ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ABSOLVIÇÃO CRIMINAL
CONDENAÇÃO CIVIL
Sumário


No caso de a absolvição do arguido, quanto ao imputado crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, derivar unicamente da não comprovação do preenchimento da condição objetiva da punibilidade vertida no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT – ex vi do art. 107º, nº2, do mesmo diploma legal –, é viável a condenação daquele demandado no pedido de indemnização civil contra si formulado, em virtude da sua responsabilidade civil extracontratual ou por factos ilícitos, ao abrigo do disposto no art. 377º, nº1, do CPP.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:
           
I.1 – Decisão recorrida:

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 62/21.7T9VNF, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., por sentença proferida e depositada no dia 20.02.2025 (referências ...38 e ...90, respetivamente), foi decidido:

“Por tudo o exposto, decide-se:
a) Absolver os arguidos AA, BB, CC e EMP01...-Tratamento de Superfícies, Lda. da prática em coautoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punível, pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, 7.º, 107.º, n.º 1, por referência ao artigo 105.º n.º s 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, que lhes vinha imputada;
b) Absolver os demandados BB e CC do pedido de indemnização civil contra eles formulado pelo Centro Distrital de Braga do Instituto de Segurança Social, IP.;
c) Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Distrital de Braga do Instituto de Segurança Social, IP e, consequentemente, condenar solidariamente os demandados AA e EMP01..., Lda. no pagamento ao demandante da quantia de 22.606,31 € (vinte e dois mil seiscentos e seis euros e trinta e um cêntimos), acrescido dos juros de mora desde o dia 21 do mês seguinte àquele a que respeitam as cotizações  referidas em 14 dos factos provados e até efetivo e integral pagamento;
d) Não arbitrar custas criminais a cargo dos arguidos ou de outrem, porquanto inexiste assistente constituído nos autos;
e) Condenar os demandados AA e EMP01..., Lda., nas custas cíveis, atento o seu total decaimento.”
     
I.2 – Recurso:

Inconformado com a decisão na parte condenatória, dela veio o arguido/demandado AA interpor recurso, cuja motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...88):
           
“A) A decisão recorrida absolveu o Recorrente da prática do crime de abuso de confiança, mas condenou-o no pedido de indemnização cível deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P., com fundamento nos mesmos factos.
B) A decisão penal absolutória tem força vinculativa na jurisdição cível quanto à inexistência do facto ou à não intervenção do demandado na sua prática, o que inviabiliza a condenação cível do Recorrente.
C) A responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, exige a verificação cumulativa de um facto ilícito e culposo, um dano e um nexo de causalidade entre ambos, não podendo subsistir sem a demonstração da ilicitude.
D) A absolvição penal decorreu da inexistência de prova suficiente para demonstrar a prática do crime, o que implica a inexistência de um facto ilícito passível de gerar responsabilidade civil.
E) A condenação cível do Recorrente assenta nos mesmos factos analisados em sede penal, sem que o Tribunal tenha identificado qualquer fundamento autónomo para a responsabilidade civil, incorrendo em erro de julgamento.
F) A decisão recorrida violou o princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, ao permitir que uma prova insuficiente para condenação penal fundamentasse uma condenação cível.
G) Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando os fundamentos estão em contradição com a decisão, o que ocorre na decisão recorrida, ao reconhecer a insuficiência da prova penal e, simultaneamente, condenar o Recorrente civilmente.
H) A sentença recorrida deve ser revogada na parte em que condenou o Recorrente no pedido indemnizatório, com a consequente absolvição deste na instância cível.

NORMAS VIOLADAS:
Artigos 483.º do Código Civil, 624. º do Código de Processo Civil, e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que e nos mais do douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao presente recurso revogando-se a douta sentença recorrida na parte em que condenou o Recorrente no pedido indemnizatório; seja o Recorrente absolvido da obrigação de indemnizar a demandante.
É o que se pede e espera desse ALTO TRIBUNAL, assim se fazendo, JUSTIÇA!”

I.3 – Contra-alegações:

Na primeira instância, o demandante cível/recorrido, Instituto de Segurança Social, I.P., notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo demandado AA, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que sustentou a manutenção da sentença recorrida, com a improcedência do recurso (referência ...22).

I.4 - Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

II – Âmbito objetivo do recurso (thema decidendum):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, CPP)[1].
           
Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa decidir é a de saber se a sentença é nula (art. 651º, nº1, al. c), do CPC) por reconhecer a insuficiência da prova penal quando, simultaneamente, condena o recorrente civilmente, assim violando também o princípio in dubio pro reo.

III – Apreciação:       

III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelos recursos, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada [na parte que ora releva].
           
“a) Factos provados:
Da acusação pública e pedido de indemnização civil:
1. A sociedade EMP01..., LDA foi constituída em 12.02.2013, está matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... com o NIPC n.º ...18 e tem sede na rua ..., ..., concelho ....
2. A sociedade arguida tem por objeto social a pintura, revestimento e acabamento superficial de peças plásticas e metálicas.
3. E encontra-se inscrita na Segurança Social com o NISS ...81 desde ../../2013.
4. O arguido AA foi designado gerente da referida sociedade em ../../2016, e desde então e até à declaração da insolvência da sociedade, foi este quem representou legalmente a sociedade arguida e atuou em seu nome, interesse e praticou todos os atos necessários ao seu funcionamento.
5. BB e CC não foram designados ou formalmente registados como gerentes da sociedade arguida.
6. Assim, desde ../../2016 foi o arguido AA quem sempre decidiu os destinos da sociedade, designadamente, foi este quem, por si e em representação e no interesse da sociedade arguida, comprou matérias-primas, contratou com clientes e fornecedores, procedeu à contratação e despedimento de trabalhadores, bem como, decidiu da afetação dos recursos financeiros da sociedade e, nessa medida, procedeu aos pagamentos inerentes ao exercício da atividade comercial, recebendo pagamentos de clientes e efetuando o pagamento dos ordenados dos trabalhadores e órgãos estatutários.
7. Desde a referida data, foi ainda o arguido AA quem ficou responsável pela gestão dos pagamentos aos credores, nomeadamente, ao Estado e à Segurança Social, relativamente aos impostos apurados resultantes da referida atividade e dos impostos deduzidos nos rendimentos dos trabalhadores e órgãos estatutários e das quotizações deduzidas nessas remunerações e devidas à Segurança Social.
8. Foi ainda o arguido AA quem, desde ../../2016, atuando em representação e no interesse da sociedade arguida e no seu próprio interesse, procedeu ou mandou proceder aos descontos das quotizações devidas à Segurança Social nos salários pagos aos trabalhadores e órgãos estatutários da sociedade arguida, as quais deviam entregar à Segurança Social entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam.
9. No âmbito da sua atividade, a sociedade arguida empregou diversos trabalhadores, que prestaram serviço sob as suas ordens e direção, por intermédio do arguido AA, no estabelecimento localizado na sua sede e a quem eram pagas mensalmente as correspondentes remunerações, depois de descontada e retida a percentagem relativa às contribuições de tais trabalhadores para a Segurança Social.
10. O arguido AA está qualificado como membro dos órgãos estatutários da sociedade arguida, com registo de remunerações desde 10.2016 até 06.2019.
11. Os arguidos BB e CC não apresentam registo de remunerações na sociedade arguida.
12. Nos meses de novembro e dezembro de 2016 e a partir do mês de outubro de 2017, (inclusive), o arguido AA decidiu a efetuar os descontos das quotizações devidas à Segurança Social nas remunerações dos seus trabalhadores (à taxa de 11%) e membros dos órgãos estatutários (à taxa de 11%) e que, sempre que lhe fosse conveniente, não entregaria tais montantes à Segurança Social, integrando-os no património da sociedade arguida.
13. Desde, pelo menos, o mês de novembro de 2016 a maio de 2019 (inclusive), de forma reiterada, a sociedade arguida pagou os montantes referentes aos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, respeitantes a esses períodos de tempo e procedeu aos descontos das quotizações devidas à Segurança Social nessas mesmas remunerações que pagou.
14. Contudo, em concretização do desígnio acima referido, o arguido AA, deduziu e reteve das remunerações pagas pela sociedade arguida, a parte das contribuições devidas pelos trabalhadores e pelos membros de órgãos estatutários da referida sociedade, ambas à taxa de 11%, e não entregou ao Estado as referidas quotizações que previamente deduziu e reteve, no montante total de € 22.606,31, conformes quantias parciais a seguir discriminadas:
- mês de novembro de 2016: € 978,16;
- mês de dezembro de 2016: € 1.674,04;
- mês de outubro de 2017: € 1.815,87;
- mês de novembro de 2017: € 1.655,93;
- mês de dezembro de 2017: € 2.942,75;
- mês de janeiro de 2018: € 1.198,58;
- mês de fevereiro de 2018: € 1.318,82;
- mês de março de 2018: € 725,78;
- mês de abril de 2018: € 718,30;
- mês de maio de 2018: € 711,12;
- mês de junho de 2018: € 674,36;
- mês de julho de 2018: € 1.207,20;
- mês de agosto de 2018: € 555,16;
- mês de setembro de 2018: € 602,99;
- mês de outubro de 2018: € 654,50;
- mês de novembro de 2018: € 683,95;
- mês de dezembro de 2018: € 1.352,60;
- mês de janeiro de 2019: € 862,21;
- mês de fevereiro de 2019: € 656,01;
- mês de março de 2019: € 583,00;
- mês de abril de 2019: € 529,18;
- mês de maio de 2019: € 502,78.
15. A sociedade arguida, por intermédio do arguido AA não efetuou a entrega de tais valores à segurança social nem até ao 20.º dia posterior ao final do mês a que se referem, nem nos 90 dias posteriores, nem até ao momento de dedução da acusação.
16. Nas datas limites da entrega de cada uma das quantias a referida sociedade, por intermédio do arguido AA, fez das mesmas, coisa da sociedade.
17. Na sua atuação, o arguido AA agiu sempre, por conta, em nome e a favor dos interesses da sociedade arguida que geria e dos seus próprios interesses, no exercício das funções de gerente da empresa.
18. O arguido AA quis agir do modo descrito e apropriar-se, para a sociedade arguida, dos montantes supra descritos, retidos a título de contribuições devidas à segurança social, os quais sabia pertencerem à Segurança Social e dos quais sabia ser a sociedade apenas fiel depositária.
19. Sabia ainda que tais quantias deviam ser entregues àquela credora nos respetivos prazos legais.
20. Na sua atuação, o arguido AA agiu sempre, por conta, em nome e a favor dos interesses da sociedade arguida que geria e dos seus próprios interesses, no exercício das funções de gerentes da empresa.
21. A sociedade arguida veio a ser declarada insolvente.
22. O arguido foi renovando a decisão de não entrega por constatar, em cada um dos períodos, que nenhuma consequência advinha de tal não entrega e que assim ia minimizando os efeitos provocados pelas dificuldades financeiras que a empresa atravessava.
23. O arguido atuou sempre, livre, voluntária e conscientemente e embora soubesse que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiu de os concretizar.
Da contestação:
24. A EMP02..., LDA., sociedade de que os arguidos CC e BB são gerentes, é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à produção, comércio, importação e exportação de bens e serviços de conceção, projetos, modelos, protótipos, transformação e aperfeiçoamento de componentes destinados à indústria de moldes, à indústria de transformação de matérias plásticas e a todas as indústrias que produzam bens com componentes em plástico, bem como atividades de design e outras atividades de consultoria, cientificas, técnicas e similares.
25. Existiu uma relação comercial entre a EMP02... e a sociedade arguida, em que a EMP02... encomendava serviços de pintura de peças automóveis à sociedade EMP01... e esta executava a pintura, cobrando um determinado valor.
26. Esta relação comercial teve lugar entre março de 2016 e dezembro de 2017.
27. A sociedade arguida EMP01..., por decisão do seu gerente AA, em 3 de abril de 2018, requereu o Processo Especial de Revitalização junto do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... – Processo n.º 2253/18.9T8VNF.
28. Em 6 de abril de 2018 foi publicado o anúncio do PER requerido, tendo a EMP02..., em 26 de abril de 2018, reclamado o seu crédito nesses autos, no montante global de € 459.239,31 (sendo €449.003,63 a título de capital), tendo o mesmo sido reconhecido com um valor percentual de 32,839% na lista provisória de créditos, publicada em 2 de maio de 2018.
29. Em 9 de maio de 2018, a arguida EMP01... impugnou o crédito reclamado pela EMP02..., referindo que esta não seria sua credora, mas sim devedora dessa sociedade, no montante de € 196.905,33.
30. Por despacho datado de 17 de maio de 2018, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... decidiu pela improcedência da impugnação apresentada, pelo que o crédito da EMP02... foi incluído na lista definitiva de credores.
31. Em 3 de setembro de 2018, o Tribunal decidiu pela não homologação do PER apresentado, tendo sido publicada, em 05 de Setembro de 2018, a recusa da homologação do plano de revitalização apresentado pela EMP01..., por intermédio do seu gerente AA.
32. Em 30 de julho de 2018, a sociedade arguida, por intermédio do seu gerente AA, apresentou uma ação de condenação contra a EMP02..., a requerer o pagamento de €244.869,80, ação essa que correu no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Processo n.º 4191/18.6T8BRG, Juízo Central Cível de Braga - Juiz ....
33. Tendo a EMP02... apresentado contestação com reconvenção.
34. Mercê do parecer emitido pela Administradora Judicial Provisória, a EMP01... foi declarada insolvente em 29 de outubro de 2018 e, consequentemente, foi publicado anúncio a fixar prazo de reclamação de créditos.
35. Em 27 de novembro de 2018, a EMP02... reclamou o seu crédito nesses autos, no montante global de € 480.012,84.
36. A administradora de insolvência, desta feita, reconheceu o crédito da reclamante como comum sob condição, por o considerar litigioso, tendo a EMP02... impugnado essa mesma lista.
37. Em 02 de julho de 2020, a administradora de insolvência e a EMP02... transacionaram no âmbito da impugnação da reclamação de créditos, tendo sido reconhecido a totalidade do crédito reclamado e a massa insolvente reduziu o pedido da ação sob o Processo n.º 4191/18.6T8BRG de €244.869,80, para 40.000,00€.
38. Em momento algum foi trazido à insolvência que os arguidos BB e CC fossem gerentes de facto da sociedade arguida.
39. A EMP02... tinha pessoas nas instalações da sociedade arguida a controlar a produção e o resultado final dos serviços que lhe contratava, designadamente o Eng. DD, para evitar ao máximo a existência de devolução de peças pelos clientes finais.
40. A produção da sociedade arguida era gerida por esta, através do Sr. EE, antigo sócio e gerente da EMP01....
[…]

b) Factos não provados

i) BB e CC desde ../../2016 até à presente data exerceram, de facto, e em conjunto com o arguido AA, todas as funções de gestão e de administração da sociedade arguida, designadamente praticando os atos referidos em 6, 7, 8, 12, 14 dos factos provados.
ii) Os arguidos AA, BB e FF afetaram os valores das cotizações por eles retidas e não entregues à Segurança Social ao pagamento de outras dívidas ou integraram essas quantias no seu património.
iii) Nas datas limites da entrega de cada uma das quantias referidas em 14 a referida sociedade, por intermédio dos arguidos AA, BB e CC, gastou-as na satisfação de compromissos comerciais.
iv) Os arguidos AA, BB e FF fizeram as quantias referidas em 14 coisas suas.
v) Os arguidos agiram em comunhão de esforços, vontades e fins, tendo a atuação parcial de cada um sido determinante para a obtenção do resultado que almejavam e efetivamente concretizaram.”

III.2(I)legalidade da condenação do recorrente na parte cível face à absolvição quanto à matéria penal:

Preceitua o art. 71º do CPP, consagrando o princípio da adesão: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”
A estreita conexão exigida pelo normativo legal para determinar a possibilidade, rectius, obrigatoriedade de dedução e conhecimento do pedido de indemnização civil no processo penal é sublinhada nas seguintes considerações de Luís Lemos Triunfante [in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, António Gama e outros, Tomo I, 2ª Edição, Almedina, 2022, anot. IV, §10 ao art. 71º, pág. 869]: «Os fundamentos da ação que, aderindo ao processo penal, ficam interdependentes, sendo qualitativamente diversos, têm, no entanto, que revelar uma unidade material que constitui a base relevante para a verificação, positiva ou negativa, dos respetivos pressupostos. A reparação fundada na prática de um crime reverte, na base, às correlações factuais e ao complexo de factos que constituem, ou são processualmente identificados como constituindo um crime: tipicidade dos factos, ilicitude, imputação ao agente, dignidade penal.»    
 
O Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2013, de 15/11.2012, publicado no DR. I Série, nº4, de 07.01.2013, p. 44, fixou a seguinte jurisprudência (cujo argumentário se mantém válido face ao enquadramento jurídico entretanto vigente e merece a nossa concordância):
«Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o artº 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.»

Como ali se menciona, «[P]elos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil.
No pedido civil deduzido em processo penal, atinente à prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social [artigo 107.º, do RGIT], a fonte da obrigação é a responsabilidade civil decorrente da prática de um crime e não a lei que define a obrigação de entregar certas quantias à Segurança Social.
A qualificação como crime do acto do agente confere uma substancial especificidade à causa de pedir do enxerto cível: o facto jurídico concreto que a enforma não se identifica com o mero incumprimento de uma obrigação fiscal, mas com o incumprimento portador dos elementos objectivo-subjectivos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.»
O objecto do pedido de indemnização civil, neste caso, não é a obrigação de pagamento das contribuições e acréscimos legais a favor da Segurança Social, que emerge de relação jurídica administrativa-tributária especial e rege-se pela legislação de direito público, antes a indemnização pelo valor do dano, que corresponde, direta e causalmente, ao montante em dívida pelo incumprimento dessas prestações. Dito de outra forma: não é a natureza das dívidas ou dos valores pecuniários em dívida, que define o princípio da adesão ao processo penal, mas sim o dano, mais especificamente o concreto dano emergente de crime.
Como também se observa no mencionado aresto de uniformização de jurisprudência:
«O artigo 129º do Código Penal ao referir que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil» significa de forma clara que permite a indemnização por perdas e danos, quando esta indemnização seja emergente de crime, sendo essa indemnização regulada pela lei civil.
Não é a natureza da prestação que constitui o dano.
O dano tem origem no prejuízo, in casu, causado pelo incumprimento da prestação em falta, e identificado no seu valor ou montante, e que por esse incumprimento constitui crime.»
É inequívoco que a privação das contribuições, cuja entrega foi omitida, representa sempre um prejuízo, por diminuição de receita, para a Segurança Social.

Posto isto, cumpre ainda chamar à colação o disposto no art. 377º, nº1, do CPP: “A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no nº3 do artigo 82.”[2] 
A este propósito, o Assento nº 7/99 do Supremo Tribunal de Justiça [publicado no DR, Série I-A, de 03.08.1999] fixou a seguinte jurisprudência: «Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.»
Assim, no caso de absolvição do crime, o Tribunal só pode condenar o arguido/demandado em indemnização civil, nos termos do art. 377º, nº1 do CPP, se o pedido for formulado com base nos factos da acusação e se se verificar uma alegada responsabilidade civil extracontratual (por factos ilícitos), já não uma responsabilidade contratual ou estribada na violação de um qualquer direito subjetivo.
Como sapientemente menciona o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes [in “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª Edição Revista, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2021, anot. 1 ao art. 377º, pág. 1153]:
«(…) apreciado o mérito, se o arguido for absolvido do crime objeto do processo, por falta de prova ou, obviamente, por se ter provado que se comportou de acordo com o Direito, o tribunal não o pode condenar em indemnização civil fundada em responsabilidade contratual.
Se na sentença se não chegou a apreciar o mérito, ou seja, o objeto do processo, por ocorrência de questão prévia que obste ao seu conhecimento, já que averiguar se essa questão também obsta ao conhecimento do pedido de indemnização deduzido. Caso afirmativo é evidente que o pedido de indemnização civil não pode ser conhecido. Caso contrário deve o tribunal proferir decisão sobre o mérito do pedido de indemnização civil deduzido.»        
Deve-se atender ainda ao sumariado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.03.2020, proferido no Processo nº 269/17.1T9LMG.C1, acessível em www.dgsi.pt:
«I. Sob pena de abrir caminho à violação do efeito do caso julgado da sentença penal, formado no processo penal, não pode a (re)apreciação do pedido cível pôr em causa ou comprometer o resultado da ação penal, no qual foi enxertado, designadamente quando põe em causa a matriz do processo penal, os elementos do crime definitivamente julgado. II. Tendo sido decidido, com caráter definitivo inatacável, no processo, que não se verificou a existência do facto ilícito fundamento da responsabilidade criminal, a questão tem de ser tomada como definitivamente julgada, no processo, para efeitos penais e de responsabilidade civil, que te aquela como pressuposto. Sem que esteja em causa a responsabilidade civil pelo mesmo facto, mas com base num eventual grau de culpa menor ou no risco, apenas relevantes para efeitos cíveis.»
No caso sub judice, a absolvição do arguido AA quanto ao imputado crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1 (por referência ao artigo 105.º, n.º 1), 6.º, n.º 1, 7.º, n.ºs 1 e 3, todos do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/01, de 05.06 e 30.º, n.º 2, do Código Penal, derivou de não se ter provado «que o arguido tivesse sido notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento das prestações comunicadas à segurança social, acrescidas dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, nos termos previstos na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT», circunstância que – como também ali corretamente se entendeu – consubstancia uma condição objetiva de punibilidade.
A condição objectiva de punibilidade é um elemento da norma situado fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja existência constitui um pressuposto para que a ação antijurídica tenha consequências penais.

Assim se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.2018, Processo nº 210/10.2IDVRA.P1, acessível em www.dgsi.pt: «Na jurisprudência hodierna, predomina o entendimento de que as condições de punibilidade, sendo elementos estranhos à tipicidade, ilicitude ou à culpa, não integram nem contendem com a dignidade penal do facto, mas apenas com a necessidade da punição, constando da previsão do direito material. Assim as condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais (Cfr., Acs. do STJ de7/2, 21/2 e 10/10/2007, Procs. n.ºs 4086/06, 4097/05 e 7P2077, in dgsi.pt)”»

Na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2015, de 19.02, publicado no DR, Série I, de 19.02.2015, pp. 967-982, já se vertia tal raciocínio: «(…) o entendimento da doutrina nacional e estrangeira orienta-se maioritariamente (…) no sentido de que as condições objectivas de punibilidade, ainda que relacionadas com o tipo, situam-se fora do tipo, de ilícito e da culpa, e mais não são que pressupostos ou condições para que a acção antijurídica importe consequências penais.»

Quanto ao mais, como vazado na motivação da decisão recorrida, a matéria de facto dada como provada era suficiente para preencher os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime em questão, bem como a respectiva consciência da ilicitude manifestada pelo agente no seu cometimento.

Menciona-se, então, na douta sentença recorrida:
“Os arguidos vêm acusados pela prática, em autoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
Dispõe o art.º 107.º do RGIT:
“1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º”

Por sua vez, preceitua o art.º 105.º, n.º 1, do RGIT:
“Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Deste modo, para que se mostrem preenchidos os elementos típicos do crime de abuso de confiança à segurança social, torna-se necessário que o agente não entregue às instituições de segurança social as remunerações que tenham sido deduzidas aos seus trabalhadores.
Porém, como se refere no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2010, de 23/09, “a exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do RGIT (…) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social”.
Deste modo, ao invés do que sucede com o crime de abuso de confiança fiscal, não é necessário que o montante apropriado seja igual ou superior a € 7.500,00. Tal importante diferença relaciona-se com o facto de estarem em causa prestações contributivas, que assumem importância vital para o regular funcionamento do Estado Social.
O crime em apreço é um crime de resultado, praticado por omissão, visando proteger o regular funcionamento do sistema contributivo, tendo em vista os objetivos constitucionalmente consagrados de justiça distributiva e de satisfação das necessidades financeiras da Segurança Social.
Diversamente do crime de abuso de confiança, previsto no art.º 205.º do Cód. Penal, o crime em análise consuma-se com a mera “não entrega” do montante devido, não sendo necessária a existência da sua efetiva apropriação. Assim, a falta de entrega não tem de ser reconduzida ao gasto ou consumo em proveito próprio ou alheio, podendo traduzir-se na mera fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações retidas que estava obrigado a entregar.
Tal apropriação existe mesmo que a quantia não exista real e materialmente nos cofres da empresa. Na verdade, a apropriação tem a sua origem no facto das quantias geradas pela atividade empresarial serem encaminhadas para a satisfação de outras necessidades da sociedade, o que configura, ainda aqui, o elemento típico apropriação (vide, neste mesmo sentido, os Acórdãos da Relação do Porto de 05/04/2001, proc. n.º 0110842, de 03/10/2001, proc. n.º 0140535 e de 29/5/2002, proc. n.º 0210414, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Efetivamente, como apropriação deve entender-se a mera circunstância de ser dado outro destino, seja ele egoísta ou altruísta, aos valores descontados nos salários devidos, na medida em que “não compete aos arguidos decidirem do destino de um dinheiro que já não lhes pertence, e de que assim se apropriam, pois que inverteram o título da posse” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.03.2003, Proc. nº 0111289, www.dgsi.pt).
Por seu turno, o n.º 4 do art.º 105.º estabelece que: “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
Trata-se de verdadeiras condições objetivas de punibilidade. Para que o crime seja punível é, por conseguinte, necessário que decorra um prazo de 90 dias após o prazo legal, sem que o agente proceda ao pagamento do montante devido. Após esse prazo, é ainda exigido que a Segurança Social notifique o arguido para, em trinta dias, pagar o valor em dívida, acrescido dos respetivos juros e coima aplicável.
Exige a lei, expressamente, uma atuação voluntária (art.º 6.º do RGIT), pelo que a mera posição de direito de gerente de uma sociedade não basta para desencadear responsabilização penal pelas dívidas tributárias, sendo necessária a prova do exercício de facto da gerência da sociedade.
No que concerne ao elemento subjetivo, a prática do crime exige uma conduta dolosa, que pode verificar-se em qualquer das suas formas, nos termos do art.º 14.º do Cód. Penal.
(…)
Com efeito, resulta demonstrado que o arguido AA, na qualidade de gerente da sociedade arguida, omitiu a entrega nos cofres da SS das cotizações efetivamente retidas nas retribuições dos trabalhadores dependentes da sociedade arguida nos períodos referidos em 14.
Mais resultou provado que o mesmo arguido não procedeu ao pagamento respetivo, nem no prazo legal de que dispunha para o efeito – até ao dia 20 do mês seguinte a que respeitavam as cotizações- nem nos 90 dias subsequentes, ou posteriormente.
Mais resulta demonstrado que assim atuou dolosamente e com consciência da ilicitude da respetiva conduta.
Porém, como se retira da factualidade assente, não resultou provado que o arguido tivesse sido notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento das prestações comunicadas à segurança social, acrescidas dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, nos termos previstos na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
Já concluímos que o teor das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT contém condições objetivas de punibilidade, na medida em que o facto penalmente ilícito (o não pagamento do tributo) se encontra previsto no n.º 1 do citado preceito legal, funcionado a restante factualidade como pressupostos de natureza burocrática ou até resultantes de simples decurso do tempo, de cuja verificação depende a plena atuação da censura legal.
No caso, a efetivação da notificação a que alude a alínea b) do n.º 4 do citado dispositivo não ficou demonstrado, desde logo porquanto não constava da acusação deduzida nos autos, nem tão pouco do despacho de pronúncia que, por ter ordenado a remessa dos autos para julgamento, formou caso julgado, impediu que este Tribunal rejeitasse aquela acusação, face à sua manifesta improcedência.
Daí que, não constando da acusação para a qual remeteu o despacho de pronúncia tal factualidade, também não pode a mesma constar da presente decisão, designadamente por recurso ao mecanismo legal de alteração de factos, porquanto entendemos estar processualmente impedidos de a ele recorrer.
Os elementos de punibilidade fazem parte dos pressupostos da punição e, sejam condições ou causas, têm de constar da matéria de facto alegada na acusação, uma vez que, embora não integrem o tipo de ilícito ou do tipo de culpa, fazem seguramente parte do tipo de garantia, que abrange, para além do tipo em sentido restrito, ou tipo objetivo, a ilicitude, a culpa e as condições de punibilidade – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, Vol. II, AAFDL, pág. 98 e 329.
(…)
Por conseguinte, a apontada omissão insuprível, conduz à necessária conclusão de que não estão preenchidos todos os pressupostos da punição, pelo que o arguido deve ser absolvido.”

Como vimos, não obstante ter deliberado a absolvição do arguido AA na parte criminal, o Tribunal recorrido decidiu «Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Distrital de Braga do Instituto de Segurança Social, IP e, consequentemente, condenar solidariamente os demandados AA e EMP01..., Lda. no pagamento ao demandante da quantia de 22.606,31 € (vinte e dois mil seiscentos e seis euros e trinta e um cêntimos), acrescido dos juros de mora desde o dia 21 do mês seguinte àquele a que respeitam as cotizações  referidas em 14 dos factos provados e até efetivo e integral pagamento».
 Tal decisão não merece censura, uma vez que a factualidade apurada permitiu comprovar a causa de pedir do pedido de indemnização civil em apreço, designadamente a verificação dos pressupostos legais da invocada responsabilidade civil extracontratual dos demandados.

Preceitua o art. 129º do Código Penal que “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”
A responsabilidade civil extracontratual ou por factos ilícitos vem prevista nos arts. 483º e seguintes do Código Civil (aplicáveis por força do disposto no art. 129º do CP), que fixa no nº1 do art. 483º o princípio geral nesta matéria: "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesse alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Retira-se, pois, da análise destes preceitos que o dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos depende de vários pressupostos. São eles: a existência de um facto voluntário do agente; a ilicitude desse facto; a verificação de um nexo de imputação do facto ao lesante (culpa em sentido amplo); que da violação do direito subjetivo ou da lei resulte um dano; e, por último, que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pelo lesado, de modo a poder concluir-se que este resulta daquele.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.07.2021, proferido no Processo nº 902/18.8JABRG.G1, acessível in www.dgsi.pt, «a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil extracontratual pressupõe a existência de um facto voluntário ilícito, isto é, um facto controlável ou dominável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal ou um direito ou interesse de outrem legalmente protegido, censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico, ou seja, imputável a título de dolo ou culpa (nexo de imputação do facto ao agente), de um dano ou prejuízo reparável e de um nexo de causalidade adequada entre esse dano e aquele facto (arts. 483º, n.º 1, 487º, n.º 2, 562º, 563º e 564º, n.º 1, todos do Código Civil). Para que haja responsabilidade civil é indispensável que o facto praticado pelo agente ocasione um dano a terceiro. O dano é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica. A obrigação de reparar um dano pressupõe ainda a existência de um nexo causal entre o facto e o dano (art. 563º do CC); não basta que o evento tenha produzido (naturalisticamente) certo efeito, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, adequada à produção desse efeito, desempenhando este a função de pressuposto da responsabilidade civil e de medida da obrigação de indemnizar.»
No âmbito da responsabilidade civil em apreço tanto são atendíveis os danos suscetíveis de avaliação pecuniária – danos patrimoniais – como os que, não o sendo, mereçam pela sua gravidade a tutela do direito – não patrimoniais ou morais (cfr. art. 496º, nº1 do C.C.).
Como decorre do preceituado no art. 564º do Código Civil, os danos podem assumir, quanto à sua estrutura, a vertente de danos emergentes (perda efetiva) e lucros cessantes (frustração de uma vantagem). 
O Tribunal a quo fundamentou a decisão quanto à parte cível nos seguintes termos [na parte aqui pertinente]:
“O CDSS deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, nele solidariamente demandados, reclamando deles o pagamento das cotizações em falta e respetivos juros moratórios.
O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, e na respetiva sequência os factos que ficarem provados, têm de se referir a um facto ilícito, definido nos termos em que a lei civil o prevê como fonte de responsabilidade civil extracontratual: a violação ilícita do direito de outrem, nos termos do artigo 483.º e seguintes do Código Civil, com a consequente obrigação de indemnização do lesado pelos danos resultantes da violação, nos termos do artigo 562.º e seguintes do mesmo Código.
O Código de Processo Penal consagra o princípio de adesão obrigatória, estabelecendo que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal (artigo 71.º), só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos no artigo 72.º.
Sobre a responsabilidade civil emergente de crime, dispõe o artigo 129.º do Código Penal, que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Assim, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime deixou de ser um mero efeito penal da condenação, para passar a ser regulada pela lei civil.
A indemnização tem natureza estritamente civil, devendo ser atribuída e calculada com base em critérios puramente civis.
Releva, pois, considerar o princípio geral da responsabilidade por actos ilícitos, contido no artigo 483.º do Código Civil, segundo o qual «Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Nos termos do artigo 377.º do CPP, «A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado».
O que significa que, mesmo nos casos de absolvição pelo crime, o tribunal não fica dispensado de conhecer do pedido de indemnização civil e condenar o arguido “sempre que o respectivo pedido vier a revelar-se fundado”.
Na matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão n.º 7/99, de 17 de junho (publicado no Diário da República, I Série – A, de 3 de Agosto de 1999), fixou a seguinte jurisprudência:
«Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.»
A norma, na interpretação fixada, implica, por conseguinte, que, mesmo nos casos de absolvição pelo crime, o tribunal deva conhecer do pedido de indemnização civil e condenar o arguido sempre e desde que se comprove a respetiva responsabilidade extracontratual por factos ilícitos (ou pelo risco).
No caso, movemo-nos na responsabilidade civil extracontratual onde a regra é a de que a obrigação de indemnização pressupõe a existência de um facto voluntário do agente, a ilicitude desse facto, a verificação de um nexo de imputação do facto ao agente (dolo ou negligência), que da violação do direito subjetivo ou da lei derive um dano e, finalmente, que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido, de modo a poder concluir-se que este resulta daquele.
(…)
Já quanto ao demandado AA e à sociedade demandada, em nome e no interesse de quem o mesmo agiu, verificam-se todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos.
Aquele demandado apropriou-se, em favor da sociedade arguida, do valor das cotizações, que integrou no património daquela, assim lesando o património do ISS IP, no valor respetivo, dano esse causado, direta e necessariamente, pelo facto criminoso.
Cabe, pois a estes demandados o dever de indemnizar o Centro Distrital no valor peticionado, acrescida dos respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, desde o dia 21 do mês seguinte àquele a que as cotizações respeitam até integral pagamento e até efetivo e integral pagamento.”

Em conformidade, constata-se que o demandado AA, enquanto representante legal e de facto da sociedade arguida “EMP01..., Lda.”, ao incumprir, em nome e no interesse desta, as suas obrigações tributárias legais, cometeu um facto ilícito, típico e culposo, na medida em que os seus atos descritos na factualidade provada, perpetrados de modo doloso e consciente, integram a tipicidade objetiva e subjetiva do ilícito criminal de abuso de confiança contra a Segurança Social.
A circunstância de tal facto não ser penalmente punível, por não se mostrar observada uma condição objetiva de punibilidade, não retira à conduta a ilicitude, que incontestavelmente tem.     
Além disso, é inequívoca a verificação de um dano patrimonial causado ao lesado Instituto de Segurança Social, I.P., consistente nos montantes das cotizações cobradas/retidas pela sociedade arguida aos trabalhadores/colaboradores em questão e indevidamente não entregues à demandante, sua legítima titular, outrossim que esse prejuízo foi causado, adequada e causalmente, pelo ajuizado comportamento do demandado AA.

Acresce que, salvo o devido respeito, não se vislumbra cabimento nas alegações recursórias de que a decisão recorrida violou o princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, ao permitir que uma prova insuficiente para condenação penal fundamentasse uma condenação cível, sendo assim nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, por os fundamentos estarem em contradição com a decisão. 
A Constituição da República Portuguesa, no seu art. 32º, nº1, estabelece que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa”. Nestas garantias inclui-se e emerge de modo assaz relevante o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º, nº2 do Texto Fundamental, nos seguintes moldes: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
No presente caso, a decisão da matéria de facto operada pelo tribunal recorrido não encerra qualquer violação da presunção de inocência do arguido AA. Ao invés, é suportada em prova produzida nos autos, suficiente e idónea para o efeito, que foi valorada pelo tribunal em conformidade com os ditames legais, nomeadamente o principio da livre apreciação da prova consignado no art. 127º do CPP.
Não é uma decisão arbitrária, meramente discricionária, persecutória, eivada de pré-juízos contrários à posição do arguido/demandado.
Por seu turno, o princípio in dubio pro reo é complementar do princípio da presunção da inocência e o seu campo de aplicação encontra-se após a conclusão da tarefa judicial da valoração da prova produzida e quando o resultado desta não é conclusivo; neste caso, por via desta regra atinente à decisão, a dúvida insanável, inultrapassável sobre os factos deve favorecer o arguido. 
Este princípio encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º, em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2008, processo 08P3456, do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.01.2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, de 03.06.2015, processo 12/14.7GBSTR.C1, e de 12.09.2018, processo 28/16.9PTCTB.C1, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.07.2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso sob apreciação, o que sustentou a absolvição do arguido AA não foi qualquer dúvida sobre a existência ou suficiência da prova relativa à culpabilidade daquele, a qual mereceu um insofismável juízo valorativo afirmativo, foi antes a inexistência de alegação na acusação – não suprível em fase de julgamento – da factualidade suscetível de integrar a imprescindível condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº4 do art. 105º do RGIT.

Portanto, conclui-se pela inexistência de violação do princípio in dubio pro reo e, nos termos e para efeitos do disposto no art. 410º, nº2, al. b), do CPP – que, pela sua especialidade, é a norma aplicável (e não o normativo do art. 615º, nº, 1, al. c) do CPC) – de contradição entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
           
Pelo exposto, soçobra, nesta parte e in totum, o recurso.

IV - Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso deduzido pelo demandado AA e, em conformidade, manter a sentença recorrida.

Custas pelo demandado recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (cf. arts. 513º, nº1 e 514º, nº1, ambos do Código de Processo Penal, art. 8º, nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo), sem prejuízo do apoio judiciário na respetiva modalidade de que eventualmente beneficie.
           

*
Notifique (art. 425º, nº 6, do CPP).
*
Guimarães, 30 de setembro de 2025,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]
António Teixeira (1º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Fátima Furtado (2ª Adjunta)
[assinatura eletrónica]

(Acórdão processado e revisto pelo relator, com recurso a meios informáticos, encontrando-se assinado eletronicamente pelos Desembargadores signatários – cfr. art. 94º, nºs 2 e 3, do CPP)



[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade.
[2] Dispõe o art. 82º, nº3, do CPP: “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.”