HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
NULIDADE
CIDADÃO ESTRANGEIRO
TRADUÇÃO
NOTIFICAÇÃO
REVOGAÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REJEIÇÃO
Sumário


I - Independentemente de a argumentação expendida pelo requerente poder consubstanciar a prática de nulidade(s) processualmente relevante(s), não é matéria que deva ser conhecida pelo STJ em habeas corpus, na medida em que este procedimento visa reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal, não se destinando à apreciação do mérito das decisões judiciais ou da sua validade ou regularidade, não cabendo no seu âmbito a verificação da observância das disposições legais de natureza processual nem a sindicância de quaisquer nulidades verificadas no decurso do processo. Para essas finalidades dispõem os interessados dos meios processualmente adequados, sejam os previstos para a arguição e sanação de nulidades, seja a via do recurso adequado ao caso.
II - Constituindo o TIR uma medida de coação, como inequivocamente resulta da lei e da própria inserção sistemática da norma que o prevê, traduz sempre um acto pessoal, na acepção de que apenas poderá ser prestado pelo próprio arguido a ele sujeito, assim como apenas pelo arguido poderão ser alterados os elementos dele constantes, nomeadamente, a morada indicada.
III - Tendo o arguido prestado TIR e não tendo sido possível encontrá-lo ulteriormente quer na morada que indicou, quer nas moradas sucessivamente indicadas pela sua mandatária inicial, aliás, não munida de procuração com poderes especiais para alterar a morada indicada no TIR, o habeas corpus não é o procedimento ajustada para reagir contra a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO:

AA, cidadão russo, actualmente recluso no Estabelecimento Prisional do Porto, melhor identificado nos autos de processo comum nº 125/22.1GCSLV, do Juízo de Competência Genérica de Seia veio, ao abrigo dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 220.º a 223.º do Código de Processo Penal requerer providência de habeas corpus mediante requerimento subscrito pela sua mandatária, que tem o seguinte teor (transcrição – itálico nosso):

Vem o Requerente, ao abrigo dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 220.º a 223.º do Código de Processo Penal, requerer a sua imediata restituição à liberdade, por considerar ilegal a prisão em que se encontra, resultante de despacho judicial cuja nulidade se requer, por ter revogado a suspensão da execução da pena de prisão sem lhe terem sido garantidos os seus Direitos, Liberdades e Garantias enquanto Arguido em Processo Penal, por falta de notificações válidas e pela inexistência de audição pessoal, tudo em língua que entenda e que lhe permita ter a devida compreensão para os actos judiciais que o afectam e que culminam com a sua presente perda de Liberdade.

II. Exposição Factual e Cronológica

1. O Requerente foi condenado nos autos supra indicados por sentença de 25/06/2024 na pena de 4 anos de prisão, suspensa na execução por igual período, sujeita a deveres específicos (frequência de programa de prevenção e pagamento de €7.500).

2. Essa sentença transitou em julgado em 07/10/2024, não tendo sido efectivamente notificada ao arguido, nunca tendo sido traduzida para russo, conforme resulta dos autos;

3. Em 14/02/2025, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) informou o Tribunal que:

a. Não falava nem compreendia português;

b. Residia na morada Alameda 1 – 4200-... Porto, onde foi pessoalmente encontrado e identificado.

4. A 06.06.2025 – Ref. ......84 – o Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da pena de prisão, defendendo que: “Mas no dia 30.01.2025 na deslocação à morada do TIR constataram que o arguido reside naquela morada.

Que o mesmo estava em casa e referiu que não falava nem entendia português.”

5. Note-se que a morada do TIR aqui referida é a Alameda 1 – 4200-... Porto;

6. Mais foi entendido e assumido pela Exmª Srª. Procuradora da República nesse seu Despacho com a referência ......84 idem: “Face a tal circunstância a DGRSP entendeu que não se mostra possível à DGRSP fazer o acompanhamento solicitado sem a presença de um tradutor, sendo que mesmo com o tradutor o obstáculo da língua será, de igual modo, uma limitação ao acompanhamento da medida, que exige entrevistas estruturadas de cariz cognitivo comportamental, cuja operacionalização surgirá condicionada”

7. A 27 de Junho de 2025, através do Despacho com a referência ......78 foi respondida à Promoção de 06-06-2025 (de ref.ª: ......84): Com cópia da promoção que antecede, notifique o arguido, assim como a sua Ilustre Defensora, para, querendo, e no prazo de 5 (cinco) dias, se pronunciarem sobre o seu teor.”

8. Não foi efectuada a tradução da promoção, do despacho e não foi efectivada a notificação do Arguido com a referência ......63, enviada a 30 de Junho de 2025 para a morada de Portimão,

9. Repita-se que a 06.06.2025 – Ref. ......84 - o Ministério Público tinha assumido que “Mas no dia 30.01.2025 na deslocação à morada do TIR constataram que o arguido reside naquela morada” ou seja na Alameda 1– 4200-... Porto;

10.E a 23/07/2025, a M.ma Juíza de Direito do Tribunal a quo, (Ref.ª ......56),também deu como assente que a morada do TIR do arguido era na Alameda 1 – 4200-... Porto: “Contudo, no dia 30-01-2025, na deslocação à morada do TIR, constataram (DGRSP) que o arguido residia naquela morada e que o mesmo estava em casa e referiu que não falava nem entendia português”

11.Nesse mesmo despacho (Ref.ª ......56), foi revogada a suspensão da execução da pena determinando o seu cumprimento efetivo, sem ter sido assegurada a devida audição prévia do arguido e sem assegurar a compreensão linguística do ato pois todas as notificações foram sempre feitas em língua portuguesa;

12.Em 24/07/2025, (ref. ......60) foi emitida notificação desse Despacho de Revogação da Suspensão da execução da Pena de Prisão exclusivamente em língua portuguesa e enviada para a morada sita na Rua 2, 8500-... Portimão – morada essa que não corresponde à morada que o Tribunal e o Ministério Público consideram ser do TIR – (Despacho Ref.ª ......56) - e onde o Arguido foi encontrado, a saber Alameda 1 – 4200-... Porto;

13.Conforme se verifica dos autos, o Requerente não recebeu nem compreendeu essa notificação e, portanto, nunca teve conhecimento efectivo da decisão de revogação.

14.A 04/08/2025, através da Referência ......00, o Ministério Público vem defender que: “Considerando o teor do AUJ n.º 6/20101, de 21 de Maio, em conjugação com o teor do Ac. do TRE de 11.03.2025, proferido no âmbito do Processo N.º 220/22.7GESTB.E12, entendo que o arguido se considera notificado do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão por carta remetida por PD, para a morada do TIR, ainda que devolvida”

15.A 17.09.2025, pelo Despacho com a Referência ......48, vem o Tribunal a quo, decidir que a notificação – pese embora ser enviada para Rua 2, 8500-651 Portimão é válida por defender que essa é a morada do TIR, pese embora a carta vir devolvida;

16.O que expressamente contraria a Promoção e Despacho de 06.06 e 23.07.2025 anteriores à notificação de 24.07.2025) com base na informação do DGRSP, em que assume como morada do TIR a Alameda 1– 4200-... Porto;

17.Nesse mesmo despacho de 17.09.2025, é decidido que: “Do exposto emerge, com absoluta clareza, que todas as notificações posteriores à eventual condenação deveriam ser efetuadas por via postal simples para a morada indicada no TIR, salvo comunicação expressa de morada diversa.

18.Ora é o próprio Tribunal e o Ministério Público que, com base na informação da DGRSP, assume que o TIR é na Alameda 1 – 4200-... Porto, onde o Arguido efectivamente residia: “Contudo, no dia 30-01-2025, na deslocação à morada do TIR, constataram que o arguido residia naquela morada e que o mesmo estava em casa e referiu que não falava nem entendia português” – Ref. ......56

19.Em 07/10/2025, a Polícia de Segurança Pública do Porto executou mandado de detenção emitido com base naquele despacho de 23/07/2025, conduzindo o Preso ao Estabelecimento Prisional do Porto, onde permanece privado da liberdade até à presente data.

1. Foi apenas nesse momento (07/10/2025) que o ora Requerente tomou efetivo conhecimento da revogação da pena suspensa, sem nunca ter sido previamente notificado em língua que compreenda, nem ouvido no incidente de revogação.

III. Fundamentação Jurídica

2. Dispõe o art. 222.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal que o habeas corpus pode ser requerido “Quando a prisão tiver sido motivada por facto que a lei não permite.”

3. Ora:

. A prisão do requerente resulta de despacho judicial nulo, por violação das garantias de defesa e do contraditório;

· Tal decisão nunca foi validamente notificada nem compreendida pelo arguido;

· Logo, a prisão foi motivada por facto que a lei não permite, devendo cessar de imediato.

Note-se que,

4. Nos termos dos arts. 61.º, 92.º e 93.º CPP, o arguido tem direito a ser assistido por intérprete e a compreender as comunicações processuais.

5. O art. 32.º, n.º 5 da CRP e o art. 6.º, n.º 3, al. a) e e) da CEDH consagram o mesmo direito.

6. Com a revogação da pena suspensa e com a prisão do Requerente foram violados os Artigos 27.º e 32.º CRP, 6.º CEDH, 48.º Carta dos Direitos Fundamentais da UE e 14.º PIDCP (ONU).

7. Mais se alegando que as notificações são inválidas e verifica-se erro na morada, violando igualmente os arts. 113.º, n.º 9, e 196.º, n.º 3, al. c) CPP.

8. Acontecendo de igualmodo a nulidade da decisão de revogação da suspensão e actos subsequentes (art. 119.º, al. c) CPP) por ausência de audição e intervenção do arguido

9. O requerente nunca foi notificado em russo nem informado de forma inteligível do despacho de revogação, pelo que não teve oportunidade de exercer o contraditório nem de apresentar defesa — vício que torna nulo o ato e ilegal a prisão subsequente.

4. Nulidade da decisão que ordenou a prisão

10.Nos termos do art. 119.º, al. c) CPP, constitui nulidade absoluta a omissão da intervenção do arguido em ato que o deva obrigatoriamente envolver, nomeadamente a audição prévia prevista no art. 495.º CPP.

11.A revogação da pena foidecidida sem audição e sem tradução, o que implica nulidade insanável e ilegalidade da prisão resultante.

5. Violação de normas constitucionais e internacionais

12.Com a revogação da suspensão da pena e das notificações efectuadas sem cumprirem os requisitos legais devidos que culminaram com a prisão do Requerente, foram violadas as seguintes normas

a. Art. 27.º CRP: só é legítima a privação da liberdade ordenada por decisão judicial válida e fundamentada;

b. Art. 32.º, n.º 1 e 5 CRP: direito de defesa e a intérprete;

c. Art. 6.º, n.º 3, al. a) e e) CEDH: direito a ser informado e julgado em língua compreensível;

d. Art. 48.º, n.º 2 Carta dos Direitos Fundamentais da UE;

e. Art. 14.º, n.º 3, al. a) e f) PIDCP (ONU).

13.A prisão em causa viola diretamente estes preceitos, sendo por isso materialmente inconstitucional e ilegal.

IV. Jurisprudência Relevante

· STJ, Acórdão de 28.02.2001, proc. 00P4407: prisão baseada em despacho nulo é ilegal e justifica habeas corpus.

· STJ, Habeas Corpus n.º 34/2021: “Quando o arguido é detido em execução de decisão proferida sem notificação válida, a prisão é materialmente ilegal.”

· TEDH, Sejdovic v. Itália (2006) e Cuscani v. Reino Unido (2002): decisões tomadas sem notificação compreensível violam o art. 6.º CEDH.

· Acórdão TC n.º 109/2012: prevalência do direito de defesa sobre formalismo de notificação.

· Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2010 – Acórdão Uniformizador de Jurisprudência - Processo nº 149/05.3PULSB-C.S1

V. Pedido

Nestes termos, requer o Supremo Tribunal de Justiça que:

I. Declare ilegal a prisão do requerente AA;

II. Determine a sua imediata libertação, por a prisão se fundar em ato processual nulo e ilegal;

III. Ordene a remessa dos autos ao tribunal de origem para correção processual e eventual nova audição, com intérprete de língua russa;

IV. Reconheça que a decisão de revogação da suspensão da pena é ineficaz e desprovida de efeitos jurídicos, por falta de notificação válida e violação do direito de defesa.

Foi prestada a informação referida na segunda parte do nº 1 do art. 223.º do Código de Processo Penal, da qual consta o seguinte:

Dispõe o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que as petições são enviadas imediatamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com informação sobre as condições em que foi efectuada ou se se mantém a prisão.

Desta feita, cumpre, nos termos do citado artigo prestar as seguintes informações que devem acompanhar a remessa dos presentes autos:

1. O arguido prestou termo de identidade e residência no dia 13.06.2022 onde declarou que a morada para notificações se situava na «Rua 2 8500-..., Portimão» (fls. 125 da referência ......81, de 21.06.2022, do processo eletrónico);

2. Por requerimento de 27.06.2022, a Ilustre Defensora do arguido declarou que o arguido passou a ter residência na «Avenida 3 4350-... Bonfim, Porto»;

3. Posteriormente, por requerimento de 06.02.2023, a Ilustre Defensora do arguido declarou que o arguido passou a residir na «Localização 4 6285-...Vide»;

4. Por despacho proferido no dia 13.03.2024 decidiu-se que as notificações deveriam ser dirigidas à morada constante do TIR prestado pelo arguido, por referência à morada indicada em 1.;

5. A partir de então, o arguido foi sendo sucessivamente notificado para a morada indicada em 1 (i.e., para a data de audição do condenado e decisões ulteriores);

6. Na audiência de julgamento realizada, decidiu-se, além do mais, o seguinte: «O arguido foi regularmente notificado para comparecer na presente audiência de discussão e julgamento, conforme se retira da circunstância de ter sido notificado para a morada do TIR que consta de fls.192 dos autos, no entanto não compareceu nem justificou a sua falta nos termos do artigo 117.º, do Código de Processo Penal, pelo que se condena o mesmo em multa, que se fixa no mínimo legal, ou seja em 2 UCs, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, do Código de Processo Penal e sem prejuízo da invocação de motivo para a falta no prazo legal, nos termos dos artigos 117.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal e 140.º, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal (…)»;

7. Foi proferida sentença que decidiu, além do mais, o seguinte «1. Condenar o arguido AA, pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), do Código Penal na pena de 4 (quatro) anos de prisão. 2. Suspender a execução da pena de prisão de 4 (quatro) anos de prisão aplicada ao arguido AA, por igual período (…)»;

8. Sob a referência .....90 de 12.09.2024 encontra-se lavrada certidão nos termos da qual o arguido foi pessoalmente notificado da sentença condenatória proferida;

9. No dia 10.04.2025 foi realizada audição do condenado, na qual o arguido não compareceu, apesar de devidamente notificado (cfr. referência ......91 de 10.04.2025);

10. No dia 20.05.2025 foi realizada nova audição de condenado, ante a falta do arguido na anterior e a emissão de mandados, na qual este não compareceu novamente;

11. Por despacho proferido no dia 23.07.2025 (referência 23.07.2025) foi determinada a revogação da pena suspensa aplicada, por violação grosseira dos deveres que sobre ele impendiam, e determinada a emissão de mandados para cumprimento da pena de prisão;

12. O despacho foi notificado ao arguido em 25.07.2025 (cfr. referências .....48 de 01.08.2025 e .....41 de 30.07.2025) e, como tal, transitou em julgado no dia 01.10.2025;

13. Por despacho proferido em 17.09.2025 decidiu-se o seguinte «Pelo exposto, considerando que o arguido prestou TIR, impõe-se que a notificação do despacho de revogação da pena suspensa se faça por via postal simples para a morada nele indicada, interpretação que se coaduna com o já decidido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.01.2021 (proc. n.º 421/17.0PAPNI-A.S1, relatado por Helena Moniz), com o AUJ n.º 6/20101, de 21 de maio e com o Acórdão n.º 109/2012 do Tribunal Constitucional.»;

14. O Tribunal não considerou, nem decidiu, ser outra a morada do TIR senão aquela que efetivamente foi declarada pelo arguido aquando da aplicação da respetiva medida de coação, tanto mais que a regular notificação a que se alude no despacho proferido no dia 23.07.2025 (que revogou a pena suspensa), tem por referência a morada para a qual foram realizadas as notificações (isto é, Rua 2, 8500-..., Portimão);

15. Tal decisão foi igualmente notificada ao defensor;

16. Dispõe o artigo 222.º sob a epígrafe «Habeas corpus em virtude de prisão ilegal: 1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus. 2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»;

17. Tal como salienta o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2022, proc. n.º 4853/14.7TDPRT-A.S1 (relatado por Lopes da Mota), acessível in www.dgsi.pt: «A providência de habeas corpus não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância; trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º, do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores (art. 399.º e ss., do CPP).»;

18. Como é bom de ver, a eventual falta de tradução dos atos processuais não constitui fundamento para providência de habeas corpus, apesar de ser geradora de nulidade, quando obrigatória;

19. Não se trata, portanto, de uma prisão motivada por facto que a lei não permite, porquanto o crime pelo qual o arguido foi condenado admite pena de prisão;

20. Assim sendo, e em face dos fundamentos expostos, deverá a prisão determinada manter-se.

(…)

Resulta da certidão geral com que os autos foram instruídos a atualidade da prisão.

Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e a mandatária do arguido, realizou-se audiência conforme previsto no artigo 223.º, n.º 2, do CPP.

Finda a audiência a Secção reuniu para deliberação, como prevê o n.º 3 do mesmo artigo.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Os factos relevantes para a apreciação e decisão desta providência de habeas corpus são os enunciados na petição apresentada pelo requerente, na informação judicial prestada nos autos e na certidão com que estes foram instruídos, sem que se veja necessidade de solicitar qualquer elemento complementar.

Dos autos resulta essencialmente e com relevo para a decisão desta providência o seguinte:

1. Por sentença de 25 de junho de 2024 o ora requerente AA foi condenado pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), do Código Penal na pena de 4 (quatro) anos de prisão, cuja execução foi suspensa por 4 (quatro) anos, subordinada, nos termos dos artigos 50.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5, 51.º, n.º 1, alínea a), 52.º, n.º 2, alínea b) e 152.º, n.º 4, in fine, do Código Penal, aos seguintes deveres e regras de conduta:

- Submeter-se a programa específico de prevenção da violência doméstica;

- Pagar à vítima, durante o período de suspensão, o valor de €7.500,00, correspondente a metade da quantia arbitrada em sede de pedido de indemnização cível.

Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio, ainda que por interposta pessoa, pelo período de 3 (três) anos.

2. Notificado para ser ouvido em tribunal no dia 10 de abril de 2025, não compareceu.

3. Assim como não compareceu na nova data designada para o efeito, 20 de maio de 2025.

4. Por despacho de 23.07.2025 foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA e determinado o cumprimento da pena de 4 anos de prisão em que foi condenado.

A petição de habeas corpus é tempestiva, atenta a atualidade da privação da liberdade, tanto quanto é certo que o requerente se encontra em cumprimento de pena.

A legitimidade do requerente é inquestionável à luz do disposto nos artigos 31.º, n.º 2, da CRP e 222.º, n.º 2, do CPP.

É pacífico na jurisprudência, como na doutrina, o entendimento de que o habeas corpus, no recorte dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 220.º a 224.º do Código de Processo Penal, se traduz numa providência urgente e de natureza extraordinária que visa essencialmente garantir o direito à liberdade individual tutelado pelo art. 27.º da CRP, constituindo o adequado instrumento reativo contra o abuso de poder por detenção ou prisão ilegal, tendo como escopo a imediata reversão dessas situações, suposto que a ilegalidade da detenção ou da prisão se ofereça como manifesta, traduzindo ostensivo abuso de poder.

A lei processual penal distingue os procedimentos de habeas corpus por detenção ilegal e por prisão ilegal.

No que tange à prisão ilegal, o procedimento correspondente pauta-se pela livre disponibilidade (pode ser requerido pelo próprio cidadão privado da liberdade ou por qualquer outra pessoa no gozo dos seus direitos políticos), pela celeridade (é apresentado à própria autoridade à ordem da qual o preso se encontrar, que o remete de imediato ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sendo decidido pela competente Secção Criminal no prazo de oito dias) e pela simplicidade da tramitação (o seu objecto é restrito à previsão da alínea ou alíneas do n.º 2 do art. 222.º que quadrem ao caso, com exclusão de quaisquer outras questões de fundo ou de forma que extravasem aquele âmbito).

A jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça vem considerando uniformemente que o habeas corpus só poderá fundar-se nas circunstâncias taxativamente previstas na lei, sendo inadmissível a utilização desta providência para sindicar os motivos determinantes da prisão, questionando o mérito da decisão que a impôs, a sua pertinência de facto ou de direito, ou quaisquer outras razões que não as expressamente previstas, susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão ou a sua regularidade.

No que especificamente concerne à prisão ilegal, que constitui o alicerce da pretensão do requerente, podem constituir fundamento de habeas corpus:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

O requerente funda a sua pretensão em prisão ilegal estribando-se em três ordens de razões:

- Não foi notificado na morada onde residia;

- As notificações que lhe foram endereçadas não foram traduzidas para russo;

- Nunca recebeu nem compreendeu a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

Independentemente de a argumentação expendida pelo requerente poder consubstanciar a prática de nulidade(s) processualmente relevante(s), não é matéria que deva ser conhecida neste procedimento de natureza excepcional e urgente. Na verdade, o pedido de habeas corpus visa reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal, não se destinando à apreciação do mérito das decisões judiciais ou da sua validade ou regularidade, não cabendo no seu âmbito a verificação da observância das disposições legais de natureza processual nem a sindicância de quaisquer nulidades verificadas no decurso do processo. Para essas finalidades dispõem os interessados dos meios processualmente adequados, sejam os previstos para a arguição e sanação de nulidades, seja a via do recurso adequado ao caso.

De todo o modo, e para melhor esclarecimento, sempre se dirá que constituindo o Termo de Identidade e Residência uma medida de coação, como inequivocamente resulta da lei e da própria inserção sistemática da norma que o prevê, traduz sempre um acto pessoal, na acepção de que apenas poderá ser prestado pelo próprio arguido a ele sujeito, assim como apenas pelo arguido poderão ser alterados os elementos dele constantes, nomeadamente, a morada indicada. Sem embargo, dada a especificidade deste elemento, que não traduz elemento de identificação pessoal, apenas vinculando o arguido a um local onde poderá ser encontrado ou onde deverá ser notificado, a lei admite que uma eventual alteração da morada escolhida possa ser efectuada através de requerimento entregue na secretaria onde os autos se encontrem a correr termos ou para aí remetido por via postal registada, como se prevê no art. 196º, nº 3, al. c), parte final, do CPP. No entanto, ainda aqui o carácter pessoal dessa actuação se encontra salvaguardado, impondo a lei que se trate de acto do próprio arguido [(…) excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento] que, precisamente por força dessa natureza pessoal só poderá ser praticado por mandatário se este se encontrar munido de poderes especiais expressamente referidos a esse acto 1. De resto, é pacífico, pelo menos desde o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 6/2010, de 15/04/2010, que o condenado em pena de prisão suspensa continua afeto, até ao trânsito da revogação da pena substitutiva ou à sua extinção e, com ela, à cessação da eventualidade da sua reversão na pena de prisão substituída, às obrigações decorrentes da medida de coação de prestação de termo de identidade e residência (nomeadamente, a de “as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada”). Acresce, por fim, que resulta dos autos que originaram o presente procedimento de habeas corpus que o tribunal tentou até ao limite do possível o contacto pessoal com o condenado, o que se revelou impossível, ora por este não ser encontrado na morada que indicou no TIR, ora por ter sido indicada morada que não dispunha de receptáculo postal apropriado.

Em suma, a argumentação expendida pelo requerente não preenche qualquer dos fundamentos legais que poderiam sustentar a providência requerida, posto que não está em causa uma prisão ordenada por entidade incompetente, estando o requerente em cumprimento de pena na sequência da revogação da suspensão da execução da pena em que foi condenado; também não se trata de prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permita, uma vez que o crime de violência doméstica por que o requerente foi condenado admite essa pena; e não se trata, por fim, de prisão que tenha perdurado para além do prazo fixado na lei ou decorrente de decisão judicial. Consequentemente, o pedido de habeas corpus deverá ser indeferido por falta de fundamento bastante, de acordo com a previsão do art. 223.º, n.º 4, al. a), do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO:

Em conclusão, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a petição de habeas corpus por falta de fundamento legal.

Fixa-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UC (art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).

*

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de novembro de 2025

(Texto processado pelo relator com recurso a meios informáticos e revisto por todos os signatários)

Relator: Jorge Miranda Jacob

1º Adjunto: Pedro Donas Botto

2º Adjunto: Adelina Barradas de Oliveira

Presidente da Secção: Helena Moniz

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1. - Neste sentido, Cf. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Conimbricense do Código de Processo Penal, anot. ao art. 196º.