RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
IDENTIDADE DE FACTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
FRAUDE FISCAL
CONDIÇÃO
PRISÃO
REJEIÇÃO
Sumário


I - Suportados em opostos entendimentos quanto à harmonização do regime previsto no art. 14.º do RGIT, com o regime previsto no art. 51.º, n.º 2, do CP, acórdão recorrido e acórdão fundamento decidiram de forma diversa quanto à necessidade/desnecessidade de realização de um juízo de prognose sobre a razoabilidade da condição fixada à suspensão da execução da pena de prisão tendo, no entanto, partido de diferentes premissas de facto quanto à existência daquele juízo, que no acórdão fundamento existiu [foi feito na decisão da 1.ª instância] e como tal foi considerado, e no acórdão recorrido não existiu [não foi feito pela 1.ª instância] e foi considerado inexigível.
II - Assim, não existe oposição de julgados entre acórdão recorrido e acórdão fundamento, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 437.º do CPP, pois que as premissas de facto de um e outro não são coincidentes, e as situações substantivas em litigio que, numa perspectiva jurídica, suportam as opções decisórias tomadas, não são equiparáveis.
III - Não estando verificada a imprescindível identidade das situações de facto e das questões de direito, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, que constituem requisito material de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, deve o mesmo ser rejeitado, nos termos do disposto no art. 441.º, n.º 1, do CPP, pela inexistência de oposição de julgados.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

AA, condenado e recorrente com os demais sinais nos autos, vem, nos termos e para os efeitos dos arts. 437º e seguintes, do C. Processo Penal, interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Junho de 2024 (acórdão recorrido), proferido no processo nº 77/14.1IDAVR.P1, por entender que o mesmo, no domínio da mesma legislação, se encontra em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Novembro de 2022, proferido no processo nº 191/17.1IDPRT.P1 (acórdão fundamento), consultável em www.dgsi.pt, formulando, no termo da motivação, as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso de fixação de jurisprudência interposto de acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, em 12 de Junho de 2024, insusceptível de recurso ordinário, que confirmou a decisão de 1.ª instância de condenar o aqui Recorrente pela coautoria material de um crime de fraude fiscal qualificada, p.p. no artigo 103.º, n.º1, al, c), 2 e 3 e 104.º n.º2 do RGIT, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos sob a condição de pagar à Administração Tributária, até ao termo do prazo de suspensão, a vantagem patrimonial ilícita obtida” tendo o recorrido alterado o valor de tal vantagem, por força de alteração dos factos dados como provados, fixando-a em “€ 318.291,23 (trezentos e dezoito mil, duzentos e noventa e um euros e vinte e três cêntimos), acrescida de juros compensatórios, à taxa legal, sobre os valores parcelares e nos termos sobreditos, até ao limite máximo de € 329.193,97”.

II. O Acórdão recorrido mais conheceu de questão de direito suscitada pelo aqui Recorrente – da aplicabilidade do disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código Penal – na determinação do valor da prestação tributária a pagar no prazo de suspensão da execução da pena de prisão, nos termos consignados no artigo 14.º do RGIT – concluindo que não era exigível que “a sentença em recurso tivesse formulado um juízo de prognose sobre a capacidade de o arguido recorrente pagar as quantias em que é condenado, tendo em conta a sua situação económica presente e futura”.

III. Juízo de prognose esse, s.m.o., imposto pelo n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal.

IV. No acórdão recorrido são identificados como fundamentos da referida inexigibilidade do juízo de prognose favorável ao cumprimento do valor da condição imposta ao abrigo do artigo 14.º do RGIT: (1) que o artigo 14.º do RGIT é “um comando imperativo”, tal qual resulta “expressamente da letra da referida norma”, (ii) “artigo 14.º do RGIT é um regime especial relativamente ao regime de suspensão previsto nos artigos 50, n.º2 e 51º, n.º1 do CP”, (iii) A Jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012 “é apenas diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105°, n.°1 do RGIT”, sendo que ainda que se entendesse que “a jurisprudência do referido AUJ possa ser aplicável” a outros crimes tributários também puníveis com pena de prisão (também eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa, a verdade é que no caso concreto, em que está em causa um crime de fraude fiscal tributária, punível apenas com pena de prisão”, pelo que aquela jurisprudência não é aplicável in casu.

V. Em 9 de Novembro de 2022, no âmbito dos autos n.º191/17.11DPRT.P1, foi proferido pela 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto Acórdão, entretanto transitado em julgado, que condenou o arguido BB como “co-autor material, e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p., pelos arts. 6º, nº1, 103º, nº 1 al. a) e 104º, nº1 e nº 2, al. a), do R.G.I.T., aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05.06, na pena de pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a qual se decide suspender, nos termos do art. 14º do R.G.I.T, pelo período de 5 anos, na condição do arguido pagar em tal período a quantia de 7.000€ (sete mil euros) à Administração fiscal (Estado Português).

VI. Este citado Acórdão, proferido em recurso pelo Tribunal da Relação do Porto, e já transitado em julgado, alterou a decisão proferida nos mesmos autos pelo Tribunal de 1.ª instância no que ao o quantum da condição aposta ao abrigo do disposto no artigo 14.º do RGIT diz respeito, tendo, por conseguinte, revogado a “condição do arguido pagar em tal período a quantia de € 139.965,01 à Administração fiscal (Estado Português)” condenando-o “na condição do arguido pagar em tal período a quantia de 7.000€ (sete mil euros) à Administração fiscal (Estado Português)”.

VII. Fundamentando a sua decisão que determinou uma adequação do quantum do valor a pagar no período de suspensão da execução da pena de prisão às condições reais e actuais do condenado, na afirmação de que “o disposto no art.14º nº1 do RGIT se encontra sujeito ao nº 2 do art.51 do CP, ou seja, optando o Tribunal pela suspensão da pena, haverá, subsequentemente, de aferir o nº 2 do art.51º, aplicando o critério de razoabilidade à definição do montante a cominar ao arguido, inexistindo qualquer obrigação oficiosa de manter na íntegra a quantia devida ao fisco ou à segurança social.”

VIII. E isto porque “a aplicação do disposto no nº 1 do art.14º nº1 do RJIT não implica necessariamente derrogar o nº 2 do art.51º do CP. Apenas constitui uma especialidade ao regime facultativo previsto no nº 1 do art.51º do CP o qual dispõe facultativamente que “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres..”, diversamente do regime obrigatório que resulta do ar.14º nº 1 do RGIT o qual impõe sempre o condicionamento ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais do montante dos benefícios indevidamente obtidos.

IX. Assim, coerentemente, concluindo que “se a suspensão da pena no crime tributário haverá de ser sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária de que o arguido se apropriou, a fixação do montante concreto não poderá deixar de ficar sujeito ao regime previsto no art.51º nº2 do CP, o qual enforma o princípio geral da humanidade das penas, determinando que o regime de suspensão não seja condicionado por medidas irrealizáveis, sob pena dos fins da suspensão serem negados nos seus próprios termos.” [realce nosso]

X. Da motivação do citado aresto, sobre esta questão particular, mais consta que a “expressão legal que consta do nº 1 do art.14º do RGIT referente à suspensão da pena” -“é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos…” – sustenta a “corrente jurisprudencial vê a sujeição da suspensão ao pagamento completo da dívida ao fisco ou à segurança social, sem ponderação da situação económica concreta, procurando substanciar a argumentação com a integração na pena do pagamento completo da quantia em dívida, contudo, essa expressão legal pouco difere da expressão que consta do art.51º nº 1 alínea a) onde o juiz “pode” condicionar a suspensão da pena ao dever do arguido pagar, no todo ou em parte a indemnização devida ao lesado, ou seja no regime da suspensão em geral, a indemnização devida aí prevista pode ser no todo. No entanto, em ambos os casos (do art.51º nº 1 alínea a) do CP; ou do art.14º nº 1 do RGIT), como já defendemos, prevalece a ponderação prevista no nº 2 do art.51º do Cód. Penal, apenas com a especialidade de que a sujeição ao pagamento nos termos do art.51 nº 1 do CP é ponderável pelo juiz, e por isso facultativa; enquanto no art.14 do RGIT a suspensão da pena torna obrigatória a sujeição ao pagamento da dívida (daí o advérbio “sempre”), cujo montante a fixar estará, contudo, sujeito à ponderação do nº 2 do art.51º do CP.”

XI. O acórdão fundamento que acima se faz referência defende a interpretação da coerência legal entre o artigo 14.º do RGIT e o n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, que entende, “por certeza, será constitucional”, e “é a que resulta da teleologia da norma integrada no sistema jurídico penal, e sobretudo será a que não fixa na suspensão da pena condições irrealizáveis, fora da razoabilidade que o direito penal sempre supõe e impõe.”

XII. No citado aresto, de forma séria e profunda, dando primazia aos princípios estruturantes e basilares do nosso sistema legal penal, assente na imperatividade constitucional, o Tribunal da Relação do Porto firmou jurisprudência no sentido de que nos crimes fiscais, em respeito ao artigo 14.º do RGIT, a suspensão da pena de prisão é obrigatoriamente subordinada a condição de pagamento, o que não sucede nos crimes de natureza não fiscal, já que o artigo 50.º do Código Penal, autoriza, sem impor, que o Julgador (“pode”) possa subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres.

XIII. Já no que concerne ao quantum, i.e. ao valor do pagamento a fixar como condição (cumprimento de dever) de suspensão da execução da pena de prisão, o citado aresto defende, fundamentando, que necessariamente tem que se aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, que exige um juízo de prognose de razoabilidade daquele quantum face às condições pessoais do condenado.

XIV. De sublinhar que o acórdão recorrido mereceu o voto de vencido do Ex.mo Senhor Juiz Desembargador Relator João Pedro Pereira Cardoso que lapidar e magistralmente, condensa a questão de direito controversa em ambos os acórdãos sub judice, acompanhando, por conseguinte, como o Recorrente, o entendimento seguido no acórdão fundamento, o qual foi expresso nos seguintes termos:

Voto vencido o acórdão exclusivamente quanto à automaticidade da condição de pagamento integral imposta para suspensão da execução da pena de prisão nos crimes tributários puníveis apenas com pena de prisão.

Com efeito, salvo o devido respeito pela jurisprudência contrária seguida no vencimento do acórdão, entendo que a norma especial do art.14°, do RGIT, quando interpretada à luz da necessária conformação com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, consente no necessário e adequado juízo de prognose de razoabilidade, acerca da possibilidade do condenado satisfazer esta condição legal de pagar, tendo em conta a sua concreta situação económica presente.

Seguindo a posição defendida no citado acórdão RP 29.11.2023 (processo n°2623/100TAMAI.P1), www.dgsi.pt, no qual fui relator, revogaria o acórdão recorrido quanto ao valor a cujo pagamento foi condicionada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA, substituindo-o por montante diferente.” [realce nosso]

XV. Resultando do exposto que o acórdão recorrido está em manifesta oposição com o acórdão fundamento – Acórdão do TRP de 9 de Novembro de 2022, proferido no âmbito dos autos n.º191/17.11DPRT.P1 –, ambos já transitados em julgado, no que concerne à questão de direito do respeito pelo disposto no artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal, que corporiza o princípio de justiça – proporcionalidade, adequação e humanidade das penas – aquando da determinação do valor a pagar a título de prestação tributária, como condição obrigatória a apor à suspensão da pena de prisão no crime de fraude fiscal qualificada, em cumprimento do disposto no artigo 14.º do RGIT.

XVI. Defendendo o Recorrente, na senda do acórdão fundamento e do voto de vencido do acórdão recorrido, a fixação de Jurisprudência no sentido de que no crime de fraude fiscal a pena de prisão quando suspensa é sempre subordinada a condição de pagamento de valor a título de prestação tributária (artigo 14.º do RGIT), contudo na determinação do seu quantitativo, há que respeitar o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, o que não sucedeu no acórdão recorrido.

XVII. O aqui Recorrente, arguido nos autos à margem identificados, nos termos do n.º5 do artigo 437.º do Código do Processo Penal, tem legitimidade processual para interpor o presente recurso, está em tempo, já que ainda não decorreu o prazo de 30 dias após o transito em julgado do acórdão proferido, em recurso, no dia 12 de Junho de 2024, pelo Tribunal da Relação do Porto, sendo que o acórdão fundamento que se encontra em oposição com aquele, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 9 de Novembro de 2022, no âmbito dos autos 191/17.1IDPRT.P1, já igualmente transitou em julgado.

XVIII. Acresce que, entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento há uma similitude factual bastante para “estabelecer uma comparação capaz de alicerçar o ulterior juízo comparativo sobre as decisões de direito”, já que em ambos os arguidos foram condenados pela prática de crimes de fraude fiscal qualificada, p.p. no artigo 103.º e 104.º n.º 2 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05.06, desta feita, mediante uma idêntica qualificação dos factos ilícitos dados como provados, em penas de prisão, suspensas na sua execução, e ao abrigo do disposto no artigo 14.º do RGIT, condicionadas no pagamento à Administração Fiscal determinado valor.

XIX. Das idênticas qualificações dos factos ilícitos e da identidade na condenação em penas de prisão suspensas na execução, suspensão essa subordinada a condição fixada nos termos do disposto no 14.º do RGIT, dadas as soluções diversas no que se refere à definição do quantitativo da condição, infere-se que se verifica uma oposição quanto à mesma questão jurídica.

XX. A necessidade de ser firmada Jurisprudência superior e obrigatória sobre a conjugação do previsto no artigo 14.º do RGIT e n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal surge como imperativo de Justiça, já que são muitas as decisões contraditórias, quanto à referida questão, entre Tribunais próximos e sobre processos em que há uma similitude de situações de facto, o que, por si só, enevoa a confiança na unicidade do sistema legal e a segurança jurídica, que se tem por um dos pilares do Estado de Direito Democrático.

XXI. Verificados que se encontram os pressupostos formais e substanciais de admissão de Recurso para fixação de jurisprudência, deverá a presente interposição merecer provimento.

XXII. E, a final, ser fixada jurisprudência no sentido de que na quantificação da condição de pagamento, a que se refere o artigo 14.º do RGIT, deve ser respeitado o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, assim determinando a revogação do acórdão recorrido nos termos do disposto no artigo 445.º do Código do Processo Penal.

TERMOS EM QUE E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVERÁ A PRESENTE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA SER ADMITIDA, ORDENANDO-SE ULTERIOR RITOLOGIA ATINENTE.

JUSTIÇA

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Cumprido o disposto no art. 439º, nº 1, do C. Processo Penal, respondeu o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação do Porto, alegando, em síntese, estarem reunidos os requisitos formais e materiais cumulativamente estabelecidos nos arts. 437º e 438º do C. Processo Penal, devendo o recurso ser admitido e reconhecer-se a oposição de julgados, seguindo-se os ulteriores termos do processo.

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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal de Justiça, na vista a que alude o nº 1 do art. 440º do C. Processo Penal, emitiu douto parecer, no termo do qual formulou as seguintes conclusões:

1. O presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência foi interposto por quem tem legitimidade e interesse em agir, afigurando–se ainda ser tempestivo, estando cumpridos os ónus formais exigíveis.

2. Para a mesma questão de direito, consistente em saber se – ainda que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a crime de fraude fiscal tenha de ser sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, em conformidade com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT – tal condição deve passar por uma ponderação judicial ou juízo de prognose sobre a capacidade de o arguido pagar as quantias em que é condenado, tendo em conta a sua situação económica, presente e futura, nos termos do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, o acórdão–fundamento entende que o montante a fixar estará, contudo, sujeito à ponderação do nº 2 do artigo 51.º do Código Penal, enquanto o acórdão recorrido entende que não é exigível que se formule um juízo de prognose sobre a capacidade de o arguido recorrente pagar as quantias em que é condenado.

3. Portanto, ainda que coincidam ambos os acórdãos convocados na identificação da obrigação legal de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, em conformidade com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, divergem na exigência quanto à possibilidade de ponderação do montante a fixar, em conformidade com o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.

4. Resulta aparentemente evidente que o acórdão fundamento e o acórdão recorrido partem de situações jurídicas ou questões de Direito idênticas, ajuizando e aplicando o mesmo direito, as mesmas normas ou segmentos normativos coincidentes e decidindo em sentido diverso.

5. Porém, a situação fática a considerar não é totalmente análoga ou equiparável, como veremos sumariamente de seguida. Como refere o recorrente, em ambos os arestos os arguidos foram condenados em penas de prisão pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p.p. no artigo 103.º e 104.º n.º 2 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05.06, suspensas na sua execução ao abrigo do disposto no artigo 14.º do RGIT, condicionadas no pagamento à Administração Fiscal de determinado valor.

Em ambos os arestos, respetivamente, num e no outro, colocou–se a questão, em recurso, de saber se o montante a pagar e a cujo pagamento ficou subordinada ou condicionada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada por crime de fraude fiscal qualificada é imperativamente o montante correspondente ao da prestação tributária e acréscimos legais ou se pode esse montante ficar dependente de uma ponderação judicial sobre a capacidade de o arguido pagar as quantias em que é condenado, tendo em conta a sua situação económica, presente e futura, nos termos do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.

Porém, no acórdão–fundamento não se partiu de uma situação em que a 1.ª instância não tenha efetuado esse juízo de prognose relativo à opção pela suspensão da pena de prisão, tendo–se considerado então, na parte relativa à “Fundamentação da sentença recorrida relativa ao objeto do recurso”: «No que se refere aos arguidos, verifica-se que, apesar de a arguida se encontrar detida e em cumprimento de pena, a mesma poderá, ainda assim, liquidar a quantia em dívida; o mesmo se dizendo do arguido CC, o qual também se encontrará a trabalhar; ou seja, e por ora, entende-se que os mesmos, têm rendimentos, e, ainda que num período alargado, o tribunal entende, e relativamente a todos eles, fixar o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão, uma vez que se consegue efectuar, e reafirma-se e relativamente a cada um dos arguidos, um juízo de prognose de que todos eles conseguem reunir condições para que essa obrigação possa ser cumprida. Assim sendo e atento ainda o disposto nos arts. 50º, 51º e 52º do Cód. Penal e art. 14º do R.G.I.T., decide-se suspender as referidas penas de prisão aplicadas aos arguidos BB e CC, pelo período de 5 anos, na condição dos arguidos pagarem em tal período a quantia de € 279.730,03 correspondente à vantagem patrimonial pelos mesmos auferida, enquanto legais representantes das sociedades de que eram responsáveis legais, quer de facto, quer de direito. Ora, como aqui a responsabilidade pelo pagamento não é solidária, mas antes individual, determina-se que tal pagamento seja efetuado em partes iguais por cada um dos arguidos, ou seja, cada um fica responsável pelo pagamento de 1/2 da referida quantia, ou seja, cada um deles fica responsável pelo pagamento da quantia de € 139.965,01».

Daí que no acórdão–fundamento se tenha concluído que: “…portanto, independentemente do acerto deste juízo de prognose ele foi fundamentado não ocorrendo a invocada omissão, improcedendo nesta parte as conclusões do recurso..”.

Portanto, o que foi objeto de revisão foi esse concreto juízo de ponderação efetivamente feito pela 1.ª instância.

Já quanto ao acórdão recorrido, ainda que não se descortine que cite a parte da fundamentação da decisão de 1.ª instância atinente, assenta no pressuposto de que a sentença de 1.ª instância “…em recurso tivesse formulado um juízo de prognose sobre a capacidade de o arguido recorrente pagar as quantias em que é condenado, tendo em conta a sua situação económica, presente e futura”.

Ou seja, pressupõe que esse juízo ponderativo não foi efetuado.

6. Assim, escorando–se em entendimentos opostos quanto à aplicabilidade do regime previsto no artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, em confronto hermenêutico com o citado artigo 14.º, do RGIT, um e outro aresto decidiram diversamente quanto à necessidade ou desnecessidade de efetuar essa ponderação, mas partiram de premissas fáticas diversas quanto à existência da prévia ponderação ou juízo de prognose de adequação do valor da condição imposta à concreta condição económica do recorrente, que no acórdão–fundamento foi considerada como existente e no acórdão recorrido foi considerada como desnecessária ou exigível.

7. Portanto, a latitude e natureza das questões decididas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento são coincidentes, similares ou equivalentes em termos jurídicos, evidenciando–se a oposição entre valorações jurídicas diversas; porém em dissonância de factos, ainda que enquadrados (condutas e agentes) no mesmo âmbito jurídico.

8. Por via disso, não existe total oposição de julgados para a economia exegética do disposto no artigo 437.º do Código de Processo Penal, pois ainda que estejamos perante a mesma questão de Direito, ela pressupõe que as decisões em oposição partam da mesma compreensão inferencial baseada em dois tipos de premissas, uma de natureza normativa e outra fática, e que a partir delas afirmem consequências jurídicas aplicáveis ao caso concreto de forma manifestamente oposta, o que não acontece na coincidência exigida quanto aos factos a atender.

9. Assim, as soluções de Direito em ambos os julgados partem de pressupostos inferenciais diferenciados para a aplicação do Direito, pelo que a oposição do que foi decidido num e noutro não é uma oposição de soluções que viole a regra formal de justiça que impõe que casos idênticos devem ter soluções decisórias semelhantes.

10. Em suma:

Há interpretação divergente sobre o mesmo regime normativo ou sobre as mesmas regras (princípios ou normas), i.e., a ponderação ou não ponderação judicial, à luz do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal e do artigo 14.º do RGIT, do montante cujo pagamento constitui condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada por crime de fraude fiscal qualificada; que no acórdão recorrido não foi considerado necessário efetuar, ao contrário do que sucedeu no acórdão–fundamento.

As situações materiais litigiosas, porém, não são análogas.

Assim, a divergência de soluções decisórias apoiadas sobre o mesmo regime normativo convocado, interpretado e aplicado não têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, que no caso não existe

11. Verificando–se que as premissas fáticas não coincidem no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, tal implica a rejeição do recurso, ainda que presentes os pressupostos formais e parte dos substanciais

Em conformidade, pronunciamo-nos pela inexistência de todos os pressupostos substantivos exigidos à admissibilidade do presente recurso extraordinário, devendo o recurso ser rejeitado, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

O recorrente respondeu ao parecer, reafirmando os argumentos que levou à motivação de recurso, designadamente, que a questão central é a divergência jurisprudencial quanto à amplitude da aplicação do art. 14º do RGIT, para uns, como é o caso do acórdão recorrido, no sentido de a norma dever ser aplicada na sua literalidade, e para outros, como é o caso do acórdão fundamento, no sentido de a norma consentir que na determinação do valor da condição nela prevista intervenha o critério de razoabilidade e proporcionalidade que consta do nº 2 do art. 51º do C. Penal, que existe entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento similitude factual bastante pois os respectivos arguidos foram condenados pela prática de crime de fraude fiscal qualificada, em pena de prisão suspensas na respectiva execução condicionada, ao abrigo do referido art. 14º, no pagamento de determinado valor à administração fiscal, sendo, no entanto, dadas soluções diversas quanto à definição do quantitativo da condição, que a situação fáctica subjacente, invocada no parecer, mais não é do que um segmento da decisão da 1ª instância proferida no processo do acórdão fundamento, que em nada afecta a identidade factual deste acórdão e do acórdão recorrido, sendo inócua para a decisão de direito dissonante, dos acórdãos em confronto, e concluiu pela fixação de jurisprudência no sentido por si apontado.

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Foi realizado o exame preliminar referido no nº 1 do art. 440º, do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, nos termos do nº 4 do mesmo artigo.

Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Âmbito do recurso

A questão objecto do recurso, tal como é configurada pelo recorrente AA é a de saber se existe oposição de julgados entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido relativamente à problemática da quantificação da condição de suspensão da execução da pena de prisão, prevista no art. 14º, nº 1, do RGIT.

Da verificação dos requisitos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência

1. O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, regulado nos arts. 437º a 448º, do C. Processo Penal, pode configurar três distintas espécies: o recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio; o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada; e, o recurso no interesse da unidade do direito.

O caso dos autos integra a primeira espécie, pelo que, só dela cuidaremos.

O recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio funda-se na necessidade de compatibilizar a independência e liberdade do juiz na interpretação da norma, por definição, geral e abstracta, ao caso concreto, e a diversidade de interpretações da mesma, de forma a impedir que situações semelhantes obtenham diferentes soluções de direito, com a consequente afirmação da segurança jurídica e da igualdade perante a lei, enquanto requisitos do princípio de Estado de direito democrático (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2025, processo nº 170/23.0GAOFR.C1-A.S1, in www.dgsi.pt).

Visa, pois, alcançar uma interpretação uniforme da lei e, portanto, uniformizar a jurisprudência.

2. O recurso de fixação de jurisprudência de que cuidamos está regulado nos arts. 437º e 438º, do C. Processo Penal.

Sob a epígrafe «Fundamento do recurso» dispõe o primeiro destes artigos:

1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos nºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

Por sua vez, dispõe o art. 438º, com a epígrafe «Interposição e efeito»:

1 – O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 – No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 – O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.

Das normas transcritas retiram-se, como é entendimento pacífico, os requisitos formais e substanciais deste recurso (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2ª Edição revista, 2016, Almedina, págs. 1438 e seguintes, Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo V, 2024, Almedina, págs. 415 e seguintes e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2020, processo nº 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt). Assim:

São requisitos formais de admissibilidade do recurso:

i) A legitimidade do recorrente – pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público; e o interesse em agir, sendo recorrente o arguido, o assistente ou a parte civil;

ii) A tempestividade – deve ser interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

iii) A identificação no recurso do acórdão fundamento, com junção de cópia do mesmo ou a indicação do lugar da sua publicação;

iv) O trânsito em julgado do acórdão recorrido e do acórdão fundamento;

v) A justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

São requisitos substanciais de admissibilidade do recurso:

i) A existência de julgamentos da mesma questão de direito por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, por dois acórdãos de tribunal de relação ou por um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e por um acórdão de tribunal de relação;

ii) Assentarem os acórdãos em confronto, de modo expresso, e não meramente tácito ou implícito, em opostas soluções de direito, partindo de idêntica situação de facto; a oposição deve verificar-se entre duas decisões e não, entre uma decisão e os fundamentos de outra;

iii) Terem sido os acórdãos em confronto proferidos no domínio da mesma legislação, portanto, quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

Note-se que a admissibilidade deste recurso extraordinário requer a verificação cumulativa e contemporânea da sua interposição de todos os requisitos referidos, sendo a falta de qualquer deles insusceptível de ser suprida posteriormente, sem prejuízo de ser completado o suporte documental necessário.

Note-se, por último, que tendo o recurso de fixação de jurisprudência natureza excepcional, a interpretação das normas que o disciplinam deve ser feita de acordo com esta sua natureza, assim se evitando que se transforme num recurso ordinário (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 201 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 2017, processo nº 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, in www.dgsi.pt).

3. Vejamos se, in casu, estão ou não verificados os enunciados requisitos.

a. Relativamente aos requisitos formais de admissibilidade, não se duvida da sua verificação.

Com efeito, o recorrente, enquanto arguido, tem legitimidade e interesse em agir (art. 437º, nº 5 do C. Processo Penal).

O acórdão recorrido foi proferido 12 de Junho de 2024, e transitou em julgado em 27 de Junho de 2024 pelo que, tendo o recurso sido interposto a 4 de Setembro de 2024, é o mesmo tempestivo (art. 438º, nº 1, do C. Processo Penal);

- O recorrente identificou o acórdão fundamento – acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Novembro de 2022, proferido no processo nº 191/17.1IDPRT.P1, e indicou que o mesmo se encontra publicado em www.dgsi.pt (art. 438º, nº 2, do C. Processo Penal);

- Acórdão recorrido e acórdão fundamento estão transitados em julgado, o primeiro em 27 de Junho de 2024, e o segundo em 24 de Novembro de 2022;

- O recorrente justificou a oposição de julgados que, no seu entendimento, causa o conflito de jurisprudência a dirimir (art. 438º, nº 2, do C. Processo Penal).

b. Atentemos agora na verificação dos requisitos materiais de admissibilidade.

i) Como dissemos, estão em causa, dois acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, um, o acórdão recorrido, proferido em 12 de Junho de 2024, transitado em julgado em 27 de Junho de 2024, e outro, o acórdão fundamento, proferido em 9 de Novembro de 2022, no processo nº 191/17.1IDPRT.P1, transitado em julgado em 24 de Novembro de 2022.

Nem o acórdão recorrido [que confirmou a condenação imposta ao arguido ora recorrente pela 1ª instância, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, mas reduzindo para o pagamento de € 318291,23 acrescido de juros ao Estado, pela prática de crime de fraude fiscal qualificada], nem o acórdão fundamento [que confirmou a condenação do respectivo arguido pela 1ª instância, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de 5 anos, condiciona ao pagamento à administração fiscal da quantia, considerada razoável, de € 7000, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada], eram susceptíveis de recurso ordinário, atento o disposto no art. 400º, nº 1, d) e e), do C. Processo Penal.

O acórdão recorrido e acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação, pois os arts. 14º do RGIT e 51º, nº 2 do C. Penal, invocados pelo recorrente, não sofreram alterações.

ii) Detenhamo-nos agora na afirmada existência de oposição de julgados, portanto, na questão de saber se os acórdãos em confronto assentam, de modo expresso, em opostas soluções de direito, partindo de idênticas situações de facto.

Começamos por dizer que, cumprindo resolver no recurso a oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, o conceito nem sempre é fácil de precisar.

José Alberto dos Reis (citado por Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 213) entendia existir oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas, integrando no conceito a oposição expressa e a oposição implícita, e a oposição entre decisão e fundamentos.

Simas Santos e Leal Henriques entendem ser essencial saber se para a resolução do caso concreto os tribunais, em dois acórdãos diferentes, chegaram a soluções antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito, pressupondo a expressão legal soluções opostas que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, que em ambos exista expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos (op. cit. e nota 2), e no mesmo sentido caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (acórdãos de 19 de Fevereiro de 2025, processo nº 1399/18.8T9PBL-A.S1, de 29 de Janeiro de 2025, supra identificado, de 29 de Maio de 2024, processo nº 2589/18.9T9BRG.G2-A.S1, de 9 de Março de 2023, processo nº 1831/12.4TXLSB-V.C1-A e de 12 de Janeiro de 2023, processo nº 11/20.0GAMRA.E1-A.S1, todos in www.dgsi.pt).

Depois, há que notar que a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo que o preenchimento da verificação da oposição de julgados exige não só, a mesmidade da questão jurídica, como também, a identidade ou similitude da questão de facto constante de cada um dos acórdãos em confronto (acórdãos de 21 de Fevereiro de 2024, processo nº 257/11.1TELSB.L2-B.S1, de 28 de Setembro de 2023, processo nº 919/20.2PWPRT-A.P1-A.S1, de 16 de Março de 2022, processo nº 5784/18.7T9LSB.L1-A.S1 e de 9 de Março de 2022, processo nº 399/19.5YPPRT.P1-A.S1, todos in www.dgsi.pt).

A identidade da situação de facto de cada um dos acórdãos em confronto não tem de ser absoluta, mas elas têm que equivaler-se para efeitos de subsunção jurídica, de modo a que possa dizer-se que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exatamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Junho de 2014, processo nº 1714/11.5GACSC.L1.S2, in www.dgsi.pt). Ou seja, há que verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a solução adotada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir, na mesma ocasião, essa questão, no acórdão fundamento e vice-versa (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2022, supra, identificado).

Acórdão recorrido e acórdão fundamento depararam-se com a mesma questão de direito, que é a de saber se, ainda que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada pela prática de crimes de fraude fiscal qualificada deva ser sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, nos termos do disposto no art. 14º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias [RGIT], o estabelecimento desta condição deve passar pelo crivo de um juízo de prognose sobre a capacidade de o arguido a poder cumprir, em função da sua situação económica e financeira, presente e futura, conforme previsto no art. 51º, nº 2, do C. Penal.

Dispõe o art. 14º, do RGIT, com a epígrafe, «Suspensão da execução da pena de prisão»:

1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:

a) Exigir garantias de cumprimento;

b) Prorrogar o período der suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;

c) Revogar a suspensão da pena de prisão.

Por sua vez, dispõe o art. 51º, do C. Penal, com a epígrafe, «Deveres», na parte em que agora releva:

1 – A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.

2 – Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

(…).

Aqui chegados, vejamos o que aconteceu no acórdão recorrido e no acórdão fundamento.

[Acórdão recorrido]

O acórdão recorrido tem por objecto um acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira, que condenou o arguido e ora recorrente, pela prática em co-autoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, nºs 1, c), 2 e 3 e 104º do RGIT, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de três anos, com a condição de pagamento, no mesmo período, à administração fiscal, do valor de € 329193,97, nos termos dos arts. 14º, nº 1 do RGIT e 50º, nº 1 do C. Penal.

No recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto o arguido, ora recorrente, invocou [além da nulidade do acórdão da 1ª instância por falta de fundamentação dada a ausência da análise crítica da prova, da nulidade da decisão prevista na alínea c) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal, por violação do efeito de caso julgado formado por decisões da jurisdição administrativa relativas a anulação de liquidações tributárias, invocou vício decisório, e da impugnação ampla a decisão da matéria de facto] a indevida aplicação automática da letra do art. 14º, do RGIT, por violadora dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da necessidade e proporcionalidade da pena, advogando a conjugação daquela norma com a do art. 51º, nº 2, do C. Penal, e a necessidade de realização de um juízo de ponderação entre a condição fixada e a sua adequação à realidade pessoal do recorrente, com a consequente revogação do quantum da condição de suspensão fixada, nos termos dos arts. 14º, do RGIT e 51º, nº 2, do C. Penal [no recurso interposto para a Relação do Porto, o co-arguido do ora recorrente invocou a nulidade do acórdão da 1ª instância prevista no art. 379º, nº 1, a), do C. Processo Penal, por incumprimento do disposto no art. 374º, nº 2, do mesmo código, ao não ter tido em consideração vários elementos de prova documental e testemunhal, omitindo a respectiva análise crítica, invocou a nulidade por omissão de pronúncia resultante de da não apreciação dos factos relativos a um outro processo, pela prática do crime objecto dos autos, no qual foi julgado e condenado, com trânsito em julgado, verificando-se a formação de caso julgado e consequente violação do princípio ne bis in idem, e manifestou a sua discordância quanto à medida da pena fixada, que considerou excessiva e violadora do princípio da culpa].

O acórdão recorrido [depois de julgar improcedentes, a nulidade do acórdão da 1ª instância por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, a nulidade do acórdão recorrido por violação do caso julgado material, a verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada], concedendo parcial provimento ao recurso do arguido, alterou a decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente ao ponto 13 dos factos provados, revogou o acórdão da 1ª instância na parte em que declarou perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial de € 329193,97, fixou tal vantagem em € 318291,23 acrescida de juros compensatórios à taxa legal, e condicionou a suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão ao pagamento da quantia de € 318291,23 acrescida de juros compensatórios, à taxa legal, até ao limite de € 329193,97.

Relativamente à condição estabelecida para a suspensão da execução de pena de prisão, nele, acórdão recorrido, foi argumentado:

- O arguido AA questiona a condição da suspensão da execução da pena fixada, relativamente ao valor fixado, à inconstitucionalidade do critério automático da fixação do valor da condição prevista no art. 14º, do RGIT, por violação dos princípios da culpa, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena, à adequação do valor da condição às concretas condições do condenado, dizendo que: o referido artigo constitui uma especialidade relativamente ao disposto no art. 51º do C. Penal, não sendo exacto que a condição seja de aplicação automática; dizendo que o condenado deve estar em condições de poder cumprir a obrigação imposta na condição, sendo para tanto necessário que o juiz averigue essas possibilidades de cumprimento e fixe a condição em parâmetros compatíveis com as capacidades daquele, assim se assegurando o seu direito a uma pena justa; dizendo que o tribunal a quo não realizou o necessário juízo de prognose para poder fundamentar a exequibilidade do dever imposto em razão do quantum monetário fixado; dizendo que o seu rendimento mensal é o salário mínimo, o vendimento mensal do cônjuge é de € 1500, e o agregado não tem outros rendimentos, pelo que é manifesta a falta de razoabilidade da condição de pagamento à Autoridade Tributária da quantia de € 318291,23 e legais acréscimos, no prazo de três anos de suspensão;

- Resulta do disposto no art. 14º do RGIT que a suspensão da pena de prisão nos crimes tributários, condicionada ao pagamento pelo condenado da prestação tributária e demais acréscimos, é uma imposição legal e por isso, vem sendo entendido que ali se regula um regime especial, relativamente ao regime previsto nos arts. 50º, nº 2 e 51º, nº 1, do C. Penal, impondo tal regime especial, quando o tribunal optar pela substituição da pena de prisão, a fixação de tal condição;

- Não é aplicável ao caso a jurisprudência do AUJ nº 8/2012, visto o mesmo só ser aplicável, em tese, a crimes fiscais puníveis, em alternativa, com pena privativa e pena não privativa da liberdade, o que não acontece com o crime de fraude fiscal, sendo certo que a jurisprudência nele fixada não permite ultrapassar a obrigatoriedade do condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações tributárias em dívida, pelo que, não era exigível que a sentença recorrida tivesse formulado um juízo de prognose sobre a capacidade do arguido, em razão da sua situação económica, presente e futura, para satisfazer o pagamento da condição fixada;

- A conformidade constitucional do regime previsto no art. 14º, do RGIT, com os princípios da culpa, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade, foi já objecto de diversas decisões do Tribunal Constitucional, que sempre a afirmou, quer por ser sempre possível a alteração para melhor da situação económica do condenado, quer porque, a eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão nunca é automática, dependendo sempre da comprovação da culpa daquele no não cumprimento da condição.

Em consequência, concluiu o acórdão recorrido, que não tinha que efectuar qualquer juízo de adequação do valor da condição imposta à concreta situação económica do arguido.

[Acórdão Fundamento]

O acórdão fundamento tem por objecto uma sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Criminal de Felgueiras, que condenou dois dos respectivos arguidos [um terceiro arguido foi absolvido] pela prática em co-autoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 103º, nº 1, a) e 104º, nºs 1 e 2, a) e b), do RGIT, nas penas de 2 anos de prisão e de 1 ano e 6 meses de prisão, respectivamente, ambas suspensas na respectiva execução, nos termos do art. 14º, do RGIT, na condição de pagamento, no mesmo período, da quantia de € 139965,01 à Administração Fiscal.

No recurso interposto por um dos arguidos condenados [BB] para o Tribunal da Relação do Porto, foi invocada a insuficiência de fundamentação quanto às circunstâncias que levaram a 1ª instância a considerar razoável impor-lhe o pagamento ao Estado da quantia de € 139965,01 e respectivos juros de mora, como condição de suspensão da execução da pena de prisão, por não ter formulado o juízo de prognose de razoabilidade sobre a possibilidade de satisfação da condição, na sequência do estabelecido pelo Acórdão nº 8/2012 para o crime de abuso de confiança fiscal, assim gerando a nulidade da sentença prevista no art. 379º, nº 1, c), do C. Processo Penal, no segmento relativo à escolha e fixação da pena, e concluiu-se pela revogação da sentença.

O acórdão fundamento – que definiu o objecto do recurso como sendo a arguição da nulidade de omissão de pronúncia quanto à fundamentação do regime de suspensão da pena e aferição do mérito do mesmo –, considerando que a sentença recorrida, respaldada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Abril de 2015, entendeu não ser aplicável a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 8/2012 [por o crime de fraude fiscal em causa ser apenas punível com pena de prisão], e que, tendo suspendido a execução da pena de prisão fixada, o fez mediante prévio juízo de prognose favorável à razoabilidade do pagamento integral da quantia devida à Autoridade Tributária, pelos devedores, face aos rendimentos auferidos e ao período alargado para o cumprimento da obrigação, porque, independentemente do acerto de tal juízo, ele foi efectuado, dando parcial provimento ao recurso, julgou improcedente a invocada nulidade por omissão de pronúncia.

Depois, o acórdão fundamento, quanto ao que designou por «aspeto central reportado à pretendida ponderação sobre a prognose favorável ao pagamento integral do montante apropriado pelo arguido no decurso da suspensão», expressando o entendimento de que, «o disposto no art.14º nº1 do RGIT se encontra sujeito ao nº 2 do art.51º do CP, ou seja, optando o Tribunal pela suspensão da pena, haverá, subsequentemente, de aferir o nº 2 do art.51º, aplicando o critério de razoabilidade à definição do montante a cominar ao arguido, inexistindo qualquer obrigação oficiosa de manter na íntegra a quantia devida ao fisco ou à segurança social» pois, «a aplicação do disposto no nº 1 do art. 14º nº 1do RJIT não implica necessariamente derrogar o nº 2 do art.51º do CP. Apenas constitui uma especialidade ao regime facultativo previsto no nº1 do art.51º do CP o qual dispõe facultativamente que “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres..”, diversamente do regime obrigatório que resulta do ar.14º nº 1 do RGIT o qual impõe sempre o condicionamento ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais do montante dos benefícios indevidamente obtidos» e assim, «se a suspensão da pena no crime tributário haverá de ser sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária de que o arguido se apropriou, a fixação do montante concreto não poderá deixar de ficar sujeito ao regime previsto no art.51º nº 2 do CP, o qual enforma o princípio geral da humanidade das penas, determinando que o regime de suspensão não seja condicionado por medidas irrealizáveis, sob pena dos fins da suspensão serem negados nos seus próprios termos. Que juízo de prognose favorável se pode fundar num regime que, à partida e no fim, se afigura irrealizável (cfr.art.50º nºs 1 e 2 do CP)? O Direito Penal porque dirigido ao homem e à sociedade reclama lógica, compreensibilidade e coerência nos seus próprios termos, em particular em matéria tão sensível como o território das penas e da sua execução», acrescendo que, «em ambos os casos (do art.51º nº1 alínea a) do CP; ou do art.14º nº1 do RGIT), como já defendemos, prevalece a ponderação prevista no nº 2 do art.51º do Cód. Penal, apenas com a especialidade de que a sujeição ao pagamento nos termos do art.51 nº 1 do CP é ponderável pelo juiz, e por isso facultativa; enquanto no art.14 do RGIT a suspensão da pena torna obrigatória a sujeição ao pagamento da dívida (daí o advérbio “sempre”), cujo montante a fixar estará, contudo, sujeito à ponderação do nº 2 do art.51º do CP», pelo que, assentando na aplicação do art. 51º, nº 2, do C. Penal ao caso, cotejando os factos provados relativos à condição económica do arguido recorrente com as considerações efectuadas pela 1ª instância, quanto à possibilidade de cumprimento da condição, concluiu pela impossibilidade de tal cumprimento, e condicionou a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da quantia de € 7000 à Administração Fiscal, no período de 5 anos.

Pois bem.

Como se disse, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento os respectivos arguidos foram condenados pela prática de crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º e 104º, nº 2, do RGIT, em penas de prisão, substituídas pela suspensão da respectiva execução, nos termos do disposto no art. 14º do mesmo regime geral, condicionada ao pagamento à Autoridade Tributária das prestações tributárias em dívida

Do mesmo modo, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento colocou-se, em recurso, a questão de saber se o montante a cujo pagamento foi condicionada a suspensão da execução da pena de prisão é sempre, por imposição da lei, entenda-se, por imposição do referido art. 14º, o montante das prestações tributárias e seus acréscimos ou se, pelo contrário, esse montante pode ficar dependente de um juízo de ponderação judicial sobre a capacidade do condenado para satisfazer o seu pagamento, em razão da sua situação económica, presente e futura, nos termos do disposto no art. 51º, nº 2, do C. Penal.

Sucede que, no acórdão fundamento, o Tribunal da Relação do Porto partiu de uma situação processual em que a 1ª instância, na decisão recorrida, efectuou o juízo de prognose relativo à capacidade dos respectivos arguidos para cumprirem a condição arguido e com base nele, suportou a opção pela suspensão da execução da pena de prisão. Com efeito, aí se escreveu, «No que se refere aos arguidos, verifica-se que, apesar de a arguida se encontrar detida e em cumprimento de pena, a mesma poderá, ainda assim, liquidar a quantia em dívida; o mesmo se dizendo do arguido CC, o qual também se encontrará a trabalhar; ou seja, e por ora, entende-se que os mesmos, têm rendimentos, e, ainda que num período alargado, o tribunal entende, e relativamente a todos eles, fixar o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão, uma vez que se consegue efectuar, e reafirma-se e relativamente a cada um dos arguidos, um juízo de prognose de que todos eles conseguem reunir condições para que essa obrigação possa ser cumprida. Assim sendo e atento ainda o disposto nos arts. 50º, 51º e 52º do Cód. Penal e art. 14º do R.G.I.T., decide-se suspender as referidas penas de prisão aplicadas aos arguidos BB e CC, pelo período de 5 anos, na condição dos arguidos pagarem em tal período a quantia de € 279.730,03 correspondente à vantagem patrimonial pelos mesmos auferida, enquanto legais representantes das sociedades de que eram responsáveis legais, quer de facto, quer de direito. Ora, como aqui a responsabilidade pelo pagamento não é solidária, mas antes individual, determina-se que tal pagamento seja efetuado em partes iguais por cada um dos arguidos, ou seja, cada um fica responsável pelo pagamento de 1/2 da referida quantia, ou seja, cada um deles fica responsável pelo pagamento da quantia de € 139.965,01», e depois se concluiu que, «(…) portanto, independentemente do acerto deste juízo de prognose, ele foi fundamentado, não ocorrendo a invocada omissão, improcedendo nesta parte as conclusões do recurso (…)».

Por isso, a Relação, ao proferir o acórdão fundamento [depois de afastar a invocada nulidade por omissão de pronúncia], procedeu à avaliação do efectuado juízo de ponderação e, concluindo pela sua falta de razoabilidade, reduziu o montante da condição económica fixada para a substituição da pena de prisão.

Já no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto partiu de uma distinta situação processual, pois a 1ª instância, no acórdão proferido, não realizou aquele juízo de ponderação, omissão esta que o ora recorrente censurou no recurso ordinário interposto, censura que a Relação não acolheu, com o entendimento de não ser exigível que a decisão da 1ª instância devesse ter um juízo de prognose sobre a capacidade económica do arguido para cumprir a condição fixada à suspensão da execução da pena de prisão.

Deste modo, sendo verdade que acórdão recorrido e acórdão fundamento assumiram, de forma expressa, opostas posições quanto à necessidade/desnecessidade de realização do referido juízo de ponderação, é também verdade que, para tanto, partiram de distintas premissas de facto, relativamente ao prévio juízo de ponderação, uma vez que, conforme dito, no acórdão fundamento esta ponderação foi feita e como tal considerado, e no acórdão recorrido, não, e considerada como inexigível.

Daqui decorre, não obstante as semelhanças pontadas, não existir uma real identidade substancial do núcleo factual essencial, subjacente aos arestos em confronto, ainda que ambos versem a mesma questão de direito, como, aliás, bem disse o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer emitido [«Aqui chegados, a latitude e natureza das questões decididas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento são coincidentes, similares ou equivalentes em termos jurídicos, evidenciando–se a oposição entre valorações jurídicas diversas; porém, em dissonância de factos, ainda que enquadrados (condutas e agentes) no mesmo âmbito jurídico. Por via disso, não existe total oposição de julgados para a economia exegética do disposto no artigo 437.º do Código de Processo Penal, pois ainda que estejamos perante a mesma questão de Direito, ela pressupõe que as decisões em oposição partam da mesma compreensão inferencial baseada em dois tipos de premissas, uma de natureza normativa e outra fática, e que a partir delas afirmem consequências jurídicas aplicáveis ao caso concreto de forma manifestamente oposta, o que não acontece na coincidência dos factos a atender. De facto, a nosso juízo, as soluções de Direito em ambos os julgados partem de pressupostos inferenciais diferenciados para a aplicação do Direito, pelo que a oposição do que foi decidido num e noutro não é uma oposição de soluções que viole a regra formal de justiça que impõe que casos idênticos devem ter soluções decisórias semelhantes.»].

Em suma, suportados em opostos entendimentos quanto à harmonização do regime previsto no art. 14º, do RGIT com o regime previsto no art. 51º, nº 2, do C. Penal, acórdão recorrido e acórdão fundamento decidiram de forma diversa quanto à necessidade/desnecessidade de realização de um juízo de prognose sobre a razoabilidade da condição, tendo, no entanto, partido de diferentes premissas de facto quanto à existência daquele juízo, que no acórdão fundamento existiu [foi feito na decisão da 1ª instância] e como tal foi considerado, e no acórdão recorrido não existiu [não foi feito pela 1ª instância] e foi considerado inexigível.

Daqui resulta não existir oposição de julgados entre acórdão recorrido e acórdão fundamento, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 437º, do C. Processo Penal, pois que as premissas de facto de um e outro não são coincidentes, e as situações substantivas em litigio que, numa perspectiva jurídica, suportam as opções decisórias tomadas não são equiparáveis.

Assim, não estando verificada a imprescindível identidade das situações de facto e das questões de direito, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, que constituem requisito material de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, deve o mesmo ser rejeitado, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1, do C. Processo Penal, pela inexistência de oposição de julgados.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em julgar não verificada a oposição de julgados e, em consequência, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1 do C. Processo Penal, rejeitam o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo arguido AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em 3 UC (arts. 513º, nºs 1 e 3 e 514º do C. Processo Penal), a que acresce, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 420º, nº 3, 441, nº 1 e 448º, todos do C. Processo Penal, a condenação no pagamento da quantia de 3 UC.

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 6 de Novembro de 2025

Vasques Osório (Relator)

Celso Manata (1º Adjunto)

Ernesto Nascimento (2º Adjunto)