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QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO LEGAL
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário
I - Com o controlo efetuado pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal de 1ª instância não se visa o julgamento ex novo dessa matéria, mas antes reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame. II - Da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (artigo 607º, nº 4 do Código de Processo Civil), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respetivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo. III - Assumindo o recurso de apelação natureza de recurso de reponderação, - ressalvando as questões de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos - não pode o tribunal ad quem conhecer questões, seja de facto, seja de direito, que não tenham sido submetidas à apreciação do tribunal a quo. IV - O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor. V - As situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas configuram verdadeiras presunções juris et de jure de insolvência culposa, pelo que demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de prova do nexo causal entre a inobservância dos comportamentos aí tipicamente descritos e a criação ou agravamento da insolvência.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO
Nos autos principais de insolvência de que os presentes constituem apenso foi proferida sentença que declarou o estado de insolvência da sociedade EMP01..., Ld.ª, tendo posteriormente sido declarado aberto o respetivo incidente de qualificação de insolvência.
O Sr. Administrador de Insolvência emitiu e juntou aos autos o seu parecer nos termos do artigo 188º do CIRE, pronunciando-se pela qualificação da insolvência como culposa.
Ouvido[,] o Ministério Público pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, nos termos do artigo 186º, nºs 1 e 2, alíneas d) e i) do referido Código, tendo promovido que seja afetada pela qualificação AA.
Tendo sido ordenada a notificação da insolvente e citada a afetada para se oporem, querendo, nos termos do artigo 188º CIRE, apenas esta última apresentou oposição.
Foi elaborado despacho saneador, onde foram definidos os temas de prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância de todos os formalismos legais, tendo sido proferida sentença, que qualificou como culposa a insolvência deEMP01..., Ld.ª, tendo declarado afetada pela mesma AA.
Do aludido ato decisório foi interposto recurso, tendo este Tribunal da Relação anulado a decisão então proferida e determinado, ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 2 al. d) do Cód. Processo Civil, a remessa dos autos à 1ª instância a fim de o tribunal recorrido proceder à fundamentação da decisão de facto, maxime no que respeita à materialidade vertida nos pontos nºs 10 e 11 dos factos considerados provados e na alínea a) dos factos dados como não provados.
Remetido o processo ao Tribunal de 1ª instância foi proferida sentença cujo dispositivo assumiu o seguinte teor: “(…)
a) Qualificar como culposa a insolvência de EMP01..., Lda, declarando afetado pela mesma, AA. b) Fixar em 5 (cinco) anos o período da inibição de AA para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condená-la na restituição de eventuais bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; d) Condenar, ainda, a requerida AA a pagar aos credores o montante de € 35.000,00 de indemnização aos credores dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo Administrador da Insolvência nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
Irresignada com esta decisão, a requerida afetada dela veio interpor recurso, rematando a sua peça recursiva formulando as seguintes CONCLUSÕES: I -Vem o presente Recurso de Apelação interposto da douta Sentença de fls., que qualificou como culposa a insolvência da devedora EMP01... Lda., e, em consequência, declarou afetada pela qualificação culposa da insolvência a Requerida AA, mais decretou a inibição da mencionada Requerida para o exercício do comércio, ocupação de qualquer cargo de titulares de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de cinco anos, mais determinando a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela Requerida e condená-la na restituição de eventuais bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos e, por fim, condenou a Requerida a pagar o montante de € 35.000,00 de indemnização aos credores da Insolvente reconhecidos na lista apresentada pelo Administrador de Insolvência nos termos do art. 129º do CIRE. II- Em síntese, cumpria nos presentes autos aferir da verificação dos pressupostos da qualificação culposa da insolvência da sociedade EMP01... Lda., e, em caso afirmativo, verificar se a Requerida AA deve ou não ser afetada pela qualificação, determinando-se ainda o respetivo grau de culpa. III- Em 31.05.2023, com a referência Citius 185021677, o Tribunal a quo proferiu Sentença, que qualificou como culposa a insolvência da devedora EMP01... Lda., e, em consequência, declarou afetada pela qualificação culposa da insolvência a Requerida AA e com as demais e exatas consequências da sentença em crise. IV- Por não se conformar com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a aqui Recorrente interpôs recurso, em 19/06/2023, com a referência Citius 14734970, o qual foi admitido por Despacho proferido em 21/09/2023, com a referência Citius 186422894. V- E, em 06.11.2023, foi proferida decisão sumária por este Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos da qual foi anulada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, mais se determinando a remessa dos autos àquele tribunal. VI- Em consequência, foram os presentes autos remetidos ao Tribunal a quo, o qual proferiu a Sentença datada de 29.12.2023 e com a referência Citius 187906437, sendo que, uma vez mais, o Tribunal a quo considerou que, nos presentes autos, mostram-se preenchidas as condutas típicas previstas nas alíneas d) e i) do n.º 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas, concluindo pela existência de culpa mediana da Requerida AA, aqui Recorrente. VII- Porém, por não se conformar com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a aqui Recorrente interpôs recurso, em 16.01.2024, com a referência Citius 15600820, o qual foi admitido por Despacho proferido em 08.03.2024, com a referência Citius 189526684. VIII- Em 22.04.2024, foi novamente proferida decisão sumária por este Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, e, em consequência, os autos foram (mais uma vez) remetidos ao Tribunal a quo, a fim de se proceder à elaboração de uma nova decisão em estrita observância do determinado na decisão sumária, proferida em 06.11.2023, e do disposto no artigo 607º do Código de Processo Civil. IX- Com efeito, em 15.07.2024, o Tribunal a quo proferiu a Sentença objeto do presente recurso, com a referência Citius 191753085, na qual o Tribunal a quo considerou que, nos presentes autos, mostram-se preenchidas as condutas típicas previstas nas alíneas d) e i) do nº 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas, concluindo pela existência de culpa mediana da Requerida AA, aqui Recorrente. X- A Sentença em crise viola o disposto nº 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, pois, não obstante os esforços do Tribunal a quo em identificar os meios probatórios em que alicerçou a sua decisão, entende a Recorrente que o Tribunal a quo não cumpriu o dever de fundamentação, na medida em que não efetuou qualquer valoração da consistência probatória, e, em consequência, não observou o determinado por este Venerando Tribunal da Relação, em ambas Decisões Sumárias proferidas nos presentes autos, verificando-se, assim, a nulidade da Sentença em crise, o que expressamente se invoca, para todos os devidos e legais efeitos. XI-Quanto ao acervo factual dado como provado na sentença proferida pelo Tribunal a quo, o mesmo não integra todos os factos que deveriam ter sido dados como provados e, ao contrário, integra outros que deveriam ter sido dados como não provados, pelo que concretamente se impugna a sentença objeto do presente recurso. XII- Compulsado o acervo factual dado como provado pelo Tribunal a quo, verifica a aqui Recorrente que resultou provado o facto que ora se impugna, especificadamente o constante no ponto 10, porquanto, no entender da Recorrente, tal factualidade encontra-se em contradição com a prova produzida nos autos. XIII- A Insolvente EMP01... Lda. celebrou dois contratos de arrendamento com a sociedade EMP02..., Lda., conforme resulta do ponto 9 do acervo de factos provados: foi celebrado a ../../2021 um contrato de arrendamento cujo objeto eram as instalações fabris onde laborava a Insolvente, cujo valor da renda mensal ascendia a € 7.000,00, e foi ainda celebrado um outro contrato em 01.01.2021 que teve por objeto o parque de estacionamento, cuja renda mensal ascendia a €1.000,00, XIV- O pagamento das rendas foi efetivamente efetuado sob a forma de adiantamento em meados do ano de 2020 – o que resulta amplamente demonstrado pela prova documental junta aos presentes autos, nomeadamente no documento n.º 11 junto pelo Sr. Administrador de Insolvência com o Parecer de qualificação. XV- Destarte, andou mal o Tribunal a quo ao não valorar devidamente a prova documental supra identificada, a qual demonstra inequivocamente que o pagamento das rendas foi efetuado sob a forma de adiantamento em meados de 2020, pelo que não podia ter sido dado como provado pelo Tribunal a quo adiantamentos no ano 2000. XVI- Acresce ainda que, compulsada a sentença ora em crise, verifica a aqui Recorrente que o Tribunal a quo considerou provado o seguinte facto vertido no ponto 11: “A requerida transferiu para si e para as suas filhas BB e CC os saldos contabilísticos devedores à insolvente no montante global de € 224.709,27.” XVII- In casu, o Tribunal acolheu singelamente a tese do Sr. Administrador de Insolvência, nos termos da qual, apontando a contabilidade da insolvente que a sua sócia e gerente e, ainda, as suas filhas tinham para com a empresa uma dívida e dinheiro na sua posse, haviam embolsado os correspondentes valores, num total de € 224.709,27. XVIII-Acontece, porém, que a prova produzida nos presentes autos demonstrou a natureza absolutamente formal e abstrata desta construção, sendo que, por não corresponder à verdade, tal facto não poderia ter sido dado como provado nos termos supra descritos, partindo desde logo da única prova produzida nos autos neste sentido, o depoimento prestado pela testemunha Dr. DD. XIX- Por outro lado, cumpre ainda considerar o depoimento prestado pelo Sr. Administrador de Insolvência, o qual demonstrou que as conclusões vertidas no seu Parecer se alicerçam apenas em elementos de natureza puramente formal. XX- Destarte, andou mal o Tribunal a quo ao não valorar o depoimento prestado pela testemunha Dr. DD, em estrita observância do princípio da oralidade e da imediação, o qual impunham, indubitavelmente, diferente entendimento ao pugnado na Sentença em crise. XXI- Destarte, por não ter sido produzida prova documental ou testemunhal a este respeito, impõe-se considerar não provada a factualidade vertida no ponto 11 do acervo de factos provados. XXII- Por outro lado, o Tribunal a quo considerou não provado o seguinte facto vertido na alínea A), por não ter sido produzida nenhuma prova “digna de crédito” a este respeito. XXIII- Porém, por corresponder integralmente à verdade, tal facto deveria ter sido dado como provado, resultando evidente da prova produzida nos presentes autos. XXIV- O circunstancialismo ora em crise resulta do próprio depoimento prestado pelo Sr. Administrador de Insolvência que referiu os contactos permanentes com a legal representante da Insolvente e seu mandatário pelo que, tudo ponderado, impõe, indubitavelmente, diferente entendimento ao pugnado na Sentença em crise, julgando provada a factualidade vertida na referida alínea A) dos factos não provados. XXV-Concluiu o Tribunal a quo que a partir da factualidade provada em 10 e 11 do acervo de factos provados mostra-se preenchida a conduta típica prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, porém, relevando-se o supra exposto relativamente à factualidade em crise nos autos, não se vislumbra qualquer facto imputado à Requerida, ora Recorrente, que permita preencher a conduta típica prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. XXVI- A este respeito e conforme supra se expôs, cumpre salientar que a Insolvente efetivamente pagou à sociedade EMP02... Lda. sob a forma de adiamento da renda sendo certo que tal pagamento não foi efetuado 10 anos antes da celebração do contrato de arrendamento, contrariamente ao que resulta da Sentença em crise. XXVII- Por seu turno, no que concerne à pretensa transferência de dinheiro da Insolvente para a esfera patrimonial da aqui Recorrente ou das suas filhas, importa relevar que nenhum meio probatório foi produzido nos presentes autos que permita concluir nos termos em que o fez o Tribunal a quo. XXVIII- Por todo o exposto, resta concluir ser impossível afirmar que a Recorrente se tenha apropriado de qualquer capital da Insolvente, ou, sequer, que o tenha transferido para a esfera patrimonial de terceiros, o que prejudica o preenchimento da norma da al. d) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE. XXIX-Sopesa ainda que a respeito da conduta típica prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, o juízo de insolvência culposa foi alicerçado pelo Tribunal a quo no facto de que “(…) após a declaração de insolvência não procurou o administrador de insolvência para lhe explicar para que serviram as quantias que retirou da conta da insolvente, como era sua obrigação legal. Antes negou a existência da dívida”. XXX- Sucede, porém, que, conforme supra se expôs, a Recorrente prestou toda a colaboração ao Sr. Administrador de Insolvência, tendo fornecido todos os documentos e prestado todos os esclarecimentos, e, nessa medida, forçoso se torna concluir que do acervo de factos provados não resulta a verificação da alínea i) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE, pelo que, também aqui, não se poderá sustentar a qualificação da insolvência em crise como culposa. XXXI- Destarte, impõe-se a revogação da Sentença recorrida e qualificação da insolvência como fortuita, porquanto é insuficiente a matéria de facto dada como provadapelo que vai impugnada, uma vez que não resulta da mesma qual das causas e nexo de causalidade que determinaram a insolvência da EMP01..., Lda. XXXII- Sem prescindir, a factualidade que, pelas razões supra invocadas, merece alterações é manifestamente insuficiente para que se possa considerar adequadas e proporcionais as sanções determinadas pelo Tribunal a quo, porquanto não resulta provado qualquer comportamento perpetrado pela Requerida que assuma gravidade suficiente e haja contribuído para o agravamento da situação de insolvência da EMP01... Lda., ou, sequer, que tenha causado danos concretos aos credores da insolvente. XXXIII- Com efeito, as sanções em crise não visam salvaguardar o interesse dos credores, assumindo antes, uma natureza sancionatória, que, in casu, colide com os ditames da restrição contidos no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e que atenta contra os preceitos do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, que não consente a restrição a um direito fundamental, violando os princípios da proibição do excesso, da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade ali ínsitos. XXXIV-Face a essa excessividade, a Sentença em crise está eivada de inconstitucionalidade, porque viola os princípios e direitos constitucionais protegidos e consagrados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito ao trabalho e com liberdade de escolha, o direito à iniciativa económica e até à propriedade privada (cfr. artigos 58.º, nº 1, 47.º, n.º 1, 61.º, n.º 1 e 62.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa). XXXV-Pelo que se impõe a revogação in totum da Sentença objeto do presente recurso, devendo a insolvência da sociedade EMP01... Lda., ser qualificada como fortuita.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que é mantido por este Tribunal.
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Remetido o processo a este Tribunal da Relação foi proferido despacho, em 18.09.2024, a determinar o seu envio ao Tribunal de 1ª Instância para cumprimento do disposto no art. 617º, nº1 do CPC.
Em 10.10.2024 foi proferido despacho a responder à nulidade arguida pela recorrente nas respetivas conclusões, tendo a Mmª Juiz a quo procedido à retificação do ponto nº 10 dos factos dados como assentes, reconhecendo que a redação do mesmo se deveu a mero lapso de escrita, tomada de posição que fez constar do aludido despacho nos seguintes termos: “a menção no artigo 10º ao ano 2000 resulta de um lapso de escrita decorrente do uso do processador de texto, que aqui se retifica desde já. Assim, nos termos dos artigos 613º e 614º, nº1 CPC, retifico o ano constante do artigo 10º dos factos provados para o ano de “2020”.
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Remetidos os autos a este Tribunal foi proferida decisão singular na qual se decidiu confirmar a decisão recorrida.
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Após ter sido notificada da aludida decisão singular, e com ela não se tendo conformado, veio a Apelante interpor recurso de revista para o STJ.
Por não caber recurso de revista de decisões singulares, não foi o mesmo admitido, o que motivou a apresentação de reclamação para o STJ que, em decisão singular, veio a atender a reclamação, ordenando a substituição do despacho reclamado por outro que determine a realização de conferência a fim de ser proferido acórdão, contanto que seja paga a multa devida nos termos do art.º 139º nº 5 e 6 do CPC.
Já neste Tribunal da Relação, e na sequência do ordenado na decisão singular prolatada pelo STJ, foi proferido despacho a determinar a notificação da recorrente/reclamante para proceder ao pagamento da multa devida nos termos do art. 139º nº 5 e 6 do CPC, o que a mesma atempadamente efetuou.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. Apurar se a sentença padece das alegadas nulidades arguidas pela recorrente devendo ser considerada nula, em razão do disposto no nº 4 do artigo 607.º e na alínea c) do nº 1 do art. 615º;
. Dilucidar se a sentença recorrida enferma de deficiências quanto à decisão da matéria de facto.
. Determinar se o quadro factual apurado permite suportar conclusão no sentido de se ter de qualificar a insolvência como culposa e a recorrente afetada por tal qualificação.
. Aferir se a decisão recorrida está “eivada de inconstitucionalidades”
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2. FUNDAMENTOS DE FACTO
2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1- Nos autos principais foi proferida sentença, datada de 10-9-2022 e transitada em julgado, a decretar a insolvência da sociedade EMP01..., Ldª”.
2- A insolvente, pessoa coletiva NIPC ...57 com sede na Avª ..., ..., ... ..., tinha por objeto a fabricação de têxteis e vestuário.
3- AA foi gerente da insolvente até à declaração de insolvência.
4- Era aquela quem decidia que negócios encetar e os seus termos, acordando quais as relações comerciais que mantinham com terceiros, com quem tratavam, emitindo cheques e contactando com Bancos, quando necessário.
5- Mais sendo a responsável pela gestão, administração e representação de toda a atividade exercida, cabendo-lhe também a decisão de afetação dos seus recursos financeiros à satisfação das respetivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores da sociedade insolvente, a contratação de funcionários, a assinatura de documentos e a entrega daqueles que serviam de base à elaboração da contabilidade.
6- No dia 24-11-2022 o administrador de insolvência expediu para a morada que lhe foi fixada na sentença, uma carta com aviso de receção solicitando explicação para os saldos devedores na contabilidade da insolvente em nome da gerente AA e das suas filhas BB e CC.
7- A gerente apenas respondeu que nada devem à insolvente.
8- A sociedade EMP02..., Lda tem como únicas sócias as filhas da gerente da insolvente.
9- A sociedade EMP02..., Lda celebrou contrato de arrendamento das instalações fabris onde laborava a insolvente e respetivo parque para viaturas com a insolvente/ arrendatária, a 1-8-2021, por €7.000,00 e 1-1-2021, por € 1.000,00, respetivamente.
10- O pagamento das rendas foi realizado sob a forma de adiantamentos no ano 2020, no montante de € 70.000,00. (redação retificada por despacho de 10.10.2024)
11- A requerida transferiu para si e as suas filhas BB e CC os saldos contabilísticos devedores à insolvente no montante global de € 224.709,27.
12- O AI solicitou à insolvente justificação para este saldo devedor, tendo recebido a resposta de que “nada devem à insolvente”.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados o seguinte facto:
A- A gerente da insolvente prestou todos os esclarecimentos solicitados pelo administrador de insolvência, tendo procedido à entrega de toda a documentação que lhe foi solicitada e que se encontrava na sua posse.
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3. Da apreciação da reclamação
A recorrente/reclamante insurge-se contra a decisão singular que determinou a manutenção da decisão recorrida por ter considerado que se verificam os pressupostos legais para qualificar como culposa a insolvência de EMP01..., Lda, declarando-a afetada pela mesma, pretendendo que seja proferido acórdão sobre tal matéria.
Da exegese das alegações “de recurso” apresentadas pela recorrente/ reclamante constata-se que esta aí invoca, para além do mais, dois fundamentos recursivos novos, na justa medida em que não foram oportunamente alegados no recurso que interpôs da sentença, a saber: “(…) É, portanto, manifesta a contradição do acórdão recorrido com o acórdão fundamento, proferido pelo mesmo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, no domínio da mesma legislação e que decidiram, de forma divergente, a mesma questão fundamental de direito (cls I a XVI); (…) Aliás inexiste qualquer facto provado que conclua ou indicie que tal arrendamento foi prejudicial à Insolvente ou que tenha sido celebrado por preço ou condições que apenas visavam o prejuízo da Insolvente. (cls. XXII a XXIV).
Por se tratarem de questões novas, não podem esses fundamentos serem alvo de apreciação no acórdão da conferência, cujo âmbito se encontra balizado pelas questões abordadas na decisão singular prolatada pelo relator, sendo certo que a primeira dessas questões era dirigida ao STJ e não tanto a este Tribunal da Relação.
No mais, limita-se a recorrente/reclamante a reproduzir os argumentos que verteu nas suas (iniciais) alegações recursivas e que foram alvo de apreciação nesse ato decisório.
Conclui que a decisão sumária ao confirmar a sentença de 1ª instância, oportunamente objeto de recurso de apelação, enferma de erro de julgamento por violar diversas normas legais, designadamente, o disposto nos arts. 186º, nº 2, als. d) e i) e 189º, ambos do CIRE e arts. 58º, nº 1, 47º, nº 1, 61º, nº 1 e 62º, nº 1, todos da CRP.
Não se antolha, porém, em que medida a mencionada decisão singular padeça do invocado error in judicando pelos fundamentos nela alinhados, motivo pelo qual renovamos e fazemos nossos os argumentos em que a mesma se ancorou, os quais, por uma razão de economia, se passam a transcrever:
«Como se deu nota, a apelante começa por alegar que a decisão recorrida viola o disposto nº 4 do artigo 607º, referindo que o Tribunal a quo não cumpriu o dever de fundamentação, na medida em que não efetuou qualquer valoração da consistência probatória, e, em consequência, não observou o determinado por este Tribunal da Relação, em ambas as decisões sumárias proferidas nos presentes autos, verificando-se, assim, a nulidade da sentença em crise (cfr. cls. X).
Certo é que não identifica em que passos concretos da sentença ocorre o invocado vício formal, limitando-se, na essência, a alegar, de forma marcadamente genérica, que a sentença está ferida de nulidade nos termos do disposto no artigo 607º, nº 4, porquanto não especifica devidamente os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Ainda assim, dentro dos poderes de cognição que competem a este Tribunal de recurso, iremos procurar dilucidar se efetivamente a decisão recorrida padece de alguma das invocadas nulidades.
Apreciando
Dispõe o referido normativo legal que “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Resulta deste normativo que a motivação não pode nem deve ser meramente formal, tabelar ou formatada, antes devendo expressar as verdadeiras razões que conduziram à decisão no culminar da audiência de discussão e julgamento.
Com efeito, o juízo probatório é a decisão judicativa pela qual se julgam provados ou não provados os factos relevantes, controvertidos e carecidos de prova, mediante a livre valoração dos meios probatórios apresentados pelas partes ou determinados oficiosamente.
O tribunal deve, assim, indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina pois a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correção da sua decisão, sendo que, como sublinha TEIXEIRA DE SOUSA[2], “através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.
Neste contexto, impondo-se, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, que se estabeleça o fio condutor entre os meios de prova usados na aquisição da convicção (fundamentos) e a decisão da matéria de facto (resultado), fazendo a apreciação crítica daqueles, nos seus aspetos mais relevantes, a decisão encontrar-se-á viciada quando não forem observadas as regras contidas no transcrito nº 4 do 607º.
Implica, no entanto, a aludida falta de motivação no julgamento da matéria de facto a remessa do processo ao tribunal da 1ª instância, nas circunstâncias previstas no artigo 662º, nº 2 al. d) ou a anulação do julgamento, ao abrigo da al. c) do mesmo número e não a nulidade do ato decisório.
Feitas estas considerações, analisada a conclusão de recurso sob o ponto X), constatamos que a recorrente incorre na confusão de conceitos sobre o que sejam vícios determinativos de nulidade da sentença (os quais se resumem aos vícios formais taxativamente enunciados no nº 1 do art. 615º), com erros de julgamento.
Conforme é entendimento pacífico na doutrina[3] e na jurisprudência[4] as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade, a saber: a) por se ter errado no julgamento dos factos e/ou do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e/ou estruturação, ou as que balizam o conteúdo e/ou os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615º.
As causas determinativas de nulidade das decisões judiciais encontram-se taxativamente enunciadas no art. 615º, e tal como decorre da análise das diversas alíneas dessa norma, reportam-se a vícios formais da sentença em si mesma considerada, decorrentes de na sua elaboração e/ou estruturação não terem sido respeitadas as normas processuais que regulam essa sua elaboração e/ou estruturação e/ou as que balizam os limites da decisão nela proferida (o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes e de que era lícito ao último conhecer oficiosamente não foi respeitado, ficando a decisão aquém ou indo além desse campo de cognição, em sede de fundamentos – causa de pedir - e/ou de pretensão - pedido), tratando-se, por isso, de defeitos de atividade ou de construção da própria decisão judicial (compreendendo-se neste conceito a sentença, acórdão ou o despacho – arts. 613º, nº 3 e 666º, nº 1) em si mesma considerada, ou seja, reafirma-se, está-se na presença de vícios formais que afetam essa decisão de per se e/ou os limites à sombra dos quais é proferida.
Neste sentido considera Abílio Neto[5] que os vícios determinativos de nulidade da decisão judicial “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”.
Diferentes desses vícios são os erros de julgamento (error in judicando), os quais contendem com erros em que incorre o tribunal em sede de julgamento da matéria de facto e/ou em sede de julgamento da matéria de direito, decorrentes de, respetivamente, o juiz ter incorrido numa distorção da realidade factual que julgou como provada e/ou não provada na sentença, acórdão ou despacho, em virtude da prova produzida impor julgamento de facto diverso do que realizou (error facti) e/ou por ter incorrido em erro na identificação das normas aplicáveis ao caso, na interpretação dessas mesma normas, e/ou na sua aplicação à facticidade que se quedou como provada e não provada no caso concreto (error juris).
Nos erros de julgamento assiste-se assim, ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação, interpretação e/ou aplicação dos institutos jurídicos aplicáveis aos factos provados e não provados, sendo que esses erros, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença em si mesma considerada (vícios formais) ou aos limites à sombra dos quais aquela é proferida, não a inquinam de invalidade, mas sim de error in judicando.
Ora, aplicando estas premissas no caso que nos ocupa, verifica-se que a decisão recorrida contém um mínimo de fundamentação quer de facto quer de direito, pelo que não se pode afirmar que exista uma absoluta ausência de fundamentação a esse nível.
De referir que, para efeitos de apreciação da existência do vício de nulidade da decisão, não releva se a decisão tomada é juridicamente correta e acertada do ponto de vista material ou substancial. Essa perspetiva de análise só importa para efeitos de existência de erro de julgamento, questão que de seguida se analisará.
Porém, do ponto de vista da existência de nulidade, só há que apurar se a decisão contém ou não falta absoluta de fundamentação e, no caso, tal não se verifica.
Conclui-se do expendido que a decisão recorrida não padece de nulidade por falta de fundamentação, improcedendo esta questão recursória.
*
Argumenta também a apelante que o Tribunal a quo incorreu em erro ao dar como provado o facto constante no ponto nº 10 da matéria de facto dada como provada, porquanto, no seu entender tal factualidade encontra-se em contradição com a prova produzida nos autos, designadamente com a constante do ponto nº 9, situação esta que, pese embora a apelante não o refira expressamente, afeta, na sua perspetiva, a validade da decisão recorrida.
Que dizer?
Cumpre desde logo salientar que, como resulta dos autos, a juiz a quo, por despacho datado de 10.10.2024, nos termos dos arts. 613º e 614º, nº 1, procedeu à retificação do teor do ponto nº 10 da matéria de facto assente, de molde a que dele passou a constar que o pagamento das rendas foi realizado, sob a forma de adiantamentos no ano 2020 (e não em 2000), no montante de € 70.000,00. Ora, considerando que o aludido despacho não foi alvo de impugnação, segue-se, pois, ter deixado de subsistir a razão que levou à alegação de contradição invocada pelo que nada cumpre apreciar a propósito.
Como quer que seja, também tal alegação nunca se subsumiria ao vício da nulidade da sentença cominado na al. c) do nº 1 do art. 615º, nos termos da qual “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
Verifica-se o referido vício formal quando há contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, isto é, a fundamentação conduz logicamente a resultado distinto do que consta do dispositivo da decisão judicial. Dito de outro modo, a fundamentação seguiu uma determinada linha de raciocínio, apontando num dado sentido, e depois a decisão segue outro oposto, chegando a uma conclusão completamente diferente da apontada pela fundamentação.
A razão de ser desta causa de nulidade ancora-se primordialmente na ideia de que a sentença deve constituir um silogismo judiciário, em que a norma jurídica constitui a premissa maior, os factos a premissa menor e a decisão será a consequência lógica de tais premissas, não devendo, pois, existir qualquer contradição ou oposição entre os fundamentos e a decisão.
Portanto, o vício em questão ocorre quando se verifique contradição real entre os fundamentos e a decisão: a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
Resulta, assim, do exposto inexistir qualquer contradição intrínseca entre os fundamentos e o dispositivo da sentença recorrida, sendo certo que, como tem sido salientado[6], a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão-pouco, a uma errada interpretação dela.
Situações destas configuram-se antes como erro de julgamento.
Destarte, perante a retificação operada ao facto dado como assente sob o nº 10, mostra-se, consequentemente, sanada a invocada contradição.
*
Nas conclusões recursivas veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados como provados e ao facto não provado, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[7], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[8].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[9].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão à apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela defendidos.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, a recorrente advoga que: (i) deve transitar para o elenco dos factos não provados a afirmação de facto vertida no ponto nº 11 dos factos provados; (ii) deve transitar para o elenco dos factos provados a afirmação de facto vertida na alínea A), da factualidade não provada.
O aludido ponto nº 11 dos factos provados tem a seguinte redação: “A requerida transferiu para si e para as suas filhas BB e CC os saldos contabilísticos devedores à insolvente no montante global de € 224.709,27.”
A propósito do sentido decisório que trilhou em relação a tal enunciado fáctico, na respetiva motivação de facto, o juiz a quo discreteou nos seguintes termos: «[A] matéria provada nos artigos 11º e 12º resulta do teor da audição do sr. administrador de insolvência em audiência de julgamento, conjugada com o teor do parecer que apresentou a 12-1-2023 nestes autos e documentos anexos, nomeadamente as cartas de fls. 15 verso e 16 e 19 e 20, bem como os documentos anexos a estas relativos aos débitos na contabilidade da insolvente a fls. 16 verso, 17 e verso, 18 e verso, 19 verso e 20 verso.
Consta também anexo ao parecer do AI um relatório da Autoridade Tributária que considerou que os movimentos contabilísticos de débito da conta ... de AA são “lançamentos em conta corrente do sócio, o valor pago (colocado à disposição) pela sociedade à sócia configura uma distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros” o que os configuraria rendimento tributável em sede de IRS. Mas tal valoração não releva para os autos, antes confirma que as quantias foram postas à disposição da gerente para seu uso próprio.
Em síntese, o sr. administrador de insolvência declarou que em setembro passado a insolvente estava a laborar e reuniu a 4 de outubro com a gerente. Havia trabalhadores que foram mudados da empresa e alegavam não terem sido disso informados. A gerente comprometeu-se a pagar os salários de setembro, mas não o fez.
A última fatura da EMP01... para os clientes é de 29 de julho. A EMP01... não faturou a ninguém em agosto e setembro. No mesmo local laborava outra empresa, a EMP03....
O AI trocou vários emails com a gerente e o Dr. EE. Verificou movimentos financeiros que comprovam a entrada de dinheiro da EMP01... para a conta pessoal da gerente e suas filhas. Este facto resulta da contabilidade da insolvente, conforme o AI a analisou e descreveu no seu parecer, juntando documentos, e extrato de conta de fls. 22, nomeadamente o mail de fls. 15. Voltou a colocar a questão dos saldos devedores por email, mas não os justificaram. Enviou cartas registadas para as três, mas a resposta que obteve foi evasiva.
Quanto ao pagamento excessivo da EMP01... à EMP02..., resulta de não ter sido feita a reconciliação das contas para ser entregue de volta a quantia de € 15.060,00.
A testemunha FF, empregada de armazém e ex-trabalhadora da EMP01... declarou ter trabalhado na insolvente desde dezembro de 2015 a setembro de 2022. A gerente mudou as trabalhadoras em setembro para a EMP03... sem as informar.
A testemunha GG declarou ter trabalhado na insolvente desde que abriu até setembro de 2022, e só não lhe pagaram o último mês.
A testemunha HH declarou ter elaborado a contabilidade da insolvente de 2020 a 2022 e ter constatado a realização de levantamentos da conta bancária da empresa sem justificação contabilística.
A testemunha DD, declarou ter elaborado a contabilidade da insolvente desde maio de 2022 até setembro de 2022. Declarou que a contabilidade estava minimamente organizada, que havia saldos devedores de € 70.000,00 da gerente, e que a empresa lhe explicou que se tratariam de despesas não documentadas. Não há documentos a comprovar em que foi usado o dinheiro levantado.»
Colocada perante a transcrita motivação da decisão de facto, pretende a apelante que se julgue não provada tal materialidade, por entender, desde logo, que confrontada a prova documental constante dos autos com os depoimentos prestados pelas testemunhas se impunha decisão diversa daquela que foi proferida pelo Tribunal.
Concretiza que o Tribunal acolheu singelamente a tese do Sr. Administrador de Insolvência, nos termos da qual, apontando a contabilidade da insolvente que a sua sócia e gerente e, ainda, as suas filhas tinham para com a empresa uma dívida e dinheiro na sua posse, haviam embolsado os correspondentes valores, num total de € 224.709,27.
Enfatiza que a prova produzida nos presentes autos demonstrou a natureza absolutamente formal e abstrata desta construção, sendo que, por não corresponder à verdade, tal facto não poderia ter sido dado como provado nos termos supra descritos, partindo desde logo da única prova produzida nos autos neste sentido, o depoimento prestado pela testemunha Dr. DD.
Ainda com relação ao facto nº 11 destaca que o Tribunal a quo deveria ter valorado o depoimento prestado pela testemunha DD que, na sua ótica, impunha diferente entendimento ao pugnado na decisão recorrida. (cfr. cls. XVII a XXI).
Conclui, assim, que por não ter sido produzida prova documental ou testemunhal a este respeito, se impõe considerar não provada a factualidade vertida no ponto 11 do acervo de factos provados.
Que dizer?
Procedendo à exegese do depoimento da testemunha DD, técnico oficial de contas da insolvente - que a apelante convoca em arrimo do seu posicionamento - em conjugação com os demais depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência, bem como dos vários suportes documentais juntos aos autos, não se vê em que medida se possa afirmar que deles não resulte a existência de correspondência com a verdade da mencionada factualidade.
Com efeito, após a audição do registo fonográfico dos depoimentos prestados pelas mencionadas testemunhas, mormente do Sr. AI, bem como do teor do parecer que este apresentou no processo, corroborados pelos vários documentos anexos (as cartas de fls. 15 verso e 16 e 19 e 20, e ainda os documentos anexos a estas relativos aos débitos na contabilidade da insolvente a fls. 16 verso, 17 verso, 18 e verso, 19 verso e 20 verso) resulta a existência de movimentos financeiros que comprovam a entrada de dinheiro da insolvente para a conta pessoal da gerente e suas filhas, incluindo a transferência espelhada no ponto 11 dos factos provados.
Efetivamente este facto resulta da observação da contabilidade da insolvente, conforme o Sr. AI a analisou e descreveu no seu parecer, o qual juntou documentos, a atestar tal realidade (v.g. extrato da conta de fls. 22 e o mail de fls. 15).
Isto posto, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se na presença dos mencionados subsídios probatórios se justifica a impetrada alteração do sentido decisório referente à facticidade objeto de impugnação, sendo que, como deflui do respetivo corpo alegatório, o que a apelante pretende com essa impugnação é que este tribunal ad quem valore de forma diversa do decisor de 1ª instância os depoimentos que adrede foram prestados na audiência final.
Ora, com o controlo efetuado pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal de 1ª instância não se visa o julgamento ex novo dessa matéria, mas antes reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.
Como se viu, em relação à facticidade alvo de impugnação foram produzidos depoimentos de sinal contrário, sendo que na respetiva apreciação o decisor de 1ª instância desconsiderou, precisamente, o depoimento que a ora apelante convoca para justificar a alteração do sentido decisório sufragado na sentença recorrida, por entender que o mesmo, para além das inconsistências que lhe apontou na motivação da decisão de facto, se tratou de um depoimento indireto. Afirmou o julgador de 1ª instância que a aludida testemunha DD “declarou ter elaborado a contabilidade da insolvente desde maio de 2022 até setembro de 2022. Declarou que a contabilidade estava minimamente organizada, que havia saldos devedores de € 70.000,00 da gerente, e que a empresa lhe explicou que se tratariam de despesas não documentadas. Não há documentos a comprovar em que foi usado o dinheiro levantado”.
Ora, perante tal declaração, para além desta testemunha não poder comprovar a versão apresentada pela recorrente, por ela foi também dito expressamente que quem lha narrou foi “a empresa”, pelo que o seu depoimento assume, neste particular, natureza de depoimento indireto, ou seja, “de ouvir dizer”, desprovido de relevância jurídica para operar o efeito pretendido pela Recorrente.
Desta feita, tal como considerou o julgador de 1ª instância, também entendemos que “a posição da Recorrente não resulta minimamente sustentada pela prova, ao contrário do facto provado no artigo 11º”.
Aliás, o que ressuma do cotejo entre a motivação da decisão sub iudicio e a motivação do recurso sub specie, é uma divergente valoração da prova produzida: tribunal recorrido e recorrente não divergem na leitura das provas, divergem na respetiva valoração.
Porém, como se anteriormente se referiu, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles (como é o caso) em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma que reputamos consonante com a prova produzida no âmbito do presente processo.
Como tal a aludida afirmação de facto não deverá transitar para o elenco dos factos não provados, já que essa prova não impõe - como é suposto pelo nº 1 do art. 662º - decisão diversa.
*
Cumpre, agora, apreciar a impugnação da requerida afetada no concernente ao facto dado como não provado e que, como se deu nota, pretende transite para o elenco de factos provados. Está em causa, pois, o conjunto fático constante da alínea A).
Vejamos então se lhe assiste razão.
Na referida alínea deu-se como não provado que: “Que a gerente da insolvente prestou todos os esclarecimentos solicitados pelo administrador de insolvência, tendo procedido à entrega de toda a documentação que lhe foi solicitada e que se encontrava na sua posse”.
A propósito do sentido decisório que trilhou em relação a tal enunciado fáctico – que, na sua essência, diz respeito à obrigação que o gerente da insolvente tem de fornecer todas as informações relevantes para o processo de insolvência, conforme determina o artigo 83º do CIRE, (obrigação essa que se estende às solicitações feitas pelo administrador da insolvência no âmbito do processo de insolvência) -, na respetiva motivação de facto, o juiz a quo discreteou nos seguintes termos: «Quanto ao facto não provado, nenhuma prova digna de crédito foi produzida a seu respeito. Antes se provou que o AI pediu explicação para os € 70.000,00 que foram transferidos para a conta da gerente e das suas filhas, mas que a resposta foi evasiva.».
No sentido de justificar a alteração do juízo probatório emitido em 1ª instância quanto à referida proposição factual, a apelante convoca o depoimento prestado pelo Sr. AI, o qual, segundo adianta, “referiu os contactos permanentes com a legal representante da Insolvente e seu mandatário pelo que, tudo ponderado, impõe-se, indubitavelmente, diferente entendimento ao pugnado na sentença em crise, julgando provada a factualidade vertida na referida alínea A) dos factos não provados” (cls. nº XXIII e XXIV);
Ora, verifica-se que a apelante com vista a emissão de um juízo probatório positivo relativamente à proposição em crise se limita a remeter para o depoimento do Sr. AI prestado na audiência final.
Sucede, porém, que, para este efeito impugnatório, não basta a mera indicação, sem mais, de um determinado meio de prova, e também se revela insuficiente no que respeita à prova pessoal, a transcrição de algum (ou alguns) dos depoimentos produzidos em julgamento.
Com efeito, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados.
Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do citado art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante[10].
Daí que, da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (art. 607º, nº 4), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respetivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo.
Isso mesmo é sublinhado por II[11], quando refere que o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, “deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos”. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente.
Facto é que a apelante não realizou esse exercício de confronto entre (todos) os meios de prova produzidos sobre a materialidade impugnada (e a que o juiz a quo atendeu para firmar a sua convicção), limitando-se, como se referiu, a remeter genericamente para o depoimento da identificada testemunha, não evidenciando em que medida o mesmo possa abalar o sentido decisório que quanto à factualidade em crise foi acolhido pelo decisor de 1ª instância, sendo que, como se enfatizou, não basta sequer para tal efeito reproduzir excertos desse depoimento.
Resulta do exposto que a apelante, também quanto a esta materialidade, não deu integral cumprimento ao mencionado ónus, o que, per se, igualmente motivaria a improcedência do recurso quanto à impugnação da matéria de facto vertida na alínea A) dos factos não provados.
Como quer que seja, após a audição do registo fonográfico de tal depoimento, não se antolha razão bastante para divergir do sentido probatório trilhado pelo juiz de 1ª instância quanto ao mencionado enunciado fáctico. Efetivamente, da respetiva audição o que a este propósito resulta é que o Sr. administrador refere expressamente que “voltou a colocar a questão dos saldos devedores por email, mas não os justificaram (a gerente e o Dr EE);… enviou cartas registadas para as três (a gerente e as duas filhas), mas a resposta que obteve foi evasiva”.
Assim, pelas razões enunciadas, não se verifica razão bastante para divergir do juízo probatório que foi acolhido na sentença recorrida, já que a argumentação expendida pela apelante não teve, quanto a nós, o condão de desconstruir a motivação adrede tecida nesse ato decisório, afigurando-se-nos que a prova produzida não impõe (como é suposto pelo nº 1 do art. 662º) decisão diversa, porquanto a decisão de considerar não provada a proposição factual plasmada na alíneas A), dos factos não provados é, nos termos expostos, perfeitamente racional e lógica.
***
Da (in)verificação das causas de qualificação previstas nas alíneas d) e i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE
Como é consabido, o incidente de qualificação da insolvência é um instituto jurídico que foi introduzido no nosso ordenamento pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, presidindo a esta criação a declarada intenção de obter uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas.
Com esse desiderato, o seu art. 185º começa por indicar a finalidade do incidente: averiguar as razões que conduziram à situação de insolvência para qualificá-la numa das categorias tipificadas na lei. Desta forma, a insolvência pode ser culposa ou fortuita.
No caso vertente o tribunal a quo decidiu proceder à qualificação da insolvência como culposa, por ter considerado encontrarem-se provadas as circunstâncias previstas no art. 186º, nº 2, alíneas d) e i) do CIRE, declarando afetada pela mesma, a recorrente AA.
A apelante discorda do referido julgamento, advogando que a insolvência deve ser qualificada como fortuita porquanto não resulta provado qualquer comportamento perpetrado pela Requerida que assuma gravidade suficiente e haja contribuído para o agravamento da situação de insolvência da EMP01... Ld.ª, ou, sequer, que tenha causado danos concretos aos credores da insolvente. E por tal razão, a sentença proferida fez uma incorreta subsunção dos factos ao direito pois da factualidade assente não constam factos suficientemente capazes de preencher a previsão das alíneas d) e i) do n° 2 do artigo 186° do CIRE.
O citado art. 186º, depois de no seu nº 1 fixar uma noção geral de insolvência culposa[12], estabelece nos seus nºs 2 e 3 um conjunto de presunções que assumem caráter taxativo.
Para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE veio consagrar o denominado duplo sistema de presunções legais[13], sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores.
No concernente às presunções do primeiro tipo, a doutrina e jurisprudência claramente dominantes[14] vêm considerando que uma vez demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador (isto é, a insolvência será sempre considerada como culposa), sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a inobservância dos comportamentos tipicamente descritos nas diversas alíneas do nº 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento[15]. Já no que tange ao âmbito objetivo das presunções estabelecidas no nº 3, até à entrada em vigor da Lei nº 9/22, de 11 janeiro vinha-se registando marcada divergência quer a nível doutrinário quer na casuística. Para uns[16] o que resultava do nº 3 do art. 186º era apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do nº 1 desse normativo, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta. Outros[17], porém, advogavam que se tratava de presunções de insolvência culposa, isto é, a simples verificação de qualquer uma das situações descritas nas suas alíneas constituía uma presunção ilidível não apenas da culpa grave do administrador, mas também de suspeita de insolvência culposa, pressupondo-se à partida o nexo de causalidade exigido pelo nº 1. Registe-se, todavia, que com a entrada em vigor do aludido diploma legal (que, de acordo com a norma de direito transitório nele plasmada no art. 10º, nº 1, é aplicável ao presente processo insolvencial) a referida divergência interpretativa perdeu razão de ser, na justa medida em que o legislador, com a nova redação que foi aportada ao nº 3 do citado art. 186º, entendeu por bem clarificar que nesse preceito se consagra unicamente uma presunção de culpa grave, que não também de presunção do respetivo nexo causal.
No caso em apreço, tendo em conta a vinculação temática definida pela sentença recorrida e pelas conclusões recursórias, relevam as presunções estabelecidas nas alíneas d) e i) desse nº 2, onde se dispõe que “[c]onsidera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
. disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros (al. d));
. Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188º (al. i))”.
Assim, para que seja despoletada a presunção juris et de jure estabelecida nos incisos transcritos, para além de se exigir que o devedor tenha praticado, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência[18], algum dos factos base aí descritos, impõe-se ainda que:
(i) o administrador (sendo que por estatuição expressa da lei, e num patente esforço de moralização, estão abrangidos quer o administrador de direito quer o administrador de facto) do devedor não tenha cumprido com os deveres de fidelidade/de lealdade a que se encontra adstrito por força do disposto no art. 64º do Cód. das Sociedades Comerciais, praticando atos que, prejudicando a situação patrimonial da insolvente, em simultâneo trazem benefícios para quem os pratica ou para terceiros (está-se, por conseguinte, em presença de um comportamento do administrador que envolve, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o património do insolvente, geradores ou agravantes da situação de insolvência, tal como a define o art. 3º);
(ii) o administrador tenha incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 3 do artigo 188º.
Acresce que nas referidas alíneas não está, em abstrato, pressuposto um nexo de causalidade entre o comportamento do visado e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência; o que aqui está em causa é um comportamento do visado que impediu e/ou impede que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção e/ou agravamento da situação de insolvência, ou seja, o que basicamente está em causa é o incumprimento/violação de deveres legais, sendo que só muito remotamente algum dos factos/atos aí descritos pode ser causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento.
Apesar disso, o legislador, mesmo assim, entendeu submetê-los também ao regime da insolvência culposa não porque eles pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o administrador ter praticado um ato ilícito gravemente censurável justificava submetê-los igualmente a esse mesmo regime.
Isso mesmo é posto em evidência por CATARINA SERRA[19], que considera “tratar-se de um intuito repressivo (punitivo) e simultaneamente pedagógico em que os deveres legais em questão saem reforçados (…) as sanções de natureza civil sempre tiveram uma justificação prática: conseguir a efetividade dos deveres impostos”, sendo certo que tal presunção foi estabelecida, precisamente, para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os devedores que violaram obrigações legais.
Consequentemente o preenchimento das descritas fattispecies normativas basta-se com a violação dos deveres (de cuidado) nela previstos, designadamente os seus deveres de fidelidade/de lealdade a que se encontra adstrito por força do disposto no art. 64º do Cód. das Sociedades Comerciais no que tange a al. d), e o dever de apresentação e de prestar colaboração previstos no art. 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 3 do art. 188º, relativamente à al. i).
Feitas estas considerações gerais, importa apreciar se assiste razão à recorrente no recurso que apresentou.
Como já referido, na sentença recorrida o tribunal a quo decidiu proceder à qualificação da insolvência como culposa, por ter considerado encontrarem-se provadas as circunstâncias previstas no art. 186º, nº s 2, alíneas d) e i). A este propósito aí se escreveu que: “(…) Da disposição dos bens da devedora em proveito pessoal ou de terceiros (artigo 186º, nº2, alínea d).
Dispõe o artigo 186º, nº2, alínea d) CIRE que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular quando os seus administradores de direito ou de facto tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou em proveito de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto.
Na verdade, provou-se que a insolvente, através da requerida, entregou à sociedade EMP02..., Lda, a título de adiantamentos por conta da renda dez anos[20] antes da celebração do contrato de arrendamento, a quantia de € 70.000,00,conforme artigos 9º a 10º e 12º dos factos provados, bem como entregou à requerida e suas filhas quantias que estas não devolveram à sociedade insolvente, dispondo desses bens da insolvente em proveito próprio da requerida e de terceiros, as suas filhas e a sociedade EMP02..., Lda, que tem como sócias únicas as filhas da requerida.
Resultou, assim, provado que a requerida dispôs dos bens da insolvente em seu proveito próprio e em proveito das suas filhas e de uma sociedade terceira, de que são sócias as filhas da requerida.
Deu-lhes um uso contrário ao interesse da insolvente que, como sociedade comercial, visa o lucro, pelo que preencheu o pressuposto da alínea em questão.
Do incumprimento, de forma reiterada, dos seus deveres de apresentação e de colaboração com o administrador de insolvência até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º (artigo 186º, nº2, alínea i).
Dispõe este artigo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular quando os seus administradores de direito ou de facto tenham incumprido de forma reiterada os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data de elaboração do parecer referido no nº3 do artigo 188º. Ora, nos termos dos factos provados a gerente incumpriu de forma reiterada os seus deveres de colaboração com o administrador de insolvência já que, após a declaração de insolvência não procurou o administrador de insolvência para lhe explicar para que serviram as quantias que retirou da conta da insolvente, como era a sua obrigação legal. Antes negou a existência da dívida.
Assim, depois da declaração de insolvência e da notificação que recebeu para prestar colaboração com o sr. administrador de insolvência, cada dia que passou sem resposta constituiu numa reiteração da omissão de colaboração com o administrador de insolvência, enquanto órgão da insolvência, causando manifesto prejuízo aos seus credores por inviabilizar a correta e cabal identificação dos bens e direitos da insolvente que devem ser apreendidos para a massa insolvente, liquidados e com o seu produto, satisfazerem-se os créditos dos credores da insolvência.
Pelo que preencheu o pressuposto da alínea i) do artigo 186º, nº2, devendo a insolvência ser qualificada como culposa por força desta alínea.”
E, não poderíamos estar mais de acordo com as ilações retiradas pelo julgador de primeira instância perante a factualidade que foi apurada nos autos.
De facto, no que tange ao fundamento contemplado na al. d) do nº 2 do citado art. 186º, resulta da exegese dos elementos constantes dos autos, mormente da materialidade plasmadas nos pontos nºs 9, 10, 11 e 12 da matéria assente, que a requerida e suas filhas embolsaram importâncias pertencentes à sociedade insolvente sem terem título que tal justificasse, sendo que os valores assim recebidos não ingressaram de facto na insolvente, razão pela qual se mostra legítimo concluir-se, como fez o Mmº Juiz a quo, que houve disposição de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Tanto bastaria para qualificar a insolvência como culposa por operância da presunção juris et de jure contemplada na al. d) do nº 2 do art. 186º.
Ainda assim iremos procurar dilucidar se idêntica conclusão se pode firmar em relação à fattispecie normativa da al. i) do nº 2 do art. 186º.
Na sequência do referido supra o preenchimento da descrita fattispecie normativa basta-se com a violação dos deveres (de cuidado) nela previstos, designadamente os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no art. 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº3 do art. 188º.
Isto posto, revertendo ao caso sub judicio, resulta dos elementos constantes dos autos (cfr., v.g. pontos nºs 6, 7 e 12 dos factos provados) encontrar-se verificada a previsão da mencionada alínea i), dado que, malgrado tenha sido enviada notificação à gerente da sociedade insolvente a solicitar explicação para os saldos devedores na contabilidade da insolvente em nome da gerente AA e das suas filhas BB e CC, facto é que se quedou por uma atitude não cooperante, não fornecendo ao administrador da insolvência quaisquer informações/explicações a propósito, limitando-se a responder “que nada devem à insolvente”.
Desta feita, não nos merece censura a conclusão a que chegou o juiz a quo quando ajuizou que, atenta a facticidade dada como provada, a gerente incumpriu de forma reiterada os seus deveres de colaboração com o Sr. AI já que, após a declaração de insolvência, não o procurou para lhe explicar para que serviram as quantias que retirou da conta da insolvente, como era a sua obrigação legal. Antes negou a existência da dívida. Com efeito, depois da declaração de insolvência e da notificação que recebeu para prestar colaboração com o Sr. AI, cada dia que passou sem resposta constituiu numa reiteração da omissão de colaboração com o AI, enquanto órgão da insolvência, causando manifesto prejuízo aos seus credores por inviabilizar a correta e cabal identificação dos bens e direitos da insolvente que devem ser apreendidos para a massa insolvente, liquidados e com o seu produto, satisfazerem-se os créditos dos credores da insolvência.
Como assim, perante o tecido fáctico apurado, mostra-se preenchida igualmente a previsão da al. i) do nº 2 do art. 186º.
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Das alegadas inconstitucionalidades da sentença recorrida
Como se viu, nas conclusões de recurso nºs XXXIII e XXXIV a apelante insurge-se contra a decisão recorrida referindo a ela dizendo que está “eivada de inconstitucionalidades”
Aí alude que as sanções em crise não visam salvaguardar o interesse dos credores, assumindo antes, uma natureza sancionatória, que, in casu, colide com os ditames da restrição contidos no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e que atenta contra os preceitos do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, que não consente a restrição a um direito fundamental, violando os princípios da proibição do excesso, da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade ali ínsitos.
Mais se refere que face a essa excessividade, a sentença em crise está eivada de inconstitucionalidade, porque viola os princípios e direitos constitucionais protegidos e consagrados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito ao trabalho e com liberdade de escolha, o direito à iniciativa económica e até à propriedade privada (cfr. artigos 58º, nº 1, 47º, nº 1, 61º, nº 1 e 62º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa).
A este propósito importa desde já referir que a questão decidida pelo Tribunal a quo não suscita, como se viu, a aplicação das normas dos arts. 58º, nº 1 (direito ao trabalho), 47º, nº 1 (Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública), 61º, nº 1 (Iniciativa privada, cooperativa e autogestionária) e 62º, nº 1 (Direito de propriedade privada), pelo que a respetiva indicação nas conclusões se apresenta como despropositada.
Por outro lado, a alegação de que a sentença recorrida é violadora dos arts. 18º, nº2 e 26º da CRP, assenta num equívoco na medida em que a sentença, como decisão judicial que é, não pode ser objeto de um juízo de inconstitucionalidade. O que poderá ser objeto desse juízo são as normas jurídicas que a sentença explicita ou implicitamente aplicou. E, no caso, não foi minimamente concretizado em que termos as normas legais convocadas para a decisão da questão infringem normas e princípios constitucionais, nem estes foram identificados com o mínimo rigor (apenas mediante a referência genérica a artigos da CRP), o que sempre obstaria a que este Tribunal pudesse formular o seu juízo.
Como assim, nada cumpre a este tribunal ad quem decidir a propósito.
Impõe-se, nessa medida, a improcedência in totum do presente recurso».
Destarte, atentas as razões alinhadas na decisão singular e ora acabadas de transcrever, não se vislumbra razão válida para divergir do sentido decisório nela acolhido relativamente às concretas questões que nela foram objeto de análise.
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III. DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em não atender a reclamação, mantendo, pois, a decisão singular.
Custas a cargo da recorrente reclamante.
Guimarães, 04.11.2025
Relatora: Maria Gorete Morais
1º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães
2º Adjunto: Pedro Maurício
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] In Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 348. No mesmo sentido milita LOPES DO REGO (in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 434), quando refere que o juiz deve proceder à indicação dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, com especificação dos meios de prova e das razões ou motivos substanciais por que relevaram ou obtiveram credibilidade. [3] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 297; em análogo sentido, RODRIGUES BASTOS (in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 194), ressaltando que «a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afeta o valor legal da sentença». [4] Cfr., por todos, acórdão desta Relação de Guimarães, proferido no processo 588/21.2T8VCT-A.G1, acessível em www.dgsi.pt. [5]In Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª edição, pág. 734. [6] Assim, LEBRE DE FREITAS, A ação declarativa comum, pág. 298 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 54. [7]In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência. [8] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272. [9] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1),ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [10] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 15.09.2011 (processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1), de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos da Relação do Porto de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [11]Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, pág. 4 e seguinte, trabalho disponível emwww.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf. Idêntico entendimento vem sendo acolhido na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ 15.09.2011 Processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos da Relação do Porto de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), acessíveis em www.dgsi.pt. [12]Nos termos do qual “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo”. Resulta, assim, da exegese do normativo transcrito constituírem requisitos da insolvência culposa: i) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; ii) a ilicitude desse comportamento; iii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); iv) o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. [13] Como sublinha CARNEIRO DA FRADA (in A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, vol. II [setembro], pág. 701), a opção por esta técnica legislativa justifica-se pela necessidade de garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”, favorecendo, para além disso, a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos. [14] Cfr., por todos, na doutrina, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680, CARNEIRO DA FRADA, op. citada, pág. 689 e MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 2012, pág. 274; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Coimbra de 21.01.2014 (processo nº 174/12.8TJCBR.C1) e de 14.01.2014 (processo nº 785/11.9TBLRA-A.C1) e acórdãos da Relação do Porto de 27.02.2014 (processo nº 1595/10.6TBAMT-A.P2) e de 18.12.2013 (processo nº 41/10.0TYVNG-D.P1), acessíveis em www.dgsi.pt. [15] Isso mesmo é enfatizado por MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 2015, pág. 132, onde afirma que tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato. [16] Cfr., inter alia, na doutrina, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, ob. citada, pág. 681, SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, pág. 380 e MENEZES LEITÃO, ob. citada, pág. 275; na jurisprudência, acórdão da Relação de Coimbra de 8.02.2011, CJ, ano XXXVI, tomo 1º, pág. 31, acórdão da Relação do Porto de 25.11.2010 (processo nº 814/08.TBVFR) e acórdão da Relação de Guimarães de 12.07.2011 (processo nº 503/10.9TBPTL), ambos disponíveis em www.dgsi.pt. [17]Assim, na doutrina, CATARINA SERRA, O novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, pág. 122 e, da mesma autora, Decoctor ergo fraudator? A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções), Cadernos de Direito Privado, nº 21, pág. 69, CARNEIRO DA FRADA, ob. citada, pág. 692, CASSIANO SANTOS, Direito Comercial, vol. I, pág. 214 e seguinte e PINTO DE OLIVEIRA, A responsabilidade civil dos administradores pela insolvência culposa, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, 2015, pág. 207; na jurisprudência, acórdão do Tribunal Constitucional nº 564/2007, de 13.11, acórdão da Relação de Coimbra de 22.05.2012 (processo nº 1053/10.9TJCBR-K) e acórdãos da Relação do Porto de 22.05.2007 (processo 0722442), de 24.09.2007 (processo 0753853) e de 5.02.2009 (processo 0837835), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [18]Como anteriormente se notou, o nº 1 do art. 186º expressamente estabelece que os factos (ilícitos) do administrador só são relevantes para efeitos da qualificação da insolvência como culposa desde que tenham sido cometidos ou omitidos nos “três anos anteriores ao início do processo de insolvência”, sendo que, a este propósito, CARNEIRO DA FRADA (ob. citada, pág. 690 e seguinte) fala de uma “modelação temporal da situação de responsabilidade”. [19]In Cadernos de Direito Privado, nº 21, págs. 68 e seguinte. [20] Atenta a retificação de que a sentença foi alvo por mor do despacho exarado em 10.10.2024 deve considerar-se “não escrita” a referência ali feita de “dez anos”, resultando da mesma que o referido adiantamento ocorreu em 2020, ou seja, no ano imediatamente anterior ao da celebração dos contratos de arrendamento mencionados no ponto nº 9 da matéria dada como assente.