MATÉRIA CONCLUSIVA
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
CITAÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I. A jurisprudência vem entendendo que o prazo prescricional do “direito de regresso” ou de reembolso da seguradora que satisfez indemnização ao lesado nos casos em que a indemnização devida ao lesado ou lesados tiver sido paga de forma faseada, ao longo de um determinado período de tempo, só se inicia na data em que for realizado o último pagamento a cada lesado, pois só neste último momento ficou integralmente satisfeita a indemnização global e unitária por todos os danos sofridos em consequência do ato lesivo; mas igualmente admitindo que essa regra possa ser temperada nos casos em que seja possível a “autonomização da indemnização que corresponda a danos normativamente diferenciados”, iniciando-se então a contagem do prazo de prescrição com o último ato de pagamento de cada «núcleo indemnizatório juridicamente diferenciado de outros valores indemnizatórios», em função de critérios funcionais e temporais.
II. Tal entendimento afigura-se-nos aplicável ao caso vertente, em que a seguradora efetuou pagamentos faseados, a diversos lesados, iniciando-se, por isso, a contagem do prazo de prescrição do “direito de regresso” ou de reembolso da seguradora a partir da data do último pagamento de cada «núcleo indemnizatório autónomo», sempre por referência a cada lesado.
III. É jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que a expressão «causa não imputável ao requerente», usada no artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil, deve ser interpretada em termos de causalidade objetiva, só excluindo a interrupção da prescrição quando o requerente/autor tenha infringido objetivamente a lei em qualquer termo processual até à verificação da citação.
IV. Constitui entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico que a decisão judicial, em si mesma, não pode ser objeto de um juízo de inconstitucionalidade. Este tem de ser sempre reportado à aplicação de uma norma, tida por inconstitucional, ou de uma determinada interpretação normativa contrária à Constituição.

Texto Integral


Acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I- RELATÓRIO

EMP01... Limited Company – Sucursal em Portugal, atualmente com a designação EMP01... – Sucursal em Portugal, com sede na Rua ..., ... ..., intentou contra AA, com residência na Urbanização ..., ... ..., ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo que o réu seja condenado a pagar à autora a quantia de € 17.233,51 (dezassete mil duzentos e trinta e três euros e cinquenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável de 4%, desde a data da citação até integral pagamento e nas quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença ou ampliadas no decorrer da ação.

Alega, para o efeito e em síntese, que em 12.02.2020, no exercício da sua atividade seguradora, celebrou com o réu um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º ...26, tendo como objeto seguro o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-RE (doravante RE), e que no dia 17.07.2020, cerca das 19h00, ocorreu um acidente de viação na E.N. 205, ao Km 12,200, freguesia ..., concelho ..., no qual foram intervenientes quatro veículos: o referido veículo propriedade do réu, à data dos factos conduzido pelo mesmo, e os veículos de matrícula ..-..-RP (doravante RP), ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., propriedade de BB; de matrícula ..-ZV-.. (doravante ZV), ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., propriedade de CC, e de matrícula ..-JN-.. (doravante JN), ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., propriedade de DD.
O referido acidente ocorreu quando o réu conduzia o RE pela E.N. 205 no sentido de marcha .../Póvoa de Varzim, imprimindo ao veículo uma velocidade muito superior a 50 km/h, e ao aproximar-se do Km 12,200 da E.N. 205, sem que algo o pudesse prever, perdeu o controlo do RE, entrou em despiste, saiu da via de trânsito que lhe era destinada, e foi chocar contra o poste de iluminação da rede pública, pertencente à EMP02..., localizado no ilhéu existente no local. Ato contínuo, o RE passou por cima do ilhéu, atravessando-o, seguiu com a marcha desgovernada, e foi chocar de uma assentada contra os restantes três veículos intervenientes no acidente que se encontravam estacionados, tendo o réu acusado uma taxa quantitativa de alcoolémia de 1,08 g/l, deduzido o valor do erro máximo admissível.
No momento do acidente encontravam-se dois ocupantes no interior do ZV (...), os quais sofreram danos corporais e foram transportados do local do acidente para o Hospital ... e Hospital ... em ....
Em consequência direta do acidente, os veículos RP (...), ZV (...) e JN (...) sofreram diversos danos, tendo os respetivos proprietários reclamado da autora a sua reparação, que os indemnizou nas quantias de € 1.878,50, € 7.780,00 e € 5.599,86, respetivamente, nas datas de 17.09.2020, 21.09.2020 e 28.10.2020.
Suportou ainda a autora o valor do IVA referente à reparação do JN (...), no montante de € 263,22, na data de 17.12.2020, e pela imobilização do veículo pagou a quantia de € 789,66, em 09.06.2021.
Para além de danos materiais também resultaram do acidente danos corporais nos dois ocupantes do ZV (...), pelo que, nas datas de 10.09.2020, 12.09.2020 e 30.09.2020, a autora pagou as quantias de € 39,95, € 784,41 e € 97,91, em despesas medicamentosas da ocupante do veículo e pela assistência hospitalar dos ocupantes.
Pretende, assim, a autora exercer o seu direito de regresso contra o ora réu, nos termos do artigo 27.º n.º 1 do DL 291/2007, de 21 de agosto.

O réu contestou, por exceção, invocando a prescrição do direito que a autora pretende fazer valer, à luz do disposto no artigo 323.º do Código Civil (doravante CC), e por impugnação.

A autora respondeu à exceção de prescrição invocada.

Dispensada a audiência prévia, bem como a elaboração do despacho previsto no artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (doravante CPC), foi proferido despacho saneador tabelar e relegou-se para a sentença o conhecimento da matéria de exceção.
           
Realizou-se a audiência final, e veio a ser proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Nos termos supra expostos, julga-se a presente Ação integralmente Procedente, por integralmente provada, e, consequentemente, decide-se:
A) 1- Condenar o Réu AA no pagamento à Autora, EMP01... – SUCURSAL EM PORTUGAL, por estarem reunidos todos os pressupostos para a procedência do direito de regresso da aqui Autora sobre o ora Réu e com fundamento no disposto no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, do montante de 17.233,51 (Dezassete Mil e Duzentos e Trinta e Três Euros, e cinquenta e um cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à(s) taxa(s) legal(ais) aplicável(veis), desde a data da citação do Réu para a presente ação até efetivo e integral pagamento;
2- Condenar o Réu AA no pagamento à Autora, EMP01... – SUCURSAL EM PORTUGAL, ao abrigo do disposto no artigo 556.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), de toda e qualquer quantia que à Autora vier a ser exigida com fundamento no sinistro ocorrido em 17-07-2020, a liquidar em incidente de liquidação, nos termos do disposto nos artigos 358.º, n.º 2, e 609.º, n.º 2, ambos do CPC.»

*
Não se conformando com o assim decidido, o réu AA interpôs o presente recurso e apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:

«I. VENERANDOS DESEMBARGADORES, Através da sentença ora recorrida julgou o Tribunal a quo a ação interposta contra o Réu totalmente procedente (nos termos que aqui se dão por integralmente reproduzidos), julgando a exceção perentória da prescrição invocada pelo Réu improcedente (cfr. fls. 16 da sentença).
II. Cremos, com todo o respeito por opinião diversa, que aquele douto Tribunal a quo não efetuou uma correta interpretação e aplicação do direito, nomeadamente no que respeita a exceção perentória invocada pelo Réu.
III. Inconformado com a referida decisão (nomeadamente quanto à interpretação das normas aplicáveis), vem o Réu interpor o presente recurso para este VENERANDO TRIBUNAL com os fundamentos que infra se expõem.
VI. O presente recurso versa apenas sobre matéria de direito, sem prejuízo da alteração à matéria de facto que se impõe por força de lapsos manifestos e da correta aplicação das disposições legais aplicáveis em matéria de citação e de interrupção da citação, conforme se exporá.
VII. Atendo ao objeto do presente recurso, importa atender à factualidade considerada provada identificada pelos artigos “30.º, 33.º, 35.º, 37.º, 38.º, 39.º” (correspondente aos valores liquidados a título de reparação dos veículos), “41.º, 42.º e 43.º” (todos estes por referência ao articulado de petição e correspondentes aos valores liquidados a título de danos corporais) e, ainda, “2.º e 4.º” (por referência ao articulado de contestação), 15.º, 17.º, 19.º, 20.º e 24.º” (por referência ao articulado de resposta à contestação), que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais. – note-se que a referência que infra se fará a estes artigos é com base na referência aqui consignada.
VIII. Ora, a afirmação tecida na contestação sob o art.º 2.º consubstancia uma reprodução da tese da Autora, introdução esta realizada para aquilatar da exceção perentória da prescrição em caso de procedência dos factos alegados pela Autora (vide a menção no referido item 2.º a “alega a Autora…”); não se trata, pois, de um facto, sendo conclusivo, impondo-se, assim, a sua remoção da factualidade provada.
IX. O mesmo sucedendo quanto ao facto n.º 15.º que não passa de uma conclusão retirada dos factos antecedentes, impondo-se, concomitantemente, a sua remoção da matéria de facto provada.
X. Por outro lado, desta feita no que concerne a data de citação do Réu, constata-se da factualidade provada que o Tribunal a quo faz menção a duas datas distintas: uma sob o art.º 4.º da contestação (em que dá como provado que o Réu foi citado para a ação em 04/02/2024), e outra sob o art.º 24.º (em que dá como provado que a citação do Réu ocorreu em 01/02/2024).
XI. Desconhece-se de onde o Tribunal a quo retirou a data de “01/02/2024”, crendo o Réu que tal se terá devido a lapso manifesto, já que, e conforme resulta dos autos, o Réu foi citado para a ação em 04/02/2024.
XII. Deverá, assim, o art.º 24.º ser alterado passando a ler-se “04/02/2024” onde consta “01/02/2024”, passando a ler-se “04/02/2024” na parte da fundamentação da sentença que alude a “01/02/2024”.
XIII. Ainda relativamente aos “factos” 20.º e 24.º, constata-se que uma vez mais fez o Tribunal a quo incluir matéria conclusiva na matéria de facto provada, e factualidade que nem tampouco resultou de qualquer produção de prova, nomeadamente na última parte (a partir de “atenta a sua mudança de residência…” até final e a partir de “em virtude…” até final, respetivamente).
XIV. Impõe-se, pois, a eliminação do “facto” n.º 20.º dos factos provados e a alteração ao facto n.º 24.º devendo passar a ler-se: “A citação do Réu ocorreu na data de 04/02/2024.”
XV. Quanto ao direito aplicável, cumpre atente ao previsto nos artigos 498.º, n.º 2, 306.º, 304.º e 323.º do CÓDIGO CIVIL.
XVII. Ora, a ação foi proposta em 28/09/2023 (cfr. facto provado n.º 19); e o Réu foi citado em 04/02/2024 (facto provado n.º 4).
XVIII. A este respeito note-se que não foi produzida qualquer prova relativamente à falta de citação “por causa não imputável ao requerente”, prova esta que incumbia à Autora em face da invocação da exceção perentória da prescrição por parte do Réu na sua contestação, pelo que, cremos que nem tampouco seria aplicável o n.º 2 do art.º 323.º do CÓDIGO CIVIL.
XIX. Encontrando-se, pois, todas as verbas - à exceção da referida no facto provado sob o art.º 39.º -, prescritas.
XX. Sem prescindir, note-se que mesmo considerando aplicável o n.º 2 do art.º 323.º do CÓDIGO CIVIL (que não se pode aplicar considerando a ausência de produção de prova nesse sentido), o prazo prescricional se ainda estivesse em curso interromper-se-ia decorridos 5 dias contados do dia 28/09/2023, ou seja, interromper-se-ia a 03/10/2023.
XXI. Sucede que, em 03/10/2023, o prazo prescricional também já havia decorrido relativamente a várias verbas peticionadas nos autos conforme por cautela de patrocínio também se verá.
XXII. De acordo com a tese propalada na sentença recorrida - totalmente alheia ao facto de se estar perante vários lesados e indemnizações distintas entre si -, considerou o Tribunal a quo que o início do prazo de prescrição de 3 anos se conta a partir do dia 09/06/2021 correspondente à imobilização do ..., tese esta sem qualquer alicerce maxime atendendo ao facto de se tratar de uma verba que a seguradora terá decidido pagar volvido quase 1 ano após o ressarcimento de todos os lesados.
XXIII. Segundo a tese propalada na sentença, estava facilmente encontrada a fórmula para fazer protelar os prazos de prescrição legalmente previstos, fazendo esvaziar de sentido as demais previsões específicas em matéria de prescrição.
XXIV. Em manifesto desrespeito do princípio da legalidade e do princípio ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.
XXV. É notória a interpretação forçada constante da sentença recorrida no sentido de defender que não ocorreu a exceção perentória da prescrição, a qual é visível inclusivamente nas diferentes teses hipotéticas para pugnar pela sua não verificação (desde apelar à data do último pagamento referente à reparação dos veículos acidentados, à tese (esta verdadeiramente gravosa) de acordo com a qual o Tribunal a quo afirma que o Réu cometeu dois crimes (!) quando não existe nem existiu qualquer processo penal muito menos nenhuma sentença condenatória (transitada ou não) nesse sentido (!)). - Não sendo despiciendo referir que a taxa em questão (1,08 g/l) não constitui crime…
XXVI. Apurada a data de citação do Réu, a data em que a ação foi proposta, e a data em que se consideraria interrompida a prescrição (caso o prazo ainda não tivesse decorrido), vejamos as datas consideradas como provadas dos pagamentos efetuados pela Autora aos lesados, e a que título, para, de seguida, fazer aplicar o respetivo direito.
XXVII. Em face das datas, dos titulares e do tipo de indemnização constante dos factos provados sob os arts.º 33.º, 35.º, 37.º, 38.º, 39.º, 41.º, 42.º e 43.º (que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais), constata-se que o último dia que a Autora tinha para fazer valer o seu direito relativamente a cada uma das indemnizações pagas eram os seguintes: 17/09/2023 (quanto ao art.º 33.º); 21/09/2023 (quanto ao art.º 35.º); 28/10/2023 (quanto ao art.º 37.º); 17/12/2023 (quanto ao art.º 38.º); 09/06/2024 (quanto ao art.º 39.º); 10/09/2023 (quanto ao art.º 41.º); 12/09/2023 (quanto ao art.º 42.º); e 30/09/2023 (quanto ao art.º 43.º);
XXVIII. Ou seja, em 04/02/2024 já havia decorrido o prazo prescricional referente a todos os montantes supra referidos nos pontos 33.º, 35.º, 37.º, 38.º, 41.º, 42.º e 43.º.
XXIX. Sem prescindir, a considerar-se de aplicação “automática o vertido sob o n.º 2 do art.º 323.º do CÓDIGO CIVIL (o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe), a considerar-se interrompido o prazo prescricional em curso em 03/10/2023, ainda assim já havia decorrido o prazo prescricional referente pelos menos aos montantes aludidos nos pontos 33.º, 35.º, 41.º, 42.º e 43.º.
XXX. Pelo que, deverá ser revogada a sentença recorrida e, relativamente a pelo menos tais verbas (33.º, 35.º, 37.º, 38.º, 41.º, 42.º e 43.º), ser julgada procedente a exceção perentória invocada (prescrição) sendo o Réu absolvido dos referidos pedidos (cfr. art.º 576.º, n.º 3 do CPC).
XXXI. Olvidou, pois, o Tribunal a quo a multiplicidade de lesados em causa, a origem da indemnização, e o facto de em cada pagamento a Autora já estar em condições de exercitar o seu direito.
XXXII. Não sendo despiciendo que o Tribunal a quo condenou ainda o Réu “no pagamento à Autora de toda e qualquer quantia que a esta vier a ser exigida com fundamento no sinistro ocorrido em 17-07-2020, a liquidar em incidente de liquidação, nos termos do disposto nos artigos 358.º, n.º 2, e 609.º, n.º 2, ambos do CPC”.
XXXIII. Segundo a tese do Tribunal a quo, a Autora não tem de se preocupar com tais exceções perentórias pois estará sempre a tempo desde que venha a pagar mais qualquer coisa! - tal entendimento derrogaria o regime da prescrição.
XXXIV. A prescrição parte da ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ou, pelo menos, o torna indigno da tutela do Direito (“dormientibus non succurrit jus”).
XXXV. Incumbindo à Autora, e só à Autora, interpor a ação e fazer ocorrer a citação antes de decorrido o prazo prescricional em curso. – existindo, aliás, mecanismos legais para o efeito que estavam à sua disposição (por exemplo, a notificação judicial avulsa, a citação urgente, ou ser simplesmente diligente na atuação).
XXXVI. Carecendo, pois, de todo e qualquer sentido, a tese propalada pelo Tribunal a quo que olvida em absoluto a realidade destes autos – além de existirem vários lesados, cada um deles autonomizável entre si, no momento do respetivo pagamento a Autora já sabia sobre quem teria de agir no exercício do direito de regresso, e em que montante.
XXXVII. Tendo-o feito para além do prazo prescricional em curso, deixando-o decorrer antes de ocorrer qualquer causa de interrupção da prescrição, assiste ao Réu a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
XXXVIII. A lei prevê expressamente que o prazo de prescrição começa a correr a partir do cumprimento; sendo considerada provada a data do cumprimento, e sabendo a Autora que sobre ela impende um dever de diligência de assegurar que o prazo prescricional não decorra sem a citação antes que o mesmo se complete, ao intérprete compete aplicar a lei julgando verificada a exceção da prescrição relativamente às verbas supra descritas.
XXXIX. A propalar-se o entendimento constante da sentença recorrida, estava encontrada a fórmula de subverter a letra e o espírito do legislador, esvaziando de sentido toda uma panóplia de normas que personificam o nosso sistema jurídico. – tal entendimento, esse sim, desvirtuaria o regime jurídico consagrado na lei.
XL. Olvida, pois, o Tribunal a quo, as várias teses existentes na jurisprudência nesta matéria, sendo uma delas e que tem vindo a ser a maioritária, sobretudo em caso de pluralidade de lesados, no sentido de, tratando-se de indemnizações autonomizáveis (lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis – quer quanto aos sujeitos titulares, quer quanto à “espécie” [lesão de direito de propriedade sobre coisas ou lesão de integridade física] – autonomização esta que resulta evidenciada na própria factualidade provada), o início da contagem do prazo de prescrição se contar a partir da data de cada um dos pagamentos em causa (neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 03/07/2018 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 12/02/2015, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
XLI. In casu, além dos lesados serem distintos, as próprias indemnizações são autonomizáveis, são de origem distinta, não havendo fundamento atendível, à luz do direito aplicável, para a tese propalada na sentença recorrida; e a todo o este circunstancialismo concreto foi o Tribunal a quo alheio.
XLII. Tendo, destarte, a sentença recorrida incorrido em erro na aplicação do direito, erro este do qual o ora Recorrente apela a este VENERANDO TRIBUNAL.
XLIII. ADEMAIS, o ora Recorrente não pode deixar de arguir a nulidade da sentença recorrida por manifesta violação de princípios constitucionais, nomeadamente os arts.º 20.º n.º 4 e 32.º da CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA e art.º 6.º da CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM).
XLIV. Não pode, com o devido respeito, o julgador, a quem compete uma das tarefas mais belas como o é a de aplicar o direito e cumprir a justiça (que pressupõe a correta aplicação do direito nos moldes em que o legislador, correspondente à vontade da maioria, o previu em cada momento da história da humanidade), afirmar, numa sentença cível, que o facto ilícito em causa constitui crime e que um cidadão, neste caso o Réu, cometeu dois crimes (!).
XLV. Além dos factos em questão não consubstanciarem crime, o Tribunal não podia afirmar que o Réu cometeu dois crimes, quando não existe, nem existiu, nenhum processo crime, nenhuma acusação, nenhuma sentença condenatória, nada de índole criminal que permitisse ao Tribunal a quo tecer tal afirmação e pugnar pela improcedência da exceção da prescrição com fundamento numa extensão do prazo prescricional decorrente da lei penal (!). - nem tampouco ressalta da factualidade provada a menção a qualquer processo crime que pudesse sustentar uma tal afirmação.
XLVI. É, pois, nula a sentença, o que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos.
XLVII. Além disso, sempre se imporá a revogação da sentença recorrida na parte em que condena o Réu ora Recorrente em toda e qualquer quantia que vier a ser exigida à Autora por força deste sinistro em manifesta violação do princípio do contraditório e à revelia, uma vez mais, do próprio instituto da prescrição (note-se que o sinistro ocorreu em 17/07/2020).
XLVIII. Pelos motivos vindos de expor, não podemos, com o devido respeito, aceitar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, dissonante do próprio quadro jurídico aplicável.
XLIX. EM SÚMULA, VENERANDOS DESEMBARGADORES, revogando a sentença recorrida nos termos supra propalados V. Excelências farão cumprir o verdadeiro propósito do direito em prol da habitual e tão almejada justiça.
TERMOS EM QUE, deverá, sempre com mui douto suprimento de V. Exas, Venerandos Desembargadores, ser concedido provimento ao presente recurso, assim se fazendo, a almejada e mais elementar, JUSTIÇA!»
*
A autora contra-alegou, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:

«1. O direito de regresso que a Autora fez valer nos presentes autos encontra-se previsto na alínea c) do n.º 1 do art. 27.º do DL 291/2007, de 21 de agosto, por conseguinte,
2. Tal direito não se confunde com o direito à indemnização que assistiu aos vários lesados nos autos, nem se confunde com início de contagem do referido prazo para exercício do direito à indemnização.
3. No caso concreto a Autora dispunha do prazo de 03 anos a contar do cumprimento o que se retira da conjugação das normas dos arts. 498.º n.º 2 e 306.º do Código Civil.
4. Ora, a noção de cumprimento reporta ao último pagamento efetuado pela Autora na data de 09/06/2021, ou seja, resulta dos factos provados o seguinte quanto às datas dos pagamentos efetuados pela Autora:
32.º
O veículo ..-..-RP (...) sofreu danos em toda a extensão da parte traseira e danos na lateral esquerda e na lateral direita sob as portas da frente, e a sua reparação foi considerada economicamente inviável por implicar um custo de 4.671,77 €, sendo o valor venal do veículo de 1.450,00 €, pelo que o veículo foi considerado em “perda total”.
33.º
Em consequência do aludido em 32.º, na data de 17/09/2020 a Autora indemnizou a dona do veículo ..-..-RP (...) na quantia de 1.878,50 €, respeitantes à perda total e imobilização do veículo.
34.º
O veículo ..-ZV-.. (...) sofreu danos em toda a extensão da parte lateral direita, a sua reparação foi considerada economicamente inviável por implicar um custo de 12.204,70 € perante um valor venal do veículo de 6.970,00 €, pelo que o veículo foi considerado em “perda total”.
35.º Na data de 21/09/2020, a Autora indemnizou o proprietário do veículo ..-ZV-.. (...) na quantia de 7.780,00 € referente à perda total do veículo.
36.º O veículo ..-JN-.. (...) sofreu danos na parte traseira e em toda a extensão da lateral direita, a reparação foi orçamentada em 5.599,86 €.
37.º Na data de 28/10/2020, a Autora pagou o custo da reparação do veículo ..-JN-.. (...) no valor de 5.599,86 €.
38.º A Autora suportou ainda, na data de 17/12/2020, o valor do IVA, no montante de 263,22 €, referente à reparação do veículo ..-JN-.. (...).
39.º Pela imobilização do veículo ..-JN-.. (...), a Autora pagou a quantia de 789,66€, em 09/06/2021.
40.º Para além de danos materiais, também resultaram do acidente danos corporais nos dois ocupantes do veículo ..-ZV-.. (...).
41.º Na data de 10/09/2020, a Autora pagou a quantia de 39,95 € em despesas medicamentosas suportadas pela ocupante do veículo ..-ZV-.. (...).
42.º Pela assistência hospitalar prestada à ocupante do veículo ..-ZV-.. (...), a Autora pagou ao Hospital ... E.P.E., em 12/09/2020, a quantia de 784,41 €.
43.º Pela assistência hospitalar prestada ao ocupante do veículo ..-ZV-.. (...), a Autora pagou ao Hospital ... E.P.E., em 30/09/2020, a quantia de 97,91 €.
44.º Na reparação dos danos resultantes do sinistro em apreço, a Autora despendeu a quantia total de 17.233,51 € cujo pagamento reclama do aqui Réu.”
5. O Supremo Tribunal de Justiça tem mantido o entendimento pacífico sobre a contagem do prazo de prescrição para exercício do direito de regresso a contar da data do último pagamento – veja-se o Acórdão de 26-11-2020, Processo N.º 2325/18-0T8VRL.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt
Pelo que,
6. Tendo a petição inicial dado entrada em Tribunal na data de 28/09/2023, logo,
7. a Autora poderia exercer o seu direito até 09/06/2024.
8. Acresce que mesmo que se entendesse pela aplicação de tese diferente da perfilhada pelo Tribunal a quo sempre se diz que a sentença ora impugnada não se coibiu de analisar e fundamentar a tese contrária à perfilhada e concluiu, novamente, pela improcedência da exceção de prescrição, uma vez que,
9. mesmo que se entendesse, ou entenda, que o último pagamento deveria ser considerado com base nas datas de reparação dos veículos acidentados, resulta que o último pagamento a esse título foi efetuado em 28/10/2020, por conta da reparação do veículo ..-JN-.. (...), conforme alegado no artigo 37.º da P.I..
10. Mesmo a sufragar-se a tese da autonomização dos pagamentos e contagem do prazo prescricional a partir de cada pagamento autonomizado, que o Tribunal a quo não perfilhou – e bem –, o direito de regresso da Autora prescreveria na data de 28/10/2023.
11. Em suma, tomando qualquer das opções acima descritas para início da contagem do prazo de prescrição – 28/10/2020 ou 09/06/2021 - e considerando que a prescrição só é interrompida com a citação ou notificação judicial avulsa, nos termos do artigo 323.º, n.º 1, do CC, verifica-se que a Petição Inicial deu entrada em Tribunal em 28/09/2023.”
12. As cartas para citação do Réu foram devolvidas atenta a mudança de residência operada pelo mesmo, mas a Autora não contribuiu para tal mudança de residência, pelo que se conclui que tal facto não pode ser-lhe imputável, daí que,
13. Tendo o Réu sido citado para a presente ação em 04/02/2024 verifica-se haver lugar à aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 323.º do CC, no qual se estipula que: “Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”.
14. Nos presentes autos, a prescrição foi interrompida na data de 03/10/2023, ou seja, muito antes de ter sido alcançado o decurso do prazo de 03 (três) anos de que a Autora dispunha para exercício do seu direito de regresso.
15. Logo, seja qual for a tese considerada para o início da contagem do prazo prescricional, verifica-se que a prescrição foi interrompida 05 dias depois da data (28/09/2023) de entrada em Tribunal da P.I..
16. Há, pois, que concluir que não assiste qualquer suporte legal na alegação da prescrição por parte do Réu, uma vez que quando o Réu foi citado para a presente ação a prescrição havia sido interrompida e estava muito longe, no tempo, de ter alcançado o seu curso.
Face a todo o exposto, requer-se a V.Exas, Venerandos Juízes Desembargadores do douto Tribunal da Relação de Coimbra, a confirmação do teor da Sentença recorrida, atenta a corretíssima aplicação do Direito, nomeadamente da norma do art. 27.º n,º 1 al c), 1.ª parte, do DL 29/2007, de 21 de agosto, confirmando-se a condenação do Réu na totalidade do valor do pedido, acrescido de juros de mora desde a citação, assim como juros vincendos até integral pagamento, bem como de toda e qualquer quantia que à Autora vier a ser exigida com fundamento no sinistro ocorrido em 17-07-2020, a liquidar em incidente de liquidação, nos termos do disposto nos artigos 358.º, n.º 2, e 609.º, n.º 2, ambos do CPC.
Assim se fazendo a verdadeira e serena JUSTIÇA !!!»
*
A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC – sendo que o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de apreciar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. 
Por outro lado, não pode o Tribunal de recurso conhecer de questões novas, estranhas aos fundamentos da ação e da defesa e à decisão recorrida, delimitadora do objeto do recurso, com exceção das que sejam do conhecimento oficioso (cf. artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC), uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Porque assim é, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, importa apreciar as questões solvendas:
. Do julgamento da matéria de facto – eliminação de matéria conclusiva.
. Da prescrição do direito invocado pela autora à luz do disposto no artigo 498.º, n.º 2, do CC.
. Da alegada nulidade da sentença recorrida por violação de princípios constitucionais.
. Da condenação do réu em toda e qualquer quantia que vier a ser exigida à autora por força do ajuizado sinistro em violação do princípio do contraditório e à revelia do instituto da prescrição.
***
2. Fundamentação de facto

O Tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto (que aqui se reproduzem ipsis verbis, com exceção de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redação):

Da PETIÇÃO INICIAL sob a Refª ...42
1.º
A autora exerce a atividade seguradora em diversos ramos, mediante a autorização com o código n.º ...84, da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões.
2.º
Em 12.02.2020, no exercício da sua atividade, a autora celebrou com o réu um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
3.º
O suprarreferido Contrato tinha como objeto seguro o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca..., modelo ... 1.9 TDI, cor ..., com a matrícula ..-..-RE, e encontrava-se titulado pela apólice n.º ...26.
4.º
No dia 17.07.2020, cerca das 19:00 horas, ocorreu um acidente de viação na E.N. 205, ao Km 12,200, freguesia ..., concelho ....
5.º
A ocorrência do acima referido acidente ficou registada na Participação de Acidente de Viação, elaborada pela GNR/Destacamento de Trânsito de Braga, com o NPAV ...44/2020.
6.º
A participação do sinistro foi feita à autora através da Declaração Amigável de Acidente Automóvel.
7.º
Na sequência da participação do sinistro, a autora solicitou a uma entidade independente – EMP03... – Averiguações e Peritagens, Lda. – a averiguação sobre a ocorrência, dinâmica e danos resultantes do acidente em apreço.
8.º
Foram intervenientes no acidente em causa os seguintes quatro veículos:
• ..-..-RE, ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ... 1.9 TDI, cor ..., da propriedade do réu, à data dos factos conduzido pelo mesmo e seguro na autora;
• ..-..-RP, ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., cor cinza prata, da propriedade de BB, à data dos factos estacionado;
• ..-ZV-.., ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., cor cinza prata, da propriedade de CC, à data dos factos estacionado;
• ..-JN-.., ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., cor preta, da propriedade de DD, à data dos factos estacionado.
9.º
No local do acidente, a faixa de rodagem apresentava uma via para cada sentido de marcha.
10.º
O traçado da via era plano em reta, com asfalto em estado de conservação regular.
11.º
À data dos factos o tempo apresentava-se bom e o piso seco e limpo.
12.º
A velocidade máxima permitida no local era de 50 km/h.
13.º
Considerando o sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim, existia um local de estacionamento público do lado direito da faixa de rodagem.
14.º
A via de trânsito, no sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim, encontrava-se separada do local de estacionamento por um ilhéu com elevação em cimento que continha vegetação no meio, no qual estava também colocado um poste de eletricidade da rede pública.
15.º
Os veículos ..-..-RP (...), ..-ZV-.. (...) e ..-JN-.. (...) encontravam-se devidamente estacionados do lado direito da faixa de rodagem da E.N. 205.
16.º e 17.º
Nestas circunstâncias de tempo e de lugar, o aqui réu conduzia o ..-..-RE pela E.N. 205 no sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim, imprimindo ao veículo uma velocidade não concretamente apurada mas superior a 50 km/h.
18.º a 21.º
Ao aproximar-se do Km 12,200 da E.N. 205, sem que algo o pudesse prever, o aqui réu perdeu o controlo do veículo que conduzia, entrou em despiste, saiu da via de trânsito que lhe era destinada e foi chocar contra o poste de iluminação da rede pública, pertencente à EMP02..., localizado no ilhéu existente no local.
22.º a 24.º
Ato contínuo, o veículo ..-..-RE passou por cima do ilhéu, atravessou-o, seguiu com a marcha desgovernada e foi chocar de uma assentada contra os restantes três veículos intervenientes no acidente que se encontravam estacionados.
25.º a 27.º
O veículo ..-..-RE (...) chocou contra a parte traseira do ..-..-RP (...), contra a traseira e a lateral esquerda sob a porta traseira do ..-ZV-.. (...) e também chocou contra a lateral esquerda do ..-JN-.. (...).
28.º e 29.º
No momento do acidente, apesar de o mesmo estar estacionado, encontravam-se dois ocupantes no interior do veículo ..-ZV-.. (...), os quais sofreram danos corporais e foram transportados do local do acidente para o Hospital ... e o Hospital ... em ....
30.º
Em consequência direta, adequada e necessária do acidente, os veículos ..-..-RP (...), ..-ZV-.. (...) e ..-JN-.. (...) sofreram diversos danos.
31.º
Por força da celebração do contrato de seguro relativamente ao veículo ..-..-RE, conduzido pelo réu e causador dos danos resultantes do acidente, os respetivos donos reclamaram da autora a reparação dos danos sofridos pelos seus veículos.
32.º
O veículo ..-..-RP (...) sofreu danos em toda a extensão da parte traseira e danos na lateral esquerda e na lateral direita sob as portas da frente, e a sua reparação foi considerada economicamente inviável por implicar um custo de € 4.671,77, sendo o valor venal do veículo de € 1.450,00, pelo que o veículo foi considerado em “perda total”.
33.º
Em consequência do aludido em 32.º, na data de 17.09.2020 a autora indemnizou a dona do veículo ..-..-RP (...) na quantia de € 1.878,50, respeitantes à perda total e imobilização do veículo.
34.º
O veículo ..-ZV-.. (...) sofreu danos em toda a extensão da parte lateral direita, a sua reparação foi considerada economicamente inviável por implicar um custo de € 12.204,70 perante um valor venal do veículo de € 6.970,00, pelo que o veículo foi considerado em “perda total”.
35.º Na data de 21.09.2020, a Autora indemnizou o proprietário do veículo ..-ZV-.. (...) na quantia de € 7.780,00 referente à perda total do veículo.
36.º O veículo ..-JN-.. (...) sofreu danos na parte traseira e em toda a extensão da lateral direita, a reparação foi orçamentada em € 5.599,86.
37.º Na data de 28.10.2020, a Autora pagou o custo da reparação do veículo ..-JN-.. (...) no valor de € 5.599,86.
38.º A Autora suportou ainda, na data de 17.12.2020, o valor do IVA, no montante de € 263,22, referente à reparação do veículo ..-JN-.. (...).
39.º Pela imobilização do veículo ..-JN-.. (...), a Autora pagou a quantia de € 789,66, em 09.06.2021.
40.º Para além de danos materiais, também resultaram do acidente danos corporais nos dois ocupantes do veículo ..-ZV-.. (...).
41.º Na data de 10.09.2020, a autora pagou a quantia de € 39,95 em despesas medicamentosas suportadas pela ocupante do veículo ..-ZV-.. (...).
42.º Pela assistência hospitalar prestada à ocupante do veículo ..-ZV-.. (...), a autora pagou ao Hospital ... E.P.E., em 12.09.2020, a quantia de € 784,41.
43.º Pela assistência hospitalar prestada ao ocupante do veículo ..-ZV-.. (...), a autora pagou ao Hospital ... E.P.E., em 30.09.2020, a quantia de € 97,91.
44.º Na reparação dos danos resultantes do sinistro em apreço, a autora despendeu a quantia total de € 17.233,51 cujo pagamento reclama do aqui réu.
47.º
O ora réu, aquando do sinistro em apreço, conduzia o veículo em causa sob o efeito duma taxa quantitativa de alcoolémia de 1,08 g/l, uma vez deduzido o valor do erro máximo admissível.
59.º
Nas datas de 06.12.2021 e 05.07.2022, a autora interpelou extrajudicialmente o réu para o pagamento voluntário da dívida peticionada nos presentes autos, porém nada lhe foi reembolsado até à presente data.
Da CONTESTAÇÃO sob a Refª ...97
2.º
A autora ressarciu:
- o dono(a) do ... em 17.09.2020;
- o dono(a) do ... em 21.09.2020;
- o dono(a) do ... em 28.10.2020.
4.º
O réu foi citado para a presente ação em 04.02.2024.
*
17.º
O réu circulava na EN 205 no sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim.
18.º
O réu efetuou um desvio brusco, perdeu o controlo da viatura, entrou em despiste e foi embater num poste de iluminação na via pública e posteriormente nas viaturas que se encontravam estacionadas na berma.
Da RESPOSTA à Contestação, sob a Refª ...97
1.º
Desde ../../2024, a entidade seguradora internacional EMP01... Limited Company, com sede na República ..., alterou a sua sede social para a ..., alteração aquela que implicou a adoção de uma nova designação social.
2.º
Em consequência, a entidade jurídica EMP01... Limited Company passou a ser designada por EMP01..., sendo que todas as sucursais da mesma estão abrangidas por tal alteração.
3.º
Apesar da alteração da denominação social, todos os direitos e obrigações decorrentes da atividade seguradora da entidade mãe, bem como das respetivas sucursais, mantêm-se inalterados.
4.º
Neste contexto, em 31.01.2024, a então EMP01... Limited Company (PLC) – Sucursal em Portugal, passou a ser designada por EMP01... – Sucursal em Portugal, mantendo todos os direitos e obrigações decorrentes da sua atividade seguradora.
*
15.º
A autora efetuou o último pagamento, por conta dos danos causados pelo réu em consequência do sinistro objeto destes autos, na data de 09.06.2021.
17.º
O último pagamento, por conta da reparação dos veículos acidentados, foi efetuado em 28.10.2020, por conta da reparação do veículo ..-JN-.. (...).
19.º
A petição inicial deu entrada em Tribunal em 28.09.2023.
20.º
As cartas para citação do réu foram devolvidas, atenta a sua mudança de residência, mas a autora não contribuiu para essa mudança de residência.
24.º
A citação do réu ocorreu na data de 01.02.2024, em virtude da mudança de residência do mesmo réu, mas a autora não contribuiu para essa mudança de residência.
*
O Tribunal de 1ª instância considerou não provada a seguinte matéria de facto:

Da CONTESTAÇÃO sob a Refª ...97
8.º
O conteúdo doc. 1 junto pela autora com a PI nunca foi comunicado ao réu.
15.º
Os docs. 25 e 26 juntos com a PI nunca chegaram ao conhecimento do réu.
17.º
Quando o réu circulava na EN 205 no sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim, no entroncamento que dá acesso a Apúlia saiu um veículo que não parou no sinal de STOP e atravessou-se inadvertidamente na via.
18.º
Quando o réu efetuou um desvio brusco, perdeu o controlo da viatura, entrou em despiste e foi embater num poste de iluminação na via pública e posteriormente nas viaturas que se encontravam indevidamente estacionadas na berma, fê-lo a fim de evitar colidir no referido veículo.
19.º
O réu não teria embatido com o veículo que conduzia no poste de iluminação e nas demais viaturas, se a referida outra viatura tivesse parado no sinal de STOP existente no local.
20.º
O local onde se verificou a colisão com as demais viaturas não era destinado a estacionamento de viaturas, sendo que essas três viaturas estavam aparcadas num local onde não era permitido parar nem estacionar.
*
3. Do julgamento da matéria de facto – eliminação da matéria conclusiva

A recorrente impugnou o julgamento da matéria de facto realizado pela 1.ª instância pugnando pela eliminação do elenco dos factos julgados provados da matéria de facto que não encerra qualquer facticidade, mas tão só puras ilações conclusivas, e pela retificação de manifesto lapso de escrita, com a consequente retificação na parte da fundamentação da sentença.
Concretamente, a «afirmação tecida na contestação sob o art.º 2.º», que «consubstancia uma reprodução da tese da Autora»; o «facto n.º 15.º que não passa de uma conclusão retirada dos factos antecedentes»; «no que concerne a data de citação do Réu, constata-se da factualidade provada que o Tribunal a quo faz menção a duas datas distintas: uma sob o art.º 4.º da contestação (em que dá como provado que o Réu foi citado para a ação em 04/02/2024), e outra sob o art.º 24.º (em que dá como provado que a citação do Réu ocorreu em 01/02/2024)» devendo «o art.º 24.º ser alterado passando a ler-se “04/02/2024” onde consta “01/02/2024”, passando a ler-se “04/02/2024” na parte da fundamentação da sentença que alude a “01/02/2024» e ainda relativamente aos factos 20.º e 24.º da resposta à contestação, em que «uma vez mais fez o Tribunal a quo incluir matéria conclusiva na matéria de facto provada, e factualidade que nem tampouco resultou de qualquer produção de prova, nomeadamente na última parte (a partir de “atenta a sua mudança de residência…” até final e a partir de “em virtude…” até final, respetivamente)», impondo-se «a eliminação do “facto” n.º 20.º dos factos provados e a alteração ao facto n.º 24.º devendo passar a ler-se: “A citação do Réu ocorreu na data de 04/02/2024.”».
Cumpre, de resto, a este Tribunal ad quem a obrigação de ordenar a eliminação do elenco dos factos julgados provados da matéria de facto que se apresente repetida, bem como da matéria que não encerra qualquer facticidade, mas tão só puras ilações conclusivas e de direito e, finalmente, de proceder à compatibilização de toda a matéria de facto julgada provada por ordem cronológica e lógica, de modo a torná-la minimamente compreensível.
Com efeito, resulta do disposto no artigo 607.º do CPC que “[a] sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar” (n.º 2); “[s]eguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final” (n.º 3); [n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” (n.º 4); e “[o] juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (n.º 5).
Impende, assim, sobre o juiz, quanto ao julgamento da matéria de facto, o dever de, na sentença, discriminar os factos que considera provados, não envolvendo esta pronúncia, em princípio, aqueles pontos que contenham matéria conclusiva.
Como refere Helena Cabrita[1], «[o]s factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a ação seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) como base nessa única resposta».
Tais factos, que se traduzem na consequência lógica retirada de outros factos, só deverão integrar o elenco dos factos provados «quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio»[2].
Por outro lado, conforme se escreve no acórdão desta Relação de 17.10.2024[3], o julgador, em sede de julgamento da matéria de facto, «deve julgar provada a matéria de facto provada e não provada (os factos essenciais alegados e, bem assim os complementares que, ainda que não alegados, a respetiva prova tenha resultado da instrução da causa e as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar quanto aos mesmos), sem estar condicionado pelas regras de distribuição do ónus de prova, devendo verter na decisão da matéria de facto o resultado objetivo da apreciação dos meios de prova que foram produzidos, apenas limitado pelo objeto do processo, circunscrito pela causa de pedir e pelas exceções invocadas, descrevendo esses factos na sentença de forma fluente e fiel à realidade histórica tal como esta se revelou nos autos. Por isso, o relato dos factos essenciais e complementares dessa realidade histórica deve apresentar-se na sentença “arrumada, coerente e sequencialmente (lógica e cronologicamente)”, ou seja “compatibilizando toda a matéria de facto adquirida”, conforme expressamente é determinado pelo n.º 4 do art. 604º».
Ora, esse dever não foi observado na sentença recorrida, na medida em que nela se julgou como provada matéria que não consubstancia qualquer materialidade fáctica, mas antes matéria puramente conclusiva, assim como se julgou provada matéria de facto que constitui uma repetição de facticidade que já anteriormente tinha sido julgada provada.
Com efeito, verifica-se que a matéria dada como provada sob o ponto 2.º da contestação encerra uma repetição da factualidade dada como provada sob os pontos 33.º, 35.º e 37.º da petição inicial, assim como a matéria dada como provada sob o ponto 17.º da contestação constitui uma repetição da factualidade dada como provada sob o ponto 16.º da petição inicial. 
Do mesmo modo, a matéria dada como provada sob o ponto 18.º da contestação constitui, no essencial, uma repetição da factualidade anteriormente dada como provada sob os pontos 18.º e ss da petição inicial, pelo que deverá aquele ser eliminado, passando a matéria dada como provada sob os pontos 18.º a 21.º da petição inicial a constar com a seguinte redação:
“Ao aproximar-se do Km 12,200 da E.N. 205, sem que algo o pudesse prever, o aqui réu efetuou um desvio brusco, perdeu o controlo do veículo que conduzia, entrou em despiste, saiu da via de trânsito que lhe era destinada e foi chocar contra o poste de iluminação da rede pública, pertencente à EMP02..., localizado no ilhéu existente no local.”
A matéria dada como provada sob o ponto 15.º da resposta à contestação encerra uma ilação conclusiva da factualidade dada como provada sob os pontos 33.º e ss da petição inicial, mormente no ponto 39.º.
A matéria dada como provada sob o ponto 17.º da resposta à contestação constitui uma repetição da factualidade dada como provada sob o ponto 37.º da petição inicial.
A matéria dada como provada sob o ponto 20.º da resposta à contestação, mais precisamente do segmento “mas a autora não contribuiu para essa mudança de residência”, assim como a matéria dada como provada sob o ponto 24.º da resposta à contestação, no segmento “a citação do réu ocorreu na data de …”, bem como no segmento “em virtude da mudança da residência do mesmo réu, mas a autora não contribuiu para essa mudança da residência”, encerram uma repetição e uma ilação conclusiva traduzida na consequência lógica retirada do facto da mudança de residência do réu, já anteriormente dado como provado, carecendo, assim, de «substrato factual relevante» para a decisão do litígio.
Ademais, o relato dos factos não segue uma sequência cronológica, do ponto de vista histórico.
Destarte, com vista a expurgar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância das expressões conclusivas que encerra, bem como das repetições fácticas nele ocorridas, e de modo a conferir-lhe a necessária narração arrumada, coerente e sequencial (em termos históricos e cronológicos) que deve encerrar, determina-se a eliminação, do elenco dos factos provados, das aludidas ilações conclusivas e repetições, alterando-se, nestes termos, a decisão de facto.

Por último, e no que respeita à data da citação do réu, constata-se que a matéria dada como provada sob os pontos 4.º da contestação e 24.º da resposta à contestação contêm um manifesto lapso de escrita, tendo em atenção o teor do aviso de receção junto aos autos em 05.02.2024, pelo que se impõe a sua retificação, por forma a que onde se refere as data de 01 e 04.02.2024 passe a constar a data de 30.01.2024.
*
4. Factos provados devidamente ordenados segundo uma sequência lógica e cronológica:

1. A autora exerce a atividade seguradora em diversos ramos, mediante a autorização com o código n.º ...84, da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões.
2. Em 12.02.2020, no exercício da sua atividade, a autora celebrou com o réu um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
3. O suprarreferido contrato tinha como objeto seguro o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca..., modelo ... 1.9 TDI, cor ..., com a matrícula ..-..-RE, e encontrava-se titulado pela apólice n.º ...26.
4. No dia 17.07.2020, cerca das 19:00 horas, ocorreu um acidente de viação na E.N. 205, ao Km 12,200, freguesia ..., concelho ....
5. Foram intervenientes no acidente em causa os seguintes quatro veículos:
• ..-..-RE, ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ... 1.9 TDI, cor ..., da propriedade do réu, à data dos factos conduzido pelo mesmo e seguro na autora;
• ..-..-RP, ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., cor cinza prata, da propriedade de BB, à data dos factos estacionado;
• ..-ZV-.., ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., cor cinza prata, da propriedade de CC, à data dos factos estacionado;
• ..-JN-.., ligeiro de passageiros, de marca..., modelo ..., cor preta, da propriedade de DD, à data dos factos estacionado.
6. No local do acidente, a faixa de rodagem apresentava uma via para cada sentido de marcha.
7. O traçado da via era plano em reta, com asfalto em estado de conservação regular.
8. À data dos factos o tempo apresentava-se bom e o piso seco e limpo.
9. A velocidade máxima permitida no local era de 50 km/h.
10. Considerando o sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim, existia um local de estacionamento público do lado direito da faixa de rodagem.
11. A via de trânsito, no sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim, encontrava-se separada do local de estacionamento por um ilhéu com elevação em cimento que continha vegetação no meio, no qual estava também colocado um poste de eletricidade da rede pública.
12. Os veículos ..-..-RP (...), ..-ZV-.. (...) e ..-JN-.. (...) encontravam-se devidamente estacionados do lado direito da faixa de rodagem da E.N. 205.
13. Nestas circunstâncias de tempo e de lugar, o aqui réu conduzia o ..-..-RE pela E.N. 205 no sentido de marcha Barcelos/Póvoa de Varzim, imprimindo ao veículo uma velocidade não concretamente apurada mas superior a 50 km/h.
14. Ao aproximar-se do Km 12,200 da E.N. 205, sem que algo o pudesse prever, o aqui réu efetuou um desvio brusco, perdeu o controlo do veículo que conduzia, entrou em despiste, saiu da via de trânsito que lhe era destinada e foi chocar contra o poste de iluminação da rede pública, pertencente à EMP02..., localizado no ilhéu existente no local.
15. Ato contínuo, o veículo ..-..-RE passou por cima do ilhéu, atravessou-o, seguiu com a marcha desgovernada e foi chocar de uma assentada contra os restantes três veículos intervenientes no acidente que se encontravam estacionados.
16. O veículo ..-..-RE (...) chocou contra a parte traseira do ..-..-RP (...), contra a traseira e a lateral esquerda sob a porta traseira do ..-ZV-.. (...) e também chocou contra a lateral esquerda do ..-JN-.. (...).
17. O ora réu, aquando do sinistro em apreço, conduzia o veículo em causa sob o efeito duma taxa quantitativa de alcoolémia de 1,08 g/l, uma vez deduzido o valor do erro máximo admissível.
18. No momento do acidente, apesar de o mesmo estar estacionado, encontravam-se dois ocupantes no interior do veículo ..-ZV-.. (...), os quais sofreram danos corporais e foram transportados do local do acidente para o Hospital ... e o Hospital ... em ....
19. Em consequência direta, adequada e necessária do acidente, os veículos ..-..-RP (...), ..-ZV-.. (...) e ..-JN-.. (...) sofreram diversos danos.
20. A ocorrência do acima referido acidente ficou registada na Participação de Acidente de Viação, elaborada pela GNR/Destacamento de Trânsito de Braga, com o NPAV ...44/2020.
21. A participação do sinistro foi feita à autora através da Declaração Amigável de Acidente Automóvel.
22. Na sequência da participação do sinistro, a autora solicitou a uma entidade independente – EMP03... – Averiguações e Peritagens, Lda. – a averiguação sobre a ocorrência, dinâmica e danos resultantes do acidente em apreço.
23. Por força da celebração do contrato de seguro relativamente ao veículo ..-..-RE, conduzido pelo réu e causador dos danos resultantes do acidente, os respetivos donos reclamaram da Autora a reparação dos danos sofridos pelos seus veículos.
24. O veículo ..-..-RP (...) sofreu danos em toda a extensão da parte traseira e danos na lateral esquerda e na lateral direita sob as portas da frente, e a sua reparação foi considerada economicamente inviável por implicar um custo de € 4.671,77, sendo o valor venal do veículo de € 1.450,00, pelo que o veículo foi considerado em “perda total”.
25. Em consequência do aludido em 24., na data de 17.09.2020, a autora indemnizou a dona do veículo ..-..-RP (...) na quantia de € 1.878,50, respeitantes à perda total e imobilização do veículo.
26. O veículo ..-ZV-.. (...) sofreu danos em toda a extensão da parte lateral direita, a sua reparação foi considerada economicamente inviável por implicar um custo de € 12.204,70 perante um valor venal do veículo de € 6.970,00, pelo que o veículo foi considerado em “perda total”.
27. Na data de 21.09.2020, a autora indemnizou o proprietário do veículo ..-ZV-.. (...) na quantia de € 7.780,00 referente à perda total do veículo.
28. O veículo ..-JN-.. (...) sofreu danos na parte traseira e em toda a extensão da lateral direita, e a reparação foi orçamentada em € 5.599,86.
29. Na data de 28.10.2020, a autora pagou o custo da reparação do veículo ..-JN-.. (...) no valor de € 5.599,86.
30. A autora suportou ainda, na data de 17.12.2020, o valor do IVA, no montante de € 263,22, referente à reparação do veículo ..-JN-.. (...).
31. Pela imobilização do veículo ..-JN-.. (...), a autora pagou a quantia de € 789,66, em 09.06.2021.
32. Para além de danos materiais, também resultaram do acidente danos corporais nos dois ocupantes do veículo ..-ZV-.. (...).
33. Na data de 10.09.2020, a autora pagou a quantia de € 39,95 em despesas medicamentosas suportadas pela ocupante do veículo ..-ZV-.. (...).
34. Pela assistência hospitalar prestada à ocupante do veículo ..-ZV-.. (...), a autora pagou ao Hospital ... E.P.E., em 12.09.2020, a quantia de € 784,41.
35. Pela assistência hospitalar prestada ao ocupante do veículo ..-ZV-.. (...), a autora pagou ao Hospital ... E.P.E., em 30.09.2020, a quantia de € 97,91.
36. Nas datas de 06.12.2021 e 05.07.2022, a autora interpelou extrajudicialmente o réu para o pagamento voluntário da dívida peticionada nos presentes autos, porém nada lhe foi reembolsado até à presente data.
37. Desde ../../2024, a entidade seguradora internacional EMP01... Limited Company, com sede na República ..., alterou a sua sede social para a ..., alteração aquela que implicou a adoção de uma nova designação social.
38. Em consequência, a entidade jurídica EMP01... Limited Company passou a ser designada por EMP01..., sendo que todas as sucursais da mesma estão abrangidas por tal alteração.
39. Apesar da alteração da denominação social, todos os direitos e obrigações decorrentes da atividade seguradora da entidade mãe, bem como das respetivas sucursais, mantêm-se inalterados.
40. Neste contexto, em 31.01.2024, a então EMP01... Limited Company (PLC) – Sucursal em Portugal, passou a ser designada por EMP01... – Sucursal em Portugal, mantendo todos os direitos e obrigações decorrentes da sua atividade seguradora.
41. A petição inicial deu entrada em Tribunal em 28.09.2023.
42. O réu foi citado para a presente ação em 30.01.2024.
43. As cartas para citação do réu foram devolvidas, atenta a sua mudança de residência.
*
5. Fundamentos de Direito
           
O Tribunal a quo julgou improcedente a exceção perentória da prescrição invocada pelo réu, nos seguintes termos:
«Nos termos do disposto no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil (CC), a Autora dispunha do prazo de 03 (três) anos, a contar do cumprimento, para exercer o seu direito de regresso contra o Réu, sendo que a norma em causa tem de ser conjugada com o artigo 306.º do CC que dispõe acerca do início do curso da prescrição, ou seja, acerca do momento em que se considera ter havido cumprimento.
Para além da definição do prazo de 03 (três) anos para o exercício do direito, tão ou mais importante é saber desde quando o referido prazo pode ser exercido.
Neste contexto, o prazo previsto no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil tem o seu início a partir do cumprimento por parte da seguradora/Autora.
Nos termos do artigo 306.º do CC, o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido e, quanto a esta sede, constitui entendimento unânime da jurisprudência o de que, havendo direito de regresso da Seguradora, o prazo de 03 (três) anos para o seu exercício inicia o respetivo curso de prescrição com o último ato de pagamento efetuado pela Seguradora (…).
(…)
Tal como alegado, e supra dado como provado, no artigo 39.º da PI, a Autora efetuou o último pagamento, por conta dos danos causados pelo Réu, na data de 09/06/2021, conforme resulta do documento n.º 20 junto com a P.I..
Logo, o direito de regresso da Autora começou a ser contado, para efeitos do prazo prescricional de 3 (três) anos, da data de 09/06/2021, o que significa que a Autora podia exercê-lo até à data de 09/06/2024.
Porém, mesmo que se entendesse, ou entenda, que o último pagamento deveria ser considerado com base nas datas de reparação dos veículos acidentados, resulta que o último pagamento a esse título foi efetuado em 28/10/2020, por conta da reparação do veículo ..-JN-.. (...), conforme alegado no artigo 37.º da P.I..
Mesmo a sufragar-se esta última tese, a qual este Tribunal não perfilha, o direito de regresso da Autora prescreveria na data de 28/10/2023.
Em suma, tomando qualquer das opções acima descritas para início da contagem do prazo de prescrição – 28/10/2020 ou 09/06/2021 - e considerando que a prescrição só é interrompida com a citação ou notificação judicial avulsa, nos termos do artigo 323.º, n.º 1, do CC, verifica-se que a Petição Inicial deu entrada em Tribunal em 28/09/2023.
As cartas para citação do Réu foram devolvidas atenta a mudança de residência operada pelo mesmo, mas a Autora não contribuiu para tal mudança de residência, pelo que se conclui que tal facto não pode ser-lhe imputável.
Verifica-se haver lugar à aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 323.º do CC, no qual se estipula que: “Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”.
Nos presentes autos, a prescrição foi interrompida na data de 03/10/2023, ou seja, muito antes de ter sido alcançado o decurso do prazo de 03 (três) anos de que a Autora dispunha para exercício do seu direito de regresso.
Logo, seja qual for a tese considerada para o início da contagem do prazo prescricional, verifica-se que a prescrição foi interrompida 05 dias depois da data (28/09/2023) de entrada em Tribunal da P.I..
Apesar de a citação ter apenas ocorrido na data de 01/02/2024, por mudança de residência do Réu, facto não imputável à Autora e que só através de pesquisa às bases de dados da Segurança Social foi apurado.
Há, pois, que concluir que não assiste qualquer suporte legal na alegação da prescrição por parte do Réu, uma vez que quando o Réu foi citado para a presente ação a prescrição havia sido interrompida e estava muito longe, no tempo, de ter alcançado o seu curso.
Por último, independentemente das questões acima suscitadas, importa citar o disposto no artigo 498º/3 do Código Civil:
“3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”.
O Réu incorreu, face à matéria de facto provada, nos crimes de condução perigosa e de condução de veículo em estado de embriaguez, previstos e puníveis pelos artigos 291.º e 292.º ambos do Código Penal, e de cuja prática resulta um prazo de prescrição mais longo, não inferior a cinco anos».

O réu insurge-se contra o assim decidido com os seguintes fundamentos:
. A ação foi proposta em 28.09.2023 (cf. facto provado n.º 19); e o réu foi citado em 04.02.2024 (facto provado n.º 4).
. Não foi produzida qualquer prova relativamente à falta de citação “por causa não imputável ao requerente”, prova esta que incumbia à autora em face da invocação da exceção perentória da prescrição por parte do réu na sua contestação, pelo que não seria aplicável o n.º 2 do art.º 323.º do Código Civil.
. Mesmo considerando aplicável o n.º 2 do art.º 323.º do Código Civil, o prazo prescricional, se ainda estivesse em curso, interromper-se-ia decorridos 5 dias contados do dia 28.09.2023, ou seja, interromper-se-ia a 03.10.2023.
Sucede que, em 03.10.2023, o prazo prescricional também já havia decorrido relativamente a várias verbas peticionadas nos autos.
. O Tribunal a quo considerou que o início do prazo de prescrição de 3 anos se conta a partir do dia 09.06.2021 correspondente à imobilização do ..., tese esta sem qualquer alicerce maxime atendendo ao facto de se tratar de uma verba que a seguradora terá decidido pagar volvido quase 1 ano após o ressarcimento de todos os lesados.
. Em face das datas, dos titulares e do tipo de indemnização constante dos factos provados sob os artigos 33.º, 35.º, 37.º, 38.º, 39.º, 41.º, 42.º e 43.º, constata-se que o último dia que a autora tinha para fazer valer o seu direito relativamente a cada uma das indemnizações pagas eram os seguintes: 17.09.2023 (quanto ao art.º 33.º); 21.09.2023 (quanto ao art.º 35.º); 28.10.2023 (quanto ao art.º 37.º); 17.12.2023 (quanto ao art.º 38.º); 09.06.2024 (quanto ao art.º 39.º); 10.09.2023 (quanto ao art.º 41.º); 12.09.2023 (quanto ao art.º 42.º); e 30.09.2023 (quanto ao art.º 43.º).
Ou seja, em 04.02.2024 já havia decorrido o prazo prescricional referente a todos os montantes referidos nos pontos 33.º, 35.º, 37.º, 38.º, 41.º, 42.º e 43.º.
. O Tribunal a quo olvidou a multiplicidade de lesados em causa, a origem da indemnização, e o facto de em cada pagamento a autora já estar em condições de exercitar o seu direito.

Já a autora pugna pela confirmação da sentença recorrida.

Atentemos.
Prevê o artigo 498.º do CC, o seguinte:
“1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.
2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.
3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
(…)”.
O n.º 2 do preceito, diretamente aplicável ao direito de regresso dos sujeitos solidariamente responsáveis, tem sido aplicado ao direito ao reembolso da seguradora que satisfez indemnização ao lesado, reconhecido nas hipóteses taxativamente previstas no artigo 27.º do regime legal do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, a exercer contra os responsáveis civis definidos no mesmo preceito.
A jurisprudência vem entendendo que, com exceção dos casos de indemnização em renda e de outras parcelas perfeitamente destacáveis, o prazo prescricional do “direito de regresso” ou de reembolso nos casos em que a indemnização devida ao lesado ou lesados tiver sido paga de forma faseada, ao longo de um determinado período de tempo, só começa a contar-se na data em que for realizado o último pagamento a cada lesado, pois só neste último momento ficou integralmente satisfeita a indemnização global e unitária por todos os danos sofridos em consequência do ato lesivo; mas admitindo igualmente que essa regra possa ser temperada nos casos em que seja possível a “autonomização da indemnização que corresponda a danos normativamente diferenciados”, iniciando-se então a contagem do prazo de prescrição com o último ato de pagamento de cada «núcleo indemnizatório juridicamente diferenciado de outros valores indemnizatórios»,[4] em função de critérios funcionais (ligados à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados) e temporais[5].
Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2011[6], «a ideia base da unidade da «obrigação de indemnizar» poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente :
- a indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;
- a indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas.
E tal autonomização ou diferenciação, operada funcionalmente em razão da natureza dos bens lesados, poderá tornar razoável uma consequencial autonomização do início dos prazos de prescrição do direito de regresso: assim, por exemplo, não vemos razão bastante para que, - tendo a seguradora assumido inteiramente perante o lesado o ressarcimento de todos os danos decorrentes da destruição e privação do uso da viatura sinistrada – possa diferir o exercício do direito de regresso quanto a essa parcela autonomizável e integralmente satisfeita da indemnização apenas pela circunstância de, tendo o acidente provocado também lesões físicas determinantes de graves sequelas, ainda não inteiramente avaliadas e consolidadas, estar pendente o apuramento e a liquidação da indemnização pelos danos exclusivamente ligados à violação de bens da personalidade do lesado».

José Carlos Brandão Proença qualifica esta tese de «tese mitigada do último pagamento», na qual, «tratando-se, pois, de um conjunto danoso incindível, o começo de contagem do prazo coincide com a extinção integral dessa «parte» indemnizatória»[7].

Sufragamos tal entendimento, que se nos afigura aplicável ao caso vertente, em que a seguradora efetuou pagamentos faseados, a diversos lesados, iniciando-se, por isso, a contagem do prazo de prescrição do seu “direito de regresso”[8] ou de reembolso a partir da data do último pagamento de cada «núcleo indemnizatório autónomo», sempre por referência a cada lesado[9].

Não foi objeto de controvérsia entre as partes a aplicação à situação litigiosa em causa do prazo de prescrição de três anos previsto no n.º 2 do artigo 498.º do CC.
Com efeito, e abrindo aqui um parêntesis, atenta a menção que é feita na sentença recorrida ao n.º 3 do artigo 498.º do CC, cumpre referir que, independentemente da questão que se poderia colocar e que é discutida, de saber se o n.º 3 do mencionado preceito é aplicável à prescrição do “direito de regresso” ou de reembolso da seguradora, cabe à parte que pretende beneficiar da ampliação do prazo prescricional aí previsto, atento o seu teor, alcance e sentido, o ónus de, por um lado alegar que os factos praticados pela pessoa a quem pede a indemnização, além de constituírem um ilícito civil, constituem, igualmente, um ilícito criminal e, por outro, de concretizar, através dessa mesma alegação, os factos em causa[10].

Ora, no caso vertente, a recorrente não cumpriu aquele ónus, não tendo manifestado qualquer pretensão no sentido de beneficiar da referida ampliação do prazo prescricional, pelo que não cumpre dela conhecer.

Resulta do quadro factual apurado que a autora procedeu aos seguintes pagamentos:
. da quantia de € 39,95 respeitante a despesas medicamentosas suportadas pela ocupante do veículo de matrícula ..-ZV-.. (...), na data de 10.09.2020;
. da quantia de € 784,41, ao Hospital ... E.P.E., respeitante a assistência hospitalar prestada à mesma ocupante, na data de 12.09.2020;
. da quantia de € 97,91, ao Hospital ... E.P.E., respeitante a assistência hospitalar prestada ao ocupante do mesmo veículo, na data de 30.09.2020;
. da indemnização de € 1.878,50 à lesada proprietária do veículo de matrícula ..-..-RP (...), respeitante à perda total e imobilização do veículo, na data de 17.09.2020;
. da indemnização de € 7.780,00 ao lesado proprietário do veículo de matrícula ..-ZV-.. (...), referente à perda total do veículo, na data de 21.09.2020;
. da indemnização de € 5.599,86 ao lesado proprietário do veículo de matrícula ..-JN-.. (...), respeitante ao custo da reparação do veículo, na data de 28.10.2020;
. do valor do IVA, no montante de € 263,22, referente à reparação do referido veículo ...), na data de 17.12.2020 e
. da indemnização de € 789,66 ao mesmo lesado pela imobilização do referido veículo ...), na data de 09.06.2021.
           
A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (cf. artigo 323.º, n.º 1, do CC).
Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias (cf. artigo 323.º, n.º 2, do CC).

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, «[s]e a citação ou notificação é feita dentro dos cinco dias seguintes ao requerimento, não há retroactividade quanto à interrupção da prescrição. Atende-se, neste caso, ao momento da citação ou notificação. Se é feita posteriormente, por causa não imputável ao requerente, considera-se interrompida passados os cinco dias (…). Se a culpa da demora é do requerente, atende-se ao momento da citação ou notificação»[11].
Pode ler-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.04.2002[12] que «o autor, para beneficiar do regime consagrado no n. 2 daquele artigo 323 tem de cumprir duas condições: requerer a citação do réu 5 dias antes do termo do prazo prescricional; e evitar que o eventual retardamento da citação lhe seja imputável».

É jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que a expressão «causa não imputável ao requerente», usada no artigo 323.º, n.º 2, do CC, deve ser interpretada em termos de causalidade objetiva, só excluindo a interrupção da prescrição quando o requerente/autor tenha infringido objetivamente a lei em qualquer termo processual até à verificação da citação, v.g. quando não proceda ao pagamento do preparo inicial no prazo normal ou quando indica uma falsa residência do réu[13].

A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo (cf. artigo 326.º, n.º 1, do CC), sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 327.º do CC.
Se a interrupção resultar de citação, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo (cf. artigo 327.º, n.º 1, do CC).       

Voltando ao caso vertente, verifica-se que resultaram provados créditos atinentes ao ressarcimento de danos de natureza não patrimonial, concretamente à ocupante do veículo de matrícula ..-ZV-.. e a terceiros, nomeadamente ao Hospital ... E.P.E. e ao Hospital ... E.P.E., constituindo cada um, per se, um «núcleo indemnizatório»; e créditos atinentes a danos de natureza patrimonial, concretamente à perda total dos veículos de matrícula ..-..-RP (...) e ..-ZV-.. (...), e à reparação e imobilização do veículo de matrícula ..-JN-.. (...), constituindo cada um (perda total do primeiro veículo; perda total do segundo veículo; reparação e imobilização do terceiro), per se, um «núcleo indemnizatório».

Os créditos por pagamentos efetuados a entidades distintas dos lesados são de considerar separadamente[14].

Considerando que a ação deu entrada em tribunal em 28.09.2023; que as cartas enviadas para citação do réu foram devolvidas atenta a sua mudança de residência e que a citação do réu ocorreu na data de 30.01.2024, concluímos que o prazo de prescrição de três anos, previsto no n.º 2 do artigo 498.º do CC, já havia ocorrido, à data de entrada da ação em juízo, no que respeita ao pagamento efetuado à ocupante do veículo de matrícula ..-ZV-.. (...), na data de 10.09.2020; ao pagamento efetuado ao Hospital ... E.P.E., na data de 12.09.2020; ao pagamento efetuado ao Hospital ... E.P.E., na data de 30.09.2020, este último, dado a autora ter intentado a ação dois dias antes da consumação do aludido prazo de prescrição de três anos, não beneficiando, por isso, do regime previsto no n.º 2 do artigo 323.º do CC e, por último, no que respeita aos pagamentos efetuados aos proprietários dos veículos de matrícula ..-..-RP (...) e ..-ZV-.. (...) nas datas de 17.09.2020 e 21.09.2020 respetivamente.
A indemnização pelo custo da reparação e pela imobilização do veículo de matrícula ..-JN-.. (...), que constitui, como antedito, um «núcleo indemnizatório», foi paga de forma faseada, em 28.10.2020 e 09.06.2021, pelo que o prazo de prescrição do “direito de regresso” da seguradora se iniciou a partir deste último pagamento.
Logo, tendo o réu sido citado em 30.01.2024, e atendendo a que o prazo de prescrição se interrompe pela citação, verifica-se que não decorreu o prazo de três anos à data da citação.

A despesa de € 263,22 respeitante ao valor do IVA referente à reparação do veículo de matrícula ..-JN-.., suportada pela autora na data de 17.12.2020, corresponde a um pagamento efetuado a entidade distinta do lesado, sendo, como tal, de considerar separadamente.
A ação deu entrada em tribunal em 28.09.2023 e a citação do réu não se efetuou dentro de cinco dias depois de ter sido requerida.
Do compulsar dos autos não resulta que a falta de citação no tempo devido possa ser imputada à conduta da autora, antes se demonstrando que o retardamento da citação ficou a dever-se a facto imputável ao réu, na medida em que as cartas enviadas para a sua citação foram devolvidas por motivo de mudança da sua residência, pelo que a autora beneficia da interrupção da prescrição a que alude o n.º 2 do citado artigo 323.º, tendo-se a prescrição por interrompida logo que decorridos os cinco dias.
Isto posto, concluímos que decorreu o prazo prescricional de três anos previsto no n.º 2 do artigo 498.º do CC, relativamente aos pagamentos efetuados nas datas de 10.09.2020 (€ 39,95), 12.09.2020 (€ 784,41), 17.09.2020 (€ 1.878,50), 21.09.2020 (7.780,00) e 30.09.2020 (€ 97,91).
Por conseguinte, na procedência parcial da exceção perentória invocada, deve o réu ser absolvido do pedido relativamente aos aludidos montantes.
Quanto aos demais pagamentos, efetuados nas datas de 28.10.2020 (€ 5.599,86), 17.12.2020 (€ 263,22) e 09.06.2021 (€ 789,66), não decorreu o aludido prazo de prescrição, improcedendo, nesta parte, o recurso.
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Da nulidade da sentença recorrida por violação de princípios constitucionais

Sustenta o recorrente que a sentença recorrida viola os artigos 20.º n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, quando na mesma se afirma que o facto ilícito em causa constitui crime e que o réu cometeu dois crimes, porquanto, além dos factos em questão não consubstanciarem crime, o Tribunal não podia afirmar que o réu cometeu dois crimes, quando não existe, nem existiu, nenhum processo crime, nenhuma acusação, nenhuma sentença condenatória, nada de índole criminal que permitisse ao Tribunal a quo tecer tal afirmação e pugnar pela improcedência da exceção da prescrição com fundamento numa extensão do prazo prescricional decorrente da lei penal, nem tampouco ressalta da factualidade provada a menção a qualquer processo crime que pudesse sustentar uma tal afirmação.

Adiantamos, desde já, que a questão suscitada pelo recorrente é manifestamente improcedente.
Com efeito, constitui entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico que a decisão judicial, em si mesma, não pode ser objeto de um juízo de inconstitucionalidade. Este tem de ser sempre reportado à aplicação de uma norma, tida por inconstitucional, ou de uma determinada interpretação normativa contrária à Constituição[15].
A fiscalização concreta da constitucionalidade ou o pedido de declaração de inconstitucionalidade reportam-se a normas jurídicas e não a decisões dos tribunais.
A parte tem o dever de identificar e pedir a desaplicação da norma ordinária que considera inconstitucional e indicar o princípio constitucional violado. Só assim será admissível o recurso para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta – cf. artigo 280.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º, 72.º e 75.º-A, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.
No caso vertente, o recorrente não suscita a inconstitucionalidade de qualquer norma ordinária, nem, a final, formula qualquer pedido explícito (ou implícito) de declaração de inconstitucionalidade, antes discorda dos fundamentos e interpretação da decisão recorrida, sustentando que a sentença recorrida violou princípios constitucionais, nomeadamente o princípio do direito a um processo justo e equitativo e o princípio in dúbio pro reo (artigos 20.º n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Não questiona a constitucionalidade de uma norma ordinária.
Ora, discordar de uma decisão judicial não é reagir à aplicação de uma norma que se entende violar a Constituição da República Portuguesa. 
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Da condenação do réu em toda e qualquer quantia que vier a ser exigida à autora por força do ajuizado sinistro em violação do princípio do contraditório e à revelia do instituto da prescrição

Sustenta ainda o recorrente que se impõe a revogação da sentença recorrida na parte em que condena o réu em toda e qualquer quantia que vier a ser exigida à autora por força do ajuizado sinistro «em manifesta violação do princípio do contraditório e à revelia, uma vez mais, do próprio instituto da prescrição (note-se que o sinistro ocorreu em 17/07/2020)».
O princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º do CPC, impõe, desde logo, que, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, seja dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão.
Ora, a autora formulou, na petição inicial, o pedido de condenação do réu a pagar-lhe, além do mais, as «quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença» e o réu teve a possibilidade de se pronunciar sobre tal pedido na sua contestação, pelo que a sua condenação no mesmo não constituiu uma decisão-surpresa, isto é, uma «decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes»[16], inexistindo, assim, violação do princípio do contraditório ínsito no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
 O demais alegado pelo recorrente carece de sentido, porquanto o direito ao reembolso da seguradora que satisfez indemnização ao lesado prescreve no prazo de três anos a contar do cumprimento, não da data do sinistro.
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III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, julgam procedente a exceção perentória da prescrição no que respeita aos pagamentos efetuados nas datas de 10.09.2020 (€ 39,95), 12.09.2020 (€ 784,41), 17.09.2020 (€ 1.878,50), 21.09.2020 (7.780,00) e 30.09.2020 (€ 97,91), no montante total de € 10.580,77, em consequência do que absolvem o réu, nessa parte, do pedido, e condenam o réu no pagamento à autora do montante de € 6.652,74 (seis mil seiscentos e cinquenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde a data da citação até integral pagamento, confirmando, no mais, a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente e recorrida na proporção de 38,60% e 61,40% respetivamente (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário concedido nos autos.
 Notifique-se.
                                   
Guimarães, 4 de novembro de 2025

Susana Raquel Sousa Pereira – Relatora   
Fernando Manuel Barroso Cabanelas – 1º Adjunto
Maria João Marques Pinto de Matos – 2ª Adjunta


[1] A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107; na jurisprudência, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01.10.2019 (processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1, relatado por Fernando Samões) e o acórdão da Relação do Porto de 26.02.2015 (processo n.º 5807/13.6TBMTS.P1, relatado por Pedro Martins).
[2] Vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2020 (processo n.º 2124/17.6T8VCT.G1.S1, relatado por Paula Leal de Carvalho) e de 14.07.2021 (processo n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1, relatado por Júlio Gomes).
[3] Processo n.º 6165/20.8T8BRG.G1, relatado por José Alberto Dias.
[4] Vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.11.2010 (processo n.º 2564/08.1TBCB.A.C1.S1, relatado por João Bernardo), de 07.04.2011 (processo n.º 329/06.4TBAGN.C1.S1, relatado por Lopes do Rego), de 19.05.2016 (processo n.º 645/12.6TVLSB.L1.S1, relatado por Maria da Graça Trigo), de 07.02.2017 (processo n.º 3115/13.1TBLLE.E1.S1, relatado por Fonseca Ramos), de 18.01.2018 (processo n.º 1195/08.0TVLSB.E1.S1, relatado por Maria do Rosário Morgado), de 03.07.2018 (processo n.º 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1, relatado por Pinto de Almeida) e de 26.11.2020 (processo n.º 2325/18.0T8VRL.G1.S1, também relatado por Maria do Rosário Morgado).
No sentido de que o prazo em causa se deve contar autonomamente relativamente a cada ato de pagamento parcelar efetuado pelo titular do direito ao reembolso, iniciando-se a contagem do prazo de prescrição a partir do primeiro ou de cada ato de pagamento, atomisticamente considerado, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.03.2003 (processo n.º 03B644, relatado por Araújo Barros), de 28.10.2004 (processo n.º 04B3385, relatado por Salvador da Costa), de 26.06.2007 (processo n.º 07A1523, relatado por Faria Antunes) e de 07.05.2014 (processo n.º 8304/11.0T2SNT-AL1.S1, relatado por Granja da Fonseca).
[5] V.g., «quando a obrigação de indemnizar a cargo da seguradora abranja danos futuros, susceptíveis de se revelarem e desenvolverem ao longo de períodos temporais muito prolongados (o que normalmente ocorrerá quando o acidente tiver originado lesões graves, cujas sequelas incapacitantes se vão desenrolado e agravando ao longo de anos) – não se vendo, neste caso, razão bastante para que a seguradora não deva exercitar a acção de regresso, referentemente à indemnização que satisfez e que cobre integralmente os danos actuais, causados pelo sinistro e perfeitamente consolidados e ressarcidos, de modo a deixar assente nessa acção, exercitada em prazo ainda próximo da data do acidente, toda a sua dinâmica e causalidade» - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2011 (processo n.º 329/06.4TBAGN.C1.S1, relatado por Lopes do Rego).
[6] Processo n.º 329/06.4TBAGN.C1.S1, relatado por Lopes do Rego.
[7] «Direito de regresso das seguradoras e sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel: pontos de vista parcelares», Julgar n.º 46, 2022, p. 101.
[8] José Carlos Brandão Proença, na sua anotação ao acórdão do STJ de 18 de outubro de 2012, intitulada «Natureza e prazo de prescrição do “direito de regresso” no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – Ac. Do STJ de 18.10.2012, Proc.56/10», publicada na revista Cadernos de Direito Privado, n.º 41, colocou reservas à epígrafe do artigo 27.º («Direito de regresso da empresa de seguros») do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, por entender não ter a seguradora a posição de um devedor solidário (ao lado do causador do acidente).
[9] Veja-se o acórdão desta Relação de 12.02.2015 (processo n.º 153/11.2TBVFL.G1, relatado por Jorge Teixeira).
[10] Vejam-se os acórdãos da Relação do Porto de 07.07.2016 (processo n.º 1079/08.2TVPRT.P1, relatado por Manuel Domingos Fernandes) e de 19.02.2024 (processo n.º 1172/21.6T8PNF-B.P1, relatado por Eugénia Cunha) e do Supremo Tribunal de Justiça de 27.03.2025 (processo n.º 840/23.2T8LRA-A.C1.S1, relatado por Ferreira Lopes).
[11] Código Civil anotado, Volume I, 4.ª Edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pp. 290-291, nota 3.
[12] Processo n.º 01S4423, relatado por Mário Torres.
[13] Vejam-se, entre outros, os acórdãos de 03.02.2011 (processos n.º 1228/07.8TBAGH.L1.S1, relatado por Lopes do Rego), de 20.06.2012 (processo n.º 347/10.8TTVNG.P1.S1, relatado por Sampaio Gomes), de 23.01.2014 (processo n.º 8021/04.8YYLSB-A.L1.S1, relatado por Fernando Bento), de 29.11.2016 (processo n.º 448/11.5TBSSB-A.E1.S1, relatado por Garcia Calejo), de 03.07.2018 (processo n.º 1965/13.8TBCLD-A.C1.S1, relatado por Ana Paula Boularot), de 12.09.2018 (processo n.º 5282/07.4TTLSB.L1.S1, relatado por Chambel Mourisco) e de 24.01.2019 (processo n.º 524/13.0TBTND-A.C1.S1, relatado por Rosa Tching).
[14] Veja-se o acórdão do Supremo Tribuna de Justiça de 19.05.2016 (processo n.º 645/12.6TVLSB.L1.S1, relatado por Maria da Graça Trigo), no qual foi perfilhado idêntico entendimento, no que respeita a despesa respeitante à averiguação das causas do sinistro.
[15] Veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 23.02.2021 (processo n.º 2667/19.7T8ACB.C1, relatado por Carlos Moreira) e o acórdão desta Relação de 07.10.2021 (processo n.º 1782/20.9T8BRG.G1, relatado por Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso).
[16] Assim, JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, Almedina, p. 31, nota 8.