RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
ATROPELAMENTO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IN DUBIO PRO REO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MOTIVO FÚTIL
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
MEIO INSIDIOSO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I - Por meio particularmente perigoso, a que alude a al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP, deve entender-se, com a doutrina maioritária, o instrumento ou método que dificulte em grau elevado a defesa da vítima e (não se traduzindo na prática de perigo comum) crie ou seja apto a criar perigo de lesão de bens jurídicos pessoais de um número indeterminado de pessoas, aferindo-se a referida particular perigosidade por uma intensidade muito superior à normal nos meios usados para matar.
II - A jurisprudência do STJ caminha no sentido de que, em razão das concretas circunstâncias, o uso de um veículo automóvel pode constituir um meio particularmente perigoso, na prática de um crime de homicídio.
III - Tendo-se provado que o arguido, terminada a discussão de trânsito que havia travado com o assistente, colocou o veículo automóvel que conduzia em andamento, direccionou-o para o lancil/passeio onde este já se encontrava, de costas para o veículo, subiu o lancil, embateu no assistente, passou-lhe por cima com os rodados da viatura, e continuou a marcha sem se deter, mas não se tendo provado que desta conduta tenha resultado perigo de lesão de bens jurídicos de terceiros, designadamente, que no momento do atropelamento, outras pessoas se encontrassem nas proximidades do assistente, não se mostra preenchida a circunstância qualificativa.

Texto Integral

Acordam, em audiência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de Almada – Juiz 2, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, do arguido AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e) e h), todos do C. Penal.

O assistente BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e contra Tranquilidade Seguros [agora, Generali Seguros, S.A.] com vista à condenação dos demandados no pagamento da quantia de € 363623,23, acrescida de juros a contar da notificação do pedido e até integral pagamento, para reparação dos sofridos.

A demandada Tranquilidade Seguros/Generali Seguros, S.A., foi absolvida do pedido, por despacho de 5 de Fevereiro de 2024.

No decurso da audiência de julgamento foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial de factos e uma alteração da qualificação jurídica [crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelos arts. 144º, d) e 145º, nºs 1, c) e 2, do C. Penal, por referência ao art. 132º, nº 2, e) e h) do mesmo código, e pena acessória prevista no art. 69º, nº 1, b), do C. Penal].

Por acórdão de 19 de Abril de 2024, foi o arguido, absolvido da prática do imputado crime de homicídio qualificado na forma tentada, e condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelos arts. 144º, d) e 145º, nºs 1, c) e 2, do C. Penal, por referência ao art. 132º, nº 2, e) e h) do mesmo código, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, e na pena acessória de 1 ano de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º, nº 1, b), do C. Penal.

Mais foi o arguido condenado no pagamento, ao ofendido e demandante BB, da quantia de € 40000, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da decisão e até integral pagamento, para compensação dos danos não patrimoniais sofridos, e no que se apurar, em liquidação de sentença, quanto a limitações físicas, sequelas definitivas decorrentes do acidente (que serão fixadas após a alta médica), quer estéticos, quer que influam na sua vida corrente quer na sua vida profissional.

*

Inconformados com a decisão, arguido, Ministério Público e assistente recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa.

O arguido, invocando a existência de contradição insanável da fundamentação, deduzindo impugnação ampla da matéria de facto, peticionando a sua absolvição quanto à matéria criminal ou, assim não se entendendo, a sua condenação pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 3 do C. Penal, com a diminuição da medida concreta da pena e sua substituição, e a absolvição da instância quanto à matéria civil ou, assim não se entendendo, a diminuição do montante da indemnização [o arguido interpôs, igualmente, dois recursos intercalares, admitidos para subirem a final, um, tendo por objecto o despacho de 9 de Maio de 2024 que indeferiu a peticionada ausência doa residência para a realização de concertos profissionais já anunciados, e outro, tendo por objecto o despacho proferido em audiência de julgamento, que indeferiu a pretendida reconstituição do facto].

O Ministério Público, pugnando pela condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e consequente agravamento da medida da pena de prisão.

O assistente, visando a modificação de um facto provado, a condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, e a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 90000 para compensação de danos não patrimoniais e no pagamento da quantia de € 5549,84 para reparação de danos patrimoniais.

O Tribunal da Relação do Lisboa, por acórdão de 9 de Outubro de 2024, proferiu a seguinte decisão:

A) Julgar não provido o recurso interposto do despacho que indeferiu o pedido de saídas da área de residência onde o arguido se encontra sujeito a medida de coação de permanência na habitação, com controlo por vigilância eletrónica.

Custas a suportar pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 Ucs.

B) - Julgar não provido o recurso interposto do despacho que indeferiu o requerimento de realização de reconstituição do facto.

Custas a suportar pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 Ucs.

C)

- Julgar parcialmente providos o recurso do Ministério Público e do Assistente e consequentemente:

- alterar o nº. 19, dos factos provados, no sentido do mesmo passar a ter o seguinte teor:

“O arguido quis atingir o ofendido com a viatura, bem sabendo que como resultado direto da sua conduta poderia advir a morte do arguido e conformou-se com tal possibilidade, sendo indiferente a esse resultado.”

- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio tentado qualificado, p. e p. nos artigos 14º, n.3, 22º, 23º, 131º e 132º, n.2 alíneas e) e h) do Código Penal, numa pena de seis anos de prisão.

- Julgar parcialmente provido o recurso interposto pelo Arguido e consequentemente absolver o demandado cível da instância, revogando nessa parte o Acórdão recorrido e determinando que o pedido de indemnização civil seja apreciado em separado, junto das instâncias civis.

Em face das procedências parciais dos três recursos analisados sob o ponto C) não haverá, por estes, condenação em custas.

*

De novo inconformado com a decisão, recorre o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1. O Arguido veio a ser condenado, em primeira instância, pela prática, em autoria material de um crime de ofensa à integridade física grave, qualificada, p. e p. pelo artigo 144.º, alínea d), 145.º, n.º 1, alínea c), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas e) e h), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão; bem como foi condenado na pena acessória de 1 (um) ano de inibição de conduzir veículos motorizados – artigo 69.º, alínea b), do Código Penal e ainda no pedido cível formulado pelo ofendido, ao pagamento da quantia de 40.000,00 (quarenta mil) euros, valor a que acrescem juros de mora, à taxa legal que se mostra, neste momento fixada em 4% ao ano, desde a data da prolação da decisão até integral pagamento.

2. Surpreendentemente, o Tribunal da Relação de Lisboa vem condenar o Recorrente por um crime de homicídio tentado, com dolo eventual, nos termos do disposto no artigo 14º, n.3, 22º, n.2 alínea b) e 131º, e 132º, alínea e), e h) e nº3 do Código Penal, agravando a pena para 6 anos de prisão, fazendo tábua rasa de toda a argumentação do recurso do Arguido o qual foi reduzido à sua menor expressão.

3. Desde logo, é manifesta a omissão de pronúncia do acórdão recorrido, onde o Recurso do Arguido passou a “parente pobre” perante o recurso sofrível do Ministério Público que, ainda assim, teve melhor sorte.

4. Em primeiro lugar, não pode deixar de se fazer uma breve e sumária explicitação quanto à admissibilidade do recurso, porquanto a jurisprudência é unanime em considerar que não existindo identidade total de decisões, como aqui é o caso, ainda por cima verificando-se uma agravação quer do crime pelo qual veio a ser condenado, quer da medida concreta da pena aplicada, mais grave do que a anterior, é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

5. Razão pela qual não se verifica a dupla conforme, como configurada na alínea f), do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, sendo tal recurso admissível.

6. Quanto ao recurso propriamente dito, iniciaremos pelo vício de contradição insanável da decisão do tribunal de 1.ª instância, sobre a qual se recorreu, tendo dedicado toda a parte I) e II) indicando e fundamentando as contradições com as concretas passagens do texto da decisão recorrida; e também indicando nos termos do artigo 412° n° 3 alínea a) do C.P.P. os “Pontos de Facto” que o Recorrente considerou incorrectamente julgados e assinalando nos termos da respectiva al. b) as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo a respectiva transcrição dos depoimentos em cumprimento do nº 4 do mesmo artigo e diploma.

7. Voltou a fazê-lo nas suas alegações, transcritas no corpo da pela recursiva e para as quais se repristina por facilidade de exposição.

8. Importa clarificar que tal invocação e fundamentação do vício recorrido, não se tratava de contradizer a convicção do tribunal de 1.ª instância, mas antes de analisar os meios de prova nos quais o Tribunal se ancorou, através da sindicância de um processo lógico-dedutivo, num exercício de defesa absolutamente consagrado na lei, o direito ao recurso.

9. Sucede que, a decisão ora recorrida é vazia de conteúdo que a esta matéria diz respeito, desde logo porque o TRL não se pronunciou, nem sobre as contradições aludidas, nem quanto ao recurso da matéria de facto nos concretos pontos assinalados pelo Recorrente.

10. A ratio do recurso de matéria de facto, ao exigir a listagem das provas que justificam decisão fáctica diversa, impõe ao tribunal de recurso que efectue um juízo de ponderação acerca desses meios de prova, e não um mero juízo de regularidade da produção de prova, sobretudo quando não é isso que está em causa.

11. Apesar de não existir um novo julgamento, é imposto ao tribunal que aprecia que analise cada meio de prova indicado pelo Recorrente e o confirme ou contradiga em função da concatenação do resultado decisório.

12. E o recurso é precisamente o momento processual onde, no expoente máximo das suas garantias de defesa, permitindo ao Arguido analisar todos os meios de prova produzidos, bem como sindicar o processo de formação da convicção do tribunal julgador.

13. É hoje entendimento unanime e pacifico que a omissão de pronúncia se traduz na ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa, ou seja, quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir, determinando assim a nulidade da sentença, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

14. No que respeita à concreta ausência de apreciação do recurso de matéria de facto pelo Tribunal da Relação, há muito que o STJ tomou posição no sentido de tal significar "uma violação insuprível do direito ao recurso na dimensão que hoje, inequivocamente, comporta, de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, e, por essa via, do artigo 32,°, n.° 1, da Constituição da República, e, mesmo, dos direitos de defesa, também ali garantidos, a demandar por essa via a correspectiva nulidade dos actos ofensivos".

15. Clarificando ainda que o meio adequado de arguição da nulidade e o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

16. Desde já se diga que a sindicância da matéria de facto nos termos da lei processual não pode ser reconduzida pelo tribunal superior, apenas e só por simplicidade na sua apreciação, à citação integral do processo de fundamentação da 1ª instância e à simples concordância com essa fundamentação, sem cuidar sequer de apreciar o recurso apresentado pelo Arguido nos pontos concretos por si suscitados, negando-lhe uma verdadeira dupla jurisdição.

17. Veja-se que, in casu, o Tribunal da Relação veio até aperfeiçoar uma técnica há muito por si utilizada, que consiste em motivar a decisão com “chavões”, frases vazias de qualquer conteúdo probatório, para assim mitigar a falta de apreciação da prova. Isso mesmo resulta, entre outros, das passagens a págs. 107, 108, 110, 111 e 112 da decisão recorrida, cujos excertos se encontram transcritos e melhor identificados na peça recursiva.

18. Não deixa de ser curioso que, apesar do Tribunal recorrido manifestar variadas dúvidas em relação ao elemento subjectivo, depressa as transforma em certezas, sem que tenha sido produzida mais qualquer prova e quando o Tribunal recorrido, com a mesma prova produzida, tinha afastado por completo o dolo morte!

19. Ante o que acima se disse, e atenta a nulidade incorrida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de omissão de pronúncia prevista no artº. 379° al. c) do C.P.P., deve a decisão prolatada pelo Tribunal da Relação de Lisboa ser anulada, ordenando-se o suprimento do referido vício.

20. Não podemos deixar ainda de referir que, não obstante a exaustiva impugnação fáctica levada a cabo pelo Arguido, o mesmo é confrontado com uma decisão que se limita a aderir por reporte ao recurso apresentado pelo Ministério Público, que em relação à sua motivação de recurso nada diz, pois nem sequer se explica como é que foram reapreciadas as provas indicadas pelo Recorrente que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida ou, por outras palavras, quais são afinal os argumentos que sustentam e validam a decisão de primeira instância e, já agora, a parte procedente do recurso do MP, cuja decisão implicar o voltar ao descabido libelo acusatório.

21. Por tal razão, a decisão recorrida é apenas e só uma confirmação cega da decisão de primeira instância, com uma operação de cosmética e embelezamento trazida pelo recurso do MP que serviu para alterar cirurgicamente um facto, sem qualquer fundamento probatório, a não ser uma íntima convicção motivada e sem substrato racional, olvidando por completo o exercício crítico substitutivo do «exame crítico» realizado pelo tribunal de primeira instância ao qual o Recorrente tinha direito.

22. O tribunal recorrido, numa decisão verdadeiramente contraditória entre si, retira consequências sem factos, permitindo-lhe com base nisso sustentar elementos subjectivos com agravação de conduta criminosa.

23. Como tal, o acórdão recorrido ao não proceder ao reclamado “juízo crítico substitutivo” sobre todas e cada uma das questões de facto suscitadas pelo recorrente – contra o disposto nos artigos 425º nº 4, e 379º nº 1 al. c) do C.P.P. – “deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar”, assim incutindo ao respectivo acórdão o vício da nulidade.

24. Razão pela qual tal acórdão deverá ser considerado nulo, recorrido por omissão de pronúncia prevista no artº. 379° al. c) do C.P.P e em consequência, não conseguindo este STJ suprir as nulidades do acórdão recorrido (de acordo com a redacção introduzida pela Lei n.º 20/13, de 21-02., ao n.º 2 do art. 379.º, do CPP), então deverá ordenar ao Tribunal da Relação de Lisboa que se pronuncie, em concreto sobre todas as questões suscitadas pelo Recorrente.

25. Analisando agora quanto aos vícios suscitados nos termos do art. 410.º, n.º 2 do CPP, entende o Recorrente que os mesmos decorrem límpidos da decisão da 1.ª instância, contudo, novamente o TRL não só não os declarou, nem sequer se dignou a pronunciar sobre os mesmos.

26. Um destes vícios suscitados tem por base uma questão absolutamente essencial respeitante as dúvidas manifestadas pelo Tribunal de primeira instância em audiência quanto à exactidão e dinâmica do acidente o que, aliás, motivou o pedido de reconstituição dos factos – que nem sequer foi admitido – vide a este respeito o facto 11) em contraposição com a argumentação expendida a págs. 19 e 35 do acórdão de 1.ª instância.

27. Evidente é, pois, a contradição absoluta entre a factualidade provada e à fundamentação e entre diferentes segmentos da fundamentação, no que concerne a se, aquando do embate, o Ofendido estava de frente para a viatura ou de costas para a mesma.

28. Neste ponto em particular, transparecem igualmente da decisão recorrida as constantes dúvidas que o tribunal foi manifestando ao longo de toda a audiência de julgamento.

29. Pelo que considera o Recorrente que, relativamente ao mencionado provado em 11, não pode deixar de se considerar existir contradição insanável com os segmentos da fundamentação identificados e transcritos na peça recursiva.

30. Apesar da versão apresentada pelo Arguido ter suscitado dúvidas ao tribunal de julgamento, e que só podiam ser supridas pela reconstituição dos factos que se requereu, o tribunal, ao indeferir a prova por reconstituição requerida pelo Arguido, coarctou as suas hipóteses de defesa, escolhendo deliberadamente não remover as suas dúvidas e que o Tribunal recorrido escandalosamente indefere.

31. Para além do mais, outros ressurgem agora do acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que a seguir se enunciam.

32. O primeiro deles é a contradição insanável entre a fundamentação do acórdão do TRL que resulta do excerto de pág.107 do acórdão que “(…) o arguido inicia a marcha com força e direcciona as rodas para o seu lado esquerdo” , quando a pág. 110 se escreve “Virou o seu volante e direccionou a viatura para o ofendido,(…) Passou-lhe o rodado por cima, teve o corpo do ofendido debaixo do chassis na parte lateral direita do carro e após, seguiu viagem abandonando o ofendido, à sua sorte” e ainda na pág.111 acrescenta “O Arguido direccionou o veículo contra o ofendido e atingiu-o em pleno, tendo-o derrubado e passado por cima com o rodado.”.

33. Ora, de tais excertos ressalta o desnorte evidente do Tribunal Recorrido na apreciação da dinâmica do acidente, mesmo em termos de factos já dados como provados.

34. Está dado como provado e é incontrovertido que o Ofendido faz uma perpendicular pela frente da viatura da esquerda para a direita, posicionando-se do lado direito e, quando o Arguido reinicia a marcha, aquele já se encontrava no lado direito, tanto que é atingido pela parte direita da viatura.

35. Ora, isso é incompatível com o Recorrente ter, ao mesmo tempo, virado as rodas para o lado esquerdo, o lado oposto onde se encontrava o Ofendido e ter igualmente direccionado o veículo para a direita, em direcção do Ofendido.

36. Ora, se o Tribunal recorrido, sob a mesma prova produzida, chega a uma conclusão diversa do Tribunal de 1.ª instância, concluindo que o Recorrente pretendia e quis atropelar o Ofendido, como compagina tal convicção com a concreta actuação do Recorrente, designadamente no sentido de virar as rodas para a esquerda – local oposto onde se encontrava o Ofendido.

37. A verdade é que, se verdadeiramente fosse essa a sua intenção não se vislumbra porque razão direccionaria as rodas do veículo e o seu olhar para o lado imediatamente oposto.

38. Esta questão tem particular acuidade, quando é partir desta dinâmica do acidente que o tribunal extrai a qualificação da actuação do Recorrente, para assim concluir pela existência do dolo morte!

39. Razão pela qual é imperioso que a decisão recorrida seja alterada, devendo a decisão recorrida ser alterada de molde a serem eliminadas tais contradições entre a fundamentação e a decisão entre si.

40. Quando ao segundo vício, do erro notório na apreciação da prova, este decorre de págs. 108 e 109 da decisão recorrida, cujo excerto consta da peça recursiva, onde resulta inequívoco que o Tribunal a quo não compreendeu a dinâmica dos factos.

41. Como o Tribunal de primeira instância referiu – o que o Tribunal da Relação de Lisboa ignorou, embora diga que concordou com tal fundamentação – a propósito da fundamentação para o facto provado 4), resulta que a bomba de combustível tem uma forma circular, pelo que, tendo o Recorrente saído pelo sentido oposto – o da entrada – sempre teria de se ter encostado à direita, independentemente da largura da faixa, de modo a poder fazer a manobra de saído, embatendo inevitavelmente com o rodado no passeio, o qual faz o tal bico a acompanhar a via em forma circular.

42. É por esta razão que o Arguido, com a sua viatura, invade o espaço físico onde o ofendido se encontrava.

43. Sendo certo que o TRL não tem qualquer elemento probatório – nem o indica – donde possa retirar que “esta operação de subida de lancil, foi claramente propositada”, daqui se retira também que o TRL não alcançou a dinâmica dos factos, indo muito para além na sua apreciação do que foi a decisão de primeira instância, embora diga que com esta concorda.

44. É ainda evidente o erro notório na apreciação da prova, sobretudo na dimensão do in dubio pro reo, que é tão mais grave quando o mesmo Tribunal Recorrido se socorre desta dinâmica, apesar de todas as dúvidas que lhe ressaltam, para agravar a conduta do Arguido descortinando através dos factos objectivos que parece não ter compreendido, o dolo morte!

45. Veja-se que a págs. 109 da decisão o TRL vem precisamente manifestar tais duvidas ao referir “não se percebe porque razão o arguido subiria o lancil, após olhar ou não, para a esquerda, para virar à direita e seguir caminho, caso não fosse sua intenção clara atingir o ofendido.”.

46. Ora, não tendo a certeza do que aconteceu, o TRL resolve condenando o Recorrente, em pena superior e por crime mais gravoso!

47. De tal forma não se pode estribar outra motivação senão a de que o Recorrente pretendia abandonar o local. E muito menos se poder retirar, como o tribunal recorrido declaradamente o faz, se subiu o passeio então é porque pretendia atropelar o Recorrente!

48. Pelo que inexiste qualquer prova trazida aos autos que permitisse ao tribunal a quo concluir que o Recorrente iniciou a circulação e que posicionou o veículo para o lado direito, onde se encontrava o Ofendido, de modo e para o atropelar intencionalmente.

49. Pelo que, em apelo ao princípio da presunção de inocência, se impunha que o Tribunal recorrido não extraísse qualquer conclusão ou convicção sem apego probatório, ainda para mais no sentido de agravar a condenação do Recorrente.

50. Pelo que, face ao exposto, urge alterar a decisão recorrida, em face do vício suscitado.

51. Chegados à questão jurídico-penal, e ainda que os vícios invocados não procedam, não pode este Tribunal Superior deixar de apreciar a questão jurídica respeitante à qualificação do crime de homicídio na forma tentada, tendo por base o artigo 132.º, n.º 2 als. e) e h) do Código Penal, que pressupõe que a conduta do agente revele, tendo em consideração as circunstâncias concretas em que tudo aconteceu, uma especial censurabilidade ou perversidade.

52. O que está pressuposto na qualificação dos factos é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.

53. Mas estas situações são absolutamente excepcionais, diríamos até excepcionalíssimas que podem levar a que se aplique a qualificação ao crime.

54. A jurisprudência tem entendido que "motivo fútil é aquele que não pode razoavelmente explicar e, muito menos, justificar a conduta do agente", é "o motivo sem valor, irrelevante, insignificante", é "aquele que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar (e, muito menos, portanto, de algum modo justificar) a conduta", é "aquele que não tem importância, é insignificante, irrelevante".

55. Por sua vez, a densificação desta qualificativa, não pode resultar da mera convicção do tribunal, quando não se encontra alicerçada por qualquer base probatória.

56. O Tribunal recorrido não cuidou, na determinação da agravação, de atender à imagem global dos factos, à conduta e personalidade prévia e posterior do agente, antes de poder inserir tais actos nos exemplos- padrão.

57. Aliás, não gastou uma única linha na densificação desta questão, limitando-se a extrair presunções e motivações que em lado algum se encontram ancoradas.

58. Inexiste, pois, qualquer facto ou prova que sustente que o Recorrente agiu movido de ira, raiva causada pela interacção com o Ofendido.

59. Não há qualquer prova que sustente a conclusão retirado pelo tribunal de que a discussão tenha gerado um desagrado no Recorrente e que, por esse motivo, ele tenha decidido atropelar o Ofendido.

60. O Recorrente não tinha quaisquer motivos para atropelar o Ofendido, muito menos à traição, de forma inesperada, de forma a molestar e violentar fisicamente o Ofendido.

61. O próprio Recorrente admite que a sua actuação, embora irreflectida e pouco ponderada, a qual nunca negou, nunca teve como propósito molestar fisicamente o Ofendido ou sequer imaginando que isso poderia acontecer se seguisse naquele sentido.

62. Ignorar tudo isto e firmar uma convicção, uma crença, que contraria directamente a prova produzida nos autos e que tem como único propósito formar um juízo de prognose desfavorável ao Recorrente, é violar claramente o in dubio pro reo.

63. Atento o exposto, não pode o tribunal concluir, sem qualquer base probatória que o sustente, que a conduta do Recorrente possa integrar especial censurabilidade, operando assim a qualificação da alínea e) ou h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

64. No que respeita à utilização de meio particularmente perigoso, apesar da conclusão simplista do Tribunal Recorrido, o que o Recorrente defende é, outrossim, que o automóvel pode constituir um meio particularmente perigoso, dependendo das circunstâncias.

65. E quanto a esta matéria, a fundamentação da decisão recorrida é novamente omissa.

66. Ora, ainda que não se ponha em causa a gravidade da utilização de um veículo automóvel (quando utilizado para a prática de ilícitos criminais, sobretudo de crimes contra a vida ou integridade física de outrem), e muito menos se tente contrariar que foi com este que foram provocadas as lesões no Ofendido, não pode nunca ser esta a justificação para que se aplique um regime mais gravoso ao Arguido. Um carro não é tout court um meio particularmente perigoso, pois que se assim fosse também um castiçal, uma bola de bowling também seriam meios particularmente perigosos.

67. Assim, não pode subsumir-se a específica conduta do Recorrente ao crime de ofensa à integridade física na sua forma qualificada por utilização de meio particularmente perigoso.

68. É inconstitucional a interpretação do tribunal, nos termos do artigo 132.º n.º 2, alínea h) do CPP, segundo a qual um veículo automóvel constitui um meio particularmente perigoso, sem atender ao caso concreto, por violadora do princípio da legalidade, presente no artigo 29º, nº1 da Constituição, que desde já se argui.

69. Não obstante, crermos que o Recorrente não poderá vir a ser condenado senão por um crime de ofensa à integridade física, ainda assim, há que discutir a análise e qualificação do dolo, tal como veio ser defendida pelo tribunal recorrido.

70. O Tribunal recorrido discorda, neste particular, do acórdão de primeira instância, considerando que o Arguido quis e direccionou o veículo contra o Ofendido. Contudo, queda-se por fundamentar a intencionalidade, defendendo-a pela negativa, por exclusão, dizendo até: “O que pretendia com a sua actuação?”.

71. Na questão do dolo, é hoje absolutamente uniforme na jurisprudência que os elementos do dolo possam ser deduzidos por extrapolação de factos objectivos, descritos na acusação, com recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum.

72. Pelo que, como nos ensina Figueiredo Dias, está absolutamente abandonado o dolus in re ipsa, ancorado nas presunções naturais do dolo, isto é, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção.

73. Não podemos deixar de discutir se a conceptualização que o Tribunal recorrido faz do dolo, para o vir caracterizar como dolo eventual, resulta efectivamente de presunções naturais extraídas dos factos, quer seja por via de critérios de normalidade, quer seja pela análise da prova em função de regras de experiência comum.

74. Sendo que o Tribunal recorrido teria de extrair directamente da prova até si trazida, resultante da alteração do facto 19) dado como provado, que não só o Arguido quis atropelar o Ofendido, como o fez sabendo e conformando-se que o mesmo poderia morrer.

75. Mas como pode o tribunal alcançar esta valoração, este juízo, se ao longo da decisão se interroga quanto à efectiva intenção da actuação do Recorrente.

76. Inexiste, pois, no acórdão do TRL o processo lógico-dedutivo que se impunha ao Tribunal recorrido, até para qualificar a actuação do Recorrente, agravando-lhe assim a pena.

77. Do acórdão recorrido ressaltam expressões como “Termos por certo”, “não temos dúvidas de que o Arguido pretendia atropelar o Ofendido”, mas que não se encontram minimamente densificadas nem escalpelizadas pelos Tribunal, permitindo-os alcançar um tal grau de certeza e convicção que, por sua vez, e baseado na mesmíssima prova e nos mesmos factos, o tribunal de 1.ª instância não teve.

78. Ora, daqui resulta igualmente uma grave violação do in dubio pro reo, uma vez que o tribunal, manifestando variadas dúvidas sobre a intenção do Recorrente, não poderia ter concluído em seu desfavor, de modo a descredibilizar a sua versão e, sem mais, bastar-se com a sua convicção para assim ancorar uma decisão de condenação por um crime, ainda por cima mais grave do que o mesmo já havia sido condenado em 1.ª instância.

79. A interpretação do disposto no artigo 127.º do CPP, segundo a qual se permite retirar dos factos objectivos consequências, designadamente a configuração da decorrência do dano morte como possível resultado da conduta do arguido, e a conformação deste com esse resultado, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 4 da CRP e por violação do principio da presunção de inocência, que constitui a pedra de toque de todo o processo penal português, consagrado no artigo 32º nº2 da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que ora se argui para todos os efeitos.

80. Razão pela qual não pode a conduta do Recorrente integrar o crime de homicídio tentado, com dolo eventual, nos termos do disposto no artigo 14.ºn.º 3 e 22.º, nº 2 alínea b) e 132.º e 132.º, alínea e) e h) e n.º3 do Código Penal.

81. Por último, mas não menos importante, far-se-á referência à forma como o Tribunal Recorrido decidiu aplicar a pena única de 6 (seis) anos ao Recorrente, por reporte ao recurso proferido pelo MP e balizado no que o mesmo requereu aquando das suas alegações na 1.ª instância, omitindo por completo a valoração e avaliação que lhe cabia, atendendo aos critérios plasmados no artigo 71.º do CP.

82. Veja-se que, a pág. 120 do acórdão conclui dizendo que “Não obstante sempre se dirá que nunca a pena a aplicar ao arguido poderia ser inferior aos seis anos de prisão, atenta a moldura penal abstracta aplicável (…)”. Bold e sublinhado nosso

83. Trata-se de uma omissão de pronúncia gravíssima, tendo como pressuposto um lapso ainda mais grave: é que a moldura penal abstracta aplicável ao crime pelo qual o Tribunal Recorrido decidiu, ex novo, condenar o Arguido – dois (dois) anos, quatro(quatro) meses e vinte e quatro (vinte e quatro) dias - é ainda mais baixa do que aquela que era aplicável ao crime de ofensas à integridade física grave qualificada – 3 (três) anos.

84. De tal forma foi displicente que nem sequer se deu conta de que o crime pelo qual decidiu condenar o Arguido tinha, afinal, uma moldura penal abstracta aplicável inferior à do crime que tinha sido condenado.

85. O Tribunal entendeu não gastar uma única linha do seu discurso para analisar concretamente a medida da pena a aplicar ao Recorrente, como o diz expressamente (pág.120 do acórdão).

86. É um vazio absoluto e completo de análise, de fundamentação, que viola todas as garantias de defesa do Recorrente, que nem sequer em que se baseou o Tribunal recorrido para decidir condená-lo numa pena de 6 (seis) anos.

87. Ora, este entendimento do Tribunal Recorrido, nos termos dos artigos conjugados 71.º e 40.º do CPP, segundo o qual, quando em sede de recurso se verifica a alteração da qualificação jurídica, para um crime de maior gravidade, o Tribunal Superior não tem de apreciar os pressupostos de que depende a aplicação da medida concreta da pena, é inconstitucional por violação do disposto no termos conjugados dos artigos 29.º, n.º 1, 3 e 4 e do artigo 32º, n.º 1 da Constituição. Inconstitucionalidade que desde já se argui para todos os efeitos.

88. Considerando tudo quanto se expendeu quanto aos vícios da decisão recorrida e quanto à errada subsunção da matéria de facto ao novo crime pelo qual o Arguido veio a ser condenado, entende-se, sem mais delongas, que em qualquer caso, e mesmo que se mantivesse na íntegra a decisão aplicada pelo TRL, nunca ao Recorrente poderia ser aplicada uma pena superior a 5 (cinco) anos de prisão, razão pela qual, tanto o quantum de pena aplicada em sede de 1.ª instância quanto a agora aplicada pelo TRL, se considera manifestamente exagerado e desproporcionado, que extravasa em muito a medida da culpa e que reflecte uma análise descuidada das exigências de prevenção e das circunstâncias que depõem a favor do Arguido.

89. Quanto à questão da censurabilidade da conduta do Recorrente, não obstante tudo quanto se disse a propósito da qualificação ou não do dolo morte, a verdade é que, exceptuando o atropelamento, que, quer seja propositado ou negligente, é sempre um episódio violento e penoso para a vítima, nunca o Recorrente demonstrou qualquer laivo de violência.

90. A indiferença que o Tribunal entendeu que o Recorrente manifestou perante a situação do Ofendido é facilmente explicável pelo facto de o Recorrente (como aliás sempre disse) não se ter apercebido que havia atropelado quem quer que seja.

91. E o Recorrente só não procurou o Ofendido porque foi detido alguns dias depois do sucedido e ficou, numa primeira fase, em prisão preventiva, e posteriormente sujeito a medida de medida de coacção de permanência na habitação sob vigilância electrónica, e que mantém até à presente data. O julgamento foi o primeiro momento em que pode estar de viva voz com o Ofendido.

92. O Recorrente não tem averbados quaisquer antecedentes criminais, desta ou de qualquer outra natureza. Mas mais, o Recorrente nem sequer tem averbada qualquer infracção estradal.

93. Acresce ainda que, para além da sua companheira, o seu agregado familiar é composto também pelos dois filhos menores de ambos, CC, de 4 anos e DD, de 7 anos, que dependem economicamente do trabalho do Recorrente para sobreviver.

94. Ambos os menores mantêm fortes laços de afecto e cuidado com o menor, que serão irremediavelmente afectados, com graves consequências emocionais para os menores, caso se mantenha a condenação em pena de prisão efectiva.

95. No mais e como resulta da matéria de facto dada como provada, o Recorrente está plenamente inserido do ponto de vista pessoal, social, familiar e laboral.

96. Nada disto foi tido em conta pelo tribunal que violou gritantemente o disposto no artigo 71.º do Código Penal, ao ignorar todos e quaisquer elementos de que depende a pena a aplicar ao Recorrente.

97. No caso em concreto impõe-se aplicar-lhe uma pena que lhe permita efectuar esse processo de ressocialização em liberdade, portanto, uma pena nunca superior a 5 (cinco) anos de prisão – o que, cremos, não bule com as necessidades de prevenção geral, nem especial.

98. Assim, ao aplicar pena manifestamente excessiva e desrespeitadora do princípio da proporcionalidade punitiva, violou o tribunal recorrido o artigo 77º do Código Penal.

99. Para além do mais, deverá este Alto Tribunal analisar, o que nunca foi feito até então pelos Tribunais de 1.ª instância e Relação, as condições para a aplicação ao Recorrente da suspensão da execução da pena.

100. Quer se mantenha a condenação pelo crime de um crime de homicídio tentado qualificado, diminuindo o quantum aplicado, quer se venha a condenar o Arguido pelo crime de ofensa à integridade física grave, qualificada, sempre deverá ser analisada e ponderada a suspensão da execução da pena aplicada ao Recorrente.

101. Analisados os critérios presentes no artigo 50º n.º 1 do C.P., as circunstâncias concretas do crime comportam um baixo ou moderado grau de ilicitude, onde a simples imagem global dos factos não justifica a privação da liberdade do Arguido.

102. Dir-se-á também que o Arguido manteve um comportamento adequado e sem quaisquer infracções rodoviárias durante os largos anos que têm a habilitação para condução de veículos ligeiros.

103. O juízo de prognose a realizar pelo tribunal parte da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente e da sua revelada personalidade, análise da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.

104. Numa análise globalizante dos factos provados, bem como das condições pessoais do Arguido já supra referidas é fundamentar formar um juízo de prognose favorável quanto à suficiência e adequação da censura do facto e da ameaça da pena para fazer o Arguido interiorizar a ilicitude e a censurabilidade da sua conduta.

105. Nestes termos, entende-se que estão verificados todos os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art.º 50 n.º 1 do C.P.

106. O Recorrente não tem averbada sequer qualquer contra-ordenação rodoviária.

107. Pelo que, dever-lhe-ia ter sido dado um benefício da dúvida acrescido e não, como o tribunal recorrido o fez, um juízo de censura acrescido.

Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar o presente recurso procedente, nos seguintes termos:

a) Declarar a nulidade do acórdão recorrido pelos vários vícios omissão de pronúncia invocados, nos termos do artº. 379° al. c) do C.P.P, e em consequência determinar a prolação de novo acórdão pelo TRL que conheça das questões que omitiu conhecer;

Caso assim não se entenda,

b) Reconhecer e sanar o convocado vício de Contradição insanável na fundamentação;

Caso assim não se entenda,

c) Declarar e sanar o invocado vício de erro notório da apreciação da prova pelo Tribunal Recorrido;

Ainda que assim não se entenda e se mantiver nesta parte a decisão,

d) Desqualificar o crime de homicídio tentado imputado ao Arguido;

e) Corrigir a medida concreta da pena aplicada, que deve ser significativamente reduzida, mais se determinado a suspensão da respectiva execução.

*

O recurso foi admitido por despacho de 20 de Novembro de 2024.

*

Respondeu ao recurso o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Lisboa, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

A ) - Defendemos que o acórdão objeto de recurso não padece de nenhum dos vícios apontados pelo recorrente.

B ) - As pretensões do Recorrente carecem de fundamento legal pelo que deve ser julgada improcedente e negado provimento ao recurso;

C ) - O acórdão recorrido não merece censura, deve ser mantido e confirmado nos seus precisos termos.

*

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal, não obstante a requerida realização da audiência, emitiu parecer, no termo do qual, formulou as seguintes conclusões:

A.

1.

a. O recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação para este Supremo Tribunal é admissível, por aplicação do disposto nos artºs 432º, nº 1, al. b) e 400º, nº 1, al. e), do Código de Processo Penal;

b. No entanto, o recurso não poderá ser apreciado em tudo o que vá para além da matéria de direito, ao contrário do que o recorrente parece pretender ao levantar questões reportadas à matéria de facto, como contradições que diz existirem, ou erros notórios na apreciação da prova.

c. Pois que nas situações do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, como é o caso, não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça (re)analisar a prova e a decisão de facto, nem mesmo no quadro dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;

d. Apenas o poderá efetuar se verificada a excecionalidade de situações que imponham conhecimento oficioso (que não ocorre).

2.

a. Não deverá ser admitida a pretendida discussão oral do caso, por incumpridos pelo recorrente os requisitos constantes no nº 5 do artº 411º do CPP;

b. Pois que se verifica ausência da efetiva delimitação do objeto de tal discussão, dado que o arguido/recorrente não especificou quaisquer pontos da motivação, mas sim das “conclusões” de recurso;

c. Pelo que o recurso deverá prosseguir sem a solicitada audiência.

B.

Face a isso, o Ministério Público apresenta o seu parecer, de acordo com o artº 416º, nº 1, do Código de Processo Penal:

I.

a. Não se verifica nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artº 379º, nº 1, al. c), do CPP.

b. A alteração da condenação efetuada pelo tribunal recorrido, no sentido de o arguido ter praticado crime de homicídio tentado qualificado com dolo eventual, teve na sua base uma efetiva apreciação da prova produzida, de forma muito aprofundada, não se limitando – ao contrário do que alega o recorrente – a aderir à fundamentação da 1ª instância.

c. O Tribunal da Relação cruzou todos os elementos probatórios e as regras da experiência comum, concluindo fundamentadamente no sentido de o arguido ter atuado admitindo que poderia ter provocado a morte ao ofendido, com tal resultado se conformando;

d. Face a isso, inútil se tornava que se tivesse pronunciado acerca do pedido pelo recorrente no seu recurso – pedindo este a condenação pela prática de crime negligente -, por ser esse entendimento absolutamente oposto àquele que haviam seguido.

II.

a. Inexiste no acórdão recorrido qualquer dos alegados vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP (que – como atrás referido – apenas oficiosamente poderiam ser apreciados). Na verdade, ao contrário do alegado:

b. Não se verifica contradição, muito menos absoluta, no que respeita à factualidade inerente à posição da vítima aquando do embate pela viatura: a circunstância de inicialmente o ofendido estar de frente para o veículo não obsta a que, depois, tenha sido atingido de costas. Só assim sucederia se se tivesse dado como provado que não se havia movido, mantendo-se nessa posição. E isso não ocorreu, como provado ficou no ponto 9) da matéria de facto provada.

c. A direção das rodas do veículo igualmente não tem a relevância pretendida pelo recorrente: só o teria caso não se tivesse verificado, como verificou, o atropelamento voluntário da vítima, nos moldes provados.

d. Não existe erro na apreciação da prova quando o acórdão recorrido adita à argumentação de 1ª instância que, no local, a faixa de rodagem tinha a largura de 6 metros: não foi esse o elemento determinante para se concluir pela atuação voluntária do arguido no sentido de atingir a vítima, apenas um reforço no sentido desse entendimento.

e. Não existindo, igualmente, qualquer violação do princípio in dubio pro reo, pois que falta a base para a sua aplicação: a existência de dúvida;

f. Nenhuma inconstitucionalidade se podendo, igualmente, achar quanto à decisão nesta parte, porquanto o Tribunal da Relação, para alterar a convicção formada pelo de 1ª instância, teve na sua base – e explicitou - a conjugação dos elementos probatórios, destes entre si e destes com as regras da experiência;

III.

a. O enquadramento jurídico efetuado na decisão recorrida mostra-se correto, ao qualificar a atividade do arguido como traduzindo uma especial censurabilidade ou perversidade, tal como exigido no artº 132º, nº 1, do Código Penal.

b. Não restando dúvidas quanto a ter sido fútil o motivo que determinou o arguido à prática dos factos, assim se integrando a sua conduta no exemplo-padrão contido na alínea e) do nº 2 daquele precito;

c. Já quanto à utilização do veículo automóvel como arma para a prática do crime, pode entender-se que a integração na alínea h) daquele artº 132º, nº 2, do CPP (meio particularmente perigoso), não deverá manter-se, antes sendo integrada tal utilização – e da forma como o foi – no exemplo-padrão da alínea i) (utilização de meio insidioso);

d. O que deverá implicar alteração da decisão nesse sentido;

e. Alteração esta que, no entanto, em nada altera o qualquer efeito em termos de qualificação jurídica: a agravação do crime verifica-se pelo preenchimento do nº 1, sendo as alíneas meramente exemplos-padrão;

f. Donde que não haja necessidade de dar cumprimento ao disposto no artº 424º, nº 3, do CPP, até porque esta alteração – dada a notificação que irá ser efetuada nos termos do artº 417º do CPP – afasta qualquer ‘surpresa’ para a defesa neste particular, tendo a mesma a oportunidade se se pronunciar acerca da matéria;

g. E assim se afastando a invocação de inconstitucionalidade que é efetuada na motivação de recurso: não sendo feito recurso à alínea h), deixa tal invocação de ter objeto;

h. De qualquer forma, mesmo a manter-se tal alínea como preenchida pela conduta, há a notar que nunca o foi como referido pelo recorrente: O acórdão entende o veículo automóvel como «meio particularmente perigoso» apenas porque o foi da forma descrita na matéria de facto: estando o arguido de costas, sendo surpreendido, sem possibilidade de defesa perante aquela ‘arma’ e face à insistência do arguido em proceder ao atropelamento, passando com a viatura por cima do ofendido, já depois da queda deste ao solo por via do embate.

IV.

a. Na escolha da pena aplicada, o texto do acórdão recorrido contém um erro meramente material quando refere os limites abstratos da pena, o que pode e deve ser retificado agora, ao abrigo do disposto no artº 380º, nº 1, al. b) e 2, do Código Penal, não tendo aquele erro tido qualquer influência na decisão;

b. Não corresponde à realidade que o acórdão recorrido tenha entendido 6 anos de prisão como mínimo da pena a aplicar, antes entendeu tal pena como máxima passível de aplicação, dada a posição do Ministério Público em 1ª Instância;

c. E escolheu a mesma (6 anos) com base nos argumentos utilizados na decisão então recorrida, entendendo-a como se tratando da ajustada ao grau de ilicitude dos factos, à sua censurabilidade e também às específicas razões de prevenção geral e especial, analisando concretamente a situação;

d. Em moldes que afastam, também aqui, a invocação de inconstitucionalidade que é efetuada pelo recorrente;

e. Sendo que não se verifica necessidade de qualquer atividade corretiva deste Supremo Tribunal quanto à pena aplicada;

f. Pena que leva à impossibilidade da pretendida suspensão de execução, suspensão que, aliás, não se justificaria caso legalmente admissível, atenta a postura do arguido perante a factualidade por si praticada e consequências desta decorrentes.

- Pelo que é parecer do Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça que deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida (apenas havendo que se proceder à correção do erro material atrás referido no ponto IV. a. destas conclusões).

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

O arguido respondeu ao parecer, alegando, em síntese:

- Quanto à realização da audiência, entende ter dado pleno cumprimento ao disposto no art. 411º, nº 5 do C. Processo Penal, tendo cabalmente concretizado as questões que pretende debater oralmente perante o tribunal, sendo inconstitucional, por violação dos arts. 20º, nºs 1 e 4, 32º, nºs 1 e 5 e 200º, nº 2 da Lei Fundamental, interpretação diversa do nº 5 do art. 411º do referido código;

- Quanto à invocada omissão de pronúncia, reafirmou a argumentação da motivação do recurso quanto a tal questão;

- Quanto à questão da qualificação jurídico-penal dos factos, insurge-se o arguido com a, pelo Ministério Público, pretendida alteração da qualificação jurídica do homicídio tentado, de o passar a ser pela alínea i) do nº 2 do art. 132º do C. Penal – meio insidioso –, e com a pretendida dispensa da respectiva comunicação, pelo tribunal, por a possibilidade da sua aplicação, ao ter sido tratada no parecer, não constitui decisão surpresa, pois a ausência de tal comunicação constituirá uma violação do princípio do contraditório, sendo, em todo caso, carecido de fundamento o preenchimento da referida alínea i), face à matéria de facto provada nos autos;

- Quanto à medida da pena, não pode ser considerado um mero lapso, o que consta do acórdão recorrido, quanto à moldura penal abstracta, quando o raciocínio subjacente à determinação da pena concreta partiu dessa moldura, sendo certo que, tendo a 2ª instância decidido de forma distinta da 1ª instância, deveria ter exposto o processo lógico seguido quanto à determinação do quantum da pena;

E concluiu pelo provimento do recurso.

*

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência, após o que, o tribunal reuniu e deliberou nos termos que seguem.

*

*

*

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados

A matéria de facto provada relevada que provém das instâncias [com a modificação operada pela Relação sinalizada a negrito] é a seguinte:

“(…).

1) No dia 18 de Abril de 2023, cerca das 13.26 horas, o arguido, conduzindo a viatura Fiat Tipo, de cor azul, com a matrícula V1, dirigiu-se ao Posto de Abastecimento de Combustíveis (PAC) da REPSOL, sito na rotunda de Alcochete, área do Montijo, a fim de aceder, por essa via, ao “drive thru” do estabelecimento de restauração “Burger King” ali instalado.

2) Nesse local e sem que tivesse necessidade de sair do habitáculo do veículo, o arguido adquiriu uma refeição no valor global de € 7,70 (sete euros e setenta cêntimos), tendo entregue como pagamento, sem indicar número de contribuinte, uma nota de € 10,00 (dez euros).

3) Após recolher a refeição, o arguido abandonou aquele “drive thru”, conduzindo o referido veículo de matrícula V1 e, na área de serviço do Posto de Abastecimento de Combustível, o arguido saiu pela mesma via pela qual entrou pretendendo aceder à Estrada Municipal (E.M.) 1004, no sentido do Samouco.

4) O arguido ao sair do “drive thru” virou à direita, quando a saída era pela esquerda, e estava a fazer o percurso pelo acesso de entrada do posto de combustível.

5) Nesse circunstancialismo, BB, que se havia deslocado ao mesmo Posto de Abastecimento e atravessava a pé o dito acesso de entrada, após ter estacionado o seu veículo nas imediações, foi surpreendido pela viatura conduzida pelo arguido, naquele local, a qual lhe surgiu pelo seu lado direito.

6) Face à situação, BB demonstrou o seu descontentamento ao arguido, parando a meio da via.

7) O arguido, perante a presença do ofendido, inicialmente parou a viatura, mas depois avançou, o que levou a que o ofendido tivesse que se afastar para não ser colhido, e quando a viatura passou por si, desferiu uma palmada com a mão no capot do veículo de matrícula V1, conduzido pelo arguido.

8) De seguida, BB dirigiu-se até à porta do lado do condutor do veículo, encetando uma discussão com o mesmo, que levou a que este abandonasse o habitáculo do veículo e se posicionasse junto do primeiro, encostando o seu corpo ao daquele, numa expressão corporal de desafio, continuando os mesmos numa troca de palavras.

9) Como BB não teve qualquer reacção e lhe voltou as costas, ignorando-o e voltou a fazer a travessia da via, passando à frente do veículo automóvel para se ausentar daquele local, o arguido entrou no veículo.

10) Ato contínuo, o arguido reiniciou o seu percurso, fazendo com a viatura automóvel a manobra de virar à direita, fazendo a mesma subir o lancil, bem sabendo que o ofendido BB se encontrava à frente da viatura.

11) Ao iniciar a marcha da viatura e quando o ofendido já se encontrava sobre a extremidade do passeio, situado entre a entrada do Posto de Abastecimento de Combustível e o início da Estrada Municipal (E.M.) 1004, no sentido do Samouco, o arguido dirigiu a viatura na direcção do corpo do ofendido, atingindo-o com violência e pela retaguarda.

12) Com o impacto sofrido o BB caiu ao solo, tendo o arguido continuado a marcha do veículo que conduzia, levando a que o ofendido rolasse sob o referido veículo e tendo passado com a viatura por cima do corpo daquele.

13) Após, o arguido abandonou o local, no sentido do Samouco, não providenciando por ajuda ou sequer cuidando de saber da gravidade das lesões provocadas em BB, deixando-o estendido na faixa de rodagem da aludida Estrada Municipal (E.M.) 1004.

14) Em consequência da atuação do arguido, BB foi transportado com urgência ao Centro Hospitalar Barreiro Montijo, E.P.E., e posteriormente para o Hospital Cury Cabral, em Lisboa, onde ficou internado e foi subsequentemente submetido a cirurgia urgente, dada a gravidade das lesões sofridas.

15) Em consequência da descrita conduta do arguido, BB sofreu as seguintes lesões:

“Múltiplas feridas incisas na face e couro cabeludo”;

“Fraturas múltiplas e cominativas da tíbia perónio direito”,

“Hematoma das partes moles extracranianas da região parieto-occipital esquerda”;

“Fratura da extremidade inferior do colo do côndilo mandibular direito”;

“Fratura do colo do côndilo mandibular esquerdo, com desalinhamento para fora do ramo ascendente da mandibula”;

“Fratura da região anterior do corpo mandibular esquerdo, num plano obliquo (região edentula do incisivo lateral e abaixo da pré-molar), sem desalinhamento”;

“Fraturas da vertente externa do 3° ao 10° arcos costais direitos. É de referir que do 3º ao 7° arcos costais existem fraturas múltiplas de cada arco costal, algumas cominutivas e com significativo desvio dos topos ósseos (…) discreto enfisema da parede lateral direita do tórax e uma pequena lâmina de pneumotórax que se estende na vertente anterior do terço médio e inferior do hemitorax. (…) derrame pleural/hemotórax que se estende na vertente posterior de todo o hemitorax direito, com uma espessura máxima de cerca de 3 cm no terço médio do hemitorax”;

“Fígado com dimensões conservadas, com contornos regulares, identificando-se uma área relativamente extensa de heterogeneidade da captação do produto contraste, com áreas hipocaptantes mal definidas, atingindo os segmentos IV, VIII e V em relação com a áreas de contusão hepática”;

e, “Pequena lâmina de líquido peri-hepático e ao longo da goteira parietocólica direita, numa extensão longitudinal não superior a 3 cm”, e perda de dentes.

16) BB sofreu assim, um traumatismo torácico, um traumatismo facial, um traumatismo do membro inferior direito com fracturas cominutivas da tíbia e perónio direito, fractura mandibular direita, fractura dos 3.ª ao 10.ª arco costal direitos, fez hemotórax direito, atelectasia do lobo inferior do pulmão direito, tem áreas de contusão hepática, teve de realizar transfusão de uma unidade de sangue, e foi submetido a encavilhamento dos ossos da perna, e em virtude dessas lesões teve um perigo efectivo na sua vida.

17) Em consequência das lesões e dos tratamentos a que foi submetido sofreu dores.

18) O ofendido teve um período de doença e incapacidade para o trabalho ainda não determinado, em virtude de não ter sido ainda concedida alta médica ao mesmo, apenas tendo começado a trabalhar no dia 28/12/2023, mas com limitações. Assim, o ofendido teve um período de incapacidade temporária absoluta até dia 27/12/2023 e continua com ”incapacidade temporária parcial” desde tal data, não se mostrando fixada a “incapacidade permanente”.

19) O arguido quis atingir o ofendido com a viatura, bem sabendo que como resultado direto da sua conduta poderia advir a morte do ofendido e conformou-se com essa possibilidade, sendo indiferente a esse resultado.

20) Ao agiu da forma descrita por se ter enervado com o desentendimento anterior havido entre ambos, não se coibindo de utilizar um veículo contra uma pessoa indefesa, além de a atingir pela retaguarda e de forma inesperada.

21) Actuou o arguido, nos moldes relatados, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se inibindo ainda assim de a realizar.

(…)”.

B) Factos não provados

A matéria de facto provada que provém das instâncias [com a modificação operada pela Relação sinalizada a negrito] é a seguinte:

“(…).

a) O arguido, irado com a situação, cuspiu na direcção do ofendido e depois introduziu-se rapidamente no veículo que conduzia, colocando- o em funcionamento.

b) O arguido pretendia com a sua acção matar o ofendido.

c) O arguido só não conseguiu atingir os seus intentos, de matar o ofendido, por motivo alheio à sua vontade e relacionado com a rápida assistência médica prestada a BB.

d) O telemóvel do ofendido foi destruído pela viatura do arguido.

e) O ofendido teve um incumprimento de um crédito ao Montepio Geral.

(…)”.

C) Fundamentação quanto às circunstância qualificativas da conduta

“(…).

Quanto às qualificativas do tipo de crime, também colocadas em causa pela defesa, cumprirá dizer que a jurisprudência tem delimitado a mais adequada orientação quanto a tal matéria, conforme aliás resulta do acórdão recorrido.

O Supremo Tribunal de Justiça desde há mais de três décadas que vem considerando o veículo automóvel, como um meio particularmente perigoso.

Veja-se o sumário do Acórdão de 7.11.1990, publicado em

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/361ecdaec861c89e802568fc0039cd5e#:~:text=III%20I

I - A expressão "meios particularmente perigosos" quer significar todas as armas ou instrumentos com a capacidade de, no seu uso e segundo a experiência comum, poderem desencadear um perigo para a vida ou integridade física do ofendido;

II - Exemplificativamente constituem "meios particularmente perigosos" todas as armas brancas (faca, navalha, punhal, foice, gadanha, etc.) e as armas de arremesso (pedras, setas, dardos, fundas, etc.);

III - Um veículo automóvel pode constituir um meio particularmente perigoso.

Mais recentemente,

(…) O arguido, intencionalmente, atingiu a integridade física do ofendido, utilizando um veículo em aceleração, numa descida, socorrendo-se, pois, de um meio ou instrumento que, nessas concretas circunstâncias, além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, revelou uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios ou instrumentos mais comuns de agressão. Essa conduta revela insensibilidade e desvenda uma «imagem global do facto agravada», quando confrontada com os procedimentos de agressão comummente adoptados, o que permite concluir que o arguido agiu de uma forma especialmente censurável, ostensivamente contra legem, passível, assim, de uma maior censura jurídico-penal, por fundar um juízo de maior desvalor ético, sustentado pela prevalência, no seu íntimo querer, de uma forma de realização do facto especialmente desvaliosa, pois visou atingir corporalmente uma pessoa dificultando a sua defesa, em razão da enorme supremacia que lhe conferia o veículo automóvel e a especial perigosidade deste.

Acórdão de 6.12.2017, do Tribunal da Relação de Guimarães, publicado em

http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b5a311aa6ab9eb60802580c70051.

Assim, bem andou o Tribunal recorrido em ter julgado preenchidas as qualificativas das alíneas e), e h), do n.2 do artigo 132º, do Código Penal.

Relativamente ao preenchimento da alínea h) foi já a mesma objeto de apreciação supra, em sede de integração dos factos no tipo legal de tentativa de homicídio e não de ofensa à integridade física.

(…)”.

D) Fundamentação quanto à medida da pena

“(…).

O crime pelo qual o Arguido vai condenado é punido, por força da atenuação especial prevista no artigo 73º do Código Penal, com pena compreendida entre dois anos, quatro meses e vinte e quatro dias a dezasseis anos e oito anos, três meses e nove dias de prisão.

Peticiona o Ministério Público, em sede de recurso, a condenação do Arguido em sete anos e meio.

Invoca a Defesa que tal pedido é inadmissível, por verificação do princípio da boa fé e por violação do venire contra factum proprium, porquanto em sede de alegações finais, pelo Ministério Público foi peticionada uma pena de 6 anos de prisão.

Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Outubro de 1994, foi fixada Jurisprudência no sentido de que:

Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.”.

Tal entendimento veio a ser sufragado novamente, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n. 2/11, publicado no Diário da República, I Série A, de 27-01-2011, nos seguintes termos:

Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.”

Assim, assiste parcialmente razão ao Arguido, mas apenas na limitação da pena, já não quanto à interposição do recurso, pois o Ministério Público defendeu em julgamento que o arguido havia cometido crime diverso e deveria ser punido com pena de seis anos.

A limitação decorrente do artigo 401º do CPP, circunscreve-se, pois, ao limite da pena que não poderá assim ascender àquela que veio agora pedir em recurso, (sete anos e seis meses de prisão) mas quedar-se pelo limite que estabeleceu em sede de alegações orais (seis anos de prisão).

Nestes termos, pese embora, a alteração da qualificação jurídica, deverá o Acórdão ser revogado nesta parte e fixada a pena, em concreto, em seis anos de prisão.

Fixando-se a pena neste quantitativo, também escusadas são todas as questões colocadas pelo arguido quanto à medida da pena e à sua eventual suspensão. Não obstante sempre se dirá que nunca a pena a aplicar ao arguido poderia ser inferior aos seis anos de prisão, atenta a moldura penal abstrata aplicável, a censurabilidade da sua conduta atestada desde logo pela violência dos factos, como pela indiferença que durante tanto tempo votou ao ofendido, pois nunca reconheceu os factos, não o procurou e só em julgamento pediu desculpa pelo praticado, em termos, diga-se pouco convincentes, quanto à autenticidade do seu pesar para com o sofrimento do ofendido.

Assim, a pena concreta de seis anos, mostra-se claramente adequada ao grau de ilicitude dos factos, a sua censurabilidade e também às específicas razões de prevenção geral e especial.

(…)”.

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Âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.

Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.

Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são, por ordem de precedência lógica:

- A nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia [quanto aos vícios decisórios do acórdão da 1ª instância e quanto à impugnação ampla da matéria de facto];

- Os vícios decisórios do acórdão recorrido [contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova];

- A violação do princípio in dubio pro reo;

- A incorrecta qualificação jurídica dos factos;

- A incorrecta fixação da medida da pena;

- A substituição da pena de prisão.

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Questões prévias

A. No acórdão recorrido foi decidido alterar a redacção do ponto 19 dos factos provados [Ao actuar da forma enunciada, agiu o arguido com o propósito de molestar fisicamente o ofendido, como molestou, admitindo como possível que, ao atingi-lo de forma violenta, com o veículo que conduzia, o qual pelo seu peso e velocidade imprimida, podia atingi-lo em órgãos vitais, e assim provocar-lhe lesões que lhe causassem perigo para a vida, conformando-se com essa possibilidade.], que passou a ser a seguinte:

- 19. O arguido quis atingir o ofendido com a viatura, bem sabendo que como resultado direto da sua conduta poderia advir a morte do arguido e conformou-se com essa possibilidade, sendo indiferente a esse resultado.

Da leitura da nova redacção do ponto de facto em causa ressalta a evidente existência de um lapso de escrita no segmento «(…) como resultado directo da sua conduta poderia advir a morte do arguido e conformou-se (…)» pois, no concreto circunstancialismo, da conduta do arguido não poderia advir a sua morte, mas a morte do ofendido.

Assim, nos termos do disposto no art. 380º, nºs 1, b) e 2 do C. Processo Penal, corrige-se o verificado lapso de escrita, passando o ponto 19 dos factos provados a ter a seguinte redacção:

- O arguido quis atingir o ofendido com a viatura, bem sabendo que como resultado direto da sua conduta poderia advir a morte do ofendido e conformou-se com essa possibilidade, sendo indiferente a esse resultado.

Consigna-se que a rectificação foi já feita na matéria de facto provada supra transcrita.

B. Como se disse já, o arguido foi absolvido na 1ª instância da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e) e h), todos do C. Penal, que lhe era imputado na acusação, e condenado, por convolação daquele, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelos arts. 144º, d) e 145º, nºs 1, c) e 2, do C. Penal, por referência ao art. 132º, nº 2, e) e h) do mesmo código, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, e na pena acessória de 1 ano de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º, nº 1, b), do C. Penal.

Na sequências de recursos interpostos pelo Ministério Público, pelo assistente e pelo arguido, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 9 de Outubro de 2024 decidiu, na parte em que agora releva, dando parcial provimento aos recursos do Ministério Público e do assistente, condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e) e h), todos do C. Penal, na pena de seis anos de prisão.

Não se suscitam dúvidas quanto à admissibilidade do recurso interposto pelo arguido do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto nos arts. 399º, 400º, nº 1, f) a contrario, e 432º, nº 1, b), todos do C. Processo Penal, dada a inexistência de dupla conforme entre as instâncias.

Questão distinta é já a de saber se o objecto [todo o objecto] do recurso fixado pelo arguido se compreende nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

a. Conforme se deixou assinalado supra, uma dos fundamentos do recurso interposto pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça é o de o acórdão recorrido enfermar dos vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.

Acontece que o actual regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21 de Março de 2022, dada ao art. 432º do C. Processo Penal] estatui que os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, só podem fundamentar recurso para o nosso mais Alto Tribunal de acórdão da relação proferido em 1ª instância (alínea a) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal), ou de acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal colectivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal).

Já não assim, relativamente às situações subsumíveis à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, pois aqui, alei estabelece a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400º do C. Processo Penal, não contemplando, pois, como fundamento do recurso, os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo código. Concordantemente, o art. 434º do C. Processo Penal [igualmente na redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro], restringe o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, apenas excepcionando da restrição imposta, o disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º.

Deste modo, os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, não podem, face ao disposto nos arts. 432º, nº 1, b) e 434º, do mesmo código, fundamentar recurso de acórdãos da relação, tirados em recurso, sendo este, entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça (entre outros, acórdãos de 9 de Julho de 2025, processo nº 185/23.8PBVFX.L1.S1, de 24 de Abril de 2024, processo nº 2634/17.5T9LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 864/20.1JABRG.G1.S1, de 15 de Fevereiro de 2024, processo nº 135/22.9JAFUN.L1.S1, de 7 de Dezembro de 2023, processo nº 356/20.9PHLRS.L1.S1, de 8 de Novembro de 2023, processo nº 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de Março de 2022, processo nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt).

Sempre ficará ressalvado, no entanto, o conhecimento oficioso dos vícios previstos no nº 2 do art.410º do C. Processo Penal (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995), se a correcta decisão de direito a proferir pelo Supremo Tribunal de Justiça for impossibilitada pela sua existência.

b. Lido o acórdão recorrido da Relação de Lisboa, não vemos que do respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulte qualquer um dos apontados vícios, pelas razões que sucintamente se expõem.

Como é sabido, os vícios decisórios previstos no nº 2 dos art. 410º do C. Processo Penal tipificam defeitos lógicos da decisão penal, rectius, da sentença, e não, do julgamento, que se evidenciam pelo respectivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quando se verifica uma oposição logica e reciprocamente excludente entre duas proposições ou premissas, insusceptível de ser remediada pelo tribunal de recurso, e que pode revestir diversas modalidades, v.g., a oposição entre factos provados, entre factos provados e factos não provados, entre factos provados e a respectiva motivação de facto, entre os factos provados e o direito sobre eles aplicado (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 2020, Universidade Católico Editora, pág. 325).

Note-se, porém, que nem toda a contradição significa a existência do vício, pois esta pode radicar de um lapso de escrita que resulta patentemente do texto da sentença, caso em que nada obsta ao seu suprimento, nos termos do art. 380º do C. Processo Penal.

O arguido suporta a existência do vício na argumentação levada às conclusões 32 a 39, segundo as quais, na pág. 107 do acórdão se lê que «(…) o arguido inicia a marcha com força e direcciona as rodas para o seu lado esquerdo (…)», quando na pág. 110 do mesmo se lê «(…) Virou o seu volante e direccionou a viatura para o ofendido,(…)Passou-lhe o rodado por cima, teve o corpo do ofendido debaixo do chassis na parte lateral direita do carro e após, seguiu viagem abandonando o ofendido, à sua sorte (…)», e quando na pág. 111 do mesmo se lê «(…) O Arguido direccionou o veículo contra o ofendido e atingiu-o em pleno, tendo-o derrubado e passado por cima com o rodado. (…)», o que é incompatível com o circunstancialismo provado de que o ofendido passou à frente da viatura conduzida por si [arguido], da esquerda para a direita, encontrando-se à direita desta quando é iniciada a sua [da viatura] marcha, pois virar as rodas para a esquerda não poderia direccionar a viatura para a direita, em direcção ao ofendido.

Resulta efectivamente provado [pontos 9 a 11 dos factos provados] que quando o arguido pôs o veículo que conduzia em movimento, o assistente já se encontrava no lancil e passeio, portanto, à direita do veículo, e que nesta decorrência, o arguido manobrou para a direita, fez o veículo subir o passeio e aí foi atingir com violência o assistente.

Assim, a contradição existente ocorre entre o segmento referenciado como da pág. 107, onde se diz que o arguido virou as rodas do veículo para o lado esquerdo, e a matéria de facto provada onde, no mesmo circunstancialismo, consta que o arguido virou as rodas do veículo para o lado direito [e não, também, com os segmentos referenciados como das págs. 110 e 111], sendo, no entanto, manifesto, o lapso escrita referido ao virar da direcção da viatura para o lado esquerdo, quer porque nos dois seguintes segmentos não é repetido o virar da direcção para o lado esquerdo, quer porque o assistente se encontrava efectivamente posicionado sobre o passeio à direita da viatura, facto que o acórdão recorrido repetidamente sublinha, e por isso, necessariamente, só aí poderia vir a ser colhido, como foi, se o arguido dirigisse para a direita, de modo a subir o passeio, como subiu, a viatura [veja-se, a propósito, o segmento do acórdão recorrido, que situamos na pág. 107 «(…) Não foi referido por nenhum dos recorrentes, nem tão pouco no Acórdão recorrido, mas releva para a apreciação da dinâmica dos factos, a medição realizada no local, da qual resulta que a via de circulação tem ali uma largura de 6 metros (croqui de fls. 11), indicado como meio de prova. Ora, tendo uma faixa de rodagem de seis metros, não se percebe porque razão o arguido subiria o lancil, após olhar ou não, para a esquerda, para virar à direita e seguir caminho, caso não fosse sua intenção clara atingir o ofendido. (…)»].

Ocorre erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valora contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 81).

O arguido suporta a existência do vício na argumentação levada às conclusões 40 a 43, segundo as quais, decorre de págs. 108 e 109 do acórdão recorrido não ter a Relação de Lisboa compreendido a dinâmica dos factos, pois que, resultando da fundamentação do acórdão da 1ª instância, aceite pela relação, que a bomba de gasolina tem desenho circular e que saiu dela [o arguido] pelo sentido da entrada, para fazer a manobra de saída, teria de se encostar à direita da faixa de circulação, independentemente da largura desta, e por isso, inevitavelmente teria que embater com o veículo no passeio e invadir o espaço onde se encontrava o assistente que embater com o veículo, pelo que, não existe qualquer elemento probatório onde possa se suportada a afirmação de que a subida do lancil foi claramente propositada.

É evidente que estamos perante uma mera argumentação que, em tese, apenas poderia consubstanciar um erro de julgamento, mas não, um erro notório na apreciação da prova [na verdade, não de descortina razão válida impeditiva de o arguido contornar o referido bico e entrar na via de saída pela faixa de circulação].

c. Em conclusão, e conforme já referido, não encontramos no acórdão recorrido vício decisório que impeça a correcta decisão de direito.

Nestes termos, deve ser rejeitado o recurso, na parte em que tem por fundamento a questão da existência dos vícios decisórios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, no acórdão recorrido, restringindo-se a apreciação do recurso às demais questões submetidas pelo recorrente ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça.

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Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia [quanto aos vícios decisórios do acórdão da 1ª instância e quanto à impugnação ampla da matéria de facto]

1. Alega o arguido – conclusões 6 a 24 – ter suscitado no recurso interposto do acórdão da 1ª instância a existência do vício de contradição insanável, bem como ter indicado, para efeitos do art. 412º, nº 3, a) do C. Processo Penal, os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, assinalando, nos termos da alínea b) do mesmo número, as concretas provas impositoras de diversa decisão e fazendo a transcrição dos depoimentos pertinentes, não estando em causa, na invocação feita, contradizer a convicção firmada pelo tribunal recorrido, mas sindicar o processo lógico-dedutivo firmado no exercício do direito ao recurso, sendo que o acórdão da Relação de Lisboa, no acórdão que proferiu, não se pronunciou, nem sobre as contradições apontadas, nem quanto ao recurso da matéria de facto nos concretos pontos de facto identificados através da efectiva ponderação dos meios de prova especificados, pois não basta para este efeito, que o tribunal de recurso cite o processo de fundamentação da decisão recorrida e com ele manifeste concordância, sem cuidar de apreciar os pontos concretos impugnados pelo recorrente, mediante o uso de frases chave, vazias de conteúdo probatório, assim incorrendo o acórdão impugnado na nulidade de omissão de pronúncia, prevista na alínea c) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal. Acresce – continua o arguido – que, não obstante e exaustiva impugnação da matéria de facto feita, o acórdão recorrido limita-se a aderir à decisão relativa ao recurso do Ministério Público, nada dizendo relativamente à sua [do arguido] motivação, sem qualquer explicação sobre como foram reapreciadas as provas por si especificadas, pelo que, mais uma vez, incorre o acórdão impugnado na nulidade de omissão de pronúncia.

Estabelece o art. 379º do C. Processo Penal, prevendo o regime privativo da nulidade da sentença, no seu nº 1, c), que, é nula a sentença [q]uando o tribunal deixe pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. No primeiro caso, estaremos perante uma omissão de pronúncia e no segundo, perante um excesso de pronúncia.

Este preceito é aplicável aos acórdãos proferidos em recurso (art. 425º, nº 4 do C. Processo Penal).

É entendimento pacifico que, no âmbito da nulidade por omissão de pronúncia, por questão se deve considerar o problema concreto, de facto ou de direito, submetido ao conhecimento do tribunal por qualquer sujeito processual, ou que seja do seu conhecimento oficioso, e não também, os argumentos, pontos de vista e doutrinas invocados para sua sustentação.

Em todo o caso, como supomos igualmente pacífico, os concretos problemas submetidos ao conhecimento do tribunal devem estar minimamente conexionados com o objecto do processo.

Vejamos, então.

a. O arguido afirma, conforme já referido, que o Tribunal da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre as contradições que entende existirem e que identificou, nem sobre os concretos pontos de facto que impugnou de forma ampla, implicando a ausência de apreciação do recurso da matéria de facto uma violação insuprível do direito ao recurso e, por consequência, uma violação do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Cumpre desde já notar que as exigências de fundamentação e pronúncia previstas no art. 374º, nº 2 do C. Processo Penal, não são directamente aplicáveis aos acórdãos proferidos pelos tribunais de recurso, sendo-o apenas por força do disposto no art. 379º, ex vi, art. 425º, nº 4, ambos do mesmo código, razão pela qual, tais acórdãos não são elaborados nos precisos termos das sentenças e acórdãos da 1ª instância, dado ser seu objecto a decisão recorrida [e não, o objecto do processo].

Por isso, a fundamentação decisória da relação não é uma fundamentação originária mas derivada, feita sobre uma decisão que já motivou uma convicção, sendo-lhe, por tal razão, permitido, ao analisar a decisão recorrida, socorrer-se da fundamentação desta para suportar a sua própria fundamentação (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2024, processo nº 127/16.7 GCPTM.E3.S1, in www.dgsi.pt).

Quanto ao mais.

No que à impugnação ampla da matéria de facto respeita, no recurso que interpôs para a Relação, o arguido impugnou os pontos 7, 8, 9, 11, 13, 19 e 20 dos factos provados, em apertada síntese, nos termos que se passam a expor.

Quanto ao ponto 7 [O arguido, perante a presença do ofendido, inicialmente parou a viatura, mas depois avançou, o que levou a que o ofendido tivesse que se afastar para não ser colhido, e quando a viatura passou por si, desferiu uma palmada com a mão no capot do veículo de matrícula V1, conduzido pelo arguido], diz o arguido que das declarações resulta que quando o assistente se atravessou à sua frente para o parar, dando murros no capot, não fez nenhum avanço inicial com o veículo, antes travou e saiu dele, mas o tribunal entendeu que avançou com o veículo, obrigando o assistente a afastar-se, quando é visível nas imagens de vídeo vigilância o assistente a esbracejar para si, e por isso, apenas poderia dar-se como provado que, «O arguido, perante a presença do ofendido, que parou a meio da via colocando-se de frente para a viatura, inicialmente parou a viatura, mas depois avançou, tentando contorná-lo, o que levou a que o ofendido tivesse que se afastar para não ser colhido, e quando a viatura passou por si, desferiu uma palmada com a mão no capot do veículo de matrícula V1, conduzido pelo arguido».

Quanto ao ponto 8 [De seguida, BB dirigiu-se até à porta do lado do condutor do veículo, encetando uma discussão com o mesmo, que levou a que este abandonasse o habitáculo do veículo e se posicionasse junto do primeiro, encostando o seu corpo ao daquele, numa expressão corporal de desafio, continuando os mesmos numa troca de palavras.], diz o arguido que resulta evidente das suas declarações e das declarações do assistente que a conversa entre ambos mantida foi cordial e que não assumiu comportamento, vocal ou físico, agressivo ou exaltado para com este (na nota 13 admite que possa ter sido o assistente a elevar a voz na reclamação que fez devido à sua – do arguido – condução em contramão), sendo certo que nas imagens de videovigilância é perceptível uma conversa normal dentro do que nestes casos pode ser considerado de normalidade, tendo a 1ª instância firmado a sua convicção no depoimento da testemunha EE que disse ter ouvido insultos dirigidos pelo arguido ao assistente quando se encontrava a abastecer a sua viatura, e que não tinha visão para o local onde estes se encontravam, porque algo a obstruía, resultando das imagens de videovigilância que a testemunha estava de costas para o local e que, mesmo que assim não fosse, não conseguiria ver com clareza o arguido por ter a visão obstruída por um poste, e que o assistente tentou impedir o arguido de sair veículo, depois de ter batido no capot do mesmo, em sinal de desagrado.

Quanto ao ponto 9 [Como BB não teve qualquer reacção e lhe voltou as costas, ignorando-o e voltou a fazer a travessia da via, passando à frente do veículo automóvel para se ausentar daquele local, o arguido entrou no veículo.], diz o arguido que a 1ª instância deu como provado que foi o assistente que terminou a discussão e se afastou, suportando a convicção nas imagens de videovigilância, quando destas resulta o contrário, e quando resulta das suas declarações e das declarações do assistente que foi o primeiro que virou costas ao assistente, e por isso, o ponto de facto em causa deveria ter a seguinte redacção, «O Arguido abandonou a discussão, dirigindo-se para o seu veículo, enquanto BB voltou a fazer a travessia da via, passando à frente do veículo automóvel para se ausentar daquele local».

Quanto ao ponto 11 [Ao iniciar a marcha da viatura e quando o ofendido já se encontrava sobre a extremidade do passeio, situado entre a entrada do Posto de Abastecimento de Combustível e o início da Estrada Municipal (E.M.) 1004, no sentido do Samouco, o arguido dirigiu a viatura na direcção do corpo do ofendido, atingindo-o com violência e pela retaguarda.], começa o arguido por dizer que cumpre repristinar tudo quanto se disse a propósito do vício da contradição insanável mas que, não obstante, continua, resulta da prova produzida que atingiu o assistente quando este se encontrava de frente para o veículo, e não pela rectaguarda, como decidiu a 1ª instância, pois as imagens de vídeo vigilância mostram que o assistente caiu com os pés para cima o que permite inferir que se encontra virado para o veículo quando foi por este embatido, embora a 1ª instância, apoiada no depoimento da testemunha FF, que disse ter visto o assistente a ser embatido pelas costas quando tinha acabado de chegar ao passeio, e disse também nada ter ouvido, testemunha esta que se encontrava a cerca de 20 metros do local, conduzindo um veículo pesado na rotunda, tenha concluído que atropelou o assistente de forma intencional, com base nas imagens de videovigilância, quando tal não resulta destas nem das declarações do assistente, e quando [o arguido] explicou que quando iniciou a marcha não tinha ângulo para entrar na via principal sem subir o passeio e que, ao entrar na via principal olhava para a esquerda, prevenindo o trânsito que daí viesse, não tendo, pois, ângulo de visão para a direita, onde se encontrava o assistente, no passeio do lado oposto, assim ocorrendo o atropelamento, sem que o tenha visto, versão esta compatível com as imagens de videovigilância, mas que o tribunal não aceitou, devendo, por isso, o ponto de facto em análise passar a ter a seguinte redacção, «Ao iniciar a marcha da viatura e quando o ofendido já se encontrava sobre a extremidade do passeio, situado entre a entrada do Posto de Abastecimento de Combustível e o início da Estrada Municipal (E.M.) 1004, no sentido do Samouco, o arguido iniciou a marcha, atingindo-o com violência e pela frente».

Quanto ao ponto 13 [Após, o arguido abandonou o local, no sentido do Samouco, não providenciando por ajuda ou sequer cuidando de saber da gravidade das lesões provocadas em BB, deixando-o estendido na faixa de rodagem da aludida Estrada Municipal (E.M.) 1004], diz o arguido resultar desta matéria que não prestou auxílio ao assistente nem cuidou de saber da gravidade do seu estado, mas o que extrai das suas declarações é que não se apercebeu de o haver atropelado e por isso, não lhe podia ter prestado auxílio, tendo também esclarecido que nem conhecia o assistente nem anteriormente tinha havido qualquer animosidade entre ambos, mas a 1ª instância, com base nos depoimentos das testemunhas EE e FF, uma que pouco viu, por causa da interposição do poste, e outra, que nada ouviu, e se encontrava a conduzir um camião na rotunda, entendeu o contrário, e por isso, sendo a questionada matéria uma realidade de facto e não um facto, deve o ponto em questão passar a ter a seguinte redacção, «Após, o arguido abandonou o local, no sentido do Samouco, deixando BB, estendido na faixa de rodagem da aludida Estrada Municipal (E.M.) 1004».

Quanto ao ponto 19 [Ao actuar da forma enunciada, agiu o arguido com o propósito de molestar fisicamente o ofendido, como molestou, admitindo como possível que, ao atingi-lo de forma violenta, com o veículo que conduzia, o qual pelo seu peso e velocidade imprimida, podia atingi-lo em órgãos vitais, e assim provocar-lhe lesões que lhe causassem perigo para a vida, conformando-se com essa possibilidade], diz o arguido que a 1ª instância descredibilizou a sua versão do acidente devido à forma demasiado rápida como tudo aconteceu, conclusão esta destituída de sentido, pois que, se tudo decorreu rapidamente e se encontrava a olhar para a esquerda, com o propósito de avançar de imediato, é possível que não tenha visto o assistente e que tenha admitido que este já havia atravessado a rua, sendo certo que nunca tinha estado na zona e que se encontrava cansado, pelo que, foi gravemente violado o princípio in dubio pro reo, nunca tendo sido sua intenção atropelá-lo, acrescendo que não existe prova de que as lesões por este sofridas lhe tenham causado perigo para a vida, pois o relatório médico preliminar de fls. 317/318, em que se apoiou a 1ª instância, não é prova pericial, e não tem fundamento válido, dado que as lesões apresentadas pelo assistente não são compatíveis com uma situação de perigo de vida, devendo, por tudo o que antecede, a matéria do ponto questionado, passar a constar dos factos não provados.

Quanto ao ponto 20 [Ao agiu da forma descrita por se ter enervado com o desentendimento anterior havido entre ambos, não se coibindo de utilizar um veículo contra uma pessoa indefesa, além de a atingir pela retaguarda e de forma inesperada], diz o arguido que dele resulta ficar a sua conduta a dever-se ao enervamento causado pela discussão, quando não foi feita prova de tal estado, não referido por si nem pelo assistente, devendo, por isso, a matéria do ponto sindicado passar para os factos não provados.

O acórdão da Relação de Lisboa fixou assim o objecto dos recursos interpostos pelo arguido, pelo Ministério Público e pelo assistente:

“(…).

- se o Acórdão padece de erro na valoração da matéria de facto.

- saber e o Acórdão contem contradições entre a matéria de facto provada e a sua fundamentação e consequentemente de erro nas conclusões jurídicas relativamente ao ilícito cometido: homicídio tentado ou ofensa à integridade física por negligência.

- saber se o Acórdão padece de ausência de prova relativamente as lesões sofridas pelo Assistente.

- saber se houve violação do principio in dubio pro reo.

- saber se se verifica a exceção de ilegitimidade passiva do arguido para a dedução do pedido de indemnização civil.

(…)”.

Seguidamente, a Relação informou expressamente que os recursos do Ministério Público, do assistente e do arguido seriam objecto de tratamento conjunto, referiu que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias, pela dos vícios do art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal e pela impugnação ampla da matéria de facto do art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do mesmo código, desde logo estabeleceu que a situação a decidir se enquadrava num caso de impugnação ampla da matéria de facto e que, porque somente arguido e Ministério Público observaram o ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6, referido, apenas os respectivos recursos seriam conhecidos, em sede de matéria de facto, passando, depois, à análise da matéria de facto vertida no acórdão e do raciocínio e meios de prova seguidos pelos recorrentes, com vista a verificar ver efetivamente se verifica ter havido erro de apreciação e/ou contradição na fixação da matéria de facto.

Transcritos os pontos 1 a 21 dos factos provados, os pontos a) a e) dos factos não provados e a motivação da matéria de facto do acórdão da 1ª instância, a Relação afirmou que da análise da prova, desde a visualização das imagens de videovigilância, passando pelos depoimentos das testemunhas e declarações de arguido e assistente, concordava [com a 1ª instância] em ser impossível que o arguido não tenha percepcionado, antes do arranque do veículo, a localização exacta do assistente, passando, depois, a concretizar este entendimento.

Assim, começou por dizer que resulta da conjugação dos vários meios de prova que o assistente e o arguido travaram uma discussão agressiva, audível para quem se encontrava a alguns metros da lateral esquerda do veículo conduzido pelo arguido – referindo-se, implícita mas inequivocamente, à testemunha EE, que se encontrava no posto de combustíveis, a abastecer a sua viatura –, discussão esta causada pela pancada desferida pelo assistente no capot do veículo conduzido pelo arguido e que determinou que este saísse do mesmo, gesticulando; o arguido voltou para o veículo quando bem entendeu e o assistente seguiu caminho, na perpendicular, em direcção ao passeio, o arguido arrancou com a viatura repentinamente, estando o assistente à sua frente e de costas, subiu o passeio onde já se encontrava o assistente, embateu-o e passou-lhe por cima com os rodados dianteiro e traseiro, provocando-lhe lesões.

Depois, a Relação iniciou a análise da versão do acidente que o arguido apresentou, no sentido de não ter visto o assistente, nem se ter apercebido de o ter atingido com a veículo, lançando mão da audição integral das suas declarações prestadas na audiência de julgamento, realçando a divergência entre a descrição aí feita do sucedido – viu o assistente de frente para o seu veículo, viu-o a bater novamente neste, o que o fez entrar em pânico, razão pela qual avançou com o veículo, olhando para a esquerda – e a versão apresentada no recurso – não viu o assistente, por estar atento à entrada na via, controlando o trânsito da esquerda; critica a versão do arguido segundo a qual o assistente estava de frente quando foi embatido, como demonstra a direcção em que os seus pés ficaram, versão que afasta, com base nas imagens de videovigilância que visualizou, nos depoimentos das testemunhas EE e FF, que a defesa coloca em causa mas que considerou claros e coerentes, e que presenciaram os factos, tendo ouvido a discussão, e visto o atropelamento, afirmando unanimemente que o assistente estava na frente do veículo conduzido pelo arguido e não, de frente para este, e que o arguido, para atingir o assistente, teve que fazer o veículo galgar o passeio onde este já se encontrava, convocando ainda a largura da via onde se encontrava o veículo, antes do atropelamento – resultante do croquis dos autos – situada nos 6 metros, e que por isso, não obstante o desenho da via – formando o passeio, na intersecção desta com a via principal por onde o arguido saiu, um bico – permitia que o arguido retirasse o veículo que conduzia sem necessidade de subir o passeio onde se encontrava o assistente; assim, conclui a Relação, se nada impedia o arguido de fazer a manobra sem subir o passeio/lancil onde já estava o assistente, porque efectivamente o subiu, tendo olhado ou não, para a esquerda, e tendo visto, como disse, o assistente quando arrancou, tal manobra foi propositada, sendo, aliás, impossível que o arguido, tendo subido o passeio, tendo embatido no assistente, e tendo passado com os rodados por cima deste, não tenha travado e tenha seguido, por não se ter apercebido de que tinha atropelado um ser humano, não tendo, pois, cabimento, a versão apresentada pelo arguido, não merecendo censura a matéria dada como provada pela 1ª instância que não deve, por isso, ser alterada no sentido pretendido pelo arguido.

Depois, regressando ao recurso do Ministério Público, a Relação disse não concordar com a 1ª instância quanto ao entendimento desta em não se ter provado o dolo de homicídio em nenhuma das suas modalidades, reafirmando que o arguido dirigiu a viatura contra o assistente subindo o passeio, atingiu-o em cheio e passou-lhe por cima com os rodados, assim se explicando que este, com a movimentação a que foi sujeito, tenha ficado com os pés virados para cima, do mesmo modo que, se não o quisesse atingir, teria evitado tudo isto, seguindo pela faixa de circulação, e concluiu não subsistirem dúvidas quanto a ter o arguido visado atropelar o assistente, representando como resultado possível da sua conduta a morte deste, e com ele se conformando devendo, por isso, ser provido o recurso do Ministério Público, com a modificação do ponto 19 dos factos provados [com a redacção supra transcrita].

Finalmente, não deixou a Relação de consignar que, correspondendo os factos praticados pelo arguido, com a modificação operada pela via do recurso, ao cometimento de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14º, nº 3, 22º, nº 2, b), 131º e 132º, nº 2, e) e h) do C. Penal, esta qualificação jurídica inviabiliza, por desnecessidade, a escalpelização das questões teóricas em torno do crime de ofensa à integridade física pela qualificação do perigo para a vida, suscitadas pela defesa e ainda menos o crime de ofensa à integridade física negligente.

Pois bem.

O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ao debruçar-se sobre a impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo arguido, tendo por objecto parte da decisão de facto proferida pelo acórdão da 1ª instância, não efectuou uma abordagem, facto a facto, ou conjunto de factos a conjunto de factos, como é usual. Porém, sempre com ressalva do respeito devido, contrariamente ao entendimento do arguido, não deixou a Relação de conhecer da impugnação.

Com efeito, o arguido impugnou sete pontos de facto provados, sendo particularmente relevantes para as suas pretensões, os pontos 8, 11 e 19. Já a matéria dos pontos 7, 9, 13 e 20 não tem idêntica importância, sendo certo que o arguido, relativamente aos três primeiros, apresenta redacções alternativas que só em pormenores, divergem da redacção dada pela 1ª instância, enquanto o ponto 20 e a afirmada ausência de prova do estado de enervamento, tem de ser vista à luz da matéria do ponto 8.

Por outro lado, os meios de prova convocados pelo arguido para a pretendida modificação da decisão de facto são os meios de prova que a 1ª instância usou, e que a Relação reapreciou, portanto, as imagens de videovigilância e os depoimentos das duas testemunhas que presenciaram os factos, EE e FF, conjugados, quando entendido necessário, com afirmadas regras da experiência comum.

É evidente que, lançando mão dos mesmos meios de prova, arguido e instâncias chegaram a diferentes resultados de facto.

Acontece que a Relação de Lisboa, ainda que não tenha analisado, ponto por ponto, cada facto impugnado, fez uma exposição global e aceitavelmente completa, de todos os aspectos de facto controvertidos na impugnação deduzida, convocando os meios de prova, e esclarecendo a sua convocação, relativamente aos aspectos realmente importantes, permitindo concluir que reapreciou a decisão da 1ª instância, respaldada nos meios de prova convocados, de forma lógica e racional. Explicando, através de um exemplo, o que acabamos de dizer, o contexto em que decorre a altercação entre assistente e arguido – o arguido conduzia o veículo em contramão numa via que o assistente atravessava, este parou, aquele travou, o assistente desferiu uma pancada no capot do veículo e dirigiu-se para o lado do condutor, tentou impedir a saída do arguido do veículo, o que não conseguiu, no exterior, arguido e assistente ficaram frente a frente, perto um do outro, falando alto e trocando insultos, o que foi ouvido pela testemunha EE –, não é compatível com a conversa tranquila havida entre assistente e arguido, como este pretende, mas com a versão fixada pela 1ª instância e confirmada pela Relação. Idênticos exemplos podem ser retirados, quanto ao embate do veículo no assistente – estando este de costas ou de frente – com respostas unânimes das duas testemunhas referidas, suportando a decisão das instâncias, e mesmo, quanto à subida do passeio/lancil e atropelamento do assistente nesse local, face à inexistência de qualquer obstáculo que impedisse o arguido de aceder à via de saída pelo arruamento onde se encontrava.

Em suma, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se relativamente à impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo arguido, que fundamentou em termos não modelares, mas que permitem, com razoabilidade, o pleno entendimento do que se decidiu em sede de matéria de facto e as razões probatórias de assim se ter decidido, não existindo, pois, a arguida nulidade.

b. O arguido afirma igualmente que o Tribunal da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre as contradições que entende existirem entre o ponto 11 dos factos provados e os segmentos da fundamentação constantes de págs. 19 e 35 do acórdão da 1ª instância, consubstanciadoras de vício decisório.

Sendo difícil encontrar as páginas indicadas do acórdão da 1ª instância, por este não estar paginado, mas colocando o arguido o cerne da contradição insanável invocada na questão de saber se, no momento do embate, o assistente estava ou não de costas para o veículo atropelante, constando do ponto 11 que o assistente foi atingido pela rectaguarda, encontrando-se, portanto, de costas para o veículo conduzido pelo arguido, a invocada contradição prende-se, então, com os segmentos da motivação de facto do acórdão onde se refere, por um lado «(…) o ofendido estando de frente para a viatura (…)», e por outro, «(…) o ofendido se encontra ainda à frente da viatura (…)», e mais adiante, «A testemunha FF foi clara e precisa ao referir que o arguido atingiu a vítima pelas costas (…)».

Em bom rigor, não existe qualquer contradição, porque nos dois primeiros segmentos se referem instantes distintos da dinâmica do atropelamento, isto é, no primeiro segmento, o assistente está parado à frente do veículo e no segundo segmento, quando o veículo arrancou, o assistente estava em deslocação para o passeio/lancil, de costas para o veículo, sendo esta posição – de costas – confirmada pelo terceiro segmento.

Esta concreta questão foi suscitada pelo arguido, no recurso que interpôs para a Relação de Lisboa, na impugnação ampla da matéria de facto aí deduzida, na parte relativa à impugnação do referido ponto 11 dos factos provados. E tanto assim é, que o arguido, na motivação do recurso, quando inicia a argumentação relativa a este ponto de facto, diz que importa repristinar tudo o que foi dito quanto ao vício de contradição insanável.

Quando conheceu da impugnação ampla da matéria de facto, o acórdão recorrido manteve a redacção do ponto 11 dos factos provados, ficando definitivamente estabelecido que o assistente se encontrava de costas para o veículo quando foi por este embatido.

Assim, sendo, compreende-se que a Relação não tivesse expressamente abordado a mesma questão, agora no âmbito dos vícios da decisão, uma vez que ela, de forma implícita, já se encontrava conhecida e decidida.

Em suma, também aqui não ocorreu omissão de pronúncia pelo acórdão da Relação.

*

Da violação do princípio in dubio pro reo

2. Alega o arguido – conclusões 44 a 49 – que o erro notório na apreciação da prova, na dimensão do in dubio pro reo, se encontra presente quando a Relação, perante as dúvidas que lhe surgiram, agrava a sua responsabilidade, dando como provado o dolo de morte, como resulta da pág. 109 do acórdão recorrido, onde se lê, «(…) não se percebe porque razão o arguido subiria o lancil, após olhar ou não, para a esquerda, para virar à direita e seguir caminho, caso não fosse sua intenção clara atingir o ofendido.», pois daqui nada mais se pode retirar que não seja a pretensão do arguido em abandonar o local, e não, que subiu o passeio, porque pretendia atropelar o assistente, inexistindo prova de um atropelamento intencional. Acrescenta – conclusões 58 a 62 – que não existe qualquer prova que sustente o entendimento de que agiu por ira ou raiva causada pela altercação com o assistente, isto é, que esta tenha gerado em si um desagrado que motivou a decisão de atropelar aquele pelo que, firmar uma convicção contrária à prova produzida viola claramente o princípio em causa, posição que reafirma, mais adiante – conclusões 73 a 78 – relativamente ao dolo eventual e respectiva prova, acrescentando, quanto a este ultimo aspecto -conclusão 79 – a arguição de inconstitucionalidade da interpretação do art. 127º do C. Processo Penal, feita, em seu entender, pela relação, no sentido de ser permitido retirar dos factos objectivos provados a configuração do dano morte como possível resultado da sua conduta, por violação dos arts. 20º, nº 4 e 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos.

O princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência, previsto no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, na perspectiva da prova, dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Assim, se, produzida a prova, no espírito do julgador subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.

Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da decisão, o que vale dizer que tem de resultar, de forma inequívoca, dos termos da sentença que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

Note-se, no entanto, que a dúvida para o efeito, relevante, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas, a dúvida que este não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

Lido o acórdão recorrido, particularmente, a sua motivação de facto, dela não resulta que as Exmas. Juízas Desembargadoras e o Exmo. Juiz Desembargador que o subscreveram, tenham permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos que consideraram provados. Pelo contrário, na motivação de facto ficou claramente exposto o processo lógico que conduziu à certeza alcançada sobre os factos integradores do objecto do processo, plasmados na decisão de facto proferida.

Diga-se, a propósito, que o segmento da motivação de facto transcrito pelo arguido, demonstrativo, em seu entender, da dúvida em que permaneceu o colectivo da relação, é apenas uma afirmação retórica, uma figura de estilo, que em si mesma, não contém qualquer juízo dubitativo, antes formula uma conclusão de facto, relativamente à intenção do arguido, face à situação objectiva de ter subido o passeio/lancil, onde colheu o assistente.

Por outro lado, as instâncias fundamentaram a respectiva convicção relativamente aos factos que suportam o preenchimento da alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, no sentido da sua verificação, o que obviamente afasta a possibilidade de violação do pro reo.

Em suma, não se descortina no acórdão recorrido a violação do princípio in dubio pro reo.

No que respeita à invocada inconstitucionalidade da interpretação do art. 127º do C. Processo Penal, imputada pelo arguido ao acórdão recorrido, brevitatis causa, cumpre dizer que o dolo – independentemente da forma que reveste no caso concreto – é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo portanto, razão pela qual, não sendo directamente apreensível pelos sentidos de terceiro, a sua demonstração probatória,, sobretudo nos casos em que não existe confissão, não pode ser feita através de prova directa, v.g., prova testemunhal, mas através de prova indirecta ou por inferência, devendo resultar da prova de factos objectivos, muito particularmente, os que integram o tipo objectivo do crime, conjugados com as regras da normalidade e da experiência comum.

Trata-se de entendimento pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações, e que resulta, evidentemente, da legalidade da prova indirecta ou por inferência, enquanto prova atípica, atento o disposto no art. 125º do C. Processo Penal. Com efeito, prova directa e prova indiciária, são ambas elementos de prova a partir dos quais se forma a convicção do julgador portanto, a prova como resultado (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Teoria da Prova, Volume 2, Tomo I, 2024, UCP Editora, págs. 29-30).

Sendo a prova indirecta, como se disse, prova legal, a sua utilização para considerar provado um facto subjectivo, à luz do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art. 127º do C. Processo Penal, que expressamente confere ao julgador a faculdade de conjugar a sua livre convicção com as regras da experiência, em nada afecta o direito ao processo equitativo e a presunção de inocência, pelo que, se considera não verificada a invocada inconstitucionalidade, acrescentando-se apenas que o Tribunal Constitucional vem repetidamente afirmando a conformidade do recurso a presunções judiciais e à prova indiciária, em processo penal, com a Lei Fundamental (acórdãos nº 391/2015, processo nº 526/15 e nº 521/2018, processo nº 321/18, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).

*

Da incorrecta qualificação jurídica dos factos

3. Alega o arguido – conclusões 51 a 59 e 63 – que não existindo prova de que agiu por ira ou raiva causada pelo desentendimento havido com o assistente, não existe razão para considerar preenchida a alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, para efeitos de qualificação do homicídio.

Acrescenta – conclusões 64 a 68 – que um veículo automóvel não é tout court um meio particularmente perigoso, podendo apenas sê-lo em função das concretas circunstâncias, sob pena de ser feita uma interpretação inconstitucional do art. 132º, nº 2, h), do C. Penal.

A propósito da qualificação do homicídio, defende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer emitido, que aos factos provados melhor caberia a qualificação pela alínea i) – em vez da alínea h) – do nº 2 do art. 132º do C. Penal, como vem sendo entendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, dando como exemplo, além de outros, os acórdãos de 12 de janeiro de 2022, processo nº 4183/19.8JAPRT.S1, de 15 de Abril de 2021, processo nº 82/19.1PBSTR.E1.S1, de 19 de Dezembro de 2019, processo nº 111/12.0PTLRS.L1.S1 e de 15 de Janeiro de 2019, processo nº 4123/16.6JAPRT.G1.S1, in www.dgsi.pt.

Vejamos.

Dispõe o art. 132º, nº 2, do C. Penal, na parte em que agora releva:

É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…);

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

(…);

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;

(…).

a. Relativamente à alínea e), estando em causa o motivo torpe ou fútil, por este deve entender-se o motivo da conduta, avaliado pelas concepções éticas e morais da comunidade, que é pesadamente repugnante [torpe] ou gratuito [fútil], de modo que o facto surge como o resultado de um enorme desprezo pela vida humana (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, págs. 62-63), é o motivo incompreensível à luz do padrão comportamental do homem médio, revelador de baixo carácter, devendo para tanto ter-se em conta a desproporção entre a conduta da vítima e a reacção do agente, e a responsabilidade deste pela situação criada (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 512-513). Também neste sentido caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (entre outros, acórdãos de 2 de Fevereiro de 2022, processo nº 74/21.0GBRMZ.S1, de 9 de Dezembro de 2020, processo nº 608/19.0JABRG.S1 e de 25 de Outubro de 2018, processo nº 292/16.3JAFAR.S1, in www.dgsi.pt).

Tendo presente a matéria dos pontos 5 a 9, 19 e 20 dos factos provados, a enorme desproporção entre a altercação verbal – peão versus automobilista – que opôs o assistente e o arguido, e a reacção homicida deste, reveladora de um incompreensível e absurdo desprezo pela vida humana, pelas sobreditas razões, determina a verificação de motivo fútil da conduta, deste modo densificando a especial censurabilidade do facto praticado.

Assim, verificada está a circunstância prevista na alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.

b. Relativamente à alínea h), estando em causa a utilização de meio particularmente perigoso, por este deve entender-se o instrumento ou método que dificulte em grau elevado a defesa da vítima e (não se traduzindo na prática de perigo comum) crie ou seja apto a criar perigo de lesão de bens jurídicos pessoais de um número indeterminado de pessoas, aferindo-se a referida particular perigosidade por uma intensidade muito superior à normal nos meios usados para matar (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, op. cit., págs. 67-68, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 514 e Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª edição revista e actualizada, 2007, AAFDL, pág. 36). Embora escassa, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de que, em razão das concretas circunstâncias, o uso de um veículo automóvel pode constituir um meio particularmente perigoso, na prática de um homicídio (acórdão de 17 de Outubro de 2007, processo nº 07P3395, in www.dgsi.pt).

No caso, o arguido, terminada a discussão de trânsito havida entre si e o assistente, colocou o veículo automóvel que conduzia em andamento, direccionou-o para o lancil/passeio onde este já se encontrava, de costas para o veículo, galgou o lancil, atingiu o assistente, passou-lhe por cima com os rodados da viatura, e continuou a marcha sem se deter, abandonando o local.

Como se pode ler no acórdão citado, o automóvel, usado na prática da agressão , agrega, objectivamente, a si uma perigosidade muito superior aos demais meios de agressão letal normalmente usados, pela indefesa que causa a um peão, indefesa maior quando olhada a aceleração previamente imprimida ao automóvel por forma a que o processo letal em curso não falhasse. Nos autos, a situação de indefesa agravou-se ainda pela circunstância de o assistente se encontra de costas para o veículo atropelante.

Sucede que não consta da matéria de facto provada que da conduta do arguido tenha resultado lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos de terceiros. Com efeito, não consta dos factos provados que, por exemplo, no momento do atropelamento, outras pessoas se encontrassem junto do assistente ou nas proximidades.

Assim sendo, não se mostra preenchida a previsão da alínea h) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.

c. Porém, e como já referimos, afirma o Exmo. Procurador-Geral Adjunto – no parecer emitido – que se mostra preenchida a previsão da i) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, por ter o arguido utilizado um meio insidioso, devendo o Supremo Tribunal de Justiça proceder à alteração da qualificação do homicídio.

O arguido reagiu a esta pretensão – na resposta ao parecer –, insurgindo-se com a possibilidade de a alteração da qualificação jurídica – alteração de circunstâncias qualificativas do homicídio – poder ter-se por comunicada pelo pedido formulado no parecer do Ministério Público, e argumentado ser inaplicável a alínea i) do nº 2 do art. 132º do C. Penal porque nela estão em causa meios traiçoeiros, dissimulados e ardilosos, não tendo a situação concreta qualquer amparo na jurisprudência.

Vejamos.

Nos termos da alínea em referência, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade que qualifica o homicídio, a circunstância de o agente utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso.

Na definição legal o veneno constitui o paradigma de meio insidioso, referido à prática do homicídio, isto porque, devido à forma como actua – dissimulada ou oculta –, nenhuma capacidade de defesa é concedida a vítima, depois de iniciada a execução, entendida esta como a ministração do veneno.

Assim, meio insidioso será todo o instrumento ou método que torne particularmente difícil a defesa da vítima ou implique o perigo de lesão de um conjunto indeterminado de bens jurídicos de terceiros, ou seja, todo o meio ou método que actue de forma desleal, enganadora, traiçoeira, ou dissimulada (Figueiredo Dias, Nuno Brandão, op. cit., págs. 69-70 e Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 516, Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, Volume III, 4ª Edição, Rei dos Livros, pág. 77 e Maria Fernanda Palma, Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra as pessoas, Sumários desenvolvidos, 1983, págs. 65-66). Também neste sentido se orienta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (entre outros, acórdãos de 15 de Janeiro de 2019, processo nº 4123/16.6JAPRT.G1.S1, de 25 de Outubro de 2017, processo nº 3080/16.3JAPRT.S1 e de 30 de Novembro de 2011, processo nº 238/10.2JACBR.S1, in www.dgsi.pt).

Convocando a matéria de facto provada, temos que o arguido, como condutor de veículo automóvel, e o assistente, como peão, se desentenderam num conflito de trânsito, tendo o primeiro saído do veículo, e ambos discutido na via de trânsito. Terminada a discussão, o arguido entrou no veículo e o assistente continuou a atravessar a via em direcção ao lancil/passeio, o arguido, enervado com o sucedido, pôs em movimento o veículo em direcção ao assistente e foi atingi-lo quando este já se encontrava no lancil/passeio, de costas para o veículo, passando-lhe por cima com os rodados.

A circunstância de o instrumento usado pelo arguido ser um veículo automóvel torna evidente que as dimensões deste não permitem o seu disfarce, a sua ocultação, enquanto instrumento de agressão, da vítima e, por outro lado, a discussão prévia havida entre arguido e assistente e a quase imediata condução homicida daquele, importa que este não tenha sido abalroado de forma absolutamente inesperada e, portanto, sem qualquer possibilidade de defesa, ainda que se encontrasse de costas no momento do atropelamento.

Diremos, concluindo, que o arguido actuou de forma covarde, mas não de forma insidiosa, devendo, por conseguinte, ser afastada a circunstância qualificativa prevista na alínea i) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.

d. Em conclusão do que fica dito quanto à qualificação do homicídio, deve manter-se a condenação do arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e), todos do C. Penal.

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Da incorrecta fixação da medida da pena

4. Alega o arguido – conclusões 81 a 98 – que a Relação de Lisboa aplicou uma pena de 6 anos de prisão, por referência ao recurso do Ministério Público e ao que promoveu nas suas alegações na 1ª instância, omitindo a valoração que lhe competia fazer, nos termos do art. 71º do C. Penal, limitando-se a concluir que a pena não poderia ser inferior a 6 anos de prisão, atenta a moldura penal aplicável, o que implica um lapso ainda mais grave, pois a moldura penal do crime de homicídio qualificado tentado tem um limite mínimo – 2 anos 4 meses e 24 dias – inferior ao limite mínimo aplicável ao crime de ofensa à integridade física qualificada – 3 anos –, sendo inconstitucional a interpretação dos arts. 40º e 71º do C. Penal, no sentido de que, em recurso que altera a qualificação jurídica para crime mais grave, o tribunal de recurso não tem de apreciar os pressupostos de que depende a aplicação da pena, por violação dos arts. 29º, nºs 1, 3 e 4 e 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, acrescendo que nunca lhe deveria ser aplicada uma pena superior a 5 anos de prisão, quer porque nunca demonstrou qualquer laivo de violência, com excepção do atropelamento, quer porque a sua indiferença é perfeitamente explicável por não se ter apercebido do atropelamento, quer porque só não procurou o assistente porque foi detido poucos dias depois e sujeito a medidas de coacção privativas da liberdade, quer porque não tem antecedentes criminais, quer porque o seu agregado familiar, englobando a sua companheira e os dois filhos menores depende de si para sobreviver, quer porque existem fortes laços afectivos entre todos que serão irremediavelmente afectados, quer porque está inserido laboral e socialmente, circunstâncias estas que não foram consideradas e que conduziu à aplicação de uma pena manifestamente excessiva.

Vejamos.

Estabelece o art. 40º do C. Penal, com a epígrafe «Finalidades das penas e das medidas de segurança», no nº 1 que, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por seu turno, dispõe o nº 2 do mesmo artigo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, exprimindo esta a responsabilidade individual do agente pelo facto, sendo, assim, o fundamento ético da pena. Prevenção geral – protecção dos bens jurídicos – e prevenção especial – reintegração do agente na sociedade – constituem, deste modo, as finalidades da pena, através delas se reflectindo a necessidade comunitária da punição do caso concreto.

É neste quadro que actua o critério legal de determinação da medida concreta da pena, previsto no art. 71º do C. Penal.

Conforme estatui o seu nº 1, a determinação da medida concreta da pena é feita, dentro dos limites definidos pela moldura penal abstracta aplicável, em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, estabelecendo o seu nº 2 que, para este efeito, devem ser atendidas todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas nas diversas alíneas deste mesmo número.

Por isso, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).

A medida concreta da pena resultará do grau de necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), sem que possa ser ultrapassada a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o ponto mais baixo onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 227 e seguintes e 238 e seguintes, e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 43 e seguintes) ou, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2014 (processo nº 1081/11.7PAMGR.C1.S1, in www.dgsi.pt), a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues sustenta que, «[e]m primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, Nº 2, Abril-Junho, 2002, págs. 181-182).

Decorre do que fica dito que a tarefa de determinação da medida concreta da pena não corresponde ao exercício de um poder discricionário do julgador e da sua arte de julgar, antes lhe impõe o uso de um critério legal, constituindo a pena concreta o resultado de um procedimento juridicamente vinculado.

Em todo o caso, o controlo desta operação pela via do recurso, podendo incidir sobre a questão do limite ou da moldura da culpa e sobre a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, não pode, contudo, ter por objecto o quantum exacto da pena, salvo se se mostrarem violadas as regras da experiência ou se a medida concreta fixada se mostrar desproporcionada (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 197).

Aqui chegados.

a. Começamos por notar que, contrariamente ao afirmado pelo arguido, a Relação de Lisboa, ao decretar a pena de 6 anos de prisão, não omitiu pronúncia relativamente aos elementos previstos no art. 71º do C. Penal.

Com efeito, independentemente da pertinência das referências feitas no acórdão recorrido à medida da pena que o Ministério Público terá peticionado em alegações orais na 1ª instância, e à medida da pena peticionada no recurso que interpôs para a Relação, certo é que nele, relativamente às circunstâncias ponderadas, se escreveu, conforme transcrição supra feita, que «Nestes termos, pese embora, a alteração da qualificação jurídica, deverá o Acórdão ser revogado nesta parte e fixada a pena, em concreto, em seis anos de prisão. Fixando-se a pena neste quantitativo, também escusadas são todas as questões colocadas pelo arguido quanto à medida da pena e à sua eventual suspensão. Não obstante sempre se dirá que nunca a pena a aplicar ao arguido poderia ser inferior aos seis anos de prisão, atenta a moldura penal abstrata aplicável, a censurabilidade da sua conduta atestada desde logo pela violência dos factos, como pela indiferença que durante tanto tempo votou ao ofendido, pois nunca reconheceu os factos, não o procurou e só em julgamento pediu desculpa pelo praticado, em termos, diga-se pouco convincentes, quanto à autenticidade do seu pesar para com o sofrimento do ofendido. Assim, a pena concreta de seis anos, mostra-se claramente adequada ao grau de ilicitude dos factos, a sua censurabilidade e também às específicas razões de prevenção geral e especial.».

Como se vê, a Relação de Lisboa, se bem que de forma não modelar, pronunciou-se sobre a medida concreta da pena aplicada, fundamentando o quantum fixado no modo de execução do facto e na não assunção da culpa.

Dir-se-á que outras circunstâncias existem e que não foram referidas mas, mesmo que assim seja, tal não significa a existência de omissão de pronúncia, nem de falta de fundamentação, enquanto causas de nulidade do acórdão.

Consequentemente, o acórdão recorrido não aplicou os arts. 40º e 71º do C. Penal na interpretação que o arguido lhe atribuiu, razão pela qual não se verifica a arguida inconstitucionalidade, por violação dos arts. 29º, nºs 1, 3 e 4 e 32º, nº 1 da Lei Fundamental.

b. Também não vemos que a Relação de Lisboa tenha errado na determinação da moldura penal abstracta aplicável ao crime de homicídio qualificado.

O que acontece é que existe um lapso de escrita relativamente a tal moldura que foi definida como, pena compreendida entre dois anos, quatro meses e vinte e quatro dias a dezasseis anos e oito anos, três meses e nove dias de prisão, quando é manifesto que se queria escrever, pena compreendida entre dois anos, quatro meses e vinte e quatro dias a dezasseis anos e oito meses de prisão.

Por outro lado, a circunstância de o limite mínimo da moldura penal aplicável ao crime de homicídio qualificado tentado, ser inferior ao limite mínimo da moldura penal aplicável ao crime de ofensa à integridade física grave [crime por cuja prática foi condenado na 1ª instância] é, per se, irrelevante.

c. Atentemos agora nas razões avançadas pelo arguido para censurar a medida da pena fixada pelo acórdão recorrido.

O arguido reconhece que o atropelamento é sempre um episódio violento para a vítima, independentemente da intensidade subjectiva do agente – dolo ou negligência –, esquecendo, no entanto, que a conduta que assumiu anteriormente ao atropelamento, não foi propriamente pacífica, face aos factos que resultaram provados.

A conduta provada, considerando o modo da prática do facto, traduz um grau elevado de ilicitude e dela, conduta, resultaram consequências graves para o assistente, demonstradas pela extensão das lesões sofridas e pelo longo período de incapacidade temporária absoluta.

O arguido agiu dolosamente, na modalidade de dolo eventual portanto, na modalidade menos intensa.

É certo que não tem antecedentes criminais [ponto 22 dos factos provados do acórdão da 1ª instância], mas esta circunstância, considerada a sua idade [consta do Relatório do acórdão da 1ª instância ter nascido a 18 de Outubro de 1987] e o que é exigível a qualquer cidadão, tem limitado efeito atenuativo.

É também certo que o arguido se encontra familiar, laboral e socialmente inserido, mas também esta circunstância tem limitado efeito atenuativo, considerando, como contraponto, a gravidade do crime cometido.

As consequências que para o agregado familiar possam advir da condenação do arguido são, nesta sede, irrelevantes.

A afirmação de que a atribuída indiferença perante a situação do assistente, se mostra explicada pela circunstância de não se ter apercebido do atropelamento, carece de fundamento, na medida em que o que consta da matéria de facto provada é um atropelamento doloso [ainda que negligente tivesse sido, sempre seria incompreensível a alegação de falta de percepção do mesmo, atento o circunstancialismo objectivo provado].

São elevadas as exigências de prevenção geral, dada a frequência com que vem sendo praticado o crime de homicídio, qualificado ou não, tentado ou consumado, apesar de estar em causa o mais importante dos direitos fundamentais, o direito à vida, o que impõe uma intervenção enérgica mas sempre, proporcionada, de modo a repor a confiança da comunidade na validade da norma violada.

As concretas circunstâncias em que ocorreu o crime objecto dos autos e o comportamento imediatamente subsequente do arguido, não obstante a inexistência de antecedentes criminais, revelam traços de uma personalidade pouco sensível ao valor tutelado pela norma violada e à ameaça da respectiva sanção, que alertam já, para as exigências de prevenção especial.

Assim, sobrepondo-se as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, considerando ainda as referidas exigências de prevenção, atenta a moldura penal abstracta aplicável ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, entendemos que a pena de 6 anos de prisão, praticamente situada no primeiro quarto daquela moldura penal, mostra-se necessária, adequada, proporcional e plenamente suportada pela medida da culpa do arguido, pelo que, deve ser mantida.

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Da substituição da pena de prisão

5. Alega o arguido – conclusões 99 a 106 –, no pressuposto de que, pela via do recurso, a pena de prisão seria fixada em quantitativo não superior a 5 anos de prisão, que esta deveria ser suspensa na respectiva execução, pois a imagem global do facto não justifica a privação da sua liberdade, antes permite a formulação de um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples ameaça da pena bastará para o afastar da prática de novos crimes.

Vejamos.

Dispõe o art. 50º do C. Penal, no seu nº 1 que, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

São, assim, dois, os pressupostos de cuja verificação, faz a lei depender a aplicação desta pena de substituição. Um, de natureza formal, tem por objecto a medida concreta da pena principal a substituir, que não pode ser superior a cinco anos de prisão. Outro, de natureza material, consiste na necessidade de formulação pelo tribunal, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as suas condições de vida, as circunstâncias do crime e a sua conduta anterior e posterior a este, a mera censura do facto e a ameaça da prisão darão adequada e suficiente realização às finalidades da punição.

Não se verificando, desde logo, o pressuposto formal de que depende a aplicação da pretendida pena de substituição e do qual partiu o arguido para formular a pretensão em análise, posto que a pena única fixada é superior a 5 anos de prisão, não pode dela, beneficiar.

Improcede, pois, esta pretensão do arguido.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:

A) Rejeitar o recurso, na parte em que tem por fundamento a questão da existência, no acórdão recorrido, dos vícios decisórios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.

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B) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido – salvo no que respeita à verificação da alínea h) do nº 2 do art. 132º do C. Penal –, mantendo a condenação do arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e), todos do C. Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

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C) Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal, e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 6 de Novembro de 2025

Vasques Osório (Relator)

Celso Manata (1º Adjunto)

José Piedade (2º Adjunto)