tudo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas, supra descritas, eram proibidas e punidas por lei penal.

- Da contestação e das condições pessoais do arguido:

- Mais se provou que o arguido:

42. Tem como habilitações académicas a licenciatura em Engenharia de Redes.

43. Contraiu matrimónio com DD aos 22 anos de idade, num contexto relacional coeso, e afetivo.

44. Do referido casamento nasceram os quatro filhos do casal, atualmente com 14, 10, 9 e 5 anos de idade.

45. Na sequência de desentendimentos e discussões associadas ao distanciamento afetivo-sexual do casal e à saída do cônjuge do agregado familiar, ocorreu o divórcio do casal.

46. O arguido desenvolveu atividade na área da informática, desde os 17 anos de idade, iniciando a actividade como “freelancer”, tendo após a conclusão da licenciatura, iniciado atividade em nome individual, como analista de sistemas de informática, numa empresa própria.

47. Em momento anterior à reclusão exerceu funções de técnico de informática com vínculo laboral, em unidade hoteleira, Hospitalar e em empresa na zona Portuária de Setúbal.

48. E, mantinha um estilo de vida estruturado, centrado no exercício profissional, bem como no convívio familiar, num enquadramento economicamente estável, sendo considerado pelos que com ele convivem.

49. Receia uma eventual condenação, considerando que a mesma comprometerá a sua imagem familiar e profissional, que valoriza.

50. Assim, como constituiu um constrangimento a nível económico, familiar e pessoal, designadamente, com o afastamento dos filhos.

51. Em reclusão mantem um comportamento adequado às normas prisionais.

52. Recebe visitas regulares da mãe e do padrasto, com quem pretende voltar a residir, em meio livre.

53. Desempenha funções como cuidador de reclusos, dependente do apoio de terceiros.

54. Quando em liberdade pretende retomar a actividade laboral.

55. Manifestou arrependimento.

56. Aceita tratamento, mas entende não necessitar do mesmo.

57. Do certificado de registo criminal nada consta.

Factos não provados:

Não se provou:

a. Que nas circunstâncias de tempo de lugar referidas no ponto 19. o arguido colocou a cabeça da ofendida por cima do seu pénis.

b. O arguido só cessou esse comportamento quando os avós da ofendida entraram em casa.

c. Na ocasião descrita em a. o arguido agiu com o propósito, concretizado, de satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente às consequências que tal actuação provocava na ofendida.

d. Sem prejuízo do que consta no ponto 33., que a factualidade descrita em 25. a 32. ocorreu com a periodicidade de duas vezes por semana, na generalidade das semanas, em 68 ocasiões distintas.

A matéria de facto provada foi fundamentada nos seguintes termos:

A matéria de facto dada como provada, teve por base a análise concatenada e crítica da prova, atentas as regras da experiência comum e a livre apreciação da prova e convicção do julgador (cfr. art. 127º do CPP), designadamente:

i) Pericial

- Relatório de perícia médico legal – perícia psicológica- à menor BB, de fls. 300 a 309, cujo exame foi realizado a 13 de Março de 2024.

A análise do referido relatório, concatenada com as declarações para memória futura prestadas pela ofendida foi, essencial, ao convencimento do tribunal e ao reforço da credibilização das referidas declarações, (dada a inexistência de qualquer animosidade, ressentimento ou sentimento negativo relativamente ao arguido, seu pai, o que maior credibilidade infere ao depoimento) no que tange à factualidade provada e atinente às práticas sexuais aí descritas.

Com efeito, de relevante para a convicção do tribunal resulta, desde logo, o que se extrai do relatório, no que à relação com a família e relato dos factos se refere, por parte da examinanda/ofendida.

Aí consta que:

“gosto da minha família, da minha mãe do meus irmãos e do meu pai também eu sei que devia odiar ele pelo que ele fez mas eu amo ele, não odeio ele é meu pai, eu queria que ele soubesse que o que ele fez foi errado mas eu não tenho ódio nem raiva dele.”

(…) o pai era bom, ele era divertido às vezes, cuidadoso, tentava dar o seu melhor, o que a gente queria, tipo quando saia para algum sítio ou quando fazia alguma comida que a gente queria. A único coisa ruim nele era quando ele se zangava muito, não sabia controlar a raiva dele, a mãe não deixava ele bater na gente, mas quando ela não estava ele batia de cinto e chinelo. A mãe é muito boa, cuidadosa e simpática.”

No relato a menor refere, dois episódios concretos quando ainda estavam na casa da avós e, não conseguindo concretizar, refere mais de dez vezes, quando estavam na “nossa casa”, relato este consentâneo com o que consta da factualidade provada.

Salienta que se sentiu em todas “as situações estranha”.

Questionada se às vezes pensava no que aconteceu respondeu «penso muitas vezes...o porquê de ele fazer isso comigo, com a própria filha e não entendo o porquê. Eu queria saber se ele não sente raiva de mim, sinto-me culpada por ele estar preso, quando contei à minha psicóloga achei que não ia acontecer nada, eu precisava de desabafar e contei para ela, porque tinha discutido e porque ele dizia que nunca mas ia acontecer e estava sempre acontecendo de novo...eu queria dizer a ele que eu amo ele apesar de tudo. (sic)».

Todo este relato, descrito no relatório, acabou por ser corroborado pela ofendida nas declarações para memória futura que prestou e foi percecionado pelo tribunal colectivo na visualização das imagens, sendo que a linguagem não verbal, foi como se verá, demonstrativa da veracidade do que descreveu, do seu sofrimento e sentimento face ao que vivenciou.

Mais releva, para além do que se conclui na perícia, o que consta no relatório pericial no que à consistência dos relatos com os episódios descritos se refere.

A esse propósito se consigna que “o discurso é espontâneo, coerente e organizado, não se evidenciando alterações de linguagem, nem quanto à forma, curso ou conteúdo do pensamento. Consciente, lúcida, orientada no espaço e no tempo, auto e alo psiquicamente. Mantém a atenção ao longo da situação de exame, não se apurando problemas em termos de memória.”

E, há a salientar ainda a avaliação quanto à credibilidade do testemunho dos relatos, anotando-se na perícia realizada (página 13 e 14) que:

“Na perícia realizada não se procurou estabelecer a verdade ou mentira declaração, mas analisar se esta cumpria alguns critérios que são reconhecidos pela investigação psicológica e cuja presença indica uma probabilidade alta de corresponder a um facto real. Os critérios avaliados foram: características gerais das declarações (quantidade de detalhes, estrutura lógica e elaboração inestruturada); características específicas (contextualização, descrição das interações, reprodução das conversações, complicações durante o incidente), particularidades do conteúdo (detalhes inusuais, detalhes periféricos, incompreensão de detalhes relatados com precisão), associações externas relacionadas, alusão ao estado mental subjetivo do próprio, precisão), associações externas relacionadas, alusão ao estado mental subjetivo do próprio, atribuição de um estado psicológico ao autor do delito, conteúdos relativos à motivação, correções espontâneas, admissão de falta de memória, apresentar dúvidas acerca do seu próprio testemunho, auto desaprovação, elementos/detalhes característicos do delito.

“Em relação às características gerais das declarações, somos da opinião, de acordo com os pressupostos do instrumento, de que há coerência nas descrições, cuja verbalização foi espontânea (o relato é inicialmente livre e as questões são colocadas de forma aberta, não diretiva e não sugestiva) relativamente ao fato da ocorrência de atos abusivos praticados contra BB. Não apurámos a existência de benefícios secundários, nem de elementos que possam ser interpretados como fatores de simulação ou dissimulação ou manipulação do discurso por terceiros.”

Mais, conclui que, «Assim, da avaliação realizada ao conteúdo e validade das declarações prestadas concluímos que a avaliação global das declarações no caso em presença é de “muito provavelmente credível” sobre a existência de um comportamento sexualizado entre BB e um adulto”.

E, relevam, naturalmente o conteúdo das conclusões e respostas aos quesitos da perícia realizada à ofendida, juízo científico e crítico feito pela perita que elaborou o relatório.

Concretamente, consta das conclusões com relevo que:

“BB apresenta à data do exame um humor eutímico (normal), inicialmente com uma atitude ansiosa, mas que com a continuidade se desvaneceu dando lugar a uma atitude participativa e colaborante em todas as tarefas propostas. Durante o relato dos fatos evidencia alguns sinais de ansiedade, o discurso é realizado de uma forma contida mas concordante com a expressão facial. Juízo crítico mantido.

Manifesta boas competências e muita curiosidade em relação ao mundo que a rodeia. Em termos intelectuais, apurou-se um Quociente de Inteligência (QI) médio (baixo nalgumas escalas).

Relativamente à dinâmica familiar a menor demonstra ter afeto e emoções positivas pela família, nomeadamente mãe e irmãos e o próprio pai.

Das entrevistas clínico/forenses e provas de avaliação instrumental realizadas destacam-se a presença ansiedade generalizada e humor ansioso, alguns sentimentos falta de confiança em si própria demonstrando a presença de conflitos/sofrimento psíquicos. Procura socializar-se e demonstra interesse e motivação no relacionamento com os outros, realista, lógico e não tende a tomar decisões impulsivas. Apresenta ainda uma acentuada dependência das relações interpessoais, tendo receio de tomar certas decisões.

(…), da avaliação realizada ao conteúdo e validade das declarações prestadas concluímos a presença de critérios da avaliação que nos permite afirmar que a avaliação global das declarações no caso em presença é de “muito provavelmente credível” para a ocorrência de atos abusivos praticados contra a BB por um adulto.

Não foram encontrados comportamentos que indiciem a manipulação da criança no seu discurso ou relatos.

Ainda da avaliação realizada obtivemos resultados que não nos permitem concluir pela existência de uma perturbação pós stress traumático.

Concluindo, com base na informação disponível, apesar do presente processo não nos oferecer dúvidas, do ponto de vista da Psicologia Forense, sobre a ocorrência de comportamentos sexualizados por parte de um adulto para com BB, o alcance da presente perícia teria beneficiado de exame pericial de psicologia forense ao alegado agressor, de modo a proporcionar uma maior articulação de informação, sobretudo ao nível da avaliação das características psíquicas e grau de socialização daquele.

E, que às respostas aos seguintes quesitos, conclui-se que:

“A) aferir da cognição ao nível global (maturidade) da ofendida, mormente a sua perceção dos fatos (compreender, avaliar e relatar):

B) aferir da sua capacidade de conservar memórias, bem como a sua capacidade de recuperação das mesmas e sua reprodução;

C) aferir da credibilidade do depoimento da ofendida, da sua capacidade para o prestar e da sua contextualização espácio-temporal dos mesmos;

D) aquilatar se o depoimento é livre e espontâneo ou se, diversamente foi influenciado por terceiro, e, ainda, se se verifica ressonância emocional ou impacto traumático na menor.

Relativamente ao quesito A), B), C) e D)

A menor demonstra maturidade emocional e capacidades cognitivas (intelectuais e de memória) para fazer o relato relativo aos acontecimentos que conduziram à denúncia. Capacidade de conservar memórias, capacidade de recuperação e sua reprodução presentes e mantidas. As declarações obtidas revelaram consistência interna (coerência durante a declaração), consistência externa (coerência com os dados da informação disponível e entrevista complementar e outras informações recolhidas, nomeadamente auto de inquirição datado de 19 de outubro de 2023) e consistência inter relato (Consistência global entre as duas sessões de avaliação).

O testemunho revela-se compatíveis como o nível de desenvolvimento da criança e indicadores de credibilidade sugeridos pela literatura científica (e.g., estrutura contextualizada não semelhante a um script, descrição de comportamento e interações).”

Quanto ao quesito “E) Aferir se a ofendida BB se encontra em sofrimento psicológico específico;” concluiu-se que

“Os resultados obtidos não nos permitem concluir pela existência de um sofrimento psicológico específico para esta situação, dado a pontuação obtida não revela a existência de valores significativos ao nível das áreas do evitamento ou uma estimulação excessiva/ativação fisiológica (dificuldade em adormecer e um maior nível de alerta). Foram sim observados indícios da existência de humor ansioso e depressivo que não podemos excluir estarem apenas associados a situações de abuso dado a existência de outras vivências na história pregressa da criança, tendo acompanhamento psicológico iniciado no Brasil e continuado em Portugal após situações de bullying sofrido, separação dos pais com impacto nas suas vivências pessoais e familiares e outras questões emocionais que efetivamente podem concorrer também para o seu estado depressivo e mais reativo.”

Por fim e quanto ao quesito “F) aferir se existem indicadores de que a ofendida foi vítima de crime de natureza sexual”

A resposta é “Dos testemunhos e avaliação pericial realizada encontramos evidências de atos abusivos praticados contra BB.”

O juízo técnico, cientifico inerente à prova pericial é subtraído à livre apreciação do julgador. Todavia e sempre que na convicção o julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos deve fundamentar a divergência (cfr. art. 163º do CPP)

Ora, no caso da perícia apreciada, em conjunto com a demais prova, não é infirmado o juízo que da mesma consta, ao contrário o reforça e corrobora.

Em suma, a análise conjugada e concatenada do relatório sustenta a convicção do tribunal da autenticidade da versão apresentada, dando consistência às declarações prestadas pela ofendida, que acabaram por ser mais pormenorizadas, o que foi pelo tribunal percecionado aquando da visualização das declarações para memória futura prestadas em sede de inquérito, quer pela linguagem verbal quer e, essencialmente, pela linguagem não verbal.

Salienta-se desde logo, a coerência da versão apresentada, desde o primeiro relato dos factos, que ficaram marcados na sua memória e que descreveu com um pormenor e contexto de que só quem os vivenciou conseguiria fazê-lo, como se os visualizasse e sentisse, a cada novo relato.

Vale isto por dizer que, a perícia, em conjugação com as declarações prestadas pela ofendida, pela assistente reforçou, em muito, a convicção do tribunal, dissipando as dúvidas, no que tange à matéria dada como provada que pudessem resultar da análise individual, isolada quer das declarações da ofendida e do arguido, únicos que presenciaram os factos, por os terem vivenciado, já que ninguém assistiu a nenhum dos episódios fácticos descritos e relatados.

Com efeito, o teor dos relatório assume especial relevo no que à credibilidade das declarações da ofendida se refere (prestadas cerca de dois meses antes – 04/01/2024- cfr. fls. 242 a 244), reforçando-o e dando consistência à versão que aí apresentou com detalhe, de forma natural, lógica, assertiva e convicta, não obstante os silêncios reveladores do constrangimento do facto que descrevia, da sua fragilidade enquanto tal acontecia e da tentativa de recordar cada pormenor.

E , não se olvida a recomendação da Senhora Perita, quanto ao sentimento de culpa que a vítima/ofendida sente, havendo uma inversão quanto à culpa no seu interior, quanto à prisão do arguido tentando desculpabilizar o abusador, e do impacto negativo em toda a sua família , naturalmente em si mesma.

Desta feita recomenda “ser de suma importância que BB, possa continuar a ter acompanhamento psicológico regular, dada a presença de humor ansioso e depressivo e poder encontrar estratégias para gerir todos estas vivências (abuso, bullying, separação) nomeadamente conseguir gerir todos os sentimentos e emoções ambivalentes emergentes relacionados com o seu progenitor (culpabilidade pelo reclusão do progenitor, impacto da sua denúncia na vida dos seus irmãos, afetação entre vários membros da família como a avó paterna).

ii) Documental

-Documento de identificação da menor, cópia de passaporte junto a fls. 54, atenta a nacionalidade da arguida, prova a sua filiação e data de nascimento, descrita no ponto 1. da matéria provada;

- Comunicação da notícia de crime de fls. 5, de 02-09-2023, por referência à comunicação da CPCJ, daí se extraindo que a menor BB se encontrava hospitalizada e que teria confidenciado à sua psicóloga os “abuso” de que era vítima por parte do seu pai, o que vai ao encontro da demais documentação e declarações prestadas;

- Comunicação da CPCJ de fls. 6, a que acima se alude, de onde se salienta, uma vez mais, que o relato da menor, descrito no referido relatório, ulteriormente complementado e detalhado quer no exame pericial a que foi sujeita quer nas já mencionadas declarações para memória futura, correspondente com o que consta da factualidade e que foi por aquela confirmada e assumida pelo próprio arguido;

- Ficha clínica da ofendida da assistência hospitalar da mesma, e dos seus irmãos, de fls. 87 a 95, onde resulta, de novo, a descrição da menor dos factos, coerente com as demais e que vai ao encontro da que resulta da factualidade e, ainda, a necessidade de apoio psicológico durante o internamente de 22 dias, bem evidenciador do, natural, impacto, à data, da conduta do arguido na ofendida.

Quanto a tais elementos clínicos há a referir que o facto de aí constar “genitais e região perianal sem lesões traumáticas e himam intacto” (fls. 87 v.) não obsta, nem infirma a ocorrência dos factos. Na verdade, sendo a factualidade em causa a introdução de, pelo menos, um dedo na vagina e no ânus tal pode ocorrer, sem que haja qualquer lesão, não sendo, por isso incompatível com o que consta da observação clínica, não estando em causa a penetração/cópula completa de pénis, ou objectos com a mesma forma e dimensão, quer na vagina, quer no ânus da menor, essas mais adequadas a provocar lesão e o rompimento do hímen.

E tanto assim é que foi mantido o internamento protector, por risco social, da ofendida e dos 3 irmãos durante o referido período, a saber entre 22 de setembro de 2023 e até 13 de Outubro do mesmo ano, (cfr. fls. 94) momento a partir do qual foi instituída a medida de acolhimento residencial pelo juízo de família e menores de Setúbal (cfr. fls. 93).

- Cópia do contrato de arrendamento da residência do então casal, arguido e assistente, junto a fls. 74 a 77 v., assinado a 29/07/2022;

- Contrato de prestação de serviços referente à assistente, fls. 78 a 79;

- Contrato de trabalho de fls. 80 a 83, com efeitos a 01/06/2022, que corrobora as declarações do arguido quanto às sua inserção profissional e o que consta do relatório infra referido;

- Relatório elaborado pela DGRSP, com a refer. ª citius ......92 quanto ao percurso de vida do arguido e a sua situação actual, pessoal, familiar e profissional.

Todavia, do referido relatório, para além do supra referido, evidencia-se o que consta da conclusão do mesmo, percecionando-se e melhor compreendendo a conduta do arguido e a postura do mesmo em sede de audiência, a que infra nos reportaremos.

“O arguido procura descrever a existência de um padrão de comportamento sexual ajustado, no contexto da relação conjugal que manteve ao longo de 13 anos de matrimónio.

“Assim, em caso de condenação, avalia-se que as principais necessidades de intervenção apresentadas por AA incidem na adesão a tratamento psicológico e psiquiátrico, de forma a controlar eventuais comportamentos disruptivos, nomeadamente ao nível da sexualidade”;

- Documentos juntos pelo arguido com a contestação, quanto à pessoa do arguido e suas características;

- Certificado, actualizado, de registo criminal, com a refer. ª citius ......25; quanto à inexistência de antecedentes criminais.

iii) Declarações prestadas pelo arguido

O arguido optou por apenas prestar declarações após a produção de prova, no gozo do seu direito ao silêncio.

Contudo, o arguido nas declarações que prestou, em sede de audiência de julgamento, confessou, na sua generalidade, os factos confirmando as carícias, toques, apalpões, beijos nas zonas descritas na factualidade, assim como, a introdução de um dedo, quer na vagina, quer no ânus e o facto de os filhos dormirem muita vezes consigo, após a separação do casal.

Assim, apesar da valorização da divergência dos locais (que acabaram por coincidir com as descritas, quarto dos menores na casa da avó) e da racionalização da impossibilidade de estar durante o dia em casa, assim como, dos menores não estarem em casa, insistindo nas mesmas (quanto aos episódios descritos no pontos 7 a 15), o arguido não conseguiu infirmar as declarações prestadas pela ofendida BB, espontaneamente e de forma muito pormenorizada, com alusão, a título meramente exemplificativo, da memórias visuais, como sejam as da televisão, dos desenhos animados e o cheiro a tinta motivo pelo qual tiveram de ir dormir com o pai.

Ademais, no que verdadeiramente releva em termos fácticos o arguido assumiu a sua conduta, assim como, o número de vezes em que tais actos ocorreram, negando apenas o facto de ter colocado a cabeça da ofendida em cima do seu pénis.

Quanto a tal episódio a justificação apresentada pelo arguido foi plausível, lógica e verosímil, sendo que a descreveu como tendo colocado a cabeça da menor no seu colo, admitindo que o fosse na zona onde, no interior da roupa está o pénis, que corresponde à do baixo ventre, gesto este que o tribunal compreende num contexto de afectos entre pais e filhos.

Aliás, tal justificação acabou por ser sustentada pela verbalização da descrição da menor ofendida, num primeiro momento, não verbalizando o pénis nem qualquer outro nome que se pudesse associar ao mesmo, quanto a tal episódio, mas a colocação da cabeça nessa zona e o pormenor, quando questionada a tal de não ter sentido “o pénis duro ou rijo”, daí se pudendo inferir a naturalidade e inocência do gesto provado, e que não assume qualquer relevância.

Do acima referido não se retira qualquer falta de credibilidade nas declarações da ofendida.

Ora, o confronto das declarações do arguido e da ofendida quanto a tal determinaram que o tribunal lograsse provar a factualidade descrita no ponto 19. e como não provada a referida no ponto a.

Já quanto às demais declarações do arguido há a salientar a preocupação do mesmo transmitir ao tribunal que apesar de ter actuado da forma descrita, não é um mau pai, como que num processo de autoconvencimento e que, não obstante aceitar o tratamento não precisa do mesmo tendo-o já feito em reclusão.

Todavia, não apresentou qualquer justificação ou explicação para os acontecimentos, referindo mesmo não o querer fazer, verbalizando arrependimento e a impossibilidade da justificação dos actos que praticou, e a necessidade da menor o desculpar, que cremos ser genuína, e que nos convenceu da factualidade referida no ponto 55.

Não obstante, e de uma forma contraditória, utilizou expressões, ao mesmo tempo, de onde decorre uma atitude desculpabilizante dos seus actos, como seja “não consegui resistir”, e não o fez por diversas vezes, daí se inferindo por um lado a desculpabilização, num primeiro momento da causa do seu acto e, por outro lado a necessidade do arguido ter acompanhamento.

E, quanto a tal não se pode deixar de frisar a atitude do arguido durante a reprodução das declarações da menor ofendida não tendo o mesmo, seguido o depoimento com o olhar e assim visualizar a imagem da filha, apenas o tendo feito por breves segundos e não olhando de frente, mantendo sempre a mesma expressão facial, não expressando qualquer emoção, o que de alguma forma expressa a atitude a que acima se alude.

Expressão que, aliás, foi mantendo, na sua maioria, enquanto prestava declarações.

iv) Declarações prestadas pela assistente.

A assistente DD, apesar de ser ex-mulher do arguido e mãe da ofendia BB, prestou declarações de forma espontânea, isenta e serena, não demostrando qualquer malquerença para com aquele, apesar da situação descrita.

Clarificou a sua razão de ciência, confirmando não ter assistido a nenhum dos actos praticados pelo arguido na pessoa da sua filha e descritos na factualidade e, que só teve conhecimento dos mesmos em setembro de 2023 quando a menor falou com a psicóloga e através destas.

Todavia, a assistente confirmou a situação que se seguiu à denúncia dos factos, por a ter presenciado e nela ter sido interveniente, nomeadamente, no internamento hospitalar da ofendida e dos demais menores, seus filhos, que por si foram acompanhados, no acolhimento dos menores e nas consequências de toda a factualidade vivenciada, na família, quer na ofendida (agora com 14 nos), quer nos irmãos da mesma, actualmente com 10, 9 e 5 anos.

E, a assistente confirmou a demais factualidade apurada, quanto ao contexto familiar descrito por o ter, igualmente, vivido, como seja o facto de ter começado a trabalhar num lar de idosos, durante 15 dias, depois em abril/Maio de 2022 passar exercer as funções de cuidadora descrita.

Com relevo a assistente confirmou, ainda, o termo do relacionamento com o arguido, a sua saída de casa e deslocação para o Porto e os períodos em que tal aconteceu.

Mais foi relevante para contextualizar a factualidade os esclarecimentos prestados quanto ao facto de por vezes a menor não querer falar consigo, estar triste, da mesma ser muito ligada ao pai, e de ter associado essa tristeza à separação (momento em que a menor ofendida foi ter consultas de psicologia). E, do facto dos irmãos serem muito unidos e a ofendida ter um instinto protector relativamente aos mesmos, instinto esse concretizado objectivamente na factualidade provada (ponto 22 e seg.).

E, que a ofendida começou a menstruar quando chegaram a Portugal o que coincidiu com o crescimento dos seios, e com a época em que ocorreram dos primeiros actos.

A forma como a assistente prestou as suas declarações, acima referida, mereceu, desta feita, a credibilidade do tribunal reforçando e corroborando as declarações prestadas pela ofendida e a demais prova analisada.

v) Testemunhal

Declarações para memória futura da menor BB, as quais foram reproduzidas em sede audiência de julgamento (cfr. acta de audiência).

A ofendida, quando inquirida denotou, especialmente quando começou a falar da factualidade, nervosismo e constrangimento do que foi demonstrativo o facto de ter estado, a movimentar e friccionar as mãos, tendo um olhar cabisbaixo e verbalizando os factos, por vezes, num tom de voz, quase sumido e com muitos silêncios e expressão facial triste.

Os silêncios mostraram por um lado o esforço/sofrimento no relatar dos factos, vivenciando de novo os episódios fácticos descritos e, por outro, o recordar dos acontecimento como se os visualizasse.

A atitude apresentada pela ofendida não causa estranheza ao tribunal sendo, ao invés, consentânea com as regras da experiência comum, em face da delicadeza da matéria sobre a qual foi inquirida e da relação de filiação com o arguido.

Vale isto por dizer que, a postura da ofendida não abalou a credibilidade da suas declarações, antes a reforçou.

A ofendida teve um discurso coerente, descrevendo, pormenorizadamente, os factos (como sejam os já supra referidos, cheiro a tinta, e entre outos a cama de gaveta, a conchinha), circunstanciando-os no tempo e no espaço, não obstante o embaraço que revelou que é, ademais, natural e compreensível, e revelador das marcas que lhe deixou e na procura da justificação para compreender porque tal aconteceu reveladora da culpa que sente a que se refere a perícia.

A sua credibilidade foi, ainda, mais evidente pela forma isenta com que prestou o depoimento. Assim, descreveu apenas o que tinha absoluta certeza, corrigindo as suas próprias declarações após melhor as recordar e referindo espontaneamente o número de vezes, mais de dez, enquanto viveu com o pai depois da separação, e concretizando as 2 situações referidas nos pontos 7 a 17, o que acabou por coincidir com as referidas pelo arguido (que naturalmente ouviu o depoimento).

Acresce que, a ofendida não denotou qualquer hostilidade nem animosidade para com o arguido, seu pai, o contrário se inferindo, nutrindo sentimentos de afecto, próprios de uma filha, como veio a concluir o relatório pericial, a que já acima nos referimos.

A ofendida circunstanciou no tempo e no espaço, na medida do possível, face à sua idade, e ao número de vezes ocorridos, clarificou quando e como os factos aconteceram pela primeira vez de forma consentânea com a descritas na factualidade – ponto 7 a 12, concretizando as carícias, toques, apalpões, beijo nas zonas do corpo referida e introdução de dedo na vagina e ânus.

Tais comportamentos, padrão de actuação do arguido, foram-se repetindo entre a proximidade da Páscoa de 2022 e Setembro de 2023, portanto por mais de um ano, ainda que com interrupção de alguns meses, aquando da mudança para a cada do casal.

Quanto à frequência semanal e ao número de vezes em que tal acontecia a mesma revelou alguma incerteza, mencionado semanas que não acontecia, pelo que o Tribunal na assertividade da ofendida quanto ao referido número de dez vezes, a acrescer às duas situações concretas ocorridas na casa da avó, pecando, certamente, por defeito, acabou por provar que, para além das duas situações a que se alude nos pontos 7 a 17, ocorreram os actos descritos nos pontos 25. a 32. em, pelo menos, dez ocasiões distintas.

O mesmo aconteceu quanto ao episódio do ponto 19., aqui se reproduzindo as considerações já tecidas aquando da apreciação das declarações do arguido, sendo que na incerteza das declarações, atento o princípio do in dúbio pro reo, sempre se daria como não provado o ponto a. da matéria não provada, como aconteceu.

Ademais, esse episódio ocorreu da decorrência das duas primeiras situações.

Assim, de relevante há a notar que a ofendida declarou que “estava tudo muito confuso o que se passava” pois sabia que era errado, “porque isso era para fazer com a mãe”, mas já não sabia se o tocar era errado ou não se seria esse tipo de toque permitido pelos pais aos filhos.

Tal declaração para além denotar a genuinidade, e uma vez mais a veracidade do depoimento, faz todo o sentido, atenta a idade da menor, a relação de filiação relativamente ao abusador, a falta de maturidade para processar e perceber o que o pai lhe estava a fazer, o que de algum modo justifica o silêncio da ofendida/vítima, tão comum neste tipo de crimes.

Por fim, a ofendida esclareceu o que a levou a relatar os factos à psicóloga em Setembro de 2023, clarificando que o fez depois de uma briga que teve com o pai e em que este lhe disse que tinha quebrada a confiança dele. “Daí ficou com muita raiva. Pois cada vez que o pai fazia aquilo pedia desculpa e dizia que não ia fazer mais, mas voltava a fazer.

De outra forma a ofendida, com a sua atitude demonstrou sentir que a confiança daquela tinha sido, há muito, quebrada pelo arguido, ao praticar os actos descritos.

Acresce que, há a evidenciar que, com o decurso do tempo e o amadurecimento da ofendida, que emerge do seu normal crescimento e da passagem da idade de criança para a adolescência subsistem e perduram no tempo os factos, o que se inferiu da linguagem não verbal da ofendida.

Desta feita, as declarações mereceram a credibilidade do tribunal, pelas razões supra expostas na precisa medida do apurado EE, professora no Centro de actividades de Tempo Livres.

A testemunha explicou a usa razão de ciência referindo que conheceu os 4 irmãos filhos do arguido e da assistente por causa da frequência desse centro, nomeadamente no programa de férias.

Esclarecendo que nunca foi professora da BB, explicitou como tiveram conhecimento dos factos, através de uma situação que ocorreu com a FF.

Assim e tal como consta dos elementos clínicos juntos, e referentes a essa menor, em 22 setembro de 2023 a mesma deu um beijinho na boca de outra menina e tirou uma fotografia.

Sinalizaram a situação da FF mas nessa sequência a ofendida relatou o que tinha acontecido à própria testemunha e que já havia contado à psicóloga, tendo levado aquela e os irmãos para o hospital.

Esclareceu, também, com relevo que pai dos menores, aqui arguido era muito presente, mas que a partir do conhecimento “dos abusos” a assistente passou a estar presente.

- GG (mãe do arguido).

No que concerne à factualidade o depoimento não foi relevante uma vez que a testemunha não demostrou ter qualquer conhecimento directo dos mesmos sendo que nem o próprio filho lhos relatou, assim como denotou total desconhecimento, à data, da separação do casal não frequentando a casa do filho.

Com efeito, o depoimento da testemunha e como abaixo se referirá relevou para o contexto da vivência familiar e relação do arguido com os filhos e da família quando vieram viver para Portugal em Março de 2022, aí tendo estado entre dois ou 3 meses.

Mais relevou para a convicção do tribunal no que tangem às condições pessoais do arguido.

Durante o depoimento, denotou uma evidente hostilidade relativamente à assistente do que foi notória a forma como se referiu à mesma “Esta Senhora" e a expressão facial que a acompanhou, comprometendo a sua credibilidade, negando os factos que o próprio arguido acabou por assumir.

- HH, companheiro da com a mãe do arguido e que com esta vive maritalmente.

À semelhança da testemunha anterior não revelou ter conhecimento directo de nenhum dos factos até porque saía para trabalhar às 6hora da manhã e só regressava às 18.00h Todavia, revelou conhecer a dinâmica do agregado familiar do arguido durante o período em que viveram em sua casa, no que concerne aos trabalhos e horários que tinham, dinâmica essa consentânea com a demais prova produzida quanto a tal.

- BB autora de uma das cartas juntas com a contestação do arguido, amiga deste da igreja que frequenta.

A testemunha revelou apenas ter conhecimento da conduta do pai na igreja, encontrando-se 3 vezes por semana, 1h e 30, de manhã e à noite, aí sendo um pai presente, e exercendo na mesma as funções de líder das crianças. Mais referiu que aparentavam ser uma família feliz.

A testemunha não mostrou assim ter qualquer conhecimento da factualidade tendo sido inquirida nos termos do preceituado no art. 128º do CPP.

O mesmo aconteceu relativamente às demais testemunhas inquiridas.

- II, que justificando a sua razão de ciência, esclareceu ser ex recluso no estabelecimento prisional onde o arguido se encontra, aí o tendo conhecido e com ele convivido durante 7 meses.

De relevante esclareceu que o arguido demostra sofrimento pelo sucedido e que ajuda os reclusos, já tendo salvo presos do suicídio testemunhando que o próprio arguido se tentou suicidar.

A testemunha depôs de forma clara, merecendo por esse efeito a credibilidade do tribunal.

- Por fim, atendeu-se ao depoimento de JJ, também inquirido nos termos do citado preceito legal, amigo do arguido desde 2008 e que chegou a viver próximo do arguido no Rio de Janeiro.

Sobre as condições do arguido referiu que têm o mesmo como um bom pai responsável e ensinava os filhos e que sempre trabalhou.

Porém, a testemunha assumiu que se afastaram a partir do momento em que o arguido foi para Portugal, desconhecendo a sua vida a partir desse momento referindo que ficou muito surpreso com a detenção do arguido.

Todas as testemunhas de defesa se disponibilizaram a apoiar o arguido quando em liberdade.

*

Em suma, no que se refere à factualidade descrita e apurada, a formação da convicção do tribunal foi alicerçada, essencialmente, nas declarações da ofendida, declarações essas corroboradas e reforçadas pela prova documental e pericial, e pela prova testemunhal já mencionada e pela confissão do arguidos, como já explanado.

Acresce que, as declarações são consentâneas, com as regras da experiência comum, nomeadamente, quanto ao não se estranhar que a menor não tivesse relatado os factos logo que os mesmos aconteceram, pelos motivos já referidos pois que, neste tipo de crime, o silêncio das vítimas é o comportamento mais natural, muitas vezes passando por processos interiores de negação dos próprios acontecimentos e de protecção dos abusadores.

Quantos aos pontos 36 a 41., sendo a intenção do agente um processo interno a prova dos mesmos emerge dos factos objectivos praticados cuja decorrência não pode ser outra, não podendo o arguido deixar de querer actuar da forma que actuou, aproveitando-se da fragilidade e da ascendência para com a sua filha menor, ainda criança, satisfazendo o seus propósitos sexuais e a sua satisfação libidinosa por via dos actos concretos que praticou.

Assim, dúvidas não tem o Tribunal de que os factos se passaram da forma que consta da descrição dos factos.

No que concerne às condições pessoais do arguido o tribunal atentou às declarações prestadas pelo mesmo, ao relatório da DGRSP e ao depoimentos das testemunhas de defesa GG (mãe do arguido), HH (companheiro da mãe do arguido), BB (amiga do arguido), KK (ex recluso tendo conhecido o arguido no EP) e JJ (amigo do arguido), nos termos supra expostos.

Por fim, relevou o certificado de registo criminal junto a 23-09-2024, a que corresponde a refer. ª citius ......25, de onde não consta qualquer inscrição.

No que concerne à factualidade não provada a mesma decorreu da ausência de prova suficiente, designadamente, pela justificação apresentada por parte do arguido e pela incerteza quanto aos factos a. e d. por parte da ofendida nos termos já acima plasmados determinando quanto ao número de ocasiões que o tribunal ficasse, pelo menos, com dúvidas sobre se seriam mais das 12, identificadas na factualidade pelo que, atento o princípio in dúbio pro reo, deu como não provado os factos atinentes a tal número de actos, como também já se fez referência.

Posto isto, e entrando no domínio das questões suscitadas pelas conclusões do recurso, importa desde já apreciar duas questões prévias:

A primeira prende-se com a irrecorribilidade da condenação penal no que tange às penas parcelares. O presente recurso incide sobre acórdão do Tribunal da Relação de Évora que, apreciando recurso interposto pelo ora recorrente da decisão do tribunal colectivo que o julgou em primeira instância, reduziu cada uma das penas parcelares de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão que lhe tinham sido impostas pela prática de doze crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, para 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses.

Todas estas penas são inferiores a 8 anos de prisão.

Em matéria de recorribilidade para o STJ, dispõe o art. 432º, nº 1, al. b), do CPP:

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…)

Por seu turno, dispõe o art. 400º, nº 1, al. f), do mesmo diploma:

1 - Não é admissível recurso:

(…)

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

(…)

Como se viu, o Tribunal da Relação de Évora confirmou a condenação do ora recorrente pela autoria de 12 crimes de abuso sexual de crianças, mantendo a incriminação (ou seja, condenou o arguido pelo mesmo tipo de ilícito) sem que tenha alterado a matéria de facto, reduzindo, no entanto, em benefício do arguido, cada uma das penas parcelares. Tendo o Tribunal da Relação de Évora confirmado a condenação pelos crimes praticados, ainda que reduzindo as penas, e tratando-se de penas fixadas em medida inferior a 8 anos de prisão, revela-se inadmissível, quanto a elas, a reapreciação por via de recurso. estando firmado no STJ o entendimento de que a decisão confirmativa in mellius, ainda que constituindo confirmação meramente parcial de decisão anterior proferida em recurso, cabe no conceito de dupla conforme.

Assim, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido não é admissível.

Acresce que o acórdão da Relação não comporta recurso quanto ao montante da indemnização oficiosamente arbitrada, o que nos remete para a segunda das questões prévias a que acima aludimos.

O recurso relativo à indemnização civil oficiosamente arbitrada rege-se pelas regras do recurso referente ao pedido cível. Valerá, no caso, o disposto no art. 400º, nº 2, do CPP, em cujos termos sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

Sendo a alçada dos tribunais da relação de €30.000, como decorre do nº 1 do art. 44º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), logo por aqui se verifica a inadmissibilidade do recurso quanto ao valor da indemnização, fixada em primeira instância em 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) e integralmente confirmada pela Relação.

De todo o modo, ainda que não estivesses presente a causa de inadmissibilidade verificada, sempre o recurso seria de rejeitar por verificação de dupla conforme. O princípio da dupla conforme tem aplicação relativamente a todas as questões directamente decorrentes da actividade decisória por ele abrangida, sejam elas de facto ou de direito, aí se incluindo as questões referentes à oficiosa determinação da indemnização por danos não patrimoniais arbitrada em primeira instância e confirmada nos seus precisos termos pelo tribunal da relação. Com uma precisão, porém: no caso da indemnização civil, a dupla conforme não opera por via das regras do processo penal, que a não contemplam, mas por via da convocação do disposto no art. 617º, nº 3, do Código de Processo Civil 6, aplicável ex vi art. 4º do CPP, na medida em que existe uma lacuna no Código de Processo Penal quanto à matéria sobredita 7.

Resumindo, a admissibilidade de recurso interposto de acórdão do tribunal da relação quanto à indemnização civil decretada tem sempre que superar cumulativamente os requisitos de admissibilidade em função da alçada, nos termos do art. 400º, nº 2, do CPP e os requisitos de admissibilidade decorrentes da inexistência de identidade do julgado, nos termos do art. 671º, nº 3, do CPC.

Ou seja, e em conclusão no que a este aspecto concerne, também no que se refere à indemnização arbitrada o acórdão do Tribunal da Relação de Évora não comporta recurso, que por essa razão se não admite.

Restringe-se, pois, a matéria em apreciação à medida da pena única determinada em cúmulo jurídico, que o Tribunal da Relação fixou em 10 (dez) anos de prisão, pugnando o recorrente por uma pena não superior a 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Vejamos então, num primeiro momento, como se determina a pena do concurso, para depois analisarmos os termos em que foi fixada a pena única, em ordem a verificar se a determinação dessa pena obedeceu ao critério legal e se aquela foi fixada numa medida justa.

Fazendo apelo ao texto do acórdão deste STJ, de 15.12.2021, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Nuno Gonçalves, diremos que o cúmulo jurídico é uma construção normativa, de matriz dogmática, com a finalidade de fundir numa pena única as penas de prisão em que o mesmo agente foi condenado por ter cometido uma multiplicidade de crimes que, entre si, estão numa relação juridicamente determinada 8.

O primeiro passo para a determinação da pena unitária consiste na determinação da moldura do concurso segundo os ditames do art. 77º, nº 2, do Código Penal. Essa moldura, quando estejam em causa exclusivamente penas de prisão, deverá conter-se entre o limite máximo correspondente à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes sem que possa exceder 25 anos e o limite mínimo correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas.

O critério da medida da pena resultante do cúmulo jurídico tem consagração na parte final do nº 1 do art. 77º do Código Penal, na parte em que dispõe que “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, o que não significa que esta norma esgote na sua totalidade os factores a ponderar. Também a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares pressupõe o recurso às exigências de prevenção, geral e especial, e também ela encontra limite na medida da culpa. Simplesmente, a determinação desta pena única, porque se trata de uma pena referida a uma multiplicidade de factos temporalmente encadeados mas analisados de per se relativamente a cada uma das penas parcelares, exige a adopção de um critério complementar, consubstanciado na ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, posto que aqueles factos poderão ou não afirmar-se como um reflexo da personalidade. Assim, os factos fornecerão o âmbito de incidência do juízo de censura e a personalidade do agente funcionará como o seu elemento aglutinador, sendo através da correlação daqueles factos com esta personalidade que se determinará se aqueles não são mais do que uma actuação delitiva plúrima, sem verdadeira interconexão 9, a reflectir essencialmente uma resposta conjuntural a condições de vida mais adversas, a um circunstancialismo mais propício ao cometimento dos crimes, ou a qualquer outro estímulo exógeno que não permite afirmar os factos como produto da natureza intrínseca do arguido, isto é, da sua personalidade, ou se constituem já a expressão de uma verdadeira tendência criminosa, reflexo de uma personalidade que optou decididamente pela senda do crime, caso em que se deverá atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta 10.

Assim, enquanto que na determinação de cada uma das penas parcelares o agente é sancionado pelo facto criminoso individualmente considerado à luz do juízo de censura que esse facto merece dentro dos limites admissíveis [em função da culpa e das particulares exigências de prevenção verificadas quanto a cada um dos crimes], na fixação da pena única atende-se ao conjunto dos factos analisados numa perspectiva dinâmica, sendo a dimensão e a gravidade do ilícito global 11 avaliadas enquanto expressão da personalidade que lhe subjaz.

A personalidade do agente é alcançável através de múltiplos factores. Sem dúvida, através de relatórios médicos e sociais; mas também através dos factos concretos referentes aos crimes praticados, da sua motivação, da verificação da existência de uma interconexão revelada por uma reincidência homótropa ou por outros factores que permitam estabelecer uma relação entre eles; e ainda através do número de crimes cometidos, do período em que foram praticados, e da sua gravidade objectiva com expressão ao nível das penas aplicadas.

Por fim, deverão intercorrer no juízo de formação da pena única considerações de adequação e de proporcionalidade, tendo subjacentes a culpa do arguido por referência à sua personalidade e as exigências de prevenção geral e de prevenção especial de socialização, estas últimas com particular relevo na análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente 12.

A gravidade relativa de cada um dos factos criminalmente relevantes terá sido já considerada na determinação da pena correspondente, pelo que na determinação da pena conjunta os critérios gerais indicados no art. 71º – culpa e prevenção – funcionam, em princípio, apenas como referência da pena única. Não se segue, porém, que os factores conformadores das exigências de prevenção, ou mesmo da culpa, por já valorados na determinação concreta de cada uma das penas parcelares, não possam ser de novo atendidos, não valendo aqui a objecção da proibição de dupla valoração. Em sede de cúmulo jurídico de penas o que essencialmente releva é a visão de conjunto, pelo que a conformação individual de cada facto se esbate perante a perspectiva do conjunto, por só esta permitir correlacionar os factos entre si em ordem à verificação de uma verdadeira tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade. O problema clássico suscitado pela proibição da dupla valoração prende-se essencialmente com a autónoma valoração na determinação da pena de factos correspondentes a elementos já considerados no tipo. Na vertente do cúmulo jurídico de penas a questão não se coloca, suposto a valoração relativa ao conjunto dos factos revestir, face à ponderação individualizada de cada um dos crimes, uma coloração essencialmente diversa, evidenciando que em rigor não traduz a ponderação do mesmo factor já anteriormente considerado 13.

No caso vertente todas as penas em concurso são penas de prisão, estabelecendo-se a moldura do concurso entre um limite mínimo de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão e o limite máximo de 25 (vinte e cinco) anos de prisão, resultante da compressão imposta pelo nº 2 do art. 77º do Código Penal, por ser superior a soma das penas concretamente aplicadas.

Determinada esta moldura, há que encontrar a pena única de acordo com uma visão de conjunto relativamente aos factos praticados, no seu ordenamento histórico e cronológico em interacção com a personalidade do agente, sopesando ainda os demais itens apontados no critério que desenvolvemos supra.

Tenha-se presente, não obstante, que na sindicância da medida da pena o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que com ressalva da ostensiva violação dos critérios legais, o tribunal ad quem não deve imiscuir-se no quantum exacto. Não obedecendo a pena a critérios matemáticos, antes a um critério de ordem jurídica, a margem de intervenção do tribunal superior contém-se essencialmente na verificação da observância dos critérios legais e na adequação da dosimetria encontrada, de tal forma que se a pena encontrada pelas instâncias se contiver ainda no âmbito da faixa que o próprio tribunal superior teria utilizado, a pena estará correctamente doseada e não deverá sofrer alteração. Trata-se, afinal, da recuperação, também aqui, do paradigma da intervenção determinada pela congruência das normas e princípios legais, à luz dos ensinamentos da jurisprudência, com a decisão sindicada. Se, de acordo com esses princípios, normas e critérios a pena estiver fundamentada e se oferecer como justa, deverá ser mantida. Apenas será alterada se assim não suceder.

O raciocínio desenvolvido pelo Tribunal da Relação de Évora na determinação da pena única, tal como se encontra plasmado no texto do correspondente acórdão, foi o seguinte (transcrição):

(…)

Relativamente à medida da pena única a que se encontra condenado o arguido AA, o sistema de punição do concurso de crimes consagrado no artigo 77º, do Código Penal, adoptando o sistema da pena conjunta, rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto, para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.

Por isso, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.

Nesta segunda fase, quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que (esteve) na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento.

A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.

A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação.

Afinal, a valoração conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o Código Penal.

Importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado, Acórdão do STJ de 09-01-2008, in Processo nº 3177/07.

Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente: como doutamente diz Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 290-292), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

A determinação da pena do cúmulo, exige, pois, um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado, de molde a poder valorar-se o ilícito global perpetrado, nos termos expostos.

Por fim, no tangente à fixação da pena única de prisão, a relação concursal dos mencionados ilícitos e a moldura penal abstracta do cúmulo em apreço.

Neste caso concreto, a medida abstracta da pena única, estará compreendida entre o limite mínimo de 5 (cinco) anos e 6 (meses) de prisão, (pena parcelar mais elevada) e o limite máximo de 25 anos de prisão, (somatório material das penas parcelares (66 anos), reduzido nos termos do artigo 77º, nº 2, do Código Penal).

Assim, atentas as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento, artigo 71º, do Código Penal, perante os pressupostos já enunciados, ao nível da ilicitude deparamo-nos com um elevadíssimo desvalor das acções traduzido no tipo número de crimes praticados, na forma como foram praticados e, que revelam uma pluriocasionalidade do arguido na prática criminal.

Devem também acentuar-se as razões de prevenção geral existentes em relação aos crimes contra os menores e as mulheres, nos dias de hoje, com uma sociedade violenta desrespeitadora e abusiva dos mais fracos e desprotegidos e, com uma total ausência de respeito pelo outro e pela lei, sendo cada cidadão criador e aplicador das suas próprias leis e regras, resultando pois, a prática dos factos, numa interiorizada tendência para a prática criminal, o que não pode deixar de nos preocupar enquanto sociedade organizada e, em conformidade graduar a medida da pena única a aplicar.

Também a intensidade do dolo se mostra elevada, desde logo porque se trata de dolo directo e persistente, nas circunstâncias acima referidas.

Nestes pressupostos, parece-nos que a pena única aplicada pelo Tribunal “a quo”, face à nova moldura penal abstrata, resultante da redução da medida das penas parcelares, ultrapassa a efectiva culpa do arguido no caso concreto, mostrando-se por isso mais adequado, agora a fixação da pena única em 10 (dez) anos de prisão, que assim não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso e, da proporcionalidade das penas.

Pelo exposto e considerando o caso concreto, parece-nos patente que o Tribunal “a quo” no seu doseamento da pena única não ponderou devidamente as circunstâncias relativas à redução da medida concreta das novas penas parcelares com as aludidas finalidades das penas e se é certo que a prevenção geral impõe um certo distanciamento do limite mínimo previsto na lei, este distanciamento conforme estabelecido na presente decisão, à luz das exigências de prevenção especial, mostra-se plenamente justificado “in casu”, perante as concretas circunstâncias que determinaram a fixação nesta instância, em cúmulo jurídico da pena única de 10 (dez) anos de prisão.

(…)

Este desenvolvimento está, nos seus fundamentais, em sintonia com a perspetiva que acima desenvolvemos, sendo-nos dado verificar que num período que decorreu desde a Páscoa de 2022 até Setembro de 2023, portanto, durante mais de um ano, o ora recorrente praticou uma sucessão de crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. p. pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1, alínea a), incidindo todos eles sobre a mesma vítima, sua filha.

A matéria de facto, dando conta das circunstâncias dos diversos crimes cometidos, denota uma intenção bem vincada, dominada por uma forte vontade de cometimento dos crimes, sobressaindo uma solução de continuidade que opera a ligação dos diversos ilícitos praticados por referência a uma personalidade claramente atreita ao cometimento daquele tipo de ilícitos.

A gravidade dos factos praticados, reflectindo-se na ilicitude global do facto, projecta-se na culpa enquanto “razão de ser” da pena, mas também enquanto factor determinante do seu limite, traduzindo um juízo ético-jurídico de censura dum facto típico por referência à pessoa do seu agente 14 (por não ter actuado de forma diversa podendo e devendo tê-lo feito), implicando, no caso, um juízo de censurabilidade superior à mediania.

As necessidades de prevenção geral são elevadas, evidenciando o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente a 2024 ser o crime de abuso sexual de crianças o crime de natureza sexual mais relevante dentro da tipologia dos crimes sexuais, predominando a respectiva prática em contexto familiar.

O número de crimes cometidos, num total de 12 (doze) e o lapso temporal em que perdurou a actuação sancionada geram uma imagem global do facto em análise que para além de em nada favorecer o recorrente, retira relevo à ausência de antecedentes criminais, projectando-se nas exigências de prevenção especial e reclamando expressão ao nível da pena única resultante do cúmulo jurídico.

No enquadramento fáctico descrito, valoradas ainda as condições pessoais do recorrente nos termos provados, há que concluir que a pena única de 10 (dez) anos de prisão que veio a ser imposta em recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra não excede a medida da culpa, satisfaz as exigências de prevenção geral referentes ao tipo de crime em análise e dá resposta adequada à necessidade de influir no comportamento futuro do agente em termos de adesão aos valores ético-sociais. Dito de outro modo, é uma pena justa, que tem subjacente um ponderado equilíbrio dos factos na sua relação com a personalidade do agente, tendo sido equilibradamente fixada dentro da moldura penal do concurso, pelo que deverá ser confirmada.

III – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam na 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso.

Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 6 (seis) UC (art. 513º, nº 1 do CPP, art. 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).

*

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de novembro de 2025

(Processado pelo relator com recurso a meios informáticos e revisto por todos os signatários)

Relator: Jorge Miranda Jacob

!º Adjunto: Ernesto Nascimento

2º Adjunto: José Piedade

____________________________


1. - Ac. STJ de 11.04.2024, relator Vasques Osório, texto integral em:

  https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/87b0b3cd8abb1c9980258afd002b7c86?OpenDocument&Highlight=0,inadmissivel,dupla,conforme

2. - Neste sentido, Ac. STJ de 17.10.2024, relator João Rato, proferido no processo 352/23.4GCOVR.S1 e Ac. STJ de 14.12.2023, relator Jorge Gonçalves, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, este último disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/

3. - in As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva», nas «Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, edição de 1998, da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa – AAFDL –, pág. 25

4. - Neste sentido, Ac. STJ de 09.04.2025, relator José Carreto, texto integral em:

  https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4216e48af10963cb80258c7c003ca1e7?OpenDocument

5. - Ac. STJ de 08.11.2023, relatora Ana Brito, proferido no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1.

6. - Norma que dispõe nos termos seguintes: Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

7. - Sobre o tema, cf. António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo V, anot. ao art. 400º.

8. - Proc. nº 5402/20.3T8LRS.S1

9. - «Uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade», na expressão de Figueiredo Dias. Cf. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 291.

10. - Figueiredo Dias, ob. e pág. citadas.

11. - A expressão é de Figueiredo Dias, ob. e pág. citadas.

12. - Uma vez mais Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 291/292.

13. - Idem, pág. 292.

14. - Para utilizar a expressão de Taipa de Carvalho, trata-se de uma «atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta ilícita». Cf. Direito Penal - Parte Geral, pág. 466.